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Ensaios (Essais em francês) é uma coletânea de obras escritas pelo francês Michel de Montaigne (1533-1592), publicada pela primeira vez em 1580. Foi pioneira no gênero literário ensaio.
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Montaigne não tinha a intenção de inaugurar um gênero literário e nem o objetivo direto de escrever uma série de três livros, não fazia ideia de que a princípio a estrutura de sua obra seria um fator de grande interesse ao leitor, e não exatamente o seu conteúdo - que consiste em relatos de experiências de sua vida.[1] No geral, diversos assuntos são expostos, sem ordem aparente: medicina, livros, assuntos domésticos, doença, morte, dor, sabedoria, solidão filosófica, etc.
Para muitos, Montaigne teria começado a escrever Os Ensaios, como um pretenso estoico, o francês estava endurecido após tantas guerras e perdas, para ele a filosofia não era apenas fazer livros e artigos, mas sim um “modo de vida”. Por isso, uma das principais características da obra são os seus feitos diários - coisas do dia-a-dia - e por conta deste aspecto, autores modernos apelidaram os Ensaios como uma “auto escrita”: “um exercício ético para “fortalecer e esclarecer” o próprio julgamento do autor, tanto quanto o de nós leitores”.[2] É certo dizer que podemos conhecer Michel de Montaigne através de sua obra.
O pensador não era sistemático, ou seja, algumas de suas intenções não coincidiam, levando em consideração que tinha como contexto histórico a França do século XVI, onde ocorria a Reforma Protestante, a Revolução Científica e a Descoberta do Novo Mundo. Os filósofos e os cientistas de tal época, acrescentaram um requisito intelectual: a virtude da "dissimulação honesta", que era nada mais que a "ocultação" de verdadeiras intenções e sentimentos, o que foi necessário em um período onde qualquer "novidade" corria o risco de tornar-se uma ameaça para a ordem natural e para a vida civil.[3]
Os Ensaios vão da dissimulação ao relativismo – os pontos de vista não têm uma verdade absoluta – a fim de recriar uma natureza que precisa ser reescrita, desmanchando um enredo criado pela cultura europeia. Neste sentido, quando se trata das formas de se interpretar o Novo Mundo, Montaigne num primeiro momento destrói progressivamente a imposição de interpretações já estabelecidas proporcionando aos leitores uma compreensão diferente.[4]
Os Ensaios de Montaigne marcam um percurso importante no estudo do conhecimento humano. O conjunto de pensadores anteriores que os influenciaram diz muito sobre a trajetória da filosofia e a sua incrível capacidade de modificar o mundo a partir de questões inquietantes, como as que moveram Montaigne, por longos vinte anos, na composição dos ensaios.[5]
Isso desde a filosofia estoica de Sêneca (04 a.C. - 65), que demonstrou grande influência na clássica obra montaigniana, com o resgate e compilação da filosofia antiga, imputando ao ensaísta o gênero leçons; passando também pela sabedoria e abordagem da moral de Plutarco (46 d.C. - 120 d.C.); até chegar à leitura de Sexto Empírico (200 d.C.), com o qual, de fato, deu-se o ensaio como gênero literário. Além desses, viria o encontro com a filosofia epicurista, que conferiu aos ensaios um tom de pessoalidade, ou seja, foi a partir do entrelaço com o ceticismo que Montaigne passou a revestir sua obra do próprio juízo.[6]
Sendo assim, ao pensar sobre as coisas do mundo a partir de um ponto de vista pessoal - isto é, ao tomar a ação do seu pensamento como uma ação da própria compreensão[7]- , imerso na humanidade em constante movimento e transformação, os ensaios monteignianos incorporam, para além de um novo modelo literário, um enredo de assuntos dos mais variados, a contar dos mais mundanos, no cotidiano de um nobre[8] aos mais complexos e intensos discursos.
Um dos discursos mais complexos é sobre o juízo da morte. Este foi um assunto muito discutido pelo filósofo, não só, mas especialmente no seguinte ensaio: Que apenas após a morte se deve julgar sobre nossa felicidade. Nele, inicialmente, Montaigne narra o episódio da execução do Rei Creso (596 a.C. - 546 a.C.); este, que mesmo sendo um rei de grandes fortunas, teve sua felicidade à vida testada no último momento antes da morte.[9]
Outros discursos tratam das experiências de guerra[8] e Da solidão. Sobre este último, encontra-se um fragmento da obra Odes, de Horácio (65 a.C. - 8.a.C.): “Por que ir em busca de terras aquecidas por um outro sol? Quem, ao sair da pátria, foge também de si mesmo?”. A partir dela, Montaigne argumenta que apenas procurar refúgio fora da multidão não bastaria, seria necessário “sequestrar-se e recuperar a si mesmo”.[10] O ensaísta francês também discute A virtude, na qual aborda a intermitente fraqueza do humano perante à segurança divina e a inconstância da vida que dificultaria uma rigidez ao assegurar em ideias de virtude. Isso significa dizer que mesmo os bons filósofos, que formulam e seguem as suas doutrinas mais virtuosas, são pegos pelas “idas e vindas” da vida humana.[11]
A primeira edição dos ensaios foi publicada em 1580, na cidade de Bordeaux, composta pelos livros I e II. Dos Canibais, considerado um dos ensaios mais importantes de Montaigne, faz parte desta publicação,[8] este foi oferecido a Henrique III.[12]
Após a segunda edição de 1582 e a terceira de 1587, em Paris no ano de 1588 é publicada a quinta edição dos Ensaios, sendo composta por três livros. Curiosamente, não há registros da publicação da quarta edição dos ensaios. Um exemplar impresso da quinta edição contendo correções e alterações de Montaigne é conhecida como a Cópia de Bordeaux, localizada hoje na Biblioteca Municipal de Bordeaux.[13] Com esta e as várias anotações deixadas por Montaigne, em 1595 é publicada por Marie de Gournay, filha adotiva do autor, a primeira edição póstuma, onde ela acrescentou citações, notas e um longo prefácio, esta edição serviu como base para várias publicações dos ensaios ao longo dos séculos.[14]
MONTAIGNE, Michel de. Ensaios:
A obra de Montaigne foi muito admirada e lida em sua época,[18] sendo elogiados por muitos dos seus contemporâneos,[19] mas não se limitando apenas na origem autor. Nomes famosos sofreram influências vinda dos Ensaios. Francis Bacon, Voltaire e Friedrich Nietzsche[20] são alguns desses grandes nomes que admiravam Montaigne e sua obra.[21]
Pierre Charron vai se destacar na difusão do ceticismo e pensamento de Montaigne, sendo apontado como um importante discípulo[22]. Sua obra De la Sagesse (1601) rende uma acusação de plágio, apontando-o como reprodutor dos pensamentos de seu mentor. Charron torna as ideias contidas nos Ensaios mais acessíveis ao público, estabelecendo uma ligação entre o ceticismo de Montaigne e as controvérsias religiosas de sua época.[23]
Perto do fim de sua vida, William Shakespeare escreve sua peça teatral A Tempestade. Influenciada pelo ensaio Dos Canibais. O dramaturgo lê a obra de Montaigne em inglês na tradução de John Florio. Essa tradução foi publicada em 1603.[24] Shakespeare assimila a visão dos selvagens em seu estado de natureza, que Montaigne descreve, e coloca em seu personagem Gonzalo que pensa o que faria se estivesse encarregado de colonizar uma ilha na qual ele e outros naufragam.[25]
Blaise Pascal escreve sua obra Pensées. Para defender o cristianismo e "provar" sua verdade, Pascal utiliza argumentos do orgulho estoico ou dogmático e os argumentos do ceticismo contido na obra de Montaigne para destruir a confiança do homem em suas possibilidades humanas.[26]
Montaigne escreveu este ensaio após 1579, com base nos testemunhos orais[27] de um viajante que viveu dez ou doze anos nas terras nomeadas de França Antártica por Villegagnon,[28] que tinha acabado de fazer uma expedição no Brasil. Acredita-se que o ensaio foi. Dos Canibais tem grande relevância no Brasil, pois trata-se da história dos povos nativos que aqui viviam.
O ensaio começa com Montaigne dizendo que a descoberta desse país, que parecia ser infinito, havia sido uma descoberta considerável. Porém, ele acreditava que no futuro novos lugares poderiam ser descobertos, e temia que a curiosidade de descobrir novos lugares fosse maior que a capacidade de lidar com novos territórios.
Em seguida é descrito como era o viajante que deu o testemunho, um homem simples e grosseiro, e que por tais características seria incapaz de inventar alegações falsas. Em relação ao Brasil, Montaigne diz que não havia nada de bárbaro e selvagem nessa nação,[29] baseado-se nos relatos que já tinha ouvido, ressalta que para os colonizadores não existiam outros padrões de verdade e razões que não fossem como as de seus países de origem. Para Montaigne a nação só era bárbara em relação a ter pouco do espírito humano formado e por ser muito próximo de sua naturalidade original.[30] A pureza dos nativos causava desgosto em Montaigne, pois ele queria tê-los conhecido antes, segundo o autor outros homens como Platão e Licurgo poderiam ter julgado melhor do que ele a descoberta do Novo Mundo. Montaigne também diz que se tivesse oportunidade diria a Platão que os nativos do Brasil/França Antártica não tinham o conhecimento das letras, dos números, nenhum nome para os magistrados, nenhuma vestimenta, nenhum metal, que eles eram “viri a diis recentes”.[31] Mas que sobretudo, a terra era agradável, bem temperada, onde era raro ver um homem doente, haviam muitos peixes, diferentes das consumidas em sua terra natal, o único modo de comê-las era cozinhando, as casas foram descritas como grandes construções que podiam abrigar muitas pessoas, os indígenas tinham o costume de se levantar com o sol e a dança ocupava papel importante em sua cultura. Em relação às crenças, Montaigne diz que eles acreditavam que as almas eram eternas, as boas se encontravam no céu, onde o sol nasce, e as más no lado do ocidente.
Neste ensaio também é descrito como eram as guerras, os nativos iam totalmente nus, com arcos ou espadas de madeira, guerreavam com nações que viviam além das montanhas,[32] só terminavam com a morte ou efusão de sangue, não havia medo ou fugas entre eles, o modo de combate utilizado era muito admirável para Montaigne. O vencedor levava como troféu a cabeça do inimigo morto e a pregava na entrada do alojamento. Os inimigos sobreviventes viravam prisioneiros, e a única fiança que o vencedor exigia era a confissão e o reconhecimento de terem perdido, mas os prisioneiros preferiam morrer a terem que se humilhar, nesse intervalo eles eram entretidos com ameaças de sua morte futura e das torturas que iam sofrer, depois de feitos os preparativos que eram produzidos para esse fim acontecia o esquartejamento dos membros do prisioneiro e com as partes do corpo era feito um festim.
Montaigne afirmava que o esquartejamento dos prisioneiros não era feito para alimentação, não se tratava de um grupo/tribo de canibais, esses rituais eram uma forma de manifestar extrema vingança.[29]
Geralmente, os homens tinham várias mulheres, as quais não tinham ciúme umas das outras, pelo contrário, elas se juntavam para conseguir mais amantes aos maridos, é feita uma comparação com a história bíblica de Jacó, onde suas mulheres Lia, Raquel, Sara, e as outras ofereciam as servas mais belas a seus maridos.[33]
O ensaio termina com a apresentação de um relato, onde foi questionado aos indígenas o que eles achavam mais admirável no contato com os brancos, três coisas foram respondidas: A primeira, eles achavam estranho que os grandes homens bárbaros, respeitassem uma criança como comandante, e não escolhessem entre eles alguém para comandar. A segunda, estranhavam que alguns homens viviam satisfeitos e gozavam de comodidades, enquanto outros viviam pobres e famintos, e até mendigavam aos índios, ao invés de se vingarem devido tamanha injustiça; quanto a terceira resposta, ela foi perdida.
Neste sentido, Montaigne, ao comparar os hábitos indígenas aos europeus, procura mostrar que não há superioridade de um determinado costume em relação a outros, mas que, todos podem parecer estranhos a partir de diferentes perspectivas.[34] O ceticismo de Montaigne convida o leitor a se despir de seus preconceitos, abrindo caminho para a aceitação do novo quando relativiza a barbárie dos selvagens às atrocidades cometidas pelos europeus. Dessa forma, ao contrapor essas culturas, Montaigne deixa um grande legado para o que será mais tarde na sociologia, o relativismo cultural.
Além de estar presente em todas as edições do livros I, citadas nesta página, este ensaio ficou famoso a ponto de ganhar uma edição especial, com autoria de Plínio Junqueira Smith, e traduzido em português por Luiz Antonio Alves Eva, onde foi publicado em São Paulo pela editora Alameda em 2009.
Edição: MONTAIGNE, Michel de (2002). Os Ensaios livros I, II e III. São Paulo: Martins Fontes.
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