O milagre de Luisa: tragédia que quase tirou a vida de triatleta completa um ano
"Todos os dias quando acordo, não tenho mais o tempo que passou, mas tenho muito tempo, temos todo tempo do mundo". A música de Legião Urbana embalou os passos de Luisa Baptista neste último ano. "Sempre em frente, não temos tempo a perder." Assim a triatleta de 30 anos encara a vida no marco de um ano de um acidente quase fatal, enquanto treinava ciclismo para as Olimpíadas de Paris. Olha para frente, para o futuro. Sonha e se vê de volta ao alto rendimento, ao esporte que tanto ama.
Triatleta Luisa Baptista segue recuperação um ano após atropelamento
- Ninguém esperava mesmo que eu saísse com vida dessa situação. Acho que fugiu de todos os protocolos médicos. A vida é oportunidade. Sem dúvida eu quero aproveitar da maneira mais alta possível, a partir de agora ainda mais. Eu espero muito voltar ao alto rendimento, mas se eu não conseguir já tenho plano A, B, C e D. Tudo relacionado com esporte - disse Luisa, que em novembro pela primeira vez correu em uma competição, uma volta simbólica na etapa de Brasília da Copa do Mundo de triatlo.
O esporte sempre foi a vida de Luisa. Tinha poucos meses de vida quando os pais a colocaram na natação, em Araras, cidade do interior paulista. O triatlo foi uma paixão da adolescência. E vingou. Foram 27 pódios em competições homologadas pela World Triathlon, incluindo dois ouros dos Jogos Pan-Americanos de 2019 - um no individual feminino, outro no revezamento misto. Uma carreira interrompida de maneira brusca.
O acidente
Na manhã do dia 23 de dezembro de 2023, Luisa fazia o último treino de ciclismo antes da pausa de Natal. Era parte da preparação para os Jogos de Paris, que seriam suas segundas Olimpíadas. Mas a pedalada na estrada de Santa Eudóxia, distrito de São Carlos (SP), terminou de forma trágica. Um motociclista sem habilitação atropelou a triatleta que teve 28 fraturas.
Triatleta amador, Paulo Manzini acompanha o treino dos amigos olímpicos - além de Luisa, Manoel Messias e Reinaldo Colucci estavam na pedalada. O empresário foi um dos primeiros a encontrar Luisa após o acidente e fez os primeiros socorros.
- Pra mim foi muito impactante. Dei uma titubeada. Caramba, eu vi ferimentos muito graves na perna dela, dilacerada mesmo. E eu ouvia ela num processo de respiração constante, ofegante, tinha uma dificuldade de respiração - contou Manzini.
Paulo ligou para o Samu e para os bombeiros às 8h08. Nos 20 minutos para a chegada da primeira ambulância, fez uma videochamada o amigo médico Adimilson Delgado. O neurocirurgião estava prestes a entrar em uma sala de cirurgia, mas antes instruiu o empresário a fazer os primeiros socorros.
A luta pela vida
Luisa foi levada em estado crítico ao Hospital da Santa Casa de São Carlos, cidade onde mora e treina desde 2011. Se iniciava então uma corrida para estabilizá-la. Os pais, Ronaldo e Jaqueline, se deslocaram de Araras. O irmão Vitor, de Ribeirão Preto.
- A hora mais crítica foi quando a gente entrou a chamado de um médico. Todos os médicos reunidos para passar a notícia para gente de que a vida da Luisa dependia da amputação da perna dela. Essa hora os meus pais deram uma desabada. Acabou chegando outro médico a São Carlos, conseguiu alinhar a perna dela, voltou a circulação e não foi necessária a amputação. Foi um momento que a gente teve acho que a primeira vitória, a primeira felicidade dentro do hospital - contou Vitor.
A notícia de que uma triatleta olímpica estava entre a vida e a morte se espalhou e chegou a Anápolis, no interior de Goiás, onde a médica Ludhmila Abrahão Hajjar passava o Natal. Cardiologista e professora da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, ela entrou em contato com a família de Luisa pelas redes sociais e, em questão de horas, mobilizou uma UTI aérea para transferir a triatleta para o Hospital das Clínicas de São Paulo.
- Desde que vi aquela reportagem no G1, aquilo não saiu mais da minha cabeça. Eu tenho que fazer alguma coisa por essa menina. Ela tá precisando de ajuda. Aquilo me moveu de uma maneira, eu não quis mais saber de Natal. Na hora eu pensei em lesão pulmonar, pensei: "Ela pode estar precisando de uma ECMO e no interior não tem". Ela estava ali realmente com os minutos contados. Há algo de inexplicável. E vou te falar isso que é da minha vida médica: eu vejo milagres acontecerem - disse Ludhmila.
ECMO é a sigla para Oxigenação por Membrana Extracorpórea, um aparelho que funciona como um pulmão e um coração artificiais. Uma terapia que ainda não está no catálogo do Sistema Único de Saúde (SUS) e que ainda é pouco acessível no Brasil. À 0h do dia 25 de dezembro de 2023, já com o auxílio da ECMO, Luisa deixava São Carlos para receber atendimento em São Paulo. Justamente no dia de Natal.
- Esse foi o único e verdadeiro Natal que a gente tava passando, porque a Luisa tava renascendo. Foi o Natal do renascimento mesmo - disse o pai, Ronaldo.
A recuperação
Foram 167 dias de internação e de muitas dúvidas. Sairia do coma? O fez em dois meses. Recuperaria todas as funções cognitivas? A linguagem em um momento voltou no espanhol, mas logo estava catando em bom português todas as letras do Legião Urbana, sua banda favorita. Voltaria a andar? No dia 17 de março deu o primeiro passo, antes mesmo de colocar uma prótese no quadril, em maio. Mas voltaria ao esporte?
- A gente não tem nenhum relato de caso, nenhum estudo que tenha todas essas lesões que a Luisa sofreu. E muito menos essas lesões aplicadas a um atleta de alto rendimento. Ela é muito, muito forte. Somado a isso eu posso dar uma característica que ela é muito teimosa. Ela sempre quer algo a mais pra recuperar cada vez mais rápido. Algumas vezes isso é positivo, algumas vezes a gente tem que dar um puxão de orelha - disse Gustavo Meliscki, fisioterapeuta da Confederação Brasileira de Triatlo.
Luisa começou a fisioterapia ainda no Hospital São Luiz, no Itaim Bibi, bairro da Zona Oeste de São Paulo, para onde foi transferida em 18 de janeiro. Depois de receber alta no dia 7 de junho, foram poucos dias na casa dos pais em Araras. A triatleta se mudou para Ribeirão Preto, no interior de São Paulo, para iniciar a reabilitação esportiva com Gustavo Meliscki. Nos últimos cinco meses, a rotina da campeã pan-americana é de 44 horas semanais de treinos.
Trabalhos com pedais fazem parte da recuperação desde os dias no hospital. Luisa ainda não pode pedalar na bike livre, mas os testes na bicicleta fixa no rolo já impressionam. Nove meses depois do acidente, as primeiras braçadas na piscina.
- Foi emocionante estar na piscina de novo. Acho que eu fiz muita gente chorar naquele dia. Nove meses do meu renascimento - lembrou, Luisa.
No dia 9 de novembro, retornou a uma competição de triatlo. Viu de perto Manoel Messias, que estava naquele treino do acidente em Santa Eudóxia, vencer a etapa de Brasília da Copa do Mundo. Chorou ao ver o amigo receber a medalha de ouro. Emoção maior só quando foi a vez dela de correr pela primeira vez. Puxou o pelotão de triatletas do Brasil em uma volta simbólica que era para durar no máximo cinco minutos - ela completou em 2min56s.
- Viver esse momento é uma lembrança que eu vou levar pro resto da vida - disse Luisa.
Ainda há muitos passos na jornada de Luisa para voltar ao esporte de alto rendimento, e as probabilidades de isso acontecer são baixas.
- A gente sabe que vai ser muito difícil. A gente sabe, por exemplo, que de todas as pessoas que fazem uma prótese de quadril, menos de 20% dessas pessoas retornam pra prática da corrida. A gente sabe que menos de 3% dessas pessoas retornam ao esporte de alto rendimento - disse Gustavo Meliscki.
Luisa desafia as estatísticas e sonha retornar a grandes competições. Não descarta brigar por uma vaga nas Olimpíadas de Los Angeles 2028, mas mira mesmo os Jogos Pan-Americanos de 2027, novamente em Lima, palco do seu maior título, em 2019.
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