VÁRIOS AUTORES (nomes ao final do texto)
As mudanças no Código Civil de 2002, por comissão instituída pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), têm sido apresentadas como mera reforma, a atingir, basicamente, o direito de família e o "direito digital". Todavia, não é o que ocorre. Esse é um fato preocupante, uma vez que o Código Civil é a lei que mais afeta a sociedade: regula a vida de pessoas e empresas do início até após seu fim, englobando a regulamentação de contratos, propriedade, famílias e sucessões.
A ler-se as incontáveis páginas do anteprojeto feito em velocidade incompatível com o tempo de reflexão que obra dessa natureza exige, contam-se quase mil mudanças, mais do que ocorreu quando o Código Civil de 1916, que perdurou por 86 anos, foi substituído pelo atual. A alteração é profunda: uma verdadeira revolução nas bases técnicas de um Código que tem apenas 20 anos. Ajustes pontuais são necessários? Sim, e alguns estão sendo propostos, cabendo destacar esforços nesse sentido, o que é muito diferente de mudar quase metade do regramento em seu conteúdo e seu método. Se aprovado o anteprojeto, as modificações na estrutura jurídico-econômica das relações privadas resultarão em grave insegurança jurídica, jogando por terra o trabalho diuturno de construção e consolidação, por juristas e juízes, ao longo de anos.
Na Parte Geral do Código Civil, base para aplicação dos demais artigos, grassam a imprecisão e a contradição. São desmoronados o conceito e as consequências da ilicitude civil, com o recuo de décadas. Atividades de risco permitido, como dirigir um automóvel, podem ser consideradas atividades ilícitas, podendo gerar o dever de indenizar, ao confundir risco com ilicitude e esta com culpa. Igualmente na responsabilidade civil e nos contratos paritários, grassando, aqui, a insegurança, exemplificada —mas não esgotada— nas regras que determinam a nulidade de pleno direito dos pactos privados que "violarem a boa-fé e a função social". Se até hoje não há mínimo consenso sobre o significado da expressão "função social", como não ampliar a insegurança aos contratantes?
Sob a bandeira da proteção do contratante mais fraco, entraves burocráticos, anacronismos e importação de soluções inspiradas em legislações estrangeiras incompatíveis com a nossa surgem com frequência no anteprojeto. Exemplo é a possibilidade de concessão de recompensas a litigantes individuais caso vençam processos contra empresas que atentem contra direitos dos consumidores. Tentativa de enfrentar problema que já conta com diversas respostas efetivas do ordenamento, como agências reguladoras, Procons e ações coletivas. Tais regras, destituídas de toda técnica e positivamente irrazoáveis, levarão ao aumento da litigiosidade, na contramão do esforço de décadas do Poder Judiciário para enfrentar o abarrotamento de processos nos tribunais.
Nos direitos extrapatrimoniais, as inovações são tantas, e propostas, modo geral, em linguagem tão estranha à técnica jurídica e à gramática da língua portuguesa que ainda não foi possível compreendê-las integralmente. Exemplo? Tenha-se presente a disciplina da proteção aos animais, inserida no capítulo dedicado a regrar os direitos das pessoas.
No direito de família, propagado como um dos temas em que a reforma se faz mais necessária, boa parte da alegada mudança já existe, decorrente que é da evolução dos estudos e das decisões judiciais das últimas duas décadas. Destaca-se o reconhecimento de direitos a pessoas homoafetivas e de famílias monoparentais, temas de pretensa inovação. Por outro lado, em matéria de término do casamento, uma multiplicidade de problemas deverá surgir do chamado divórcio unilateral, pela vontade de um dos cônjuges, diretamente no Cartório de Registro Civil. A multiplicidade de problemas que podem surgir aqui é incalculável.
Um Código Civil elaborado a toque de caixa, pleno de "novidades" não testadas pela experiência, recheado por conceitos indeterminados e termos estranhos à linguagem jurídica não deverá servir como garantia mínima de previsibilidade nas relações civis. Em caso de aprovação do anteprojeto como está, o aumento da insegurança e da litigiosidade parece ser a única certeza.
Débora Gozzo
Professora titular de direito civil e do Doutorado em Ciências do Envelhecimento (USJT)
Fábio Floriano Melo Martins
Presidente do Instituto de Direito Privado (IDiP) e professor do FGV Law
Judith Martins Costa
Presidente do IEC (Instituto de Estudos Culturalistas) e livre-docente (USP)
Paulo Doron R. de Araujo
Presidente do Comitê de Responsabilidade Civil da International Bar Association (IBA) e professor da FGV Direito SP
TENDÊNCIAS / DEBATES
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