Kit Covid
O kit Covid, muitas vezes designado por tratamento precoce, é uma denominação pela qual ficou conhecida a defesa negacionista do uso de medicamentos sem eficácia comprovada contra a COVID-19[1][2][3][4] promovida pelo governo Jair Bolsonaro e seus adeptos.[5][6][7] Entre os principais fármacos defendidos por esse núcleo de pessoas estão cloroquina,[4][6][8] hidroxicloroquina,[4][6][9] ivermectina,[4][6][8][9][10] azitromicina,[4][6][9] bromexina,[6][10] nitazoxanida[4][6][10][11] e anticoagulantes.[6] Suplementos de zinco também foram associados ao tratamento precoce.[12][13]
Desde o início de seu governo, Bolsonaro procurou criar uma relação amistosa com o então presidente norte-americano Donald Trump. Com o início da pandemia de COVID-19, Trump aderiu à cloroquina e hidroxicloroquina, indicando-as como supostas drogas que poderiam "virar o jogo contra o vírus".[14] O discurso começou a ser adotado por Bolsonaro em março do mesmo ano.[15][14][16] Nos meses seguintes, a defesa do governo brasileiro por esses medicamentos contribuiu para as saídas de Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich do Ministério da Saúde,[17][18][19][20][21] além do aumento no número de infecções, hospitalizações e mortes.[22][23] O governo Bolsonaro também ordenou a produção,[16][24][25] coordenou a distribuição[26] e gastou por volta de 90 milhões de reais na compra de remédios ineficazes.[27] O Ministério da Saúde, sob a gestão de Eduardo Pazuello, ampliou o uso de azitromicina, cloroquina e hidroxicloroquina para casos leves.[28][29][30]
O Kit Covid teve uma ampla repercussão negativa e foi criticado por entidades médicas e especialistas em saúde.[31][32][33] Em contrapartida, gerou confrontos de opiniões entre médicos e políticos.[34][35] Também foi pauta de judicializações e investigações de favorecimento entre agentes públicos e privados para obter lucros financeiros.[36][37]
Contexto
Empossado em janeiro de 2019, o presidente Bolsonaro sempre manteve esforços para se aproximar do então presidente norte-americano Donald Trump.[38][39] Ele elogiou Trump em várias oportunidades e se posicionou a favor de pautas de interesse dos Estados Unidos.[40][41][42][43] Com o início da pandemia de COVID-19, Trump aderiu a um discurso em defesa da cloroquina, mencionando-a como a droga que poderia "virar o jogo contra o vírus".[14] O presidente norte-americano teria se baseado em dois estudos, sendo um deles publicado pelo instituto IHU-Méditerranée Infection. No entanto, diversos cientistas questionaram a metodologia e as diretrizes éticas do estudo e apontaram conflitos de interesse dos autores.[14] Mais tarde, o diretor do instituto, Didier Raoult, foi denunciado pela Sociedade de Patologia Infecciosa de Língua Francesa (SPILF) por "promoção indevida de medicamento".[14] Em 29 de março de 2020, Bolsonaro afirmou: "Aquele remédio lá, hidroxicloroquina, está dando certo em tudo quanto é lugar, certo? Um estudo francês chegou para mim agora".[15]
No início da pandemia no Brasil, o ministro da saúde Luiz Henrique Mandetta seguiu as orientações sanitárias da Organização Mundial da Saúde;[44][45] contudo, as divergências entre Bolsonaro e o ministro ficaram nítidas com o passar dos dias. O presidente defendeu publicamente o uso da cloroquina e hidroxicloroquina, além de se posicionar contra o distanciamento social.[46][47] Por conseguinte, o ministro Mandetta foi demitido em 16 de abril.[48] O oncologista Nelson Teich assumiu o cargo até 15 de maio de 2020,[49][50] quando solicitou demissão em decorrência do desejo do governo de "ampliação do uso da cloroquina" para tratar pacientes com a doença e de sua percepção de que não teria autonomia para atuar à frente da pasta.[51][52] Após a saída de Teich, o general de divisão Eduardo Pazuello assumiu o Ministério de forma interina,[53][54] sendo efetivado quatros meses depois.[55][56] A gestão de Pazuello não tardou para autorizar o uso da hidroxicloroquina para pacientes com casos leves de COVID-19.[57][58][59]
Em todo o ano de 2020, Bolsonaro e Pazuello defenderam a utilização de fármacos ineficazes.[60][61][62][63] O Governo Federal, junto do Exército Brasileiro[64][65] e do Itamaraty,[66] também coordenou a aquisição, produção e distribuição de hidroxicloroquina.[16][67][68] De acordo com a Agência Pública, o exército havia fabricado e distribuído 25 mil unidades somente no mês de março de 2020.[26] No total, foram 3,2 milhões de comprimidos produzidos naquele ano.[16]
Colapso sanitário de Manaus
Em janeiro de 2021, com o agravamento da crise sanitária no estado do Amazonas, o Ministério da Saúde pressionou a prefeitura de Manaus para distribuir medicamentos do Kit Covid.[69][70][71] De acordo com uma matéria da Folha de S.Paulo, o órgão emitiu um ofício assinado por Mayra Pinheiro, secretária de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde, afirmando que a não utilização desses medicamentos seria "inadmissível" e solicitou autorização para visitar as Unidades Básicas de Saúde com o intuito de difundir o tratamento precoce no município.[69][72] A existência deste ofício foi originalmente negada por Pazuello, mas admitida pela própria Mayra Pinheiro.[73][74]
No mesmo período, o Ministério lançou um aplicativo de celular em caráter de teste, o "TrateCov",[75] que teria a função de auxiliar profissionais da saúde, mas acessível por qualquer pessoa.[76] O aplicativo, no entanto, sugeria a prescrição de vários medicamentos sem eficácia contra a COVID-19,[77] inclusive para recém-nascidos e animais.[78] O aplicativo saiu do ar no dia seguinte do lançamento.[79]
Em 21 de julho de 2021, o Jornal Nacional revelou a existência de documentos obtidos pela comissão parlamentar de inquérito da COVID-19 (CPI da COVID-19), que mostravam a pretensão do Ministério da Saúde em convencer médicos e doentes a usarem remédios do kit Covid.[80][81] De acordo com a reportagem, o órgão teria pago, em janeiro, a viagem de 11 médicos a Manaus para orientar os profissionais de saúde do estado para receitar remédios sem eficácia contra a COVID-19. Os enviados elaboraram relatórios que sugeriam a criação de "tendas de tratamento precoce" como uma forma de ampliar a oferta dos medicamentos e incentivar a automedicação do kit Covid.[80][81]
Gabinete paralelo
Após a instauração da CPI da COVID-19, em abril de 2021,[82][83] informações sobre a gestão do Governo Federal no combate à pandemia começaram a ser reveladas. Logo no primeiro depoimento, Mandetta revelou a existência dum "assessoramento paralelo", que mais tarde foi denominado de gabinete paralelo.[84] O objetivo deste grupo era aconselhar o Governo Federal contra a vacinação e a favor do tratamento precoce e da imunidade de rebanho.[85][86] O ex-ministro ainda alegou que sofria a concorrência, dentro do governo, de assessores, filhos do presidente e médicos que chegaram a propor um decreto para incluir na bula da cloroquina o tratamento para COVID-19,[87][88][89] relato confirmado pelo diretor-presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), Antonio Barra Torres.[90][91][92] Com o decorrer das investigações, os nomes do deputado federal Osmar Terra, do ex-assessor do governo Arthur Weintraub, da médica Nise Yamaguchi e do empresário Carlos Wizard foram mencionados pela comissão como possíveis integrantes do gabinete paralelo.[93][94] Documentos da Casa Civil mostraram que pessoas mencionadas como possíveis integrantes do gabinete paralelo participaram de ao menos 24 reuniões para tratar de estratégias do governo no combate à pandemia.[94]
Em 4 de junho de 2021, o sítio Metrópoles divulgou um vídeo duma reunião de Bolsonaro com alguns profissionais da saúde, entre eles Osmar Terra, Nise Yamaguchi o virologista Paolo Zanotto.[95] Este último chegou a propor a criação de um "shadow cabinet" (gabinete das sombras em tradução literal) para aconselhar o governo sobre a pandemia.[96][97] Na reunião, os profissionais também apresentaram ao presidente opiniões contrárias às vacinas e favoráveis à hidroxicloroquina.[96]
Interferência política na Conitec
Em julho de 2021, o Ministério da Saúde, sob a gestão de Marcelo Queiroga, admitiu a ineficácia do kit Covid.[98][99][100] Esta decisão baseou-se numa análise da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias (Conitec), um órgão de assessoramento do Sistema Único de Saúde (SUS).[101] No entanto, Bolsonaro e outros integrantes do governo continuaram defendendo o uso do tratamento precoce.[102][103][104] Em 21 de setembro de 2021, o presidente usou a 76.ª Assembleia Geral das Nações Unidas, realizada em Nova Iorque, para defender o ineficaz tratamento precoce.[105][106][107][108]
Em outubro de 2021, a Conitec retirou de sua pauta a análise dum estudo contrário ao uso de cloroquina em pacientes de COVID-19.[109] O Ministério da Saúde justificou que o próprio grupo de especialistas decidiu retirar o documento de pauta para aprimorar o relatório; contudo, esse adiantamento causou surpresa nos integrantes do órgão e levantou suspeitas duma possível interferência política.[110][111] De acordo com informações da rádio CBN, o presidente Bolsonaro teria se irritado com as informações técnicas que constavam no documento e com a iminente posição da Conitec contrária ao “tratamento precoce”. Por conseguinte, Bolsonaro pressionou o Ministério da Saúde por mudanças no relatório.[111]
Nota do Ministério da Saúde
Em 22 de janeiro de 2022, o Ministério da Saúde emitiu uma nota que classificou falsamente a hidroxicloroquina como eficaz e a vacinação como ineficaz contra a COVID-19.[112][113] O documento, assinado pelo secretário Hélio Angotti Neto, barrou as diretrizes da Conitec que contraindicaram o uso do kit Covid e também apresentou uma tabela que colocava a hidroxicloroquina como um tratamento preferencial às vacinas.[113][114] No dia anterior à nota, o órgão havia rejeitado as diretrizes da Conitec de não usar medicamentos do kit Covid.[115][116]
A nota teve uma repercussão amplamente negativa, sendo repudiada por especialistas e entidades científicas.[117][118][119] Cinco dias depois, o Ministério retirou a tabela com informações falsas, mas manteve a decisão em rejeitar as diretrizes da Conitec.[114]
Os fármacos
Cloroquina e hidroxicloroquina
Cloroquina e hidroxicloroquina são medicamentos usados em tratamento e profilaxia de malária,[120] além do tratamento de artrite reumatoide e lúpus eritematoso.[120] Os dois são medicamentos de administração oral.[120] A cloroquina apresenta efeitos adversos mais comuns, tais como problemas musculares, perda de apetite, diarreia e erupções cutâneas.[120] Entre outros efeitos adversos mais graves estão problemas com a visão, danos musculares, crises epilépticas e baixa concentração de células sanguíneas.[120] Já as reações adversas comuns da hidroxicloroquina são vômitos, dores de cabeça, alterações na visão e fraqueza muscular.[121] Os efeitos colaterais graves podem incluir reações alérgicas, problemas de visão e arritmia cardíaca.[121][122]
Os dois fármacos aumentam o pH endossomal e inibem a fusão do SARS-CoV-2 com as membranas das células hospedeiras.[4][123] A cloroquina também age inibindo a glicosilação da enzima conversora da angiotensina 2, que pode interferir na ligação do coronavírus ao receptor celular.[124] Estudos in vitro sugeriam que os medicamentos podem bloquear o transporte de SARS-CoV-2 dos endossomos iniciais para os endolisossomos, possivelmente impedindo a liberação do genoma viral.[125]
No entanto, apesar de demonstrar atividade antiviral em alguns sistemas in vitro, a hidroxicloroquina não reduziu as cargas virais do trato respiratório superior ou inferior e tampouco demonstrou eficácia clínica.[126] Dois ensaios clínicos randomizados realizados no Brasil e Reino Unido evidenciaram que os medicamentos não melhoraram os desfechos clínicos dos pacientes leve a moderado do que entre aqueles que receberam o tratamento padrão. O uso de hidroxicloroquina também não reduziu o risco de morte ou ventilação mecânica.[127][128]
Ivermectina
A ivermectina é um fármaco usado no tratamento de vários tipos de infestações por parasitas.[129] Entre elas estão a infestação por piolhos, sarna, oncocercose, estrongiloidíase, tricuríase, ascaridíase e filaríase linfática.[129][130][131][132] Em infestações externas, pode ser administrada por via oral ou aplicada na pele.[129][133] O medicamento atua interferindo na função nervosa e muscular dos parasitas,[134][135] aumentando a permeabilidade da membrana celular do parasita, o que resulta na sua paralisia e morte.[135][129] Nos mamíferos, incluindo os humanos, a estrutura não permite que a droga ultrapassa a barreira hematoencefálica.[135] Os efeitos secundários mais comuns são olhos vermelhos, pele seca e sensação de queimadura.[129]
In vitro, a ivermectina apresentou efeitos antivirais contra vários vírus distintos de RNA de cadeia simples e senso positivo, incluindo o SARS-CoV-2.[136] Estudos subsequentes e preliminares demonstraram que a ivermectina poderia inibir a replicação de SARS-CoV-2 em cultura de células de rim de macaco, células genéricas;[137][138] contudo, atingir as concentrações plasmáticas necessárias para a eficácia antiviral detectada in vitro exigiria a administração de doses até 100 vezes maiores do que as aprovadas para uso em humanos.[139][140][141][142]
Os resultados de vários ensaios clínicos randomizados e estudos retrospectivos do uso de ivermectina em pacientes com COVID-19 não permitem uma conclusão. Alguns estudos clínicos não mostraram benefícios ou piora da doença após o uso,[143][144][145][146] enquanto outros indicaram menor tempo das manifestações da doença,[147][148][149][150] redução dos quadros inflamatórios,[148][149] menor tempo à depuração viral,[143][148] ou taxas de mortalidade mais baixas.[143][148][150] Apesar disso, a maioria desses estudos apresentava informações incompletas e limitações metodológicas significativas, que dificultam a exclusão de confusões por causas comuns.[151]
Circularam nas redes sociais a informação falsa de que a farmacêutica Pfizer estaria lançando um tratamento para COVID-19 com base em um clone da Ivermectina denominado Pfizermectine, tal informação foi muito compartilhada nas redes sociais. Na verdade, nenhuma das substâncias em estudo para tratamento da COVID-19 pelo Pfizer têm semelhança com a Ivermectina.[152]
Azitromicina
A azitromicina é um antibiótico usado no tratamento de infeções bacterianas.[153] Entre as indicações mais comuns estão o tratamento de otite média, faringite estreptocócica, pneumonia, diarreia do viajante e outras infeções intestinais.[153] Pode também ser usada no tratamento de várias infeções sexualmente transmissíveis, incluindo clamídia e gonorreia.[153] Em associação com outros fármacos, pode também ser usada no tratamento de malária.[153] Pode ser administrada por via oral ou intravenosa.[153] Os efeitos adversos mais comuns são náuseas, vômitos, diarreia e indisposição no estômago.[153] Entre outros possíveis efeitos adversos, menos comuns, estão reações alérgicas, como anafilaxia, QT longo ou um tipo de diarreia causado por Clostridium difficile.[153]
O antibiótico começou a ser estudado em conjunto com outros medicamentos como alternativas de combate ao vírus da COVID-19.[154][155] Testes preliminares in vitro sugeriam alguma efetividade contra o vírus,[156][157] mas as evidências eram poucas e de baixa qualidade.[157][158] Testes clínicos controlados posteriores não confirmaram a presumida eficiência e um estudo mostrou que seu uso pode deteriorar a função renal em alguns pacientes.[159][160][161][162]
Distribuição e judicialização
Os medicamentos foram amplamente distribuídos e apoiados pelo governo federal.[26] O Exército Brasileiro, sob orientação do Ministério da Saúde, produziu em 2020 mais de 3,2 milhões de comprimidos de cloroquina[163] e distribuiu 2,9 milhões para estados, municípios e hospitais militares.[164] Segundo a jornalista e comentarista da GloboNews, Ana Flor, o valor de distribuição corresponde um aumento de 11 vezes em relação aos anos anteriores.[165] Em fevereiro de 2021, o ministro do Tribunal de Contas da União, Benjamin Zymler, autorizou um ofício que exigia explicações sobre a distribuição de cloroquina por parte destes órgãos federais.[166][167][168]
O território brasileiro registrou casos de pressão e coação em benefício da adoção do kit Covid. Um levantamento da Frente Nacional de Prefeitos mostrou que os gestores sofreram pressões de Câmaras Municipais para adquirirem os medicamentos e projetos de lei chegaram a ser aprovados.[169][170] Empresas também foram responsáveis por distribuir o Kit Covid a funcionários.[171] No âmbito legal, a Justiça Federal determinou a interrupção das campanhas de incentivo ao uso do kit Covid por parte do governo federal.[172][173][174] Segundo a decisão da juíza Ana Lúcia Petri Betto, a Secretaria Especial de Comunicação Social foi obrigada a se abster de "patrocinar ações publicitárias, por qualquer meio que seja, que contenham referências, diretas ou indiretas, a medicamentos sem eficácia comprovada contra a Covid-19, especialmente com expressões como ‘tratamento precoce’ ou ‘kit-covid’ ou congêneres".[175] Já o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul proibiu a distribuição dessas drogas em Porto Alegre.[176][177]
Caso Prevent Senior
Na rede privada, o convênio de saúde Prevent Senior distribuiu o kit Covid de forma generalizada,[178] inclusive via correio.[179][180] No entanto, a empresa virou pivô de um dos maiores escândalos médicos após denúncias por condutas antiéticas e anticientíficas.[181][182] De acordo com um dossiê, a Prevent Senior obrigou médicos a receitar remédios sem eficácia contra a Covid-19[183][184][185] e por ocultar mortes em estudo sobre cloroquina divulgado e enaltecido pelo presidente Bolsonaro.[186][187] O estudo, formulado pela Prevent Senior em 2020 e com resultado inconclusivo, afirmou que o uso de hidroxicloroquina e azitromicina reduzia as internações em pacientes com suspeita de COVID-19, mas recebeu críticas negativas por conta de erros na amostragem e diversos problemas metodológicos.[188] Em abril de 2020, o Conselho Nacional de Saúde (CNS) emitiu um parecer considerando o estudo da Prevent Senior como fraude científica.[189] De todo modo, os dados foram usados pelo presidente Jair Bolsonaro para celebrar a suposta eficácia do kit Covid.[186]
O dossiê elaborado de forma anônima por médicos e ex-médicos da empresa denunciou que a mesma ocultou mortes deste estudo e que administrava os medicamentos do kit Covid sem consultar pacientes e familiares.[190] Uma reportagem da GloboNews teve acesso à planilha com os nomes e as informações de todos os participantes do estudo. Nove deles morreram durante a pesquisa, mas os autores só mencionaram duas mortes.[186] Logo após a reportagem da GloboNews, os jornais O Estado de S. Paulo e O Globo divulgaram informações de que o Governo Federal, através do Gabinete Paralelo, tinha ciência dos acontecimentos da Prevent Senior.[191][192] Por conseguinte, a empresa começou a ser investigada pela CPI da COVID-19, pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), pelo Ministério Público de São Paulo e pelo Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp).[193][194]
Impactos
Na saúde
Os efeitos colaterais e o uso generalizado dessas drogas causaram lesões e danos em rins e fígado, além de arritmia cardiáca.[195] Os hospitais brasileiros começaram a identificar casos de hepatite medicamentosa,[196][197][198][199] o que resultou no aumento da fila de transplantes hepáticos.[200][201][202] O país também começou a registrar falecimentos em decorrência do uso de cloroquina e hidroxicloroquina,[203][204][205] sendo que em alguns casos a vítima foi tratada com os fármacos sem ciência ou autorização da família.[206][207][208]
De acordo com alguns especialistas, o Kit Covid ainda apresenta um efeito indireto ao gerar uma falsa sensação de segurança na população, provocando o relaxamento das medidas sanitárias realmente efetivas.[23][21] A falsa segurança também tende a retardar a procura por atendimento médico.[23][21] Já o uso generalizado de antibióticos, como a azitromicina, pode aumentar a resistência antimicrobiana.[209][210][211]
Notícias falsas
O Kit Covid também foi pauta de notícias falsas propagadas por perfis apoiadores do governo nas redes sociais.[212] Em geral, tais notícias tinham como objetivo desmentir a ineficácia comprovada dos medicamentos do Kit Covid.[212][213] O Brasil, inclusive, foi o país que mais registrou informações falsas sobre cloroquina em 2020.[212]
Por essa razão, inúmeros sítios e entidades publicaram esclarecimentos sobre tais informações, como o periódico Aos Fatos,[214] o portal G1,[215][216][217] o jornal da Universidade de São Paulo,[218] o Instituto de Ciência, Tecnologia e Qualidade,[219] e até mesmo a Fundação Oswaldo Cruz.[220]
Financeiro
O governo Bolsonaro foi responsável por coordenar compras, distribuições e propagandas do Kit Covid. De acordo com um levantamento da BBC Brasil, a aquisição desses fármacos custou quase 90 milhões de reais.[27][221] Já a distribuição de hidroxicloroquina e azitromicina em farmácias populares custou por volta de 250 milhões de reais.[222] O governo também gastou cerca de 23 milhões de reais em propagandas,[223][224] sendo 1,3 milhão usado para financiar influenciadores digitais.[225]
A comercialização desses medicamentos indicados para o tratamento precoce aumentou e alavancou o setor farmacêutico no Brasil.[226] A Anvisa informou que a comercialização de ivermectina cresceu 628% em 2020 na comparação com o ano anterior. Em 2019, o medicamento havia vendido cerca de sete mil embalagens; contudo, as desinformações durante a pandemia fez com que o número subisse para 56 mil embalagens.[227] Um levantamento do Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos (Sindusfarma), com base em dados da consultoria americana IQVIA, apontou que a venda da ivermectina teve um aumento de 829% em 2020, aumentando de 44,4 milhões de reais em 2019 para 409 milhões de reais em 2020.[228] No mesmo período, a venda de cloroquina subiu 47%,[227] o que resultou em um aumento na receita de 55 milhões para 91,6 milhões de reais.[228] Já as empresas farmacêuticas registraram um crescimento significativo no faturamento com as vendas de cloroquina.[229]
O impacto financeiro do Kit Covid resultou em suspeitas de favorecimento entre agentes públicos e privados com o objetivo de lucrar financeiramente com a pandemia da Covid-19.[36][37] A Vitamedic, uma das fabricantes do medicamento ivermectina no país, patrocinou um manifesto da associação Médicos pela Vida em defesa do tratamento precoce.[230][231][232][233]
Repercussão
Posicionamentos de entidades e especialistas
As principais agências de saúde reprovaram ou desaconselharam o uso dos fármacos integrantes do Kit Covid. A Solidarity Therapeutics Trial, uma plataforma coordenada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), concluiu a ineficácia da hidroxicloroquina no tratamento da doença. Os resultados foram obtidos após um dos maiores ensaios randomizados do mundo.[234][235][236] Em 2 de março de 2021, a OMS publicou uma diretriz na qual pede fortemente que a hidroxicloroquina não seja usada como tratamento preventivo da COVID-19.[237][238][239][240] A agência também se manifestou recomendando que a ivermectina não seja usada em pacientes de COVID-19, salvo nos ensaios clínicos.[241][242] De acordo com a entidade, o estudo que revisou dados de dezesseis ensaios clínicos randomizados afirmou que os dados disponíveis não permitem concluir a eficácia do fármaco devido às limitações metodológicas.[241] Os fármacos também foram desaconselhados por outros órgãos e entidades de suma relevância, tais como: a Agência Europeia de Medicamentos,[243][244] a Food and Drug Administration[245][246] e a Anvisa.[247][248] Em fevereiro de 2021, a Merck Sharp and Dohme, farmacêutica que desenvolveu a ivermectina, publicou um comunicado oficial reforçando a tese de que não há evidências científicas da eficácia do fármaco no tratamento da COVID-19 em testes pré-clínicos.[249][250]
No Brasil, 81 entidades médicas divulgaram um documento no qual defendem que os medicamentos sem eficácia comprovada contra a Covid-19 devem ter sua utilização "banida".[251][252][253] A manifestação ocorreu em um boletim do Comitê Extraordinário de Monitoramento da Covid-19, grupo liderado pela Associação Médica Brasileira (AMB).[254][255] Em contrapartida, o Conselho Federal de Medicina autorizou a prescrição médica dos medicamentos do Kit Covid ainda em 2020.[256] Esta contradição entre a Associação Médica Brasileira e o Conselho Federal de Medicina foi indicada pelo jornal O Estado de S. Paulo como um exemplo da influência da polarização promovida por Bolsonaro nas entidades de classe.[257]
"Para cloroquina e hidroxicloroquina, nós temos mais de 30 trabalhos feitos no padrão ouro que mostram que esses medicamentos não servem para covid-19. Para ivermectina, nós temos trabalhos também que demonstram que não serve e uma série de trabalhos que são muito malfeitos e muito inconclusivos."
Pasternak.[256]
Discorrendo sobre o assunto, a microbiologista Natalia Pasternak ressaltou que existem vários tipos de estudos científicos que têm sido reportados para tentar validar o uso do chamado Kit Covid ou tratamento precoce. Segundo ela, os melhores estudos nessa área mostram que vários componentes desse kit já foram desmentidos.[256] Já o cientista e médico Drauzio Varella considerou a prescrição de remédios sem eficácia comprovada "uma irresponsabilidade".[258] Ele também afirmou que essa discussão sobre tratamento precoce foi "armada para desviar a atenção" e uma estratégia de Bolsonaro para disseminar o vírus: "O que ele podia dizer? 'Pode ir à rua, não seja maricas, forme aglomerações. Mas se você ficar doente, pode ser que você não ache vaga na UTI'. Ele não poderia dizer isso, não é mesmo? Então qual foi a estratégia? Se você ficar doente e pegar o vírus, faça o tratamento precoce com cloroquina ou ivermectina."[259]
O cientista e médico Miguel Nicolelis criticou o presidente Bolsonaro por ofender de "canalhas" os opositores do tratamento precoce: "Enquanto mundo usa a ciência para escapar da pandemia, no Brasil os cientistas são tachados de canalhas", lamentou. Ele complementou: "são os cientistas canalhas que vão tirar o Brasil dessa crise infernal" e comparou o número de vítimas brasileiras pela doença com o número de vítimas da Batalha de Stalingrado.[260]
Na política
O Kit Covid foi considerado mais uma tentativa de Bolsonaro de minimizar a gravidade da pandemia e polarizar o assunto.[261] Esta ação foi bem sucedida já que resultou em embates na classe política que impactaram em estados e municípios,[262][263][35] além de dificultar a adoção de políticas públicas no combate à pandemia.[264] Bolsonaro, por sua vez, reiterou o incentivo por esses medicamentos[265] e chegou a ofender os opositores de "canalhas".[266][267][268]
Na política, líderes da oposição criticaram o discurso de Bolsonaro[269] e solicitaram investigações.[270][271] No Senado Brasileiro, o líder da oposição Randolfe Rodrigues, além dos senadores Renan Calheiros e Humberto Costa deixaram a sessão da CPI da Covid com os médicos infectologistas convidados para falar na comissão a favor do tratamento precoce.[272] Por outro lado, a base congressista de apoio ao governo defenderam o Kit Covid.[273] Os senadores Luis Carlos Heinze e Jorginho Mello citaram, respectivamente, os municípios de Rancho Queimado e Chapecó como exemplos positivos do tratamento precoce.[274][275] No entanto, as taxas de letalidade e internações nesses dois municípios continuaram dentro o padrão.[276][277][278]
Ver também
- Governo Jair Bolsonaro#Resposta à pandemia de COVID-19
- Crise sanitária no Brasil em 2021
- Pandemia de COVID-19 no Brasil
- Negacionismo da COVID-19
- Desinformação na pandemia de COVID-19
Referências
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