Descrição de chapéu Reconstrução Gaúcha

Famílias voltam para casa após enchentes no RS sob temor de nova tragédia

Medo cresce sempre que começa a chover, mas falta de dinheiro e apego às raízes dificultam mudança para local seguro

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A imagem mostra duas pessoas em pé dentro de uma casa com o telhado danificado. O teto está parcialmente desmoronado, com vigas de madeira expostas e uma parte do telhado faltando. As paredes da casa são de cor clara e há uma janela visível. O chão está coberto por pedras e detritos. A luz do sol ilumina a cena, criando um contraste entre as sombras e as áreas iluminadas.

O casal Alexandre Luiz Botassoli e Valquíria Regina Bazanella observa a área de trás de sua casa em Roca Sales (RS); o imóvel foi destruído pelas enchentes e está sendo reconstruído por eles - Pedro Ladeira / Folhapress

Roca Sales (RS), São Leopoldo (RS) e Cruzeiro do Sul (RS)

Agachada no pátio de sua casa, no município de Roca Sales (a 143 km de Porto Alegre), a funcionária pública Valquíria Regina Bazanella, 56, usa a água da mangueira para tirar o barro ainda impregnado em uma mala que ficou na enchente.

"Minha cunhada achou que eu ia pôr fora, mas vou usar pelo menos para guardar roupa. A gente fica até com medo de comprar coisa e ter que sair correndo de novo", diz. "Estamos só rezando para não vir outra, porque nem terminamos ainda [de limpar]."

Pela segunda vez em menos de um ano, ela e o marido, o taxista Alexandre Luiz Botassoli, 60, tentam se reerguer. A primeira enchente, em setembro de 2023, levou tudo que o casal adquiriu em quase 40 anos. Quando conseguiram reequipar o lar, a água carregou tudo de novo, em maio de 2024. "Foram duas pancadas de derrubar", define ele.

A imagem mostra um homem e uma mulher sentados em um ambiente com o teto danificado. O homem usa uma jaqueta marrom e uma camiseta azul, enquanto a mulher está vestida com uma blusa vermelha e óculos. Ao fundo, há cadeiras empilhadas e paredes de tijolos expostos, indicando um espaço que precisa de reparos.
O casal Aldo Neves e Leonise de Oliveira no que restou de sua casa, no bairro Passo de Estrela, em Cruzeiro do Sul (RS); eles querem voltar a morar no local. - Pedro Ladeira/Folhapress

A casa dos dois era a segunda de três moradias erguidas no mesmo terreno, de costas para o arroio Sete de Setembro, no centro da cidade. Nas enxurradas, ele virou rota de escape do rio Taquari. A água veio com tanta força que não fez a curva natural do rio e passou reto, atropelando casas, prédios e ruas.

A terceira casa, que pertencia à irmã de Valquíria, foi levada e não existe mais. No lugar, a cratera deixada pela correnteza é um lembrete incômodo de que ali não é um lugar seguro para morar. É a opção que restou.

Depois de viverem com parentes por quatro meses, os dois decidiram retornar à casa de onde foram forçados a sair para sobreviver. Além do apego às raízes, falta dinheiro para recomeçar longe do rio. Esperar pelas iniciativas do poder público para realocar as famílias é incerto, já que as ações demoram a sair do papel.

"A gente não desiste. Vamos para onde? Minha colega falou 'compra em outro lugar', eu falei 'com folha de laranjeira?'", afirma Valquíria.

O bom humor que o casal tenta manter para sobreviver à tragédia não anula a preocupação com o risco de uma nova enchente —um fantasma que fez muitos moradores saírem da cidade e ainda amedronta quem ficou.

"A gente tem medo. Quando começa a chover, fico aflita", diz ela.

Ainda está vivo na memória dos dois o filme de terror experimentado em setembro do ano passado, quando ambos passaram 15 horas alojados com os filhos no forro da casa da frente, escutando pedidos de socorro sem poder ajudar. Na época, Roca Sales registrou 14 óbitos —alguns deles, vizinhos do casal. Em maio, mais 14 pessoas morreram, e ainda há duas pessoas desaparecidas.

"Perigoso, é [voltar a morar no local]. Mas nossos recursos foram gastos para reformar a primeira vez. Agora, tem que ficar aqui para tentar se restabelecer", diz Botassoli.

Em São Leopoldo (a 27 km de Porto Alegre), o aposentado Antônio Wisniewski, 64, também não conseguiu se recuperar totalmente dos estragos —tanto materiais quanto psicológicos. Sua casa ficou debaixo d'água por 25 dias.

"A gente muda muito. O sistema nervoso parece que altera. Tu pode achar que não, mas é uma luta, né? Não é fácil, de um dia para o outro, perder tudo. Mesmo que não tivesse lá grandes coisas, mas era teu", afirma. A sensação, segundo ele, é de ter envelhecido anos em um intervalo de meses.

"Quando começa a chover, daí tu já começa a tremer, né? Já fica pensando, será que não vai vir de novo?", diz ele falando baixinho, como quem tem medo de atrair uma nova tragédia apenas com a voz.

A imagem mostra um casal em uma sala de estar. A mulher, vestindo uma blusa rosa e uma saia, está sentada em um sofá com estampa floral, segurando um cachorro pequeno. O homem, usando uma camiseta rosa claro e calças, está em pé ao lado dela. Ao fundo, há uma cozinha visível, com móveis e utensílios. O ambiente é iluminado e possui paredes de cor clara.
O casal Antônio Wisniewski e Rosângela da Silva Wisniewski, moradores de São Leopoldo, na grande Porto Alegre; a casa deles fixou debaixo d'água por 25 dias - Pedro Ladeira/Folhapress

Em maio, a Folha acompanhou quando Wisniewski nem esperou a água baixar totalmente para verificar a situação da casa, que tinha eletrodomésticos tombados, móveis carregados de um cômodo para outro e vestígios de lama até o teto. Naquele dia, embora já impressionado com a extensão dos danos, ele ainda estava longe de conseguir mensurar o real prejuízo.

"Tinha horas que dava vontade de virar as costas e não voltar mais", lembra.

A intenção do casal era alugar uma casa em outra região enquanto reformava a sua própria, mas a disparada dos preços fez com que desistissem. Wisniewski precisou então convencer a esposa, que resistia em voltar de imediato para o mesmo local.

Com os R$ 5.100 do Auxílio Reconstrução, do governo federal, e mais um recurso guardado na poupança, a família conseguiu trocar uma porta, duas janelas, pintar as paredes e colocar piso novo. Geladeira e microondas foram recuperados. Os gastos já passam dos R$ 10 mil e, mesmo assim, faltou dinheiro para repor a mobília.

"Não compramos nada, porque ou tu compra e não reforma, ou tu reforma e não compra", afirma. O aposentado diz não ter recebido os auxílios financeiros pagos pelo governo do Rio Grande do Sul (um de R$ 2.000 a partir de doações e outro de R$ 2.500 do chamado Volta por Cima), por causa dos critérios de renda.

Em Cruzeiro do Sul (a 123 km de Porto Alegre), a aposentada Leonise Teresinha de Oliveira, 67, diz se preocupar quando chove forte. Mesmo assim, não vê a hora de conseguir voltar para sua casa no bairro Passo de Estrela, reduzido a escombros pela enchente de maio.

O imóvel foi um dos únicos a ficarem de pé após o rio Taquari atingir o local de forma avassaladora. Moradores estimam que mais de 600 casas ficaram totalmente destruídas. Os ares de bairro fantasma, porém, não parecem ser suficientes para abalar a determinação dela e de seu companheiro, Aldo Neves, 50.

"Para ser bem franca, o que eu queria mesmo era reformar e voltar para cá", diz. "Para mim, o meu lugar é aqui."

As cadeiras ainda penduradas nas vigas do telhado estão entre o pouco que restou da casa. Móveis, eletrodomésticos e utensílios foram destruídos pela água, parte do telhado, arrancada, e o portão de ferro ficou caído no chão. Mesmo assim, a aposentada considera que teve sorte porque as paredes resistiram.

A falta de dinheiro para continuar pagando aluguel é um fator determinante para que o casal queira retornar o quanto antes. "Se nós ganharmos o terreno, não vamos ter dinheiro para construir casa. Não adianta. Aqui é isso aqui, mas pelo menos nós vamos ter, né?", afirma Neves.

Para o futuro, o plano do casal é erguer um segundo piso para tentar proteger os pertences em caso de nova enchente.

"Eu estou confiante. Seja o que Deus quiser. A hora que nós voltarmos, se vier enchente, carregamos tudo e vamos lá para a casa da filha. Voltemos de novo, limpemos de novo. O que nós vamos fazer?", diz Leonise.

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