Rio
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Por e — Rio de Janeiro

Já passava das 14h do dia 11 de fevereiro do ano passado quando um Citroën C4, com películas nos vidros que impediam a visão de dentro do carro, parou na entrada do Up Barra Mais, um condomínio de classe média no Anil, Zona Oeste do Rio. Sem abrir a janela, o motorista acionou o mecanismo eletrônico que abre o portão, entrou e estacionou nos fundos da garagem. Ninguém saiu do carro. Após 1h30 de espera, enquanto o cabo da PM Anderson Gonçalves de Oliveira, o Andinho, entrava no condomínio e se dirigia ao bloco onde morava, três homens armados com fuzis desembarcaram. O trio — dois homens escondiam o rosto, um deles usava um colete com a inscrição “Polícia Civil” — conseguiu alcançar Andinho no acesso ao elevador. O policial foi executado com 29 tiros, que dilaceraram seu crânio.

A investigação do homicídio concluiu que Andinho era um dos chefes da milícia que dominava a Gardênia Azul há três décadas. Já seus executores, que fugiram em disparada para o Complexo da Penha, na Zona Norte, eram integrantes da maior facção no Rio, o Comando Vermelho (CV). Nos meses que se seguiriam, os traficantes conseguiram invadir o bairro. E segundo as forças de segurança do Rio, o crime foi apenas parte de um plano da cúpula do CV para retomar territórios no estado, após uma década de avanço da milícia.

Ao longo do último mês, o GLOBO analisou relatórios de inteligência, depoimentos de traficantes e inquéritos de homicídios, além de ter entrevistado policiais, promotores, especialistas, parentes de vítimas e moradores de áreas conflagradas, para contar o que está por trás dessa expansão do CV. A facção, que havia assistido ao crescimento da milícia no Rio e ao do PCC em âmbito nacional, decidiu recuperar o espaço perdido, promovendo uma guerra sangrenta nos redutos dos paramilitares e espalhando seus tentáculos por 21 estados do país a partir de uma série de acordos fechados dentro da cadeia. Um contragolpe, com impacto na vida de milhares de pessoas Brasil afora, que é tema de uma série especial em três capítulos que começa a ser publicada hoje no projeto Tem Que Ler, iniciativa exclusiva para assinantes.

Dados do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (Geni) da UFF e da Polícia Civil do Rio compilados pelo GLOBO revelam que, nos últimos dois anos, a facção financiou bandos armados e articulou dezenas de ataques coordenados que, só na Baixada de Jacarepaguá, na capital fluminense, culminaram na tomada de 19 comunidades em 14 bairros diferentes que antes eram dominadas por paramilitares. O interesse do CV na região não se restringe à implantação de bocas de fumo: os traficantes já passaram a replicar ali o modelo da milícia, com exploração da venda de gás e pacotes de internet e até do mercado imobiliário, refletindo também uma diversificação dos negócios escusos da facção.

Atualmente, ainda há quatro favelas na Grande Jacarepaguá que são alvos constantes de ataques do grupo — como Rio das Pedras, o berço da milícia carioca — e outros focos de disputas na Zona Norte, na Baixada Fluminense e em São Gonçalo, na Região Metropolitana. Um levantamento da inteligência da PM aponta que o CV domina 1.085 localidades em todo o estado — o número é maior do que a soma dos territórios dominados pela milícia e outras facções do tráfico.

Acordos em penitenciárias federais

O maior movimento de expansão do CV no Rio desde a criação dos grupos paramilitares, no fim dos anos 1990, é impulsionado pelo avanço da facção pelo país. O início desse processo remonta a junho de 2016, quando o traficante Jorge Rafaat Toumani, o Rei da Fronteira, foi executado numa emboscada cinematográfica na cidade paraguaia de Pedro Juan Caballero, vizinha de Ponta Porã, no Mato Grosso do Sul. A atuação de Rafaat como intermediário das transações na fronteira com o Paraguai — principal porta de entrada de drogas produzidas em outros países do continente — desagradava tanto ao CV quanto ao PCC, que se uniram para matá-lo.

Série de reportagens descreve o avanço do Comando Vermelho no Rio

Série de reportagens descreve o avanço do Comando Vermelho no Rio

Após o crime, no entanto, as duas facções romperam um pacto de não agressão que já durava 30 anos e entraram numa guerra por rotas: a facção paulista se impôs e passou a controlar a chamada Rota Caipira, que sai do Paraguai e chega ao Porto de Santos, onde a droga é remetida à Europa. Já o CV — que, na época, não tinha uma atuação expressiva em outros estados — se viu obrigado a buscar aliados pelo país em busca de novos fornecedores e corredores de escoamento de drogas e armas.

Em penitenciárias federais, integrantes da cúpula do CV fecharam parcerias com criminosos da Região Norte para assumir a Rota do Solimões — a droga da Colômbia e do Peru entra no país pela Amazônia e é escoada pelo rio até Manaus, de onde segue para outros estados ou para fora do Brasil. Pouco a pouco, a quadrilha foi absorvendo os grupos locais com os quais havia se associado. Dessa maneira, em pouco mais de cinco anos, a facção se espalhou pelo Norte e pelo Nordeste e ganhou protagonismo maior no tráfico internacional de cocaína.

— O modelo de negócios do Comando Vermelho é mais horizontal. De forma simplificada, é como se fosse uma aliança entre donos de morro. Já o PCC tem uma estrutura mais empresarial, vertical e hierárquica. Esse traço do CV, mais personalista, favoreceu a expansão a nível nacional. O PCC ainda é o ator mais forte no tráfico internacional de cocaína do país, mas essa capacidade do CV de cooptação de novos aliados vem tornando a facção mais competitiva nesse mercado — explica Daniel Hirata, pesquisador e professor de Sociologia da UFF.

Uma das consequências da nacionalização da facção é o aumento de seu faturamento em decorrência das remessas de cocaína para o exterior a partir de portos do Norte, do Nordeste e do Rio. Operações deflagradas pela Polícia Federal entre 2022 e 2023 revelam como a cúpula do CV estendeu seus tentáculos para o mercado internacional. Inicialmente, segundo a PF, a facção se associava a “matutos” que traziam cocaína da Colômbia e da Bolívia e participava somente da armazenagem da droga, que ficava na favela da Vila Cruzeiro até ser colocada em navios de carga no Porto do Rio. Os donos da carga pagavam somente pelo serviço logístico.

Em meio à investigação, o Comando se impôs e passou a cobrar dos sócios 10% sobre o lucro da venda das drogas na Europa. Nesse novo modelo de negócio, uma carga de uma tonelada de cocaína podia render até US$ 3 milhões (cerca de R$ 15 milhões) para a facção. Já em 2023, Edgar Alves de Andrade (o Doca, chefe do tráfico local e financiador da guerra expansionista da facção) e seus comparsas decidiram deixar de ser apenas intermediários. Passaram a mandar cargas próprias à Europa, sem dividir os lucros da operação. Segundo o delegado federal Bruno Humelino, responsável pela investigação, o CV chegou até a contratar mergulhadores para ocultar a droga nos cascos de navios no porto.

A nova rede de alianças do CV também possibilitou a chegada de soldados de todo o país para atuar em invasões de territórios no Rio. Dados de polícias de 18 estados diferentes enviados ao governo fluminense no ano passado revelam que pelo menos 113 integrantes da facção, vindos de fora do Rio, estão abrigados em favelas fluminenses. Desde 2021, outros 99 “forasteiros” foram presos ou mortos em operações no Rio. Segundo a Polícia Civil, parte deles já atua na expansão do CV pelo estado em busca do reconhecimento da cúpula da facção.

O investimento da facção na tomada de territórios no Rio é evidenciado em depoimentos de traficantes que expõem os gastos com a guerra. Para aliciar novos soldados dispostos a proteger as áreas invadidas, o CV pode oferecer uma remuneração de R$ 500 semanais. Já um motorista que aceitou transportar drogas do Complexo da Penha para as novas bocas de fumo afirmou que, além do salário, ganhou da facção um apartamento mobiliado e carros para trabalhar.

Para policiais que investigam a facção, um marco importante do início do projeto de expansão é a saída de Wilton Carlos Rabello Quintanilha, o Abelha, pela porta da frente do Complexo Penitenciário de Gericinó, em junho de 2021. Sua soltura foi um erro: na ocasião, ele tinha um mandado de prisão pendente em seu nome. Logo, Abelha foi alçado pelo “conselho” — grupo de presos que cumprem pena no Rio com postos no topo da hierarquia da organização — ao cargo mais alto entre os integrantes do CV em liberdade, o de “presidente” da facção. Mesmo sem ser chefe de nenhuma favela de proeminência, Abelha virou o responsável por definir os rumos da facção e controlar seu caixa.

— Ele passou mais de duas décadas preso e conviveu com outras lideranças em presídios federais. Por isso, foi alçado à cúpula e virou a referência da facção. Todo o planejamento da expansão que aconteceria meses depois partiu dele — conta o secretário de Polícia Civil do Rio, Marcus Amim.

Territórios tomados um a um

No ano posterior à soltura de Abelha, as guerras para anexação de territórios começaram, a partir da formação de bondes armados focados em atacar, cada um, uma região na mira da facção. O bando chefiado pelo traficante Bruno Silva Souza, o Tiriça, responsável por tomar a Praça Seca, na Zona Oeste carioca, foi o primeiro a completar a missão: todas as favelas da região foram apropriadas pelo CV no início de 2023, após um ano de confrontos com os paramilitares.

Em seguida, o foco passou para as favelas do Itanhangá e a Gardênia Azul, alvo das investidas da Equipe Sombra — pistoleiros chefiados por Juan Breno Malta Ramos Rodrigues, o BMW, responsáveis, entre outras dezenas de crimes, pelo homicídio de Andinho. Até o início de 2024, todas as localidades foram invadidas em sequência, e os esforços se voltaram para os bairros do Recreio dos Bandeirantes, das Vargens Grande e Pequena e de Guaratiba — apesar de o CV já ter tomado a maioria das favelas, até hoje há confrontos na região. Já Abelha está foragido, mas foi destituído do cargo de “presidente” ano passado por ter decidido executar comparsas sem autorização da cúpula.

A região da Grande Jacarepaguá era objeto antigo de desejo do CV: há mais de uma década, a facção planeja criar um “cinturão” no entorno da Floresta da Tijuca — o que favoreceria eventuais fugas em caso de operações e tentativas de invasão por rivais. Hoje, a única favela que falta para que o plano se concretize é Rio das Pedras, o alvo da vez da facção.

Se a guerra na Zona Oeste tem a milícia como antagonista, outras regiões que fazem parte do plano expansionista do CV são dominadas pelos traficantes do Terceiro Comando Puro (TCP): o Complexo de Israel (integrado por Parada de Lucas, Vigário Geral, Cidade Alta, Pica-Pau e Cinco Bocas); o Morro dos Macacos, em Vila Isabel; e o Complexo da Pedreira, em Costa Barros. Com o domínio da Grande Jacarepaguá, essas comunidades já registram uma escalada nos confrontos.

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