Por João Pedro Lamas, g1 RS


Leandro Severino e sua avó, Delma Ribeiro — Foto: Carlos Macedo/Agência RBS

Leandro Severino, de 42 anos, conseguiu atender ao desejo de sua avó, Delma Ribeiro, falecida aos 75 anos em Porto Alegre: que seu corpo fosse doado a uma universidade para ser usado em pesquisas e na formação de futuros médicos.

Em 2015, um entrave burocrático impediu que fosse feita a doação para a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), razão pela qual ele precisou apelar para a Justiça. A decisão favorável veio em segunda instância, após intervenção da Defensoria Pública do estado.

Uma lei federal de 2002 regulamenta a possibilidade de a pessoa doadora manifestar o desejo em vida, por meio de um termo de doação – qualquer pessoa maior de idade pode fazê-lo. Mas Severino só tinha uma cópia da manifestação da avó, que havia sido feita em 1992.

Com isso, um cartório se negou a emitir a certidão de óbito. Sem o documento, a UFRGS não pôde aceitar a doação.

"O sistema registral não aceita nem cópias autenticadas. Precisa ser a manifestação original. Leandro procurou, mas não achou. A decisão de primeiro grau foi formalista, então, houve a necessidade de recorrer a uma instância superior. Pessoas próximas testemunharam em favor do Leandro e o desembargador foi mais flexível", conta o defensor público Jonas Scain Farenzena.

De acordo com a professora do Programa de Doação de Corpos da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA), Andrea Oxley, é possível que a recusa inicial tenha ocorrido porque Leandro não era o responsável direto pela avó.

"A lei não tem detalhes que descrevam ela melhor, que caracterizem ela melhor. Aqui, um parecer da procuradoria jurídica faz recomendações que tem a lei de doações de órgãos como referência. A ideia é facilitar o processo", diz Andrea.

Severino perdeu o pai quando ainda era criança. Morou com os avós maternos até os 13 anos, quando passou a viver com Delma, sua avó paterna.

Foram 22 anos de convivência, nos quais Severino disse ter aprendido com uma mulher que sempre demonstrou alegria e disposição de ajudar os outros. Por isso, o neto lutou até o fim para garantir a doação do corpo.

"O que me motivou foi a força que ela sempre me deu, para não desistir de nada. Se ela, apesar de ser cadeirante, nunca desistiu, por que eu, com pernas e braços, iria?", questiona.

A doação de corpos no Brasil

Esqueletos expostos em museu da UFCSPA — Foto: UFCSPA/Divulgação

De acordo com a Sociedade Brasileira de Anatomia, as universidades brasileiras contam com 353 cursos de Medicina. Em 2022, há 36 programas de doação. Em 2008, havia só dois. Um deles era o da UFCSPA, que foi criado nesse mesmo ano.

Inicialmente, a maioria dos cadáveres usados no ensino, na pesquisa e na extensão eram "corpos não reclamados", ou seja, de pessoas que não tinham parentes identificados que eram encaminhados principalmente pelo Instituto Médico Legal (IML) .

Atualmente, o cenário mudou. Ao contrário do que se supõe, quase não são usados esse tipo de corpos.

Os dados a respeito do assunto no Brasil não são centralizados, razão pela qual é difícil apontar números absolutos de doação no país. No entanto, utilizando a UFSCPA como exemplo, é possível ter ideia da evolução da doação em território brasileiro.

Os dados mais recentes, de 2008 até 2019, indicam que o número de pessoas que manifestaram interesse em doar aumentou 12 vezes. Nesse mesmo período, a universidade recebeu 112 doações.

Número de cadastrados como doadores de corpos na UFCSPA

2008 12
2009 51
2018 155
2019 148

*O recebimento de doações foi suspenso devido à pandemia de Covid-19 no final de 2019. Por isso, não há dados de 2020 e 2021. Com a melhora do cenário pandêmico no Brasil, elas puderam ser retomadas.

O Rio Grande do Sul é um dos estados que mais conta com universidades que têm programas de doação. Há instituições de ensino em diferentes regiões, como a UFRGS (Porto Alegre), a Pontifícia Universidade Católica (Porto Alegre), a Feevale (Novo Hamburgo), a Universidade do Vale do Rio dos Sinos (São Leopoldo), a Universidade de Santa Cruz do Sul (Santa Cruz), a Universidade Federal de Pelotas (Pelotas) e a Universidade Federal de Santa Maria (Santa Maria). No entanto, essa não é a realidade brasileira.

"Tocantins, por exemplo, tem um programa. Minas Gerais tem três. Universidades podem enfrentar problemas e ter uma carência enorme. Há casos daquelas que ainda dependem de corpos não reclamados, o que cria um desafio para a demanda", conta Andrea.

A destinação de corpos desse tipo para as universidades ocorre por meio de três centrais. Elas recebem os corpos e encaminham para as universidades.

"Não funciona [esse sistema]. Não é o melhor mecanismo. Porque nós somos os fiéis depositários. A família quer saber para onde vai o corpo", afirma Andrea.

Como doar: qual é o melhor mecanismo?

Museu da UFCSPA reúne material usado em pesquisas — Foto: UFCSPA/Divulgação

Uma lei federal de 2002 regulamenta esse tipo de doação para atividades de ensino, pesquisa e extensão. No entanto, ela não detalha processos, razão pela qual pareceres de procuradorias jurídicas tentam orientar as universidades e a população da melhor forma.

Em geral, no Brasil, basta que a pessoa interessada na doação manifeste em vida o interesse em fazer isso, o que pode ser feito para a família ou para a própria universidade.

É importante que o assunto seja discutido com a família – no caso de divergência entre familiares quanto à doação, a universidade opta por não receber o corpo.

Como a lei não traz mais detalhes, as universidades geralmente pedem que a pessoa responsável pelo falecido vá até um cartório quando houver a morte e, no atestado de óbito, coloque o nome da universidade para qual o corpo pode ser destinado. Uma via do documento deve ficar com a própria pessoa e a outra fica com a instituição de ensino.

A importância dos corpos para a ciência

Material é usado para atividades de ensino, pesquisa e extensão — Foto: UFCSPA/Divulgação

A Sociedade Brasileira de Anatomia é categórica: os benefícios são exponenciais. Um corpo que seja usado para o ensino de 50 alunos pode beneficiar 500 pessoas. Como um corpo pode ser utilizado por anos, o número de alunos treinados e, consequentemente, de pessoas beneficiadas é maior.

O entendimento da categoria médica é que o uso de corpos é o que proporciona a experiência mais próxima da real, sendo uma tendência no mundo inteiro. Assim, os alunos podem treinar procedimentos cirúrgicos, por exemplo, e conduzir pesquisas.

"Além da questão técnica, tem um segundo aspecto que hoje a gente dá muito valor: é a questão humanística. Porque é o primeiro contato que o aluno vai ter, quando ele entra no curso, não só da medicina, mas de todos da área da saúde, com o corpo, muitas vezes com a morte. Isso serve para várias coisas para compreensão da finitude da vida, da vulnerabilidade, de entender que aquela pessoa, aquele corpo que tá ali, ele não pode se defender, então ele é tão vulnerável quanto uma pessoa em coma na UTI", diz Andrea.

Usar corpos é melhor do que usar bonecos ou simuladores justamente por colocar o aluno em uma situação próxima da real. O estudante será levado a ter um cuidado maior, por exemplo, afinal, é uma pessoa de fato que está sobre a maca.

Estudos na área apontam, inclusive, que a falta de treinamento com corpos de verdade traz prejuízos para a formação médica e está associada a menor aprendizado. Erros também já foram relacionados a isso.

Respeito com os corpos

Material exposto em museu da UFCSPA — Foto: UFCSPA/Divulgação

A UFCSPA faz, ao final de todos os anos, uma cerimônia em homenagem aos doadores. Os familiares são convidados e os alunos ficam responsáveis por explicar a importância da doação que foi feita e que uso o corpo está tendo.

"A pessoa escolheu estar ali deitada, dar aquele corpo para que ele fosse utilizado, acreditando que aquilo ia melhorar a formação profissional. Como é que tu não estás comprometido com isso? Quanto respeito tu tens que ter para utilizar esse corpo. Isso é uma coisa fantástica, porque a gente consegue trabalhar essa reflexão e essa empatia para se colocar no lugar da pessoa, que o médico e todos os que trabalham na área da saúde tem que ter", assevera Andrea.

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