A ciência bossa-nova

sex, 03/01/14
por Alysson Muotri |
categoria Espiral

Dessa vez, minhas reflexões sobre o ano novo pairaram sobre a ciência atual como forma de gerar conhecimento para o bem da humanidade. Fiz o seguinte exercício filosófico: se pudesse reconstruir como a ciência é feita hoje em dia, quais seriam as modificações mais importantes que incorporaria? Como seria essa “ciência bossa-nova”?

Cheguei a conclusão de que se realmente tivesse essa oportunidade, mudaria muita coisa. O método cientifico tem sido eficaz, é verdade, mas lento. Descobrimos o principio fundamental da genética, evolução, biologia molécula, etc. Com isso, fomos capazes de curar diversas doenças, prever processos biológicos complicados entre outras coisas. Porém, ainda sinto que estamos bem pra atrás em diversas áreas, como por exemplo no entendimento do cérebro. A ciência tem sido lenta por diversas razões, incluindo interesses financeiros, egocentristas e falta de visão cooperativista. Então, penso que a ciência poderia ser ainda mais eficiente se fosse otimizada seguindo algumas dessas idéias que listo abaixo.

Começaria por fazer a ciência um patrimônio da humanidade. Seria a real ciência sem fronteiras, aonde não haveria conhecimento restrito por barreiras territoriais. O fim da ciência “nacional” seria acompanhado por um esforço mundial, aonde grupos de cientistas trabalhando numa mesma área usariam de ferramentais virtuais para dividir resultados antes de serem publicados. Obviamente que esse tipo de parceria iria gerar questionamentos sobre os direitos autorais ou mesmo royalties gerados por produtos oriundos dessa pesquisa. Não quero causar a impressão que sou a favor de uma ciência comunista, não é isso. Argumento que da mesma forma que hoje já existem consórcios mundiais que conseguem resolver a questão financeira, as consequências da ciência mundial seriam voltadas para o bem da humanidade, portanto o produto final seria igualmente dividido entre os grupos participantes.

A forma de publicar também deveria ser seriamente alterada. Na minha visão “bossa-nova” existiriam apenas três jornais, de livre acesso, funcionando como uma dinâmica forma de blog. A submissão dos trabalhos é uma só, direta. Manteria a revisão por pares, mas abriria o processo para deixá-lo mais transparente. Além disso, incluiria comentários da comunidade em geral. A diferença entre publicar no jornal X em relação ao jornal Y seria apenas de caráter classificatório: trabalhos que descrevem um novo fenômeno (exploratórios), aqueles que propõe uma nova teoria baseando-se em alguns dados e trabalhos que provem uma hipótese (mecanisticos). A própria comunidade cientifica se encarregaria de julgar qual a classificação dos trabalhos através de votos online. Essa classificação ajudaria os outros cientistas (que não são necessariamente daquela área), a julgar como os resultados publicados permitiram a avançar o conhecimento.

Acabaria de vez com a estabilidade do pesquisador em universidades ou institutos de pesquisa públicos, fazendo com que o processo seja o mais meritocrático possível. Além disso, dividiria os pesquisadores em categorias como administrador, executor e teórico. Todos teriam o mesmo treinamento, mas escolheriam a carreira a seguir basendo-se naquilo que gostam mais de fazer. Hoje em dia, a maioria dos pesquisadores fazem tudo junto, não necessariamente da melhor forma possível. A última categoria seria a de professor, encarregados de passar o conhecimento e não necessariamente gerá-lo. Sei que todo tipo de classificação é, de certa forma lúdico, e portanto não imagino que essas classes sejam rígidas, mas flexíveis, mutáveis. Poderíamos até dispor de um serviço rotacional.

Outra parte que eu alteraria seria o financiamento para pesquisas. Acho que todo pesquisador que começa deveria receber um “startup” rico o suficiente para deixá-lo independente por um certo período. Depois disso, o volume de financiamento para determinado grupo ou pesquisador seria modulado em relação a produtividade. Já sei, alguém vai dizer que produção é difícil de se julgar. Concordo que seja difícil, mas não podemos esquecer que conhecemos apenas no esquema atual. Ao eliminarmos a perfumaria dos jornais (impacto, nome, grupo editorial, etc) conseguiríamos ter uma visão mais clara da contribuição do pesquisador, pois estaríamos julgando qualidade do conhecimento gerado.

Enfim, é impossível criar um modelo de ciência novo o suficiente que deixe de lado todos os problemas anteriores. Também é impossível criar o modelo ideal. Mas o exercício de imaginar um mundo cientifico mais eficiente, pode incitar discussões  interessantes entre gerações de cientistas que tem o poder de fazer alterações significativas no sistema.

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4 Comentários para “A ciência bossa-nova”

  1. 1
    Catherine Jacobs:

    Você escreveu sobre a pesquisa como Jostein Gaarder escreve em seus livros… Deu para sentir arrepios coloridos e até o gosto do vento. Rs
    Adorei as idéias!

  2. 2
    andre levandoski:

    O conhecimento deveria ser um patrimônio, mas se tornou uma mercadoria.

    Seria interessante, mas acredito que seja pouco provável:

    “Começaria por fazer a ciência um patrimônio da humanidade. Seria a real ciência sem fronteiras, aonde não haveria conhecimento restrito por barreiras territoriais.”

  3. 3
    victor:

    Irado. Se pudéssemos fazer apenas uma das alterações que vc propõe, o mundo cientifico já seria bem melhor do que é hoje. Continue pensador!

  4. 4
    Mírian Cugurra:

    Ah! se assim chegasse a ser um dia!



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