'O casal tem que ser amigo, sócio, desejável, estável... estamos pedindo muito', diz escritora espanhola

Marta Jiménez Serrano

Crédito, Noelia Olbés

Legenda da foto, 'Antes o estigma era muito maior para quem era solteiro e acho que aos poucos estamos entendendo que ninguém precisa vir e nos completar', analisa a escritora espanhola Marta Jiménez Serrano
  • Author, Diana Massis
  • Role, BBC News Mundo

Heloísa e Marcelo se apaixonam: para ele, amar é como entrar em um trem e se deixar levar; para ela, porém, é como escalar uma montanha íngreme.

Alicia amamenta seu bebê recém-nascido e de repente percebe que seu marido, Alberto, depilou as costas, algo que lhe parece estranho: por que ele tiraria o pelo se não fosse por alguém?

Luis, um professor e escritor maduro, fica deslumbrado com a bela e ambiciosa Nerea, de vinte e poucos anos. No entanto, depois de um curto período de tempo, ele começa a sentir vergonha de apresentá-la ao seu mundo de intelectuais de cinquenta e poucos anos.

Maca se apaixona por David — ela é uma garota rica, ele não. Tem também Lola, que se apaixonou novamente, mas não sabe como contar aos filhos e netos. E no caso de Martín, diríamos que ele ama Noelia a todo custo, mas ela não o retribui com amor, mas com uma péssima amizade.

Essas são algumas das histórias de No todo el mundo (em português, “Nem todo mundo”), o livro de contos da jovem escritora espanhola Marta Jiménez Serrano, (Madrid, 1990) que já vai para a sua quinta edição e se tornou um guia de como amar quando se ama na atualidade.

O livro passa por casos amorosos e desgostos, medos e ilusões, começos e fins.

“Me interessou aquela ambivalência do amor, que por um lado é sempre igual e por outro tem muitas nuances.”

Com humor e olhar atento, Marta Jiménez Serrano investiga as experiências de quem busca, vive e rompe o amor nesses tempos conturbados, marcado por mais igualdade nas relações, por papéis em transição e por aplicativos como Tinder.

São novos tempos que ainda carecem de modelos claros para saber amar e ser amado.

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BBC News Mundo - Há uma ideia de que todos deveriam encontrar o amor. É um grande sofrimento se isso não ocorre?

Marta Jiménez Serrano - Não achar esse amor ainda é um sofrimento, mas eu diria que melhoramos um pouco nesse aspecto.

Antes o estigma era muito maior para quem era solteiro e acho que aos poucos estamos entendendo que ninguém precisa vir e nos completar.

O que acredito é que pedimos muito ao nosso parceiro quando temos um.

Antes esses papéis eram diversificados e você tinha um sentimento de pertencimento à sua comunidade, de cumplicidade com vizinhos, primos... E de repente, o parceiro ou a parceira tem que ser amigo, sócio, desejável, estável...

Acho que estamos pedindo muito.

Nessa sociedade individualista, moro numa cidade, num apartamento e quem é meu parceiro o tempo todo é o meu companheiro.

Além disso, a relação homem-mulher se tornou progressivamente mais simétrica. Antes a mulher ficava em casa e o homem saía para trabalhar, e cada um tinha um papel muito claro, mas não necessariamente era um a um.

Agora já é assim, então entram mais demandas.

BBC News Mundo - Você teria coragem de dar uma definição de amor?

Serrano - O livro em si é, certo? Há uma frase do narrador que me tem sido muito repetida, que diz: “Talvez amor é quando a conversa sempre continua sendo interessante” e é o mais próximo que estou de encontrar uma definição que me satisfaça.

Continuar interessado e manter renovada a curiosidade e a surpresa. Para mim, seria o oposto de estagnar.

Tem um personagem no livro que entra no relacionamento como quem entra em um trem: bom, estamos namorando, não tem mais o que fazer. E para mim, seria o contrário de entrar no piloto automático.

Capa do livro No todo el mundo

Crédito, Sexto Piso Editorial

Legenda da foto, O livro 'No todo el mundo' ('Nem todo mundo', em tradução para o português) foi publicado neste ano e está em sua quinta edição

BBC News Mundo - No conto sobre Marcelo e Heloísa, o relacionamento representa que ele entra no trem, mas ela começa a subir uma montanha. O mundo está dividido entre esses dois tipos de pessoas?

Serrano - É algo muito de gênero, na verdade.

Muitas vezes, a mulher tem essa tendência de encarar o relacionamento como uma tarefa e verificar o que está indo bem, o que está errado, o que precisa ser melhorado.

Historicamente, ela foi responsável pelas emoções e afetos, e os homens tradicionalmente pensaram menos sobre isso.

Por isso, o fracasso no casal ou na família pesa mais para a mulher, porque se presume que o sucesso dependia dela e há expressões coloquiais que comprovam isso, como: 'Ela não conseguiu segurá-lo', ' Tem algum problema com ela'.

Não é como se eles não se entenderam ou não deu certo e se abandonaram.

O peso da responsabilidade emocional recai sobre as mulheres, mas são papéis que estamos reconfigurando, tentando torná-los diferentes.

BBC News Mundo - Por que você mostra as várias barreiras ao amor, desde diferenças de idade ou classe, até visões ou expectativas opostas?

Serrano - Queria quebrar aquele mito de que o amor pode tudo. Às vezes, não pode tudo.

Existem diferenças grandes o suficiente que podem desempenhar um papel fundamental no término do relacionamento.

Eu estava interessada em mostrar o contexto dos membros do casal.

Nos filmes românticos, os amantes são retratados como duas bolhas que colidem em uma cafeteria e têm todo o dinheiro e tempo do mundo para se ver. Ninguém tem um pai doente ou dificuldade para sobreviver.

Há também a história da mulher que se apaixona por alguém que tem uma filha e tem que se relacionar com ela, e se o casal acabar, ela estará perdendo parte desse mundo.

Todos perdemos amigos, às vezes um enteado, perdemos lugares, bares que frequentávamos. É daí que vem o papel da cidade, porque não há ninguém de férias nesses relatos.

BBC News Mundo - O título Nem todo mundo é como uma frase inacabada. Quais seriam os finais possíveis?

Serrano - Na verdade é irônico, vem de uma das histórias, a da Verônica.

Chega um momento em que você está tentando se convencer e repete, bom, mas nem todo mundo é infiel ao parceiro, e nem todo mundo se apaixonou como eu. É um não para todos que é um sim para todos.

Na verdade, nos sentimos muito especiais quando nos apaixonamos e ficamos mais infelizes quando terminamos, mas há uma coisa sistêmica e todos nós nos apaixonamos e desapaixonamos da mesma forma.

BBC News Mundo - No conto da Verônica, ela relata uma história para si mesma, mas a realidade se revela. É fácil se enganar no amor?

Serrano - É fácil ver o que você quer e ignorar o que está errado para você.

Nos casais, fala-se muito em engano: ele mentiu para mim, não me contou como foi... Mas às vezes, a outra pessoa não está mentindo de forma maliciosa ou preconcebida. Os primeiros a quem temos que contar a verdade somos nós mesmos, e a partir daí começamos a nos comunicar com o outro.

Muitas vezes, formamos um casal apenas porque queremos formar um casal, mais do que porque queremos aquela pessoa como parceira.

Acho que o autoengano consiste em tentar fazer com que o que queremos e o que existe se unam e digamos sim, sim, eu quero isso — embora, na realidade, talvez não.

Marta Jiménez Serrano

Crédito, Noelia Olbés

Legenda da foto, Marta Jiménez Serrano investiga as experiências de quem busca, vive e rompe o amor

BBC News Mundo - Dizem que estamos na era do Tinder, mas seus amores são bastante analógicos. Qual o papel do mundo virtual no amor?

Serrano - As pessoas mandam WhatsApp umas para as outras ou se escrevem online, mas não sei se isso mudou tanto os relacionamentos.

Falam do Tinder como se fosse um mercado de carnes, e não sei se já estiveram em uma boate às quatro da manhã — é um mercado de carnes e isso vem acontecendo ao longo da história da humanidade.

O problema da internet é que o mundo ficou maior. Podemos conversar com alguém que está na Austrália ou com alguém que você nunca viu e depois nos vermos, mas isso acontecia com as cartas e não sei se realmente mudou muito a forma como nos relacionamos como casal.

Bem, houve uma aceleração, podemos conversar simultaneamente.

BBC News Mundo - Haveria uma espécie de promiscuidade digital no ato de marcar um encontro e, se não der certo, você marcar outro encontro — e assim por diante?

Serrano - Não sei se tanta gente está fazendo isso, não tenho dados, e então não acho que seja algo exclusivo do amor ou do sexo.

Vivemos em um mundo hipercapitalista em que você vai para outro país e pode chamar alguém para dormir com você, mas também pode comprar uma mochila.

É aquele mundo acelerado do consumo em todos os aspectos, o que acabou impactando também nesse tipo de relacionamento.

Mas eu realmente me pergunto se isso é tão difundido. Acho que há muito mais pessoas no Tinder procurando por amor do que por sexo.

BBC News Mundo - Você diz que a frase “quando estamos bem, estamos muito bem” é mortal para qualquer casal. Como você se aprofundou nesse jargão do amor?

Serrano - Gosto muito de prestar atenção na forma como as pessoas falam, me diverte ver como faz um menino de 15 anos e como fala uma mulher de 70 anos.

Tenho brincado com ironia com o jargão do amor, para refrescar um pouco, porque é sempre um lugar-comum: “Temos que conversar”, “Te amo mais que a minha vida”, tudo que já foi dito 200 vezes.

Acreditamos que somos os primeiros amantes do planeta e, na realidade, muitas pessoas disseram as mesmas palavras que nós.

Essas que você menciona são o tipo de frase para se convencer. Quando sentimos necessidade de dizer em público que estamos muito bem, que é maravilhoso, parece que uma fissura começa a se romper. Se você precisar explicar, talvez algo esteja começando a dar errado.

BBC News Brasil - Se no passado o divórcio não existia ou a separação era desaprovada, é mais fácil romper agora?

Serrano - Acho que ainda é doloroso terminar, não acho que as pessoas se separam como se não fosse nada, mas obviamente é algo mais normalizado, felizmente, porque aguentar não parece ser um bom terreno fértil.

O fato de ser normal que cada pessoa tenha vários parceiros ao longo da vida em comparação com as gerações anteriores é novo.

Na geração dos meus avós, ninguém se deixava. Claro que havia casos extraconjugais, havia casais infelizes, mas eles não se separavam e dividiam os móveis.

Certamente, faltam ferramentas para saber administrar essas situações, justamente porque é algo que não foi feito. Não temos exemplos nem referências, e às vezes somos atrapalhados com esse tema. É algo que estamos tentando entender.

BBC News Brasil - Que feridas estas rupturas modernas estão deixando?

Serrano - O medo do amor. Há muito medo do amor e não creio que seja porque os jovens sejam mais frívolos. Na verdade, vejo muita necessidade de conexão.

Mas quando você passa por vários términos, você também sabe o dano que eles deixam — como pode ser doloroso, como é difícil ser vulnerável.

E então acho que isso trouxe uma cautela, pelo menos uma cautela, com relação a com quem realmente nos comprometemos.

BBC News Mundo - Que coisas novas estão acontecendo nos relacionamentos?

Serrano - Duas coisas aconteceram.

Gostei muito de O Fim do Amor, ensaio da escritora argentina Tamara Tenenbaum. Lá, ela fala sobre o fim da hipocrisia. Acabou isso de que se meu marido ou esposa tem amante, eu finjo que ele não tem.

Estamos mais dispostos a montar um modelo de relacionamento em que isso possa acontecer do que fingir que não está acontecendo.

E, por outro lado, acredito que ninguém considera nada garantido. Não se presume que vamos morar juntos, que vamos ter filhos, que você vai passar o Natal na minha casa, que vamos passar férias juntos.

Tudo é conversado e cada casal chega às suas próprias conclusões.

BBC News Brasil - Na epígrafe, você tem uma frase de Roberto Bolaño que diz “O amor não traz nada de bom, sempre traz algo melhor”. O que o amor trouxe para você?

Serrano - De tudo: muito choro, incertezas, experiências ruins que prejudicam a autoestima e também experiências positivas, principalmente quando você sente que pode ser você mesmo.

Acho que tem muito teatro no casal, muito fingimento: vamos ver o que o outro vai pensar, então eu faço isso para que o outro pense.

E de repente tem certas pessoas com quem você não precisa pensar em que teatro fazer. Acho que essas são as experiências mais agradáveis.

Quando você gosta mais é quando você fala: olha, se eu tiver vontade, eu vou escrever para ele, se eu não tiver vontade, eu não vou escrever para ele, e deixar tudo correr naturalmente, né ?

Eu me casei há um mês. Então, o que posso te dizer? Ei? Não sei, espero que tudo corra bem.