05/06/2016 14h35 - Atualizado em 05/06/2016 17h27

Mulheres do ES relatam situações de violação e assédio no dia a dia

Vitória é a capital mais violenta com as mulheres no país, aponta estudo.
Muitas mulheres mudam de trajeto para não não sofrerem violência.

Mariana CarvalhoDo G1 ES

Ellen foi assediada até mesmo enquanto era fotografada para a matéria (Foto: Mariana Carvalho/ G1)Ellen foi assediada até mesmo enquanto era fotografada para a matéria (Foto: Mariana Carvalho/ G1)

Mudanças de trajeto, abordagens não solicitadas, toques indesejados, preocupação constante com roupas, trajeto e a sensação de vulnerabilidade e medo. Esse é o cotidiano de muitas mulheres brasileiras, e essas não são preocupações injustificadas.

No país, a cada 11 minutos uma mulher é estuprada, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. No entanto, apenas 33% dos crimes sexuais são notificados. E esses números também podem ser observados no dia a dia.

O G1 conversou com mulheres em Vitória. A capital é a que apresentou a maior taxa de feminicídios no Brasil. O Espírito Santo tem a taxa mais alta de homicídios de negras e a segunda, de mulheres no total. Os dados são do Mapa da Violência de 2015. As entrevistadas relataram casos de violações da intimidade a assédios constantes, no dia a dia.

'Não é não'
Lívia Xavier é advogada e conta que já vivenciou diversas situações, até mesmo na infância, em que os homens não respeitaram uma negativa da parte dela. Ela acredita que isso aconteça por causa da ideia fantasiosa de que as mulheres ‘dizem uma coisa com a intenção de dizer outra’.

“Uma vez, um rapaz se declarou pra mim e eu disse que não estava interessada. Eu estava me mudando, ia morar perto dele, e ele me perguntou se poderia me dar um presente de boas vindas. E ai depois desse presente, ele quis me dar outros presentes, e eu disse que não repetidas vezes, durante o dia. E mesmo assim ele apareceu na porta da minha casa e eu me senti muito fragilizada, morava sozinha e tive medo dele ter acesso ao meu apartamento, não sabia o que podia acontecer”, relatou.

Ela também conta de uma situação em que estava ficando com um homem em uma festa e percebeu que os amigos do jovem estavam filmando os dois juntos. “Se os homens se preocupam com segurança, nos preocupamos cinco vezes a mais, porque a nossa dignidade sexual está em jogo, nós temos muito mais com que nos preocupar”.

Lívia acredita que os homens enxergam o corpo da mulher como propriedade (Foto: Mariana Carvalho/ G1)Lívia se sentem vulnerável e sofre com os assédios
diariamente (Foto: Mariana Carvalho/ G1)

Lívia explica que a mulher nunca consegue saber se aquele assédio pode se transformar em uma violência maior e que, por isso, o medo e a vulnerabilidade são constantes no universo feminino.

“É o medo de saber que, qualquer pessoa, se ela tivesse oportunidade, ela faria o que ela tá pensando. De saber que ele é mais forte que você e que se acontecesse alguma coisa com você, você seria questionada naquela dor”, explica.

A servidora pública Ellen Cardoso, de 26 anos, conta que já foi agarrada pelo braço, puxada pelo cabelo e que uma vez, um homem já chegou a passar a mão em sua bunda durante uma festa. A recusa em aceitar o não como resposta também é frequente. “Eu acho que se juntar todos os dedos da minha mão e dos meus pés não vai dar pra contar a quantidade de vezes que os homens já insistiram quando eu disse não”, disse Ellen.

A servidora pública fala de uma situação em que precisou fingir que namorava com a amiga para se livrar de um assediador que se recusava a sair de perto delas. “Ele ainda pediu que dessemos um beijo, para ‘provar’. Eles não entendem o não, eles acham que estamos fazendo cena, não conseguem entender que simplesmente não queremos aquilo”, disse.

Assédio (durante a reportagem)
Enquanto era fotografada para a reportagem do G1 - por uma repórter também mulher - um homem se aproximou de Ellen e pediu para tirar uma foto com a ‘morena’ bonita. Depois de se afastar, a servidora pública questionou “se tivesse um homem conosco você acha que ele teria se aproximado?”.

Para ela, as situações de assédio são rotineiras na vida das mulheres. “Eu me sinto vulnerável, porque eu sei que o assédio de modo geral acontece pelo prazer de dominação, por saber que ele é mais forte, ele vai assediar. E a mulher vai abaixar a cabeça. Muitas vezes acabo reagindo e aí eu tenho muito medo, porque sei que esse cara pode ir atrás de mim depois”, contou.

Ela explica que os assédios são tão naturais que as mulheres muitas vezes nem percebem que eles estão acontecendo. “Você pensar diariamente onde você passar, que caminho você vai fazer e que roupa você vai usar. Isso já é naturalizado”, diz.

Barbara Kirmes é mãe e se preocupa com a sexualizaçao precoce da filha (Foto: Mariana Carvalho/ G1)Barbara é mãe e se preocupa com a sexualizaçao
precoce da filha (Foto: Mariana Carvalho/ G1)

Os assédios, tanto na rua quanto em espaços privados, também já se tornaram rotina na vida da estudante de desenho industrial Barbara Kirmes, de 25 anos. “É constante, eu vou com um fone de ouvido pra todo lugar e tento ignorar”.

Ela conta que chegou a evitar o supermercado que ficava mais perto de sua casa, porque um homem frequentemente a olhava de uma maneira agressiva. “Só parou quando fui com meu marido lá. Então, é bem complicado você não poder se defender e ainda depender de um homem, porque ele não te respeita, ele respeita o homem que está com você”, relata.

A estudante reforça que nenhuma mulher está livre dessas situações. “É uma sensação de impotência. Eu sempre brinquei que eu não faço o tipo físico de mulher que é assediada, porque eu não to dentro do padrão, mas infelizmente isso nunca me poupou de nada. Inclusive, se você ignora, eles aproveitam para te chamar de gorda, de feia”, diz.

Sexualização precoce
Barbara é mãe de uma menina de um ano e se preocupa com as situações que a filha terá que enfrentar. Ela conta de um dia em que postou uma foto da filha nas redes sociais e ficou assustada com a forma com que a criança foi sexualizada precocemente.

“Um homem comentou ‘é assim que a gente gosta’, e ficou muito claro que ele tava sexualizando a minha filha, que é um bebê, e muitas pessoas acharem engraçado, apoiaram aquilo que ele escreveu”, relatou.

Catarina Tose relata o assédio que sofreu de um professor (Foto: Mariana Carvalho/ G1)Catarina Tose relata o assédio que sofreu de um
professor (Foto: Mariana Carvalho/ G1)

A estudante de geografia, Catarina Tose, de 18 anos, relata um caso de assédio do próprio professor. “Eu fui aluna de um professor que era conhecido por ficar com alunas dele. E ai uma vez eu tava com amigas na mesa de um bar e ele chegou, sentou na nossa mesa, começou a falar do corpo de uma aluna dele de 13 anos e chegou a dizer que pagaria uma tequila pra cada uma se beijássemos ele”, conta.

Cultura do estupro
De acordo com a militante da Marcha Mundial das Mulheres, Carla Vitória, situações como as descritas pelas capixabas são autorizadas por uma construção social que trata o corpo das mulheres como um objeto, como uma mercadoria a disposição do homem.

“A cultura do estupro tem a ver com uma ideia conservadora de que a mulher é um objeto sempre disponível para a sexualidade do homem. A última instância é a violação, a agressão. Mas ela se manifesta de várias maneiras: as fotos não autorizadas, o assédio, os toques não autorizados, a perseguição das mulheres”, exemplifica.

Carla explica que a questão não está centrada em um comportamento individual, mas na maneira como a sociedade enxerga o papel da mulher. “É um sistema que trata o corpo da mulher como mercadoria, para vender, para trocar e para tomar a força”, explica.

Ela explica que a maneira com que meninos e meninas são criados e os papeis sociais de cada gênero contribuem fortemente para essa objetificação do corpo e da vida da mulher.

“É uma cultura que referencia o ideal de sexualidade, a partir da ideia de que os homens tem uma sexualidade incontrolável. É uma construção social, que desde a infância incita os homens a uma sexualidade extrema e a agressividade, enquanto as mulheres aprendem a ter seus desejos e vontades reprimidos e submissos aos homens”, explica.

Samira Sanches, também militante da Marcha, explica que é esse tipo de imaginário naturaliza a violência. “É a relativização de crimes devido a qualquer comportamento supostamente promiscuo da mulher. Então, qualquer comportamento que para um homem é tido como natural. Para a mulher, passa a ser justificativa para algum tipo de violência e até mesmo para o estupro”.

Ela explica que esse sistema ainda acaba por abafar as denúncias e desacreditar mulheres vítimas de violência. “Os homens criam uma relação de cumplicidade que silencia e abafa as denuncias. E até na lei nos encontramos esses protetores, que questionam a mulher quando ela faz uma denuncia, então esse silenciamento é uma barreira muito grande para as mulheres”, diz Samira.

De acordo com a militante, é através desse sistema que o corpo da mulher passa a ser visto como propriedade. “A cultura do estupro faz com que a mulher seja vista com um objeto a ser consumido, um corpo para ser consumido pelo homem, uma propriedade de outra pessoa”, completa.

Como maneira de superar essa questão, Carla aponta a promoção dos direitos e da liberdade das mulheres. ”Ao contrario do que se pensa, a conquista por direitos das mulheres não é uma coisa progressiva. As liberdades femininas estão sempre em risco, e sempre que há restrição de direitos, as mulheres são fortemente afetadas, porque nós já temos nossas liberdades restringidas”, conclui.

As mulheres relatam o medo do assédio e das violações (Foto: Mariana Carvalho/ G1)As mulheres relatam o medo do assédio e das violações (Foto: Mariana Carvalho/ G1)
veja também