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Por Tébaro Schmidt — Visconde de Mauá, RJ


ge vai até o CT do Pérolas Negras conhecer Qais Hassan, refugiado da Síria; veja

ge vai até o CT do Pérolas Negras conhecer Qais Hassan, refugiado da Síria; veja

O português falado por Qais Hassan é perfeito, apesar do sotaque arrastado típico de pessoas que têm o árabe como primeira língua. Até as gírias comuns a um jovem brasileiro de 20 anos foram absorvidas por ele. "Tipo, no início foi difícil, entendeu?".

Ele se refere ao momento em que chegou ao Brasil, em 2018, para jogar nas categorias de base do Pérolas Negras. O clube do interior do Rio de Janeiro foi criado para acolher refugiados dos confrontos no Haiti, mas também já recebeu venezuelanos e há seis anos é a casa de quatro jogadores que escaparam da guerra na Síria - recentemente, a equipe voltou seus esforços na busca por talentos em comunidades carentes.

Qais foi descoberto em peneira organizada pelo Pérolas em Zaatari, um dos maiores campos de refugiados do planeta. Na ocasião, a série "A Partida", do Esporte Espetacular, acompanhou a viagem dos olheiros até o local situado na fronteira da Jordânia com a Síria e mostrou como se deu o processo que selecionou Qais e seus companheiros Ahmad, Hafith e Omar - veja AQUI os quatro episódios da série.

Os outros três são mais velhos e vivem a expectativa de estrear pelo profissional ainda este ano. Diferente deles, Qais foi aprovado na peneira quando tinha apenas 14 anos e disputa sua primeira temporada no sub-20. Ele faz parte da equipe do Pérolas Negras que está na final da Série B1 do Carioca, o equivalente à terceira divisão. Os jogos da decisão contra o São Gonçalo ocorrem nos dois próximos sábados.

- Esse é o ano em que eu estou mais animado. Estou jogando - disse o atacante em conversa com a reportagem do ge no CT do Pérolas, na Serrinha do Alambari, local muito procurado por suas cachoeiras que fica entre Resende e Penedo. - Se Deus quiser, vamos ganhar o título.

Qais Hassan, atacante refugiado da Síria que atua no sub-20 do Pérolas Negras — Foto: Vinícius Valim / Pérolas Negras

O ânimo tem explicação: de 2018 até hoje, Qais permaneceu apenas treinando, sem disputar jogos oficiais. Dois anos atrás, assim que deixou de ser menor de idade, ele e os três sírios receberam uma oportunidade no Catar para jogar no Lusail, time da segunda divisão do país. Mas não chegaram sequer a estrear, porque os documentos enviados não foram suficientes para inscrevê-los na federação local.

A ausência de documentação apropriada e a forma pouco amigável como são tratadas em alguns países são problemas constantes na vida de pessoas refugiadas - o Catar rompeu relações com a Síria desde o início da guerra civil e defende a manutenção do boicote enquanto não houver uma transição política pacífica no país. Os quatro voltaram ao Brasil no ano passado após a passagem frustrada.

Com o auxílio do Viva Rio, ONG que está por trás do projeto social do Pérolas Negras, Qais espera adquirir a cidadania brasileira até o fim deste ano. Dessa forma, poderá retirar o passaporte como cidadão brasileiro e se livrar do rótulo de refugiado, abrindo as portas para novas possibilidades.

O maior objetivo de sua vida é conseguir tirar os pais e os quatro irmãos de Zaatari.

"Minha família está me esperando, entendeu? Me esperando realizar o meu sonho de ser jogador. Só eu que posso ajudar eles a sair do campo. Eu estou aqui para isso", afirmou Qais.

- Não quero ficar para sempre longe da família, quero ficar perto. Quero que minha mãe me veja jogando pessoalmente. Com o passaporte, vou buscar as oportunidades para poder tirar minha família de lá - completou.

Qais Hassan, atacante refugiado da Síria que atua no sub-20 do Pérolas Negras — Foto: Vinícius Valim / Pérolas Negras

A emoção do primeiro gol

Qais chegou ao Brasil, claro, sem falar uma palavra sequer em português. Menos de um ano depois, dominava o básico do idioma.

"Ficamos seis meses só estudando português, todo dia, até começar a entender o que o treinador fala, o que os outros jogadores falam com a gente. Pouco a pouco, a gente começou a entender a vida aqui, começamos a sair, conhecer as cidades, o Rio de Janeiro. Tipo, ficou mais fácil para viver", explicou.

O jovem sírio aprendeu o português de tal maneira que se sentiu confortável de pedir ao treinador uma mudança de posição. Na peneira em Zaatari, Qais foi aprovado atuando como zagueiro, mas desde então vinha alimentando o desejo de virar atacante. Seu ídolo no futebol é Cristiano Ronaldo - ele é chamado de CR7 pelos colegas de time e costuma comemorar seus gols com o "sííííí" do craque português.

"A Partida": veja o episódio em que Qais é aprovado na peneira atuando como zagueiro

"A Partida": veja o episódio em que Qais é aprovado na peneira atuando como zagueiro

O pedido foi atendido.

- Foi ideia minha, entendeu? Falei com o treinador duas, três vezes: "Quero virar atacante, quero virar atacante". Ele às vezes não respondia, às vezes dizia que zagueiro seria melhor. Pedi para ele me testar, me dar um tempo no ataque. Ele foi como um irmão para mim. No primeiro coletivo eu fiz três gols - contou Qais.

Na Série B1 do Carioca deste ano, o primeiro e único gol marcado por Qais até aqui em jogos oficiais saiu no mês passado, na goleada do Pérolas Negras por 7 a 1 sobre o Macaé. O sírio recebeu sozinho dentro da área e completou de primeira o cruzamento vindo da direita (veja no vídeo que abre a reportagem).

Qais sente saudade da família — Foto: Vinícius Valim / Pérolas Negras

Encerrada a partida, Qais foi correndo para o vestiário verificar o celular. Ele sabia que haveria uma mensagem da mãe, que estava aflita em Zaatari acompanhando a transmissão do jogo pela internet. Mãe e filho conversam todos os dias.

- É difícil morar longe. Deixei a família com 14 anos, agora tenho 20. São seis anos que eu perdi longe deles. É difícil, mas a vida é assim. Temos que abrir mão de algumas coisas para realizar os sonhos. Estou fazendo isso - disse.

No Pérolas, Qais recebe uma bolsa no valor de R$ 2 mil e guarda a maior parte desse dinheiro para ajudar a família. Em breve ele deve assinar seu primeiro contrato profissional no clube.

- Às vezes deixo de comprar roupa só por causa deles, não saio muito. Meu dinheiro não vale muito, mas tenho que ajudar de alguma forma.

"A bomba explodiu a mulher"

A guerra civil na Síria eclodiu em 2011, resultado da escalada de uma série de grandes protestos populares em uma violenta revolta armada. Os rebeldes defendem a queda do atual regime, enquanto o governo sírio diz estar lidando com terroristas que desejam desestabilizar o país. Mais de 600 mil sírios já foram mortos, e outros 6,6 milhões cruzaram as fronteiras em busca de refúgio em outros países.

Qais Hassan, atacante refugiado da Síria que atua no sub-20 do Pérolas Negras, ao lado dos pais — Foto: Arquivo Pessoal

Qais era pequeno quando começou a guerra, mas uma cena específica não abandona sua memória.

"Lembro de uma vez quando eu estava em casa. Do nada vejo uma bomba batendo na outra casa. Tinha uma mulher saindo, a bomba explodiu a mulher", relatou o atacante de 20 anos.

- Não vi muitas coisas, mas isso eu não esqueço.

Qais e sua família, então, atravessaram o deserto para encontrar refúgio na Jordânia. O campo de refugiados de Zaatari, que começou como um espaço para receber poucas centenas de pessoas, evoluiu para um assentamento permanente e tem uma população de cerca de 80 mil sírios que fugiram da guerra civil.

- No começo, foi muito difícil até para beber água. Não tinha água para tomar banho, para comer, para cozinhar - contou Qais.

Ele esteve em Zaatari entre 2021 e 2022, durante a passagem frustrada pelo futebol do Catar. Foi a primeira reunião da família desde que Qais viajou para o Brasil. Durante cinco meses, voltou a conviver com as condições precárias do campo e o tempo todo ouviu de amigos e conhecidos o pedido de levá-los para o Brasil. "Não tenho como explicar a vida lá. É difícil, entendeu?", resumiu.

Qais Hassan, atacante refugiado da Síria que atua no sub-20 do Pérolas Negras, ao lado de um dos irmãos — Foto: Arquivo Pessoal

Apesar das memórias tristes que remetem à Síria, Qais Hassan espera no futuro realizar o seu maior sonho dentro da carreira de jogador de futebol: defender a seleção do seu país.

- Qualquer jogador do mundo tem o sonho de vestir a camisa da seleção do país dele, eu também tenho esse sonho de vestir a camisa da Síria. Vou fazer o possível para isso, se Deus quiser.

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