A passagem de Jair Bolsonaro (PL) pelo poder é descrita por apoiadores como um avanço para uma suposta alfabetização política dos brasileiros, mas a maneira como o presidente popularizou discussões sobre instituições e democracia foi baseada em distorções e mentiras, afirmam especialistas.
O ecossistema de desinformação e ataques ao Estado democrático de Direito foi uma das marcas da ascensão bolsonarista e sua comunicação baseada em fake news sobre os mais diversos temas.
No exemplo mais recente, a Polícia Federal concluiu em inquérito que Bolsonaro atentou contra a paz pública ao disseminar notícia falsa que relacionava a vacina contra a Covid-19 ao risco de se contrair Aids, além de incitar a prática de crime ao desestimular o uso da máscara de proteção.
O relatório final da investigação, em que a PF imputa crime ao presidente pela fala de outubro de 2021, foi enviado ao STF (Supremo Tribunal Federal) a menos de dez dias do fim do mandato dele.
"Hoje, temos uma massa de pessoas que passaram a entender melhor de política", disse Bolsonaro nesta sexta-feira (30), em uma live de despedida do cargo.
Promover educação midiática e punir difusores de fake news são algumas das saídas apontadas para levar o debate público a um patamar mais saudável.
Se, por um lado, siglas antes obscuras para parte da população, como TSE (Tribunal Superior Eleitoral), passaram a ser repetidas com normalidade após o advento de Bolsonaro, por outro o contato de cidadãos com temas ligados aos três Poderes foi envolto em cacofonias e manipulações.
"O Jair Bolsonaro veio e nos deu uma aula cívica do nosso país", disse à Folha, antes da derrota do candidato à reeleição, a professora bolsonarista Vania Brisola, 60, moradora de Eldorado, município paulista onde o presidente passou a juventude.
A cidade foi retratada na série de reportagens Raízes Presidenciais, que também acompanhou o clima eleitoral em Garanhuns (PE), terra natal do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Seguidora convicta do mandatário, Vania afirmou que, graças a Bolsonaro, "um monte de coisa que o povo não conhecia" foi esclarecida.
"Antes o povo não sabia de STF, né? O povo não conhecia quem era [a ministra] Cármen Lúcia, quem era fulano, né? Ele mostrou para o povo como funciona a coisa lá em cima. Isso é admirável, sabe?"
Mensagens em redes sociais ecoam esse pensamento, afirmando que "nunca a população brasileira esteve tão politizada" e "o povo brasileiro aprendeu a pensar por si mesmo".
Pesquisadores afirmam que o interesse e o engajamento em causas políticas se ampliaram desde 2013, com as manifestações de junho, mas que o processo não foi acompanhado de uma evolução na chamada cidadania responsável, com um envolvimento crítico e consciente.
"O problema é que muita gente passou a buscar mais informações, mas fazendo interpretações de forma enviesada", diz Patricia Blanco, presidente-executiva do Palavra Aberta, instituto sem fins lucrativos que promove a liberdade de expressão. "Isso culminou no ambiente polarizado de hoje, com forte apelo à deterioração democrática."
Ela situa Bolsonaro como mais um ator no crescente contexto de desinformação e não o isenta de influência sobre, por exemplo, "a escalada de críticas e até mesmo de demonização do papel do Judiciário, que fez com que se despertasse um interesse pelo funcionamento do TSE e do STF".
Para Patricia, é positivo que mais pessoas queiram entender, por exemplo, as entranhas do sistema eletrônico de votação —atacado por Bolsonaro com fins golpistas—, mas é prejudicial o consumo de informações que embaralham fatos e opiniões, muitas vezes com intenção de enganar.
Assimilar mensagens "carregadas de experiências e ideologias como se fossem verdades consolidadas reforça esse ambiente poluído, em que são recebidas sem questionamento falas de pessoas que não têm conhecimento, profundidade e autoridade sobre o assunto", observa a especialista.
Bolsonaro conseguiu emplacar com sua base mais radical narrativas enganosas como a de que o Congresso —antes de consolidada sua aliança com o centrão— e o STF queriam impedi-lo de governar. Nas eleições, ele propagou a ideia de que foi perseguido pelo TSE e fermentou intimidações à corte.
Quando ainda presidia o tribunal eleitoral, em junho, o ministro Edson Fachin alertou em um discurso que "mentes autoritárias assacam desinformações para deseducar" e que "cabe às mentes democráticas vigiar e educar para a paz cidadã".
Fachin, depois substituído na presidência por Alexandre de Moraes, defendeu o estímulo ao letramento político como forma de preservar os valores democráticos.
Doutor em comunicação e professor da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), Camilo Aggio diz que Bolsonaro jamais pode ser considerado agente de pedagogização política, já que não ensina conceitos certos. "Graças a ele, parte da população foi desaprendendo, isso sim."
Aggio considera um erro romantizar a participação política como fim em si mesma, argumentando que o bolsonarismo mostrou que muitas vezes o envolvimento pode ser usado para atacar a democracia.
"Nem toda participação política gera automaticamente mais cidadania democrática. A máquina bolsonarista foi muito eficiente em fanatizar pessoas, dando voz e um revestimento pseudointelectual a discursos estapafúrdios e, em algumas situações, criminosos."
Aggio afirma que a questão deve ser dissociada da noção de que a educação formal, aquela oferecida nos bancos de escola, é capaz de melhorar a qualidade do engajamento cívico.
"É algo muito mais profundo. Quantos médicos, advogados e engenheiros não são engrenagens do sistema bolsonarista? São pessoas que tiveram uma educação privilegiada e continuam consumindo e repassando desinformação."
A máquina de difusão de mentiras que fortaleceu e sustenta o apoio a Bolsonaro fez com que mais desinformação passasse a circular no país, na avaliação do docente. Por isso, ele prega a necessidade de "uma discussão inteligente e bem racional" sobre o papel das plataformas digitais.
Porta-voz da Politize!, organização sem fins lucrativos voltada à educação política e que mira sobretudo jovens, Luiza Wosgrau diz que a ausência de educação para o exercício da cidadania coincidiu com um aumento do interesse de participação na vida política nos últimos dez anos.
"Percebemos que o que tinha de mais democrático no Brasil era o despreparo para a democracia", afirma ela, que vê o nível de polarização como combustível para a cultura política insatisfatória no país.
Para a representante da entidade, a mudança da realidade depende fundamentalmente de ensinar as pessoas a reconhecerem e combaterem fake news.
"O ideal seria ter um cenário de participação popular e instituições fortes, em que não existisse disseminação de desinformação, conteúdo antidemocrático e discurso de ódio. E que os cidadãos tivessem ferramentas e conhecimentos para interagirem com esse universo de forma plena e sadia."
Luiza avalia que o debate público seria mais proveitoso se, ao contrário do que comumente ocorre, discussões se baseassem em fatos comprovados e evidências, repelindo a violência e a intolerância.
O próprio Bolsonaro já comentou a dificuldade de compreensão de parte da população, ao debochar da cantora Anitta em 2021. Durante uma live com a advogada e apresentadora Gabriela Prioli para aprender o básico sobre política e instituições, a artista questionou se existia "deputado municipal".
O presidente riu da pergunta ao falar com apoiadores. "[Anitta] não sabe nada, não sabe o que é Poder Executivo. Daí ela fala: 'Não existe deputado municipal?'. Essas coisas absurdas. Isso aí não é essas pessoas apenas não, é comum", afirmou.
Na época, a cantora rebateu a ironia de Bolsonaro, dizendo que não só ela, mas "mais da metade dos brasileiros" não sabe identificar os três Poderes.
Já Prioli respondeu ao presidente que, pela baixa capacidade de compreensão de "muita gente", o país "enfrenta consequências desastrosas", como a eleição dele. E manifestou o desejo de que se multipliquem os que perguntam e "desapareçam os que deliberadamente desinformam".
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