Trechos do documentário "Quilombo Mesquita", de Vladimir Carvalho, publicado pelo Ministério da Educação em 1975 — Foto: Reprodução
Você sabia que, antes da chegada de Juscelino Kubitschek, uma comunidade quilombola ocupava parte do território onde foi construída a capital do país? O Quilombo Mesquita, formado há cerca de 270 anos, resistiu ao longo do tempo e hoje luta por preservação de identidade, a 45 km do centro de Brasília (veja galeria de fotos abaixo).
A pesquisadora Antônia Samir é filha de pai quilombola e autora do livro "O Quilombo que gerou Brasília" (veja detalhes mais abaixo). Ela diz que as terras do povo de Mesquita foram desconsideradas no processo de demarcação do Distrito Federal.
"Os quilombolas não conseguiram provar a titularidade de suas terras, que foram ocupadas por atividades públicas para a construção das cidades satélites", diz Antônia.
Além de ceder terras, o povo de Mesquita também ajudou a erguer Brasília com mão de obra e suprimentos. "Com a construção de Brasília e a instalação de fazendas modernas, Mesquita foi abordada com oferta de capital em troca do trabalho, ao mesmo tempo que chegava um novo mercado competitivo. Assim, para dar suporte à construção, necessitou-se da mão de obra, de produtos, de uso do território", conta a pesquisadora.
👉🏿 Quilombola é um termo usado para identificar aqueles "remanescentes de comunidades dos quilombos". Os quilombos eram espaços de liberdade e resistência criados para abrigar pessoas escravizadas.
Para o fotógrafo Wallison Braga, de 27 anos, líder comunitário no Quilombo Mesquita e membro da Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos (CONAQ), a história do seu povo foi tirada da narrativa da construção de Brasília.
"Meu bisavô contava que eles levavam o gado para pastar no terreno onde hoje é a Esplanada dos Ministérios. [...] A primeira comunidade a acolher Juscelino [Kubitschek] foi o Quilombo Mesquita. O Catetinho, que foi uma das primeiras construções, tem mãos quilombolas", diz Wallison.
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Como tudo começou
Trecho do documentário "Quilombo Mesquita", 1975, de Vladimir Carvalho
O povoado do Mesquita fica na região onde atualmente está a Cidade Ocidental, em Goiás, no Entorno do DF. Com pouco mais de 2 mil habitantes, o quilombo comporta descendentes de escravizados trazidos na época da mineração para a antiga cidade de Santa Luzia, hoje Luziânia, em meados do século 18.
Com o processo de esgotamento das minas de ouro no território goiano, os proprietários de terra da região começaram a migrar para outros locais. As terras abandonadas acabaram sendo adquiridas por pessoas que haviam sido escravizadas.
Um desses territórios é onde está localizado o Distrito Federal, explica a historiadora Cristiane Assis Portela, da Universidade de Brasília (UnB). "A gente tem então uma ocupação dessas terras pelos quilombolas do Mesquita", diz.
"Sem dúvida, o que nós temos não é um vazio na região do Planalto Central antes da construção de Brasília. O que nós temos, e podemos afirmar dessa forma, é um imaginário ideologicamente construído de vazio", afirma a professora.
Uma história de liberdade
O Quilombo Mesquita está localizado a 45 km de Brasília e ajudou a erguer a capital — Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Está registrado nos relatórios da Fundação Palmares que o quilombo Mesquita nasceu quando três escravas herdaram parte das terras do fazendeiro José Correia de Mesquita. Libertas do regime escravocrata, elas permaneceram nolocal, onde formaram suas famílias e mantiveram as tradições da cultura negra.
"Comunidades quilombolas são comunidades constituídas a partir da busca pela liberdade. A história do Quilombo Mesquita é uma história de liberdade, exatamente por essas mulheres que protagonizam e marcam a história do Mesquita", diz a historiadora.
Resistência
Wallison Braga nasceu no Quilombo Mesquita. Ele conta que o povoado mantém atividades tradicionais, como a produção de marmelo, que vem desde a época da colonização. Também há festas ancestrais, como a Folia Nossa Senhora de Abadia.
Wallison conta ainda que os saberes dos mais velhos são sempre passados aos mais novos. Ele lembra que, quando era criança, seus avós contavam sobre como o povo de Mesquita ajudou a erguer Brasília.
"Eu vou para Brasília para estudar desde os 7 anos de idade e sempre foi um choque cultural muito grande. Na escola, as professoras falavam sobre a construção de Brasília mas não mencionavam o nosso povo. Eu questionava, mas elas falavam que não estava nos livros", diz.
Wallison explica que quando entrou na universidade assumiu um compromisso: "Levar a minha a história e do meu povo. Eu faço isso através da fotografia", diz ele (veja as fotos mais acima).
'O Quilombo que gerou Brasília'
A autora Antônia Samir, filha de quilombola, lançou seu livro primeiro em Mesquita — Foto: Arquivo pessoal
No livro "O Quilombo que gerou Brasília", a ser lançado no dia 11 de setembro no Distrito Federal, a pesquisadora Antônia Samir relata como o quilombo nasceu e como a sua história foi praticamente tirada da história da capital do país.
A pesquisa teve como pontos centrais os processos usados pela comunidade para a manutenção da sua identidade, a transmissão dos seus conhecimentos e tradições e as ações em defesa do direito à terra.
"É uma modesta contribuição para desconstruir o discurso que invisibiliza o negro na história do Distrito Federal", diz a filha de pai quilombola.
A descendente diz que "Mesquita luta para não ceder à ação desagregadora do seu território e aos impactos ambientais da pressão fundiária sobre suas terras, sobre sua cultura".
"É um povo que luta para sobreviver ao paradigma da modernidade ocidental de forma digna, no seu jeito próprio de construir a cidadania local e de preservar a natureza", ressalta.
Quem são os quilombolas?
Adna dos Santos, mãe baiana, durante atividade do Festival Latinidades, no Quilombo Mesquita, em imagem de arquivo — Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
Em 2023, pela primeira vez, o Censo Demográfico, mais abrangente pesquisa sobre a população brasileira realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), incluiu as comunidades quilombolas. Ao todo, 1,3 milhão de pessoas se autodeclaram quilombolas na pesquisa.
Cem anos depois da abolição da escravidão, a Constituição de 1988 criou a nomenclatura "remanescentes das comunidades dos quilombos" e definiu que "a essas pessoas que estejam ocupando terras deve ser reconhecida a propriedade definitiva do espaço, devendo o Estado emitir-lhes títulos respectivos".
Ao longo do tempo, a expressão usada na Constituição foi sendo substituída pelo termo "quilombola". Em 1994, a Associação Brasileira de Antropologia atualizou a definição de "quilombo":
"Não se trata de grupos isolados ou de uma população estritamente homogênea. Da mesma forma, nem sempre foram constituídos a partir de movimentos insurrecionais ou rebelados mas, sobretudo, consistem em grupos que desenvolveram práticas cotidianas de resistência na manutenção e reprodução de seus modos de vida característicos e na consolidação de um território próprio."
Assim, uma pessoa que se autodetermina quilombola tem laços históricos e ancestrais de resistência com a comunidade e com a terra em que vive.
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