Por Tácita Muniz, G1 AC — Rio Branco


Raimundo Lima disse que antes de ser diagnosticado com a doença nunca tinha ouvido falar de hanseníase — Foto: Tácita Muniz/G1

As marcas deixadas pela hanseníase vão além das mutilações causadas pela doença naqueles que viveram isolados por anos em hospitais-colônias no Acre.

A história da perseguição e isolamento é tão surreal, que é difícil pensar que as vítimas da hanseníase, naquela época sem tratamento, sofreram até a década de 80 até que fossem ressocializadas.

O debate sobre os ex-hansenianos voltou à tona após a Casa de Acolhida Souza Araújo, que fica na BR-364, em Rio Branco, estar ameaçada de fechar as portas. O local, antes conhecido como leprosário, era onde as pessoas diagnosticadas com a doença ficavam isoladas.

Há 50 anos, um convênio entre governo e Diocese tornou o espaço um abrigo para esses pacientes rejeitados durante anos.

Porém, a falta de repasse do governo para a instituição ameaça o local, que serve para muitos pacientes como uma casa. Atualmente, o espaço abriga 33 ex-hansenianos. Muitos tiveram a vida roubada pela doença e, por isso, ali é o único espaço que conhecem como lar.

‘Quem será contra nós’

Hoje com 81 anos, o quarto de Adelaide Santos tem direito a estante com algumas fotografias que traçam uma linha cronológica de suas mutilações. Diagnosticada aos 7 anos com hanseníase, ela foi levada à colônia pela guarda sanitária na época.

Ela morava com o pai adotivo e os irmãos em um seringal do estado, mas, nem o pedido do pai a fez ficar junto da família.

Hoje ela nem recorda mais quantos irmãos tinha ao certo. Sempre de óculos escuros, ela teve sequelas da doença no nariz, mãos e pés. Entre idas e vindas, ela passou a ficar permanentemente na colônia aos 28 anos. São mais de 50 anos vivendo no local onde ficou isolada há anos.

“Antigamente, diziam que essa doença era aquela que largava os pedaços. Ela não larga os pedaços, mas a gente fica defeituoso, porque não tinha remédio. Eu tinha nariz, era grande e afilado”, relembra durante uma breve pausa nas memórias.

Já interna da colônia, Adelaide ajudava em atividades da casa, como agricultura. Da família, a única coisa que recorda é o abandono. Há cinco décadas, ela optou por evitar sair da colônia. O motivo? O preconceito é o fantasma que assombra as lembranças da paciente.

“Eu já sofri muito preconceito das pessoas e hoje em dia eu tenho medo de enfrentar tudo isso de novo. Tenho irmão e sobrinhos, mas ninguém vem me visitar. Se isso aqui fechar, como vamos viver? Não podemos cozinhar nem fazer quase nada”, pontua mostrando os membros mutilados.

Mas, mesmo diante das dificuldades que o espaço tem enfrentado, ela se apega à fé. Mesmo perdendo o sono, ela acredita que vai conseguir se manter abrigada. “Se Deus é por nós, quem será contra nós?”, repete cabisbaixa.

Adelaide vive há 53 anos na casa de acolhida em Rio Branco e conta que não tem contato com familiares — Foto: Tácita Muniz/G1

Cães eram usados para caçar hansenianos

Assinada pelo general Eurico Gaspar Dutra, a lei nº 610, de 13 de Janeiro de 1949, era clara: isolar e separar da família todos os portadores de hanseníase. O decreto é composto por 34 artigos, que revelam uma verdadeira caçada aos doentes.

A doença, na época ainda conhecida como lepra, fazia com que os pacientes fossem perseguidos e isolados. Toda essa perseguição só terminou após 30 anos, na década de 80. “É obrigatório o isolamento dos casos contagiantes de lepra”, enfatiza o artigo 7 da lei.

Ao decorrer do decreto é possível ainda ver medidas ainda mais radicais, como a determinação de separar filhos dos pais acometidos pela doença.

“Todo recém-nascido, filho de doente de lepra, será compulsória e imediatamente afastado da convivência dos pais”, pontua o 15º artigo da lei.

O Estado conseguia chegar até os doentes através de denúncias da própria comunidade. Com medo, muitos doentes fugiam para o mato e começava uma verdadeira caçada a esses pacientes, segundo o Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (Morhan).

“Na verdade, a comunidade era pequena e a época era de seringueiros e tinha o chefe de barracão, que também era chamado como patrão. Então, quando tinha essas pessoas, o próprio patrão denunciava e a pessoa tinha que sair daquela comunidade, quando a pessoa resistia, era caçado com cachorros. Os pacientes ficavam com medo, porque sabiam que seriam isolados”, conta Elson Dias, diretor do Morhan.

Pacientes contam que a polícia invadia mata para obrigá-los a internação — Foto: Tácita Muniz/G1

‘Nem conhecia lepra’

Foi o que aconteceu com Raimundo Lima. Ele tem 62 anos e foi acometido pela hanseníase aos 12 e morava com a família em um seringal. Quando soube que estava doente, tentou esconder-se da guarda sanitária, mas foi encontrado e levado até ao hospital Souza Araújo.

O que ele mais lembra do dia? A forma como foi carregado em uma embarcação. O medo do contágio era tão grande que os pacientes eram levados em uma canoa puxada por uma corda ligada à embarcação que seguia até o isolamento.

“Com 13 anos vim a primeira vez para o leprosário pela polícia. Amarravam uma canoa no barco e a gente vinha separado, que nem bicho. Quando a pessoa disse ao meu pai que eu tinha a doença, eu nem sabia o que era. Nem conhecia lepra”, relembra.

A doença o fez perder as mãos, os pés e o contato com a família. De todos os pacientes que foram arrancados de suas famílias, uma pontuação é unânime e doída: não lembrar dos traços dos pais. E, além de tudo, ter uma vida toda tomada, vivendo isolados sem contato nenhum com o mundo externo.

“A única pessoa que ainda vem aqui é minha filha. Outras pessoas? Não mesmo. Se um dia você pegar essa doença, ninguém vai te excluir, hoje tem tratamento, você estará perfeita. Mas, eu? Isso aqui [mostra os membros mutilados]. Isso aqui vai ficar pra sempre. Só sai quando morrer”, lamenta.

Questionado se ainda enfrenta olhares de preconceito, ele não pensa duas vezes e diz que sim. “Uma vez mostrei meu pé e todo mundo ficou com medo. Isso nunca vai mudar”, reclama.

Sobre o possível fechamento do abrigo, que atende esses pacientes e que se tornou a sua casa há quase 20 anos, ele se revolta e lamenta. “Se for pra fechar isso aqui é melhor pegar todos nós e matar logo, porque não temos pra onde ir. É melhor o governo dizer: ‘leva esses aleijados e mata mesmo. A gente vai pra rua?”, questiona.

Sátiro Lima sonhava em poder estudar e fazer faculdade: 'queria ser alguém na vida' — Foto: Tácita Muniz/G1

Sonhos mutilados

Sátiro Lima tem 74 anos e quase não se lembra mais dos seus 12, quando foi acometido pela doença e foi internado pela primeira vez. Algo que o marca até hoje é que ele não conhecia as pessoas que o levaram até o hospital. “Meu pai era pobre, fui levado por pessoas estranhas”, recorda.

Voz mansa e quase inaudível, ele conta que a doença já estava bastante avançada e aos poucos precisou amputar mãos e pés. Como eram isolados, tirados do convívio da sociedade, esses pacientes têm pouco ou nada de estudos. Ao ser questionado se voltou a ver o pai depois de ser internado, ele conta que o pai morreu três anos depois.

Lima nunca casou, nunca teve filhos. As marcas da hanseníase não ficam apenas nos membros amputados, mas na alma de cada um desses pacientes, que por três décadas foram esquecidos e maltratados pelo Estado. Além de membros, a doença também mutilava sonhos.

"O que marcou mais foi o preconceito. Da gente não conseguir ser alguém por conta da doença. Todos os dias penso como seria minha vida sem a doença. Penso que poderia ter sido, por exemplo, um psicólogo, uma pessoa da polícia. Um agente secreto”, diz entre risos e um olhar emocionado.

Devido à crise que o abrigo enfrenta, Lima, aos poucos, com o dinheiro da aposentadoria, vem construindo uma casa com medo do espaço não atendê-lo mais. Sem os repasses, ele tem comprado os remédios e alguns materiais para fazer curativo.

“Tenho medo da gente precisar de tratamento e não ter para onde ir”, revela.

Alguns ex-hansenianos ainda lutam para receber pensão no Acre — Foto: Aline Nascimento/G1

Pensão

Em 2007, a lei nº 11.520 estipulou uma pensão para os ex-hansenianos que ficaram isolados por conta da doença até 31 de dezembro de 1986. Porém, a medida só beneficia os pacientes que ficaram em hospitais-colônias, deixando de fora os outros pacientes que viviam em isolamento domiciliar.

Ao todo, no Acre, 600 ex-hansenianos recebem uma pensão estipulada em R$ 750. Outros 200 ainda lutam pelo direito, segundo o Morhan, que desde 1981 ajuda na ressocialização das vítimas da doença.

Crise no abrigo

A Casa de Acolhida Souza Araújo é dirigida pela Diocese, com apoio do governo. O espaço oferece apartamentos aos pacientes e também serviços de saúde para as sequelas que a doença deixou. É um hospital referência e dedicado a esses pacientes.

Porém, desde agosto do ano passado, a Diocese não recebe o repasse do governo, garantido por lei de subvenção social. Por mês, é necessário destinar R$ 220 mil para o abrigo, para pagamento de funcionários, medicamentos, manutenção, alimentação e apoio aos pacientes.

A dívida já chega a quase R$ 2 milhões. Há 42 anos, a irmã Maria Inês ajuda no local e diz que nunca viu uma crise como essa.

“Tá chegando o momento que vai faltar tudo, a gente compra pra pagar com repasse, mas desde agosto que esse repasse não vem, então a Diocese com obras sociais, pegando daqui e acolá, ia empurrando com a barriga, agora chegou o ponto que não pode mais comprar nada porque estamos em dívida nos comércios. Vai faltando, por mais que a gente vá tocando, é quase que viver de esmola. Até o dia primeiro de abril, se não tiver solução, a Diocese não tem mais condições de tocar sozinha”, finaliza.

E assim, a negociação segue entre governo e diocese por uma dívida que vai além de quase R$ 2 milhões. A dívida do Estado com esses pacientes é histórica e irreversível. São pessoas que, isoladas, tiveram roubados de si o direito de viver em sociedade, quebrando, inclusive, laços familiares que nunca mais poderão ser reatados.

Entidade que acolhe ex-hansenianos pode fechar por falta de repasse do governo estadual

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