Por que ataques de Bolsonaro à China não prejudicaram comércio com o Brasil

Bandeiras da China e do Brasil

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, China é principal parceira comercial do Brasil desde 2009
  • Author, Luis Barrucho
  • Role, Da BBC News Brasil em Londres

As tensões políticas entre Brasil e China, com declarações repetidas do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e pessoas do seu entorno contra o gigante asiático, não afetaram as relações econômicas entre os dois países no ano passado — os investimentos chineses devem continuar e miram um "horizonte de longo prazo", diz um novo relatório do Conselho Empresarial Brasil-China (CEBC).

E mais: apesar das críticas à China, as ações concretas do governo brasileiro indicaram "mais continuidade do que ruptura na relação bilateral", acrescenta o documento intitulado "Investimentos chineses no Brasil: histórico, tendências e desafios globais (2007-2020)", o mais abrangente já realizado sobre o tema.

"Os investimentos chineses no Brasil são de longo prazo e isso é o que orienta a estratégia da China. Governos começam e acabam — o que importa é a relação harmoniosa entre os dois países, que já vem de muito tempo e historicamente sem atritos", explica Tulio Cariello, diretor de Conteúdo e Pesquisa do CEBC e autor do relatório.

Em 2009, a China se tornou o principal parceiro comercial do Brasil, superando os Estados Unidos.

"Existe, portanto, um certo limite que a China aceita em relação às críticas que recebe. Veja o caso da Austrália", assinala Cariello.

A China é o maior parceiro comercial da Austrália, enquanto a Austrália é uma das principais fontes de recursos para a China.

Mas as relações entre os dois países vêm se deteriorando desde 2018. Recentemente, chegaram a novo ponto baixo, com o apelo do governo australiano por uma investigação independente sobre a origem do coronavírus.

As tensões foram a principal causa da disparada no preço do minério de ferro em maio — a Austrália é o maior produtor mundial da matéria-prima, enquanto a China, o maior consumidor.

Nos últimos meses, a China suspendeu um acordo econômico com a Austrália e denunciou o país à Organização Mundial do Comércio (OMC) por concorrência desleal. Já militares australianos insinuaram guerra com a China.

Diferença entre discurso e prática

Mas, no caso específico do Brasil, diferentemente da Austrália, há uma dissonância entre a retórica de Bolsonaro e de seus aliados mais próximos, inclusive seus filhos, contra a China, e as ações de sua gestão, ressalva Cariello.

Ele cita como exemplo a viagem do vice-presidente Hamilton Mourão a Pequim, para participar da reunião da Comissão Sino-Brasileira de Alto Nível de Concertação e Cooperação (Cosban), o principal mecanismo de diálogo bilateral entre Brasil e China, cinco meses após a posse.

"O gesto significou a reativação das atividades da Cosban, que deveria ter encontros a cada dois anos, mas não se reunia desde 2015. A questão dos investimentos foi um dos pontos da agenda, com indicações de que o governo brasileiro apoiava a entrada de novos aportes chineses no âmbito do Programa de Parcerias de Investimentos", diz o relatório.

Além disso, no ano passado, lembra Cariello, o Ministério da Agricultura criou um "Núcleo China", uma unidade especial que cuida das relações com o gigante asiático, principal destino das exportações brasileiras do agronegócio.

Segundo o jornal Valor Econômico noticiou na época, a criação do departamento estratégico foi ideia da ministra Tereza Cristina e "uma surpresa até para quem trabalha na área internacional do ministério". Cristina buscou na iniciativa privada um nome para chefiar a unidade: Larissa Wachholz, ex-diretora da consultoria de investimentos Vallya e com mestrado em Estudos Contemporâneos da China pela Universidade de Renmin, morou em Pequim por cinco anos e fala mandarim.

De fato, os investimentos chineses confirmados no Brasil caíram drasticamente no ano passado — 74% — atingindo US$ 1,9 bilhão, o menor valor registrado desde 2014. O número de projetos caiu para oito, 68% a menos do que em 2019, "ainda que a soma de aportes totais, incluindo anunciados e confirmados, tenha chegado a 15, ficando na média dos projetos entre 2011 e 2016", assinala o relatório.

Apesar disso, ressalva o documento, "esse tombo pode ser interpretado mais como um esfriamento dos fluxos de investimentos globais no exterior, que caíram 35% em 2020, do que por atritos políticos bilaterais. No Brasil, o cenário não foi diferente, com queda de 61,5% dos aportes estrangeiros de forma geral, tendência similar ao declive de 50% apontado pelo Banco Central".

O relatório destaca que outros importantes receptores de aportes chineses no exterior passaram por situações semelhantes.

Em 2020, houve redução dos investimentos na União Europeia e Reino Unido (-43%) e Austrália (-39%), "regiões onde há quedas contínuas desde 2017".

Movimento de aperto de mãos com bandeiras da China e do Brasil

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, Apesar de críticas ao gigante asiático, ações concretas do governo brasileiro indicaram "mais continuidade do que ruptura na relação bilateral", diz novo relatório

Raio-x dos investimentos

O documento faz um raio-x dos investimentos chineses no Brasil. Estes são os pontos principais:

  • Entre 2007 e 2020, empresas chinesas efetivaram 176 empreendimentos no Brasil, com aportes que somam US$ 66,1 bilhões. Houve ainda 64 projetos não concretizados, com valor estimado em US$ 44,5 bilhões.
  • Até 2020, o Brasil recebeu 47% dos investimentos chineses na América do Sul.
  • 48% do valor do estoque dos investimentos confirmados entre 2007 e 2020 foram direcionados ao setor de energia elétrica — no qual há presença marcante de gigantes estatais como State Grid e China Three Gorges —, seguido por extração de petróleo e gás (28%), extração de minerais metálicos (7%), indústria manufatureira (6%), obras de infraestrutura (5%), agricultura, pecuária e serviços relacionados (3%) e atividades de serviços financeiros (2%).
  • State Grid e China Three Gorges têm a maioria de seus ativos no exterior localizados no Brasil, com fatias de 48% e 60%, respectivamente.
  • Em número de projetos confirmados entre 2007 e 2020, o setor de eletricidade segue na liderança, com 31% do total, mas há um aumento considerável da participação da indústria manufatureira, que fica em segundo lugar, com 28%. Sob essa ótica, aumentam também as participações de projetos em tecnologia da informação (7%), agricultura (7%) e serviços financeiros (6%).
  • Em pouco mais de dez anos, empresas chinesas investiram em todas as regiões do Brasil. Há projetos chineses confirmados em 23 das 27 unidades federativas do país. O Estado de São Paulo lidera com 31% do número de projetos confirmados entre 2007 e 2020, seguido por Minas Gerais (8%), Bahia (7,1%), Rio de Janeiro (6,7%), Goiás (5,4%) e Pará (4,6%).
  • Estima-se que 34,5 mil empregos foram criados no Brasil entre 2003 e 2020 por conta da entrada de novos projetos chineses (greenfield), ao mesmo tempo que as aquisições de ativos já existentes mantiveram 140,4 mil postos de trabalho no país.
  • Em 2019, pela primeira vez o Nordeste atraiu a maioria do número de projetos chineses no Brasil, com participação de 34%, seguido por Sudeste (27%), Sul (15%), Norte (12%) e Centro-Oeste (12%). O Nordeste também liderou a atração de aportes em termos de valor, com mais da metade do capital investido naquele ano.

O que será do futuro entre os dois países?

Segundo o relatório, "apesar de eventuais altos e baixos em termos numéricos, os investimentos chineses no Brasil têm muito a oferecer a qualquer projeto de desenvolvimento nacional".

"A China dispõe de incontestável experiência em projetos de construção civil e indústria, que por décadas estiveram entre os principais motores de sua economia. Parcerias nessas áreas poderiam contribuir para a diminuição dos gargalos de infraestrutura que emperram o crescimento brasileiro", diz o documento.

"O setor de eletricidade, no qual as empresas chinesas já estão bem estabelecidas, continuará a ser um importante eixo de atuação no Brasil. As áreas portuária, de transporte e logística, nas quais há projetos em andamento, poderiam ser mais bem exploradas com a atração de novos investimentos, dado o grande potencial de atuação do lado chinês e a urgência brasileira em implementar projetos nesses setores".

"Existem oportunidades de inovação na agenda bilateral que poderiam se beneficiar do crescente avanço da China nas novas fronteiras da tecnologia da informação. A entrada de investimentos chineses nessa área no Brasil ainda é um fenômeno recente e restrito a um número relativamente baixo de atores, mas oferece um grande potencial para projetos ligados a temas como inteligência artificial, economia digital, internet das coisas, redes 5G, cidades inteligentes, dentre outros".

Deputado federal Eduardo Bolsonaro em corredor, olhando para frente

Crédito, Reuters

Legenda da foto, Ao comentar a adesão do Brasil a uma aliança contra o uso de tecnologia 5G da Huawei, Eduardo Bolsonaro acusou diretamente a China de espionagem

Atritos

Desde sua campanha presidencial, Bolsonaro vem fazendo críticas à China. Os ataques também vêm de pessoas próximas ao presidente, como seus filhos.

Em fevereiro de 2019, ele visitou Taiwan, irritando os chineses — o país é considerado uma "província rebelde" por Pequim.

Em novembro do ano passado, Eduardo Bolsonaro, deputado federal (PSL-SP) e filho do presidente, publicou (e depois apagou) mensagem dizendo que o governo brasileiro apoiava uma "aliança global para um 5G seguro, sem espionagem da China".

Em comunicado, a embaixada chinesa em Brasília falou sobre o governo brasileiro "arcar com consequências negativas e carregar a responsabilidade histórica de perturbar a normalidade da parceria China-Brasil".

Em maio deste ano, Bolsonaro insinuou que a pandemia de coronavírus seria parte de uma "guerra biológica" chinesa e que "os militares sabem disso".

Logo depois, o presidente afirmou que o Brasil é "muito importante" para a China e negou ter citado o país asiático em declaração sobre a origem do novo coronavírus.

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