Observatório das Metrópoles

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O Observatório das Metrópoles reúne especialistas em questões ligadas às cidades. As colunas são publicadas quinzenalmente às segundas-feiras, abordando temas como mobilidade, moradia, segurança e urbanismo. Um olhar crítico e propositivo sobre o desenvolvimento de Belo Horizonte e outras cidades do país.

OBSERVATÓRIO DAS METRÓPOLES

Bacia do Arrudas e fabricação de desastres climáticos

Leia artigo de Letícia Clipes Garcia na série Observatório nas eleições: um outro futuro é possível

Por Letícia Clipes Garcia
Publicado em 23 de junho de 2024 | 07:00
 
 
 

O ciclo da água pode ser visualizado como uma história com início, meio e fim, através da escala da bacia hidrográfica. Um dos momentos dessa história chama atenção pela gravidade com que afeta a rotina urbana: inundações e deslizamentos em períodos chuvosos. Ao depararmo-nos com tais situações – cada vez mais frequentes e intensas – tendemos a considerar que a água está no lugar errado, “invadindo” nossas construções e nossas ruas. 

O que vemos quando olhamos para uma inundação no meio da cidade é apenas o fragmento de um todo, a fração de uma história cujo cenário começa e termina numa bacia hidrográfica. Averiguar desastres de inundação sem olhar para o todo da bacia hidrográfica é como tentar compreender um filme assistindo apenas uma de suas várias cenas. 

Ao estudar as ocorrências de desastres na bacia do Ribeirão Arrudas, em Belo Horizonte, entre os anos de 2012 e 2021, pesquisamos os registros de ocorrências das Defesas Civis dos municípios que a compõem, e notamos que a escala da bacia hidrográfica quase nunca é relacionada às ocorrências. Isto é, ao registrar esses eventos, a linha de frente de atendimento aos desastres nem sempre os mapeia nessa escala. Sem relacionar os desastres à sua bacia hidrográfica, essas ocorrências se tornam incompreensíveis – como a cena isolada de um filme. 

Se não sabemos de onde vêm os desastres, como poderemos compreender seus motivos de acontecer? E se compreendermos que sua razão de acontecer é a inconsequência de muitos gestores ao longo dos anos, tomando decisões equivocadas para as cidades? Que sua razão de acontecer não é simplesmente natural? Compreenderemos que os desastres, afinal, são fabricados (como já assinalara o teórico alemão Ulrich Beck em suas reflexões sobre sociedade e riscos nos anos 1990). 

As avenidas que tapam rios e córregos ao longo de toda bacia do Ribeirão Arrudas, por exemplo, além de ocupar a calha dos cursos d'água, promovem o adensamento de várzeas: áreas forjadas geologicamente para inundar em períodos de cheia. E não que seja um acidente as cidades estarem próximas dos cursos d'água – sua localização geralmente é fruto dessa proximidade. 

A dinâmica hídrica já existia antes de a cidade ser edificada; ainda assim, prefeitos, governadores e legisladores ao longo do Séc. XX ignoraram o fato de que não é eficiente gerir a dinâmica hídrica por divisas municipais. A bacia do Arrudas nos ensina que, para lidar com os fluxos intensos de chuvas e suas consequências devastadoras nas cidades, é preciso encarar o cenário completo desse evento – cenário que não se encerra no limite do município ou do estado, mas na bacia hidrográfica, como indica a própria Política Nacional de Proteção e Defesa Civil do Brasil, através da Lei Federal 12.608/2012. 

Enquanto não encararmos o filme inteiro, e não apenas cenas isoladas, não teremos condições de compreender o trágico clímax dos altos volumes de água a nos devastar. As cenas de inundações e deslizamentos são consequências de outras cenas, anteriores, como a impermeabilização excessiva do solo, o confinamento de cursos d’água, o aumento da intensidade das chuvas originado nas mudanças climáticas. O teor dessas cenas demonstra que os desastres são fabricados, e é a escala da bacia que permite a percepção desse panorama. 

O entendimento dos desastres em seu cenário, sua bacia hidrográfica, é fundamental para interrompermos a fabricação de tragédias relacionadas às chuvas – que não surgem do nada, mas sim representam o desfecho de anos e anos de intervenções inconsequentes num território cuja dinâmica hídrica está dada desde muito antes de chegarmos aqui. 

(*) Letícia Clipes Garcia é pesquisadora do Núcleo RMBH do Observatório das Metrópoles, arquiteta urbanista na Fundação Israel Pinheiro e mestre pelo NPGAU/UFMG.