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Crise bósnia

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Capa do periódico francês Le Petit Journal sobre a crise da Bósnia: o Príncipe Fernando I da Bulgária declara independência e é proclamado czar, e o imperador austríaco Francisco José anexa a Bósnia e Herzegovina, enquanto o sultão otomano Abdulamide II apenas observa

A crise da Bósnia ou crise bósnia de 1908-1909, também conhecida como a crise da anexação, irrompeu na opinião pública quando, em 5 de outubro de 1908, a Bulgária proclamou a sua independência e no dia seguinte, a Áustria-Hungria anunciou a anexação da Bósnia e Herzegovina, que já estava sob administração austro-húngara desde o Congresso de Berlim de 1878, quando foi lhe concedido o direito de ocupá-las.[1] [2]

A Rússia, o Império Otomano, a Grã-Bretanha, a Itália, a Sérvia, o Montenegro, a Alemanha e a França tiveram um grande interesse nesses eventos. Sérvia e Rússia protestaram contra a anexação da Bósnia, mas recuaram quando a Alemanha afirmou que apoiava a Áustria-Hungria. Nem a Rússia ou a Sérvia estavam preparadas para entrar em guerra com a Alemanha. Em abril de 1909, o Tratado de Berlim foi alterado para aceitar o novo "status quo" para trazer um fim à crise. A crise danificou permanentemente as relações entre a Áustria-Hungria, por um lado, e da Rússia e da Sérvia por outro. A anexação e as reações foram uma das causas que contribuíram para a Primeira Guerra Mundial.[3]

A metade da década de 1870 testemunhou uma série de rebeliões violentas contra o domínio otomano nos Bálcãs e respostas igualmente violentas dos turcos. O czar russo, Alexandre II, querendo intervir contra os otomanos, procurou e obteve um acordo com a Áustria-Hungria. Nas Convenções de Budapeste de 1877, as duas potências concordaram que a Rússia anexaria a Bessarábia, e os austro-húngaros se manteriam neutros em relação à Rússia na guerra iminente com os turcos. Como compensação por esse apoio, os russos concordaram com o controle da Bósnia-Herzegovina pela Áustria-Hungria.[4]

Pouco tempo depois, os russos declararam guerra e expulsaram os turcos implacavelmente de volta a alguns quilômetros de Constantinopla. O que impediu os russos de retirar completamente os turcos da Europa foi a disposição das outras grandes potências, particularmente a Grã-Bretanha e a Áustria-Hungria, de aplicar um tratado anterior, a Convenção de Londres sobre os Estreitos em 1841, que declarava que o Estreito de Constantinopla e o Estreito de Dardanelos seriam fechados para navios não-turcos durante o tempo de guerra.[5] Isso teve o efeito de engarrafar a frota russa no Mar Negro. Após a vitória na guerra, os russos impuseram o Tratado de Santo Estêvão sobre os otomanos, que, em parte, renegaram as promessas feitas na Convenção de Budapeste e declararam que a Bósnia-Herzegovina seria ocupada conjuntamente por tropas russas e austríacas.[4][6]

O Tratado de Berlim de 1878 revisou muitos pontos do antigo Tratado de Santo Estêvão.[7] Nos termos do artigo 29, a Áustria-Hungria recebeu direitos especiais nas províncias otomanas da Bósnia-Herzegovina e o Sanjak de Novi Pazar.[8] O Artigo 25 afirmava que "As províncias da Bósnia e Herzegovina serão ocupadas e administradas pela Áustria-Hungria" e continuou "A Áustria-Hungria reserva-se o direito de manter guarnições e ter estradas militares e comerciais em toda a área dessa porção do Sanjak de Novi Pazar, do antigo Vilayet da Bósnia .".[9]

A Áustria-Hungria exerceu seus direitos legais, assumindo o controle da Bósnia-Herzegovina e ocupando conjuntamente o Sanjak de Novi Pazar com o Império Otomano. O Tratado de Berlim permitiu a ocupação austríaca exclusiva da Bósnia-Herzegovina, mas não especificou uma disposição final das províncias. Esta omissão foi abordada no tratado da Liga dos Três Imperadores de 1881,[10] onde tanto a Alemanha quanto a Rússia endossaram o direito da Áustria de anexar a Bósnia-Herzegovina.[11] Um tratado comercial bilateral entre a Áustria e a Sérvia no mesmo ano tinha um anexo secreto, afirmando que "a Sérvia 'não permitiria que nenhuma intriga política, religiosa ou outra fosse dirigida de seu território contra a monarquia austro-húngara, incluindo a Bósnia, Herzegovina e o Sanjak de Novi Pazar'".[12] No entanto, em 1897, sob o novo czar, Nicolau II, o governo imperial russo novamente retira o seu apoio à anexação austríaca da Bósnia-Herzegovina. O ministro das Relações Exteriores da Rússia, conde Michael Muraviev, afirmou que uma anexação austríaca da Bósnia-Herzegovina levantaria "uma extensa questão que requer um exame especial".[13]  A Sérvia permitiu que suas obrigações sob o tratado comercial de 1881 expirassem em 1899.[14]

O ministro de Relações Exteriores da Áustria-Hungria, Alois Lexa von Aehrenthal, foi um dos principais articuladores da anexação da Bósnia-Herzegovina.

Em 1903, o rei da Sérvia foi assassinado em um golpe e a dinastia pró-russa Karađorđević subiu ao trono.[15] Os novos governantes eram amplamente interessados ​​na expansão para a Bósnia. A Sérvia queria assumir o Sanjak de Novi Pazar e a Bósnia-Herzegovina dos austro-húngaros. As relações entre a Sérvia e a Áustria-Hungria deterioraram-se gradualmente. No entanto, a capacidade da Rússia de apoiar a Sérvia foi bastante reduzida após a derrota na Guerra Russo-Japonesa de 1905 e a agitação interna que se seguiu.[16][17]

Em 1907, o ministro das Relações Exteriores austro-húngaro, Alois Aehrenthal, começou a formular um plano para solidificar a posição da Áustria-Hungria em relação à Sérvia por meio da anexação da Bósnia-Herzegovina, que era um dos objetivos políticos do diplomata.[18] Sua oportunidade veio na forma de uma carta do ministro das Relações Exteriores da Rússia, Alexander Izvolsky – propondo a anexação austríaca das províncias como parte de um acordo para garantir um melhor acesso ao estreito turco para navios de guerra russos[19]  – e uma reunião subsequente no castelo de Buchlau, na Morávia, Áustria-Hungria.[20]

Barganha de Buchlau

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Troca de cartas

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Em 2 de julho de 1908, o chanceler russo Alexander Izvolsky enviou uma carta ao chanceler austro-húngaro Alois Aehrenthal e propôs mudanças recíprocas no Tratado de Berlim, em favor do interesse russo no Estreito de Constantinoplae dos interesses austro-húngaros em na anexação da Bósnia-Herzegovina e do Sanjak de Novi Pazar. Em 14 de julho, Aehrenthal aceitou cautelosamente as discussões propostas.[21] Em 10 de setembro, após longas e complexas discussões dentro do Governo Imperial discutindo as propostas de Izvolsky para a Áustria-Hungria, Aehrenthal esboçou um conjunto ligeiramente diferente de contrapropostas para ele: ele propôs uma atitude amigável da Rússia à anexação austro-húngara da Bósnia-Herzegovina, enquanto que a Áustria-Hungria retiraria suas tropas de Sanjak. A carta então se oferecia para discutir, como um assunto separado, a questão do Estreito, de forma amigável. Aehrenthal propôs que, caso um acordo sobre a Bósnia-Herzegovina fosse alcançado, seu governo não - caso os russos posteriormente propusessem reivindicar o direito de dispor sua frota do Mar Negro e proteger seu acesso ao Mediterrâneo através do Bósforo - apoiaria o Império Otomano.[22]

Castelo de Buchlovice (Buchlau).

Encontro em Buchlau

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Em 16 de setembro, Izvolsky e Aehrenthal se encontraram no Castelo de Buchlau na Morávia, residência particular do conde Leopold Berchtold,[23] embaixador da Áustria-Hungria em São Petersburgo.[24] Nenhuma ata foi registrada durante essas reuniões privadas, que duraram um total de seis horas. Izvolsky aceitou a responsabilidade de redigir as conclusões das reuniões e encaminhá-las a Aehrenthal. Em 21 de setembro, Aehrenthal escreveu a Izvolsky pedindo este documento, ao qual Izvolsky respondeu dois dias depois que o documento havia sido enviado ao czar para aprovação. Este documento, se alguma vez existiu, nunca foi produzido.[25]

Em 6 de Outubro, um dia após a Bulgária declarar a sua independência do Império Otomano, o Imperador Francisco Joséanunciou ao povo deste agora ex-território otomano (ocupado pela Áustria durante 30 anos) a sua determinação em os reconhecer e conceder-lhes um regime autónomo e constitucional, sob sua autoridade como soberano anexador.[1][26] No dia seguinte, a Áustria-Hungria anunciou sua retirada do Sanjak de Novi Pazar.[27][28] A independência da Bulgária e a anexação da Bósnia não foram previstas pelo Tratado de Berlim e desencadearam uma enxurrada de protestos e discussões diplomáticas.[29]

Reação sérvia

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A Sérvia mobilizou seu exército, e em 7 de outubro o Conselho da Coroa Sérvia exigiu que a anexação fosse revertida ou, caso contrário, a Sérvia deveria receber uma compensação, que foi definida em 25 de outubro como uma faixa de terra na porção mais ao norte do Sanjak de Novi Pazar.[30] No final, essas exigências foram rejeitadas. Os sérvios, juntamente aos montenegrinos, assumiram o controle do Sanjak após as guerras dos Bálcãs.[27]

Referências

  1. a b «Podcast Hoje na História: 1908 - monarquia austro-húngara anexa Bósnia e Herzegovina». operamundi.uol.com.br. Consultado em 4 de abril de 2023 
  2. «The occupation of Bosnia-Herzegovina, 1878». Die Welt der Habsburger (em inglês). Consultado em 4 de abril de 2023 
  3. «Bosnian crisis of 1908». Encyclopædia Britannica [ligação inativa]
  4. a b Albertini, Luigi (2005). The Origins of the War of 1914, volume I. [S.l.]: Enigma Books. p. 16 
  5. «1841: Segunda Convenção Londrina sobre Império Otomano – DW – 13/07/2022». dw.com. Consultado em 4 de abril de 2023 
  6. «Treaty of San Stefano | Russia-Turkey [1878] | Britannica». www.britannica.com (em inglês). Consultado em 4 de abril de 2023 
  7. «Treaty Of San Stefano | Encyclopedia.com». www.encyclopedia.com. Consultado em 4 de abril de 2023 
  8. «Sanjak of Novi Pazar | International Encyclopedia of the First World War (WW1)». encyclopedia.1914-1918-online.net. Consultado em 4 de abril de 2023 
  9. Albertini, Luigi (2005). The Origins of the War of 1914, volume I. [S.l.]: Enigma Books. pp. 22–23 
  10. «3 - A Aliança Dual e a Liga dos Três Imperadores». www.oespacodahistoria.com. Consultado em 4 de abril de 2023 
  11. Albertini, Luigi (2005). The Origins of the War of 1914, volume I. [S.l.]: Enigma Books. p. 37 
  12. M. Clark, Christopher (2012). The Sleepwalkers: How Europe Went to War in 1914. [S.l.]: HarperCollins. p. 28 
  13. Albertini, Luigi (2005). The Origins of the War of 1914, volume I. [S.l.]: Enigma Books. p. 94 
  14. Clark, Christopher (2012). The Sleepwalkers: How Europe Went to War in 1914. [S.l.]: HarperCollins. p. 29 
  15. Mutschlechner, Martin. «A crise na anexação de 1908.». habsburger.net. Consultado em 4 de abril de 2023 
  16. Kenny, Peter Francis (2016). Monarchs. [S.l.: s.n.] p. 753. ISBN 9781514443750 
  17. Freire, Coronel José Miguel Moreira. «Há Cem Anos a Guerra Russo Japonesa. Consequências Diplomáticas. Equilíbrio Internacional e Europeu.». REVISTA MILITAR (em inglês). Consultado em 4 de abril de 2023 
  18. «The Way to War | International Encyclopedia of the First World War (WW1)». encyclopedia.1914-1918-online.net. Consultado em 4 de abril de 2023 
  19. M. Clark, Cristopher (2012). The Sleepwalkers: How Europe Went to War in 1914. [S.l.]: HarperCollins. p. 36. ISBN 978-0-06-219922-5 
  20. Goch, G. P. (1936). Before the war: studies in diplomacy, volume 1. [S.l.: s.n.] pp. 366–438 
  21. Albertini, Luigi (2005). The Origins of the War of 1914, volume I. [S.l.]: Enigma Books. pp. 195–196 
  22. Albertini, Luigi (2005). The Origins of the War of 1914, volume I. [S.l.: s.n.] pp. 201–202 
  23. Adams, John Quincy. «Count Leopold Berchtold 1917». John Quincy Adams (em inglês). Consultado em 4 de abril de 2023 
  24. «Leopold, Graf von Berchtold | Austro-Hungarian foreign minister | Britannica». www.britannica.com (em inglês). Consultado em 4 de abril de 2023 
  25. Albertini, Luigi (2005). The Origins of the War of 1914, volume I. [S.l.: s.n.] p. 207 
  26. Albertini, Luigi (2005). The Origins of the War of 1914, volume I. [S.l.: s.n.] pp. 218–219 
  27. a b «Sanjak of Novi Pazar | International Encyclopedia of the First World War (WW1)». encyclopedia.1914-1918-online.net. Consultado em 4 de abril de 2023 
  28. «Bosnian Crisis | International Encyclopedia of the First World War (WW1)». encyclopedia.1914-1918-online.net. Consultado em 4 de abril de 2023 
  29. «The Balkan Situation». The American Journal of International Law (3): 688–690. 1909. ISSN 0002-9300. doi:10.2307/2186691. Consultado em 4 de abril de 2023 
  30. Albertini, Luigi (2005). The Origins of the War of 1914, volume I. [S.l.: s.n.] pp. 222–223 
  • Albertini, Luigi. 2005. Origins of the War of 1914 – Vol. 1, Enigma Books, New York.
  • Anderson, Frank Maloy and Amos Shartle Hershey; Handbook for the Diplomatic History of Europe, Asia, and Africa 1870–1914. Prepared for the National Board for Historical Service; Government Printing Office, Washington; 1918.
  • Goldberg, Harvey. 1968. The Life of Jean Jaurès, The University of Milwaukee Press, Milwaukee.
  • Joll, James, & Martel, Gordon. 2007. The Origins of the First World War. Pearson/Longman, London.
  • Shelḱīng, Evgeniǐ Nīkolaevīch and Makovskī, L. W. 1918. Recollections of a Russian Diplomat: The Suicide of Monarchies. The Macmillan company, New York.
  • Clark, Christopher. 2012. The Sleepwalkers: How Europe Went to War in 1914, HarperCollins.

Ligações externas

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