No ano em que o golpe militar completa 60 anos, o Memorial da Resistência, em São Paulo, abre duas exposições simultâneas que mostram as diferenças entre os processos de abertura política no Brasil e na Argentina.
"Uma Vertigem Visionária - Brasil: Nunca Mais" resgata o projeto que reuniu e sistematizou, de forma clandestina, mais de 1 milhão de páginas de 707 processos de presos políticos no Superior Tribunal Militar, o STM, de 1979 a 1985, documentando a repressão do período
A mostra "Memória Argentina para o Mundo: O Centro Clandestino ESMA" explora a história do ex-centro clandestino onde foram presos, torturados ou mortos mais de 5.000 presos políticos durante a ditadura militar da Argentina, de 1976 a 1983.
A abertura das exposições será em 7 de setembro, Dia da Independência e mesma data em que o ex-presidente Jair Bolsonaro e bolsonaristas farão manifestação na avenida Paulista.
Em protestos anteriores, parte dos manifestantes pedia intervenção militar. Pesquisa Datafolha de março mostra que 71% das pessoas preferem democracia à ditadura, mas, para 18%, tanto faz se o governo é democrático ou autoritário, e para 7%, em certas circunstâncias, é melhor uma ditadura do que um regime democrático
O governador Tarcísio de Freitas, do Republicanos, confirmou a participação na manifestação bolsonarista, mas não na abertura da exposição no Memorial da Resistência, que é ligado ao governo do estado, sobre as torturas e desaparecimentos durante o regime militar, de 1964 a 1985.
Segundo Ana Pato, diretora do Memorial da Resistência, os dois países passaram por processos de documentação, com o Nunca Más na Argentina e o Brasil: Nunca Mais.
Na Argentina, porém, o processo foi apoiado pelo governo Raúl Alfonsín, primeiro presidente da redemocratização, e a mídia cobriu intensamente o Julgamento das Juntas. "A Argentina tornou pública a violência de Estado já nos anos 1980, enquanto no Brasil houve uma espécie de pacto do silêncio com a anistia e durante a abertura política", diz.
O trabalho do Brasil: Nunca Mais, o BNM, foi feito a partir da Lei da Anistia em 1979 de forma clandestina. Os advogados dos presos políticos tinham 24 horas para fazer cópias dos processos.
Morto em 2018, o advogado Sigmaringa Seixas, que defendeu diversos presos políticos na ditadura, alugou uma sala comercial e três máquinas Xerox em Brasília para copiar mais de 1 milhão de páginas coletadas por advogados "de confiança". Nem os funcionários sabiam o que era o trabalho.
As cópias eram enviadas a São Paulo em ônibus noturnos e, depois, como carga desacompanhada em aviões de carreira ou de carro. Os locais onde esse trabalho era feito, secretos, mudavam de endereço para não despertar suspeitas —passaram pela escola de psicanálise Sedes Sapientiae e uma igreja nos Jardins.
O arcebispo dom Paulo Evaristo Arns e o reverendo Jaime Wright lideravam o BNM e atuavam como blindagem para o projeto. Os recursos vinham da sede da CMI em Genebra —as pessoas traziam o dinheiro escondido na roupa.
Mesmo a publicação do BNM em livro, em 1985, ocorreu sem alarde. Foi colocado nas livrarias sem um lançamento oficial por receio das possíveis reações.
Escrita por Paulo Vannuchi, Frei Betto e Ricardo Kotscho, a obra era uma síntese da pesquisa, que mapeava denúncias de tortura e desaparecimentos. Alguns meses depois da publicação, dom Paulo divulgou uma lista com 444 pessoas acusadas nos documentos de serem torturadores.
"Houve um processo de apagamento do livro, que foi um dos mais vendidos de não ficção nos anos 1980, mas muitas pessoas hoje nem sabem que existe", afirma o curador Diego Matos. "O desafio era como traduzir visualmente esse material, dos textos aos gráficos, e aumentar o alcance de informações do projeto, que hoje estão restritas a pesquisadores."
Uma das peças exibidas é um painel listando todas as modalidades de tortura citadas por testemunhas e presos nos processos do STM e incluídas no livro. Inúmeras pessoas que participaram do BNM, entre eles os coordenadores do projeto, Luiz Eduardo Greenhalgh e Vannuchi, além de Frei Betto, Kotscho, Anivaldo Padilha e Petrônio Pereira de Souza, contribuem com testemunhos em vídeo.
Algumas pessoas-chave que já morreram tiveram depoimentos anteriores ou relatos incluídos. É o caso de Eny Raimundo Moreira, advogada do escritório Sobral Pinto que teve a ideia de usar os processos do STM para revelar as torturas.
Além dos documentos do BNM, Matos também agregou obras de artistas e ex-presos políticos como Artur Scavone, Rita Sipahi, Manoel Cyrillo, Sérgio Sister, Alípio Freire, Carmela Gross, Rubens Gerchman e Claudio Tozzi.
Já a mostra sobre a ESMA apresenta a história do edifício onde ficavam os prisioneiros na ditadura argentina, o processo de transformar o local em um monumento histórico nacional, em prova para processos judiciais e, depois, patrimônio da Unesco.
A diferença entre os dois processos de abertura fica ainda mais clara na comparação entre os prédios que abrigam os dois museus. O Memorial fica no prédio do antigo Departamento de Ordem Política e Social, o Dops, a polícia política que funcionava como um centro de repressão.
O prédio do Dops foi reformado em 2002, com as celas descaracterizadas —foram pintadas, com a perda de inscritos de prisioneiros nas paredes, e tiveram o piso trocado. Outras celas já haviam sido demolidas há 25 anos. Na ESMA, os militares também fizeram mudanças para descaracterizar o local, mas as "reformas" foram mapeadas a tempo e são "denunciadas" no museu.
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