Descrição de chapéu Financial Times

Entenda a tradição do óleo escolhido para ungir o rei Charles 3º

Momento da unção, realizado atrás de biombo, é única parte da cerimônia invisível para público

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James Shotter
Jerusalém

A maior parte das azeitonas colhidas nos bosques do Mosteiro da Ascensão, um complexo ortodoxo russo nas encostas ensolaradas com vista para a cidade velha de Jerusalém, transforma-se em óleo para as lâmpadas que iluminam seus edifícios ou para as panelas usadas para cozinhar.

Mas neste sábado (6) parte da safra colhida pelas freiras vestidas de preto que servem no complexo de 150 anos no Monte das Oliveiras funcionou como algo totalmente mais exaltado: o óleo sagrado que ungiu o rei Charles 3o no ponto alto religioso de sua coroação.

O rei Charles 3º acena ao público do Palácio de Buckingham, em Londres, após a cerimônia de cororação
O rei Charles 3º acena ao público do Palácio de Buckingham, em Londres, após a cerimônia de cororação - Stefan Rousseau/Reuters

"É uma grande honra para nós", disse o padre Roman Krassovsky, chefe da Missão Eclesiástica Russa em Jerusalém, antes de embarcar num passeio pelas oliveiras em flor do mosteiro, levando uma garrafa plástica com seu óleo debaixo do braço. "[O Monte das Oliveiras] é onde Jesus começou a via crúcis. E agora o rei Charles está pegando sua cruz, que o Senhor está colocando em seus ombros como rei."

Com os papéis principais para uma carruagem dourada com ar-condicionado e uma pedra de 152 quilos que tem a reputação de indicar a diferença entre um verdadeiro rei e um impostor, a coroação não economiza pompa espetacular. Mas o momento da unção do rei Charles forma um contraponto mais privado: realizado atrás de um biombo, foi a única parte da cerimônia invisível para o público.

"A coroação, nesse ponto, olhando para a forma como eles a enquadram, é uma combinação interessante de humildade e orgulho", disse Alice Hunt, historiadora da Universidade de Southampton.

Em coroações anteriores, alguns monarcas foram ungidos com o mesmo óleo que seus antecessores. Mas, assim como sua mãe, Charles não foi. No caso dela, havia pouca alternativa: um frasco contendo o óleo usado para coroar seu pai foi destruído durante um bombardeio alemão na Segunda Guerra Mundial.

O padre Roman disse que, no caso do rei Charles, além do significado religioso do Monte das Oliveiras –de onde os cristãos acreditam que Jesus ascendeu ao céu–, sua decisão provavelmente teve um componente pessoal. Sua avó, a princesa Alice da Grécia, está enterrada no Mosteiro de Maria Madalena, que fica mais abaixo na encosta, e também forneceu azeitonas para o óleo sagrado.

Após a colheita –a safra às vezes é armazenada na garagem do padre Roman–, as azeitonas foram enviadas para serem prensadas em Latrun. O óleo para a coroação foi então levado para a Igreja do Santo Sepulcro em Jerusalém para ser consagrado, antes de ser enviado para o Reino Unido.

O ritual em que o óleo será usado tem suas raízes no mundo bíblico narrado no Antigo Testamento, quando Salomão foi ungido rei pelo sacerdote Zadok. Mais tarde, foi adotado por monarcas cristãos na Europa Ocidental, com a primeira unção conhecida de um rei inglês ocorrendo em 973, quando Edgar foi consagrado em Bath.

Como grande parte da cerimônia, a unção é cercada pelos adereços da história e do poder real: o óleo é derramado de uma jarra de ouro em forma de águia numa colher que se acredita datar do século 12. Mas também é explicitamente religiosa: uma vez decantado, o óleo é usado para marcar o sinal da cruz na cabeça, no peito e nas mãos de Charles.

Historicamente, o simbolismo religioso da cerimônia desempenhou um papel crucial, conferindo legitimidade ao novo monarca, disse Hunt. Em contraste com a decisão do rei Charles de ser ungido atrás de uma tela, o rei Henrique 4o escolheu fazê-lo diante de todos em 1399 para enfatizar sua posição de monarca por aprovação divina, depois de usurpar o trono de seu primo.

"Sua legitimidade era um tanto duvidosa, porque ele havia deposto Ricardo 2o", disse ela. "Era ele dizendo: vejam, fui ungido, agora sou seu rei legítimo, e isso é um sinal da aprovação de Deus."

Um século e meio depois, Maria 1ª, empenhada em restaurar o catolicismo romano na Inglaterra, solicitou secretamente que um novo óleo fosse feito em Bruxelas para sua coroação, recusando o usado para coroar seu predecessor protestante –seu irmão Eduardo 6o– devido a dúvidas sobre seu estado.

Para os religiosos, esse poder de legitimidade divina perdura até hoje. "[A monarquia] é um sacramento dado por Deus", disse o padre Roman. "É a única forma de governo que Deus deu. Mas, infelizmente, nos últimos cem anos, ela foi banida, por assim dizer, ou destruída."

Embora outras nações europeias, como a França, já tivessem cerimônias elaboradas como a do Reino Unido, ao longo dos anos elas desapareceram gradualmente, à medida que as monarquias se modernizaram ou expiraram completamente.

A unção do rei Charles também terá algumas diferenças em relação à de seus antepassados. Em algum lugar na névoa do tempo, os cotovelos dos monarcas saíram da lista de partes do corpo ungidas. O óleo sagrado também não conterá mais secreções das glândulas de civetas ou dos intestinos de baleias.

Mas, apesar das mudanças, o cerne permanece baseado em um modelo que dura mil anos. "É único por sua sobrevivência, e portanto bastante excêntrico", disse Hunt. "Ele chega tão longe no tempo. Não são só os adereços, é o ato de ungir que remonta aos tempos bíblicos. É incrível que ainda exista."

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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