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Império de Canem

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Império de Canem

Império de Canem-Bornu

século VIII — 1387 
Bandeira de Canem (Organa) do atlas de Angelino Dulcert de 1339
Bandeira de Canem (Organa) do atlas de Angelino Dulcert de 1339
Bandeira de Canem (Organa) do atlas de Angelino Dulcert de 1339

Canem em seu zênite
Continente África
Capitais Manã
Anjimi
Países atuais Chade Chade
Líbia Líbia
Níger Níger
Nigéria Nigéria
Camarões Camarões

Línguas oficiais canembu
canúri
zagaua
árabe
Religiões Animismo (até século XI)
Islamismo (século XI-XIV)
Moeda Escravos
Cobre (século XIV)

Forma de governo Monarquia
Maí (rei)
• século VIII  Ibraim (dugua)
• 1382–1387  Omar I (sefaua)

Período histórico Idade Média
• século VIII  Fundação
• 1387  Dissolução

O Império de Canem,[1][2][3] por vezes referido como Império de Canem-Bornu, foi um império da África que existiu do século VIII até 1387. Sua história é conhecida principalmente com base na Crônica Real ou Girgam, descoberta em 1851 pelo viajante alemão Heinrich Barth.[4] O Império de Canem provavelmente no século VIII, criado pelos zagauas que ainda habitam partes do Chade. A crônica real do país afirma que o fundador do Estado foi Ibraim, filho de Ceife. Por séculos manteve-se animista, mas por influência de missionários que transitavam junto as caravanas do comércio transaariano foi convertido ao islamismo no século XI no reinado de Humé (r. 1075–1086), primeiro maí (rei) da dinastia sefaua. Apesar da conversão, várias características da sociedade canembu pré-islâmica se mantém, sobretudo o caráter divino dos reis.

Durante os primeiros sucessores de Humé, foi expandido e chegou em seu zênite sob Dunama II (r. 1210–1248), se estendendo ao sul da atual Líbia no Fezã e ao nordeste da atual Nigéria no estado de Bornu. Sob Dunama, foram feitas melhorias técnicas no exército e Canem adotou os corcéis árabes, melhorando a capacidade militar do país e facilitando as expedições para obtenção de escravos, a principal fonte de renda de Canem. Sob Cadai (r. 1248–1277), seu filho, Canem faz uma missão diplomática ao Reino Haféssida da Ifríquia. Os maís seguintes enfrenta a ameaça dos saôs, e vários monarcas perderam suas vidas. A crise foi superada com Idris I (r. 1342–1366), mas uma disputa pelo trono eclode entre seus filhos e seu irmão Daúde I (r. 1366–1377), debilitando o país e a dinastia e deixando-a vulnerável aos bulalas que invadem Canem nesse momento. Vários maís perecem nos combates e sob Omar I (r. 1382–1387) a corte foi transferida para Bornu, onde foi fundado o Império de Bornu em 1387.

Em canúri, Kanem significa "país do sul"; a palavra é prefixada por k, que anuncia o substantivo, e o étimo anem que significa "sul". [5] Os canembus, os habitantes do país, são a "gente do país do sul", por oposição aos tubus, a "gente da montanha" e que habitam a região de Tibesti, no atual Chade.[6]

Fontes históricas

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O Império de Canem foi fundado durante o século VIII pelos zagauas. A primeira menção a esse povo é feita por Uabe ibne Munabi. No século IX, ibne Cutaiba afirmou que eram uma das sete raças do Sudão, enquanto Iacubi, escrevendo em 872, disse que viviam em Canem; era a primeira menção histórica ao país. Na descrição cita-se que não tinham cidades e habitavam cabaças de caniço e que formavam dois reinos que avizinhavam Malal, um adversário de Canem; Malal era governado por Maí Uasi (Mywsy).[7] Também fala que os zagauas tinham um subgrupo chamado haudines (hawdīn), cuja historiografia associa aos hauçás.[8] Cem anos depois, de acordo com Mualabi, cujo relato foi citado por Iacute, havia em Canem as cidades de Manã e Tarásqui nas quais havia casebres de varas, o mesmo material do palácio real.[7]

Segundo o Girgam dos maís de Bornu, porém, a linhagem de Canem surge com o herói árabe Ceife, que no século VI, com apoio da Pérsia, tornar-se-ia rei no Iêmem. Seu filho Ibraim migrou ao Sudão Central e se tornou líder dos magumis, grupos nômades que à época viviam ao nordeste do lago Chade. Ibraim e descendentes adquiriram supremacia sobre grupos nômades e sedentários da região, sobretudo a partir de alianças matrimoniais. Essa versão, que associa a aristocracia magumi, que seria muito relevante durante a história de Canem, e um herói árabe do Iêmem surge após a conversão de Canem ao islamismo e, ao que parece, serviu para conferir legitimidade à posterior dinastia sefaua.[9]

Historiografia

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Essas posições reverberaram na historiografia. Para alguns, os sefauas sucederam os zagauas, mas eram de estirpe real distinta e professavam o islamismo. A outros, os zagauas pouco ou nada participaram no surgimento do país, sendo expulsos conforme foi se estabelecendo; possivelmente são associáveis aos saôs das fontes canúris. Há quem defenda a ideia de que havia 2 reinos, o zagaua e o magumi, que conviveram por muito tempo até que o segundo derrotou o primeiro; a ideia está apoiada em Almaçudi que, escrevendo no século X, distinguiu zagauas e Canem.[10] Também há quem defenda a ideia de que, de fato, foram os zagauas a criarem Canem e a sua criação implicou na transição de seu estilo de vida pastorício e nômade para outro agrícola e sedentário, a centralização do poder e estabelecimento da capital.[11] Ainda há quem pense na persistência sob os sefauas da realeza divina típica dos zagauas como prova de que o país incluiu zagauas em sua formação e sua presença atual em Uadai e Darfur seria reflexo da migração póstuma de grupos que recusaram converter-se. Por fim, há quem pense que os magumis não eram nômades, como dito no Girgam, cujos epígonos de Ceife assumem a liderança, mas a linhagem patrilinear sefaua, o que faria deles os descendentes da realeza. Alberto da Costa e Silva, concluindo, afirma: "No substrato de quase todas as visões há algo comum: a imposição de um grupo, local ou forâneo, sobre os demais, graças à superioridade que lhe davam o conhecimento do ferro e uso do cavalo."[10]

Dierk Lange, por exemplo, considerou que o processo de formação de Canem estava ligado à ascensão de uma aristocracia dominante – da qual haviam saído, a um só tempo, o rei do Canem e aquele dos haudines de Iacubi – e que dera seu nome ao conjunto das populações nos dois países. Também afirma que é mais verossímil a hipótese que um pequeno grupo, em razão de violento conflito, desencadeou a criação do Estado numa região onde as técnicas do ferro eram conhecidas desde o século IV (Cultura hadadiana) e onde a posse de cavalos não tão somente era sinal de elevadíssimo prestígio, mas, igualmente, garantia de combatividade superior. Para eles, dispondo de armas de ferro e tirando proveito dos intercâmbios, ainda rudimentares, com o mundo exterior, este grupo – os zagauas, indiscutivelmente – impôs‑se progressivamente perante populações de pastores e agricultores, habitantes da região situada a sudeste do Cauar, entre o lago Chade e o Baral Gazal região posteriormente chamada Canem. Acrescenta ainda que a aristocracia dominante dos zagauas provavelmente não se reconstituiria senão posteriormente, embora segundo esta hipótese, os zagauas possam não ter em seu conjunto uma identidade étnica distinta dos principais grupos de agricultores e pastores, sobre os quais se estendia o seu domínio inicial. Aparentemente, não seria senão numa fase ulterior, muito posterior, à época de Mualabi, que diversos grupos étnicos teriam sido integrados no quadro de uma mesma estrutura estatal.[12] Lange ainda propôs, com base no conhecimento acumulado pelos cronistas árabes e a expedição Uqueba ibne Nafi contra Fezã e Cauar nos primórdios da expansão islâmica, que Canem já poderia existir pouco antes da Hégira (622).[13]

Território dos cuararafas
Reino Haféssida e Estados vizinhos ca. 1400. O maí Cadai (r. 1248–1277) enviou presentes ao califa Maomé I (r. 1249–1277)

As fontes muçulmanas fazem menção a 3 missões diplomáticas a países muçulmanos do norte da África, mas não se sabe se foram feitas por Canem.[a] Canem tornou-se majoritariamente muçulmano a partir do reinado do maí Humé (r. 1075–1086). Relata-se que ao assumir estabeleceu os sefauas no trono de Canem em sucessão Abdal Jalil (r. 1071–1075), último maí da dinastia zagaua precedente dos duguas que se originou com Dugu, tido como filho de Ibraim (numa versão)[14][15] ou irmão de Ceife (em outra).[16] A tradição diz que de Humé a Salmama I (r. 1182–1210) os maís eram vermelhos como beduínos, levando alguns historiadores sugerirem origem berbere. Sob Dunama II (r. 1210–1248), reformas técnicas no exército foram introduzidas e deu-se prosseguimento à islamização do país. Canem adquiriu grandes proporções territoriais ao dominar Cauar e o comércio de sal e alume.[17] Para garantir que o comércio transaariano não seria afetado por disputas locais, marchou ao Fezã, derrotou berberes em Zuila e colocou em Tragane um homem de sua confiança, talvez tubu, que fundaria a dinastia Banu Naçor.[18] Talvez impôs sua autoridade sobre boa parte de Bornu e intensificou ataques a povos sulistas, ao que parece exclusivamente para obter escravos.[17] Também conduziria uma expedição fracassada contra os cuararafas.[18]

Sob Cadai (r. 1248–1277), o controle de Canem sobre o Fezã foi consolidado e fez-se guerra no sul do Chade. Também enviou, entre os presentes de embaixada ao califa Maomé I (r. 1249–1277) em Túnis, uma girafa — "animal de forma estranha e disparatada", como citou ibne Caldune. Falece em 1277, combatendo os "andacamas dunamas", talvez um país vassalo. Ibraim I (r. 1296–1315) também foi derrotado e morto pelo vassalo ierima Maomé ibne Gadi.[19] Entre Salmama II (r. 1335–1339) e Maomé I (r. 1341–1342), o reino enfrenta a ameaça dos saôs e 4 maís foram mortos nos combates. Somente sob Idris I (r. 1342–1366) a situação foi controlada. Adotou uma política mais conciliatória com as populações de Bornu, bem como estabeleceu um modus vivendi com as tribos saôs, trazendo então ordem ao país. Foi sucedido pelo irmão Daúde I (r. 1366–1377). Talvez continua à política de Idris e tentou recuperar a influência sobre a região a leste de Canem ou ao menos conter o avanço bulala. Seus sobrinhos não aceitaram serem ignorados na sucessão e iniciaram uma guerra civil contra o tio, o que enfraqueceu a dinastia. Isso permitiu aos bulalas atacarem e Daúde morre em 1376/1377 combatendo-os. De Otomão I (r. 1377–1379) a Abacar I (r. 1381–1382) os maís tentaram combater os invasores, porém seus esforços foram inúteis e todos pereceram nos combates. Sob Omar I (r. 1382–1387), Canem foi abandonado e a corte foi transferida para Bornu, onde se funda um novo Estado.[20][21]

Canem estava localizado no Sudão Central, hoje compreendendo sobretudo o território do Chade. Ao norte estendia-se a Bilma e Caçaba, em Cauar.[22] Ao falar dos zagauas, um dos povos que fundaram Canem, o geógrafo árabe Algorismo do começo do século IX situou seu reino simultaneamente ao sul do Fezã e ao Sul do Reino de Alódia na Núbia.[13] Dreses comenta que eles avizinhavam o Fezã, no sul da atual Líbia, e que Sagaua (provavelmente idêntico a Sacaua, nome dado pelos zagauas ao sul do atual Uadai) e Xama (talvez Tim-Xamane, ao norte de Agadez) eram dois centros zagauas cujos habitantes viviam da pastorícia (para produção de leite, manteiga e carne) e cultivo de sorgo. Mualabi afirmou que Canem era um Estado muito extenso, limítrofe com a Núbia, situada a 10 dias de caminhada.[22]

Sob a dinastia sefaua, Canem estendeu seus limites para Zuila e Tragane, ambos no Fezã, e para Bornu na atual Nigéria.[17][18] Esses territórios, apesar de situados no Saara, não eram desérticos segundo as descrições e sua população vivia do cultivo.[22] No tempo da descrição de Iacubi, os zagauas ainda não viviam em cidades e suas residências eram de caniço. No tempo de Mualabi menciona-se as cidades de Manã — localizada por Dreses a 12 estádios de Tamalma em Cauar[23] — e Tarásqui,[7] enquanto ibne Saíde cita Nai. Em várias passagens do Girgam são feitas menções a cidades nas quais alguns maís foram sepultados: Zantam, Nanigam e Discama, todas situadas em algum lugar a oeste do lago Chade.[24]

No tempo da dominação sefaua, a capital foi transferida para Anjimi, descrita por Dreses como um pequeno povoado que estava aproximadamente a 3 dias de viagem do rio Nilo e 8 de Manã;[18][25][26] nela foram sepultados quatro maís.[24] Abulféda, escrevendo no século XIV, citou que o rei tinha uma cidade com jardins situada na margem esquerda do Nilo a 40 milhas da capital Anjimi na qual havia cana-de-açúcar e muitas frutas como pêssegos e outras não encontradas no mundo árabe.[11]

Rotas transaarianas do Saara Ocidental c. 1000-1500. Canem esteve integrado nesse sistema de rotas e atuou como confluência daquelas que atravessavam o Sudão Central

Canem, ao estar na confluência das rotas do comércio transaariano que atravessavam o Sudão Central serviu como intermediário entre o deserto, o Sael e a savana. Abastecia mercados do Egito, Tripolitânia e Ifríquia (atual Tunísia) e suas caravanas passavam por Gate (no Fezã) e Air (em Cauar). Exportava ouro e marfim, mas a carência desses produtos no Sudão Central sua participação no montando era inexpressiva. Também se sabe que havia o comércio de almíscar, pedra-ume, ceras, peles e plumas de avestruz e desde o final do século X e início do XI, com o controle, mesmo que parcial, do Cauar, obteve natrão que era utilizado para coalhar leite e curtir couro. Esses produtos eram enviados ao norte, mas também se comercializava sal com as terras meridionais. Apesar dessa ampla gama de produtos, a mercadoria de maior valor eram os escravos.[11][27]

Desde cedo, os zagauas participavam no tráfico escravo e no século IX Iacubi faz menção ao tráfico sem indicar o modo de obtenção. Mualabi, mais adiante, afirmou que o rei zagaua tinha plena autoridade sobre seus súditos e podia escravizar quem quisesse. Alberto da Costa e Silva propôs que essa afirmação reflete um processo com etapas: num primeiro momento o rei escravizava pelo uso de armas e sob camelos nas zonas desérticas; depois arrebanhou-os nas populações a ele submetidas e então procurou cativos em territórios vizinhos e terras distantes. Nesse percurso, deslocou sua zona de influência do deserto ao Sael e as savanas e ao fazê-lo abandona os camelos por cavalos.[28] Escravos eram moeda de troca, sendo substituídos pelo cobre apenas no século XIV.[29]

Os escravos de Canem serviam como soldados, criados, trabalhadores do campo, concubinas ou eunucos no norte da África; diz-se que as mulheres dos entornos do lago Chade eram famosas entre árabes e arabizados por sua doçura e beleza, enquanto os eunucos eram muito cotados. Ainda havia aqueles que Canem recebia como tributo e com os quais fazia alianças. Além disso, por estar situado numa zona de vazios demográficos, Canem dependia de escravos à montagem de exércitos, o cultivo da terra, o cuidado dos cavalos, camelos, cabras e bois e aos demais trabalhos mais humildes, bem como na exploração do sal do Cauar.[28] Mualabi menciona que todas as terras férteis do reino eram cultivadas, principalmente com sorgo, dólico, macunde e trigo.[30]

Alguns indivíduos de Canem adquiriram notoriedade fora do país, com Iacute mencionando no século XII que habitava em Marraquexe, então parte do Califado Almóada, um poeta canembu cuja excelência da obra Iacute reconheceu, mas admitiu que não tomou conhecimento do nome do autor nem leu sua poesia.[11] Canem era formado por vários povos diferentes, mas dividia-se sobretudo em dois grupos, os canembus em Canem e os canúris (que resultaram da aglutinação de canembus e saôs) em Bornu. Muitas tribos, vilas e grupos nômades, mesmo após se submeterem ao maí (rei) mantinham-se sob comando de seus chefes tradicionais, os bulamas, que eram subordinados e representantes reais e comandantes militares que em sua maioria eram príncipe da casa real. Compunha uma classe própria, a maína, ou classe dos príncipes, que com o tempo cresceu em força em paralelo à ampliação do poder sefaua; povos conquistados eram divididos entre os maínas na forma de cis (uma espécie de feudos). Os cis eram feudos sobre pessoas e, através delas, das terras por elas cultivadas.[31]

Ainda havia uma classe de servidos cortesãos, aos quais também se davam cis: o arginoma, o mustrema (chefe dos eunucos), o ierima, o tegoma e ciroma (herdeiro presuntivo). Essas dignidades tradicionais sobreviveram a conversão do século XI e formavam a classe dos cogemas que convivia com os funcionários islâmicos: vizires, cádis, cazins, etc. Os funcionários islâmicos adquiriam proeminência com o tempo, mas não se sabe se a eles era concedido cis. Ainda havia 4 grandes comandantes em chefe sediados na corte e eram responsáveis, a princípio, pelas porções do império que ficavam na direção de cada um dos pontos cardiais. Eles, junto a 8 próceres, formavam o grande conselho que ajudava o rei a governar. Por fim, a rainha-mãe, chamada magira, e a rainha-irmã exerciam grande influência e poder e só estavam abaixo do rei, recluso, misterioso e quase divino.[32]

O poder em Canem estava concentrado sob o rei. Mualabi relata que os zagauas veneraram o rei como um deus e acreditavam que não se alimentava. Os reis (designados maís) mantinham a crença ao tomarem suas refeições em segredo. Diz-se que seus alimentos eram levados às escondidas ao palácio e caso alguém avistasse o camelo de transporte era imediatamente morto; não se ocultava, entretanto, que ele se servia com alguns íntimos de uma bebida feita de sorgo e mel. O rei vestia-se com calças de leve e usava, a cair do ombro esquerdo, um pano fino de lã ou seda; a maioria dos zagauas, porém, usava apenas um pedaço de pele para cobrir a virilha. A autoridade do rei era completa com ele tendo autoridade para escravizar quem quisesse. Dizia-se que ele determinada o destino dos zagauas e lhes trazia chuva e seca, vida e morte, saúde e doença.[33] Segundo Almacrizi, escrevendo no século XIV, sob o maí havia 5 reis menores, enquanto seu coetâneo Alumari afirmou que ele era fraco de autoridade, pobre de alma e de arrogância inconcebível.[11]

Ápice do Império Almorávida. Loimeier pensa numa influência almorávida à escolha da corrente sunita-maliquita de Canem
Ápice do Império do Mali

Em meados do século XI, segundo Albacri, Canem ainda era animista (ele designa-o um país de idólatras). É provável que já por essa época o islã tenha começado a ser difundido a partir de pequenas comunidades que deviam habitar Manã e outras cidades canembus e o comércio no qual o país esteve envolvido deve ter tido seu papel nesse processo. O próprio Albacri cita que havia em Canem um grupo de omíadas que conservava usos e costumes árabes.[34] Sob Humé (r. 1075–1086), primeiro maí da dinastia sefaua, o Canem converteu-se ao islamismo. Segundo a tradição, o próprio Humé assumiu o trono após converter-se. A tradição atribuiu a Maomé ibne Mani, um missionário islâmico, a conversão ou ao menos a confirmação e fortalecimento desse monarca no islamismo. Humé é por vezes tido pelos cronistas como o primeiro maí muçulmano de Canem, porém o maram (carta de privilégio) concedido à família de Mani indica que viveu no país sob três reis antes da ascensão de Humé.[35] Roman Loimeier sugeriu que tenha se convertido ao islamismo sunita-maliquita, possivelmente sob influência do Império Almorávida, que estava mais a oeste, refletindo a negação da corrente ibadita que estava sofrendo crescente marginalização no Norte da África à época.[36] G. Yver propôs que a conversão ocorreu por intermédio dos tubus,[37] enquanto Tadeusz Lewicki sugeriu que a conversão foi ao ibadismo por intermédio do Reino Rustúmida. Para ele, e para Dierk Lange, o fato do governador Abu Ubaidá Abedal Hamide Jinauni das montanhas Nafuça (Tripolitânia) afirmar que conhecia árabe, berbere e a língua de Canem é indício do provável contato dos rustúmidas e Canem.[38][39]

Apesar da mudança, ao que parece, houve a reintrodução de ritos que cercavam a figura divina do soberano e ele tornou a comunicar-se com os súditos oculto por uma cortina, dentro de uma espécie de gaiola; essa prática persistiu até o século XIX.[17] Alumari afirmou que o rei ficava velado ao povo e era visto em apenas dois festivais, ao amanhecer e á tarde e durante todo o ano não era visto, nem mesmo pelo comandante-em-chefe, exceto por trás de uma tela.[11] Também o papel da rainha-mãe foi reafirmado conforme tradições locais e contra preceitos muçulmanos.[17] Dunama I (r. 1086–1140), filho e sucessor de Humé, é o primeiro monarca a fazer o haje (peregrinação) a Meca, tendo conduzido três.[40] Dunama II (r. 1210–1248) era fervoroso muçulmano e a reação anti-islâmica, se houve no Canem, cessou sob seu reinado, bem como esforçou-se para propagar sua fé, sem acabar por completo com os ritos tradicionais; ele envolveu-se numa crise religiosa ao abrir o mune, um objeto sagrado e secreto, que dizia-se ser a fonte da força real sobre a natureza e os homens e o talismã à felicidade do povo e à vitória sobre inimigos. Também realizou um haje e a ele são atribuídas obras pias em terras estrangeiras como a madraça de Raxique no Cairo.[17]

Em sua busca por escravos, Canem se expandiu para sul e regularmente suas tropas atacavam povoados agrícolas. Os mais próximos foram rapidamente submetidos e seus habitantes foram incorporados aos canembus, enquanto outros acomodaram-se à vassalagem para se protegerem dos assaltos dos escravagistas. Aos povoados mais distantes, alguns deles situados a centenas de quilômetros do núcleo do país, dirigiam-se ataques. Essa política predatória para obtenção de escravos fez com que Canem adotasse uma postura diferente daquele do Império do Gana e seu sucessor Império do Mali no Sudão Ocidental. Para estes Estados, cuja principal fonte de renda era o comércio do ouro, era interessante que houvesse um ambiente de paz entre seu país e seus vizinhos, propiciando a rápida propagação do islamismo por essas regiões, seja autonomamente sob influência de missionários, seja por patrocínio real. Em Canem e mesmo em Bornu, entretanto, o islã continuou ausente em territórios próximos até fins do século XIX. Havia, então, o desinteresse dos maís para propagar a fé a outros povos, pois era interdito escravizar um muçulmano.[34]

Num primeiro momento, o Império de Canem adotou o uso de cavalos sudaneses, que tinham estatura de um pônei, e escanchavam-no no pelo pela ausência de sela com estribos e freio. Apesar dessas carências técnicas, o uso do cavalo ampliaria a eficiência dos exércitos, ao facilitar o deslocamento das tropas, a perseguição e a captura dos inimigos em debandada e o prear dos escravos.[41] Sob Dunama II ocorreu a introdução de corcéis do Egito e Norte da África em Canem; sela com estribos, a espora e o freio foram adotados no império e talvez foi sob ele que a cota de malha lifidi e o capacete de ferro foram introduzidos.[31] Sob Dunama I já se dizia que Canem contavam com uma força de 100 000 cavalos no exército e que as tropas usavam o litam, o véu que, descendo do turbante, cobria a parte inferior do rosto.[40] Almacrizi, escrevendo no século XIV, cita que sob os maís havia 100 000 soldados dos quais havia cavaleiros, infantes e carregadores, enquanto Alumari menciona que os soldados de Canem usavam silenciadores de boca. Ele também afirmou que, apesar da fraqueza do exército de e dos pequenos recursos do país, Canem tocou com sua bandeira as nuvens no céu.[11]

[a] ^ Em 992, ibne Catabe, governador de Zuila, recebeu presente de um dos países do Sudão; o emir zírida da Ifríquia, Almançor ibne Bologuine (r. 984–996) recebeu o mesmo presente expedido por um país do Sudão; um de seus sucessores, Almuiz ibne Badis (r. 1016–1062) recebeu presente em 1031 na forma de escravos, enviados por um maleque (rei) do Sudão. Em nenhum dos episódios se faz menção do nome do país que enviou.[42]

Referências

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