Era uma noite abafada no leste do Panamá quando sentamos em um dos poucos restaurantes de Metetí, cidade às margens da rodovia Panamericana, para jantar, frustrados. "Nós não estamos conseguindo registrar a dimensão do que estamos vendo aqui."
Estávamos no fim de nosso segundo dia de viagem à província de Darién, região panamenha que abriga o estreito de mesmo nome por onde em 2023 passaram 520 mil imigrantes. Era janeiro de 2024, mês no qual mais de 33 mil pessoas fariam aquela travessia.
Após conhecer dezenas de imigrantes que haviam acabado de sobreviver à selva, sentíamos que não conseguíamos retratar todo o drama que essas pessoas enfrentaram em uma jornada que estava longe de seu fim. Todos queriam chegar aos EUA.
Muitas daquelas pessoas estavam havia meses em deslocamentos contínuos pela América do Sul. Algumas haviam vindo de outros continentes. Era difícil pensar que uma fotografia ou uma entrevista, por mais bem feitas que fossem, pudessem dimensionar essas histórias, literalmente no meio de seus caminhos.
É verdade que parte da frustração se mesclava à tristeza. Até mesmo o profissionalismo mais aguçado não impede que um jornalista se sensibilize e seja impactado pelo sofrimento que está ao seu redor. Foi com isso que nos deparamos na apuração in loco para a série de reportagens "Darién, a selva da morte".
Enquanto em nosso carro 4x4 alugado, com ar-condicionado, cortávamos aquela província de ponta a ponta para ir aos locais de chegada dos imigrantes, nós nos deparávamos com centenas deles fazendo aquele mesmo trajeto a pé, sob o forte sol quase sempre acima de 30°C, sem água, comida ou roupas adequadas. A maioria estava com crianças.
Ficar indiferente não era uma opção. Por vezes, mesmo aqueles que já estão tremendamente acostumados a esse fluxo, como os membros do Serviço Nacional de Fronteiras que nos acompanhavam sob a alegação de garantir nossa segurança, mostravam-se comovidos.
Talvez ali tenhamos experienciado uma metáfora comum aos que trabalham em organizações humanitárias nos territórios de crise: a de enxugar gelo. Podíamos fazer o nosso melhor por um imigrante que ali estivesse, mas mudar aquela realidade era algo fora de nosso alcance.
Estar em Darién permite conhecer um pouco de diferentes dramas globais no mesmo lugar, uma selva tropical inóspita no miolo das Américas.
Olhávamos para um lado e víamos o drama da diáspora venezuelana que foge da asfixia econômica potencializada pela ditadura. Do outro, o medo dos equatorianos que deixavam seu país ante a insegurança galopante provocada pela guerra do governo contra os cartéis.
Não muito longe, presenciávamos o sofrimento dos afegãos, em êxodo forçado pelo regime fundamentalista do Talibã. Eram famílias repletas de meninas e mulheres que queriam retomar os estudos em uma nação livre.
Por fim, testemunhávamos o drama das crianças brasileiras, filhas de imigrantes haitianos radicados no Brasil. Seus pais decidiram enfrentar a selva porque não viam mais condições econômicas no país que os abrigou e onde formaram suas famílias.
Foi esta a história que nos levou a Darién.
Em setembro passado, analisando dados sobre a travessia, observamos a informação de uma nota de rodapé: praticamente todos os brasileiros que cruzam são menores. E quase ninguém havia falado disso.
O esboço de nossa cobertura começou –e levou meses. Mais de um mês após a viagem, depois de intenso trabalho para pôr o material de pé, nossa frustração inicial não se desfez por completo. A responsabilidade de retratar a maior crise migratória das Américas de perto se mistura com a sensação de que compreender Darién é algo muito complexo.
Ainda assim, disseminar conteúdo jornalístico sobre a chamada "selva da morte" talvez seja o único recurso ao nosso alcance para combater a desinformação nas redes sociais, nas quais a travessia muitas vezes parece ser apenas um passeio no parque.
Comentários
Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.