Estados e municípios, pressionados por entidades civis, organizações sociais e pela própria legislação, começaram a adotar orçamentos sensíveis a gênero e raça na tentativa de melhorar índices socioeconômicos da população e para avaliar se recursos aplicados em políticas públicas para esses grupos têm reduzido desigualdades.
Esse modelo não traz apenas investimentos em ações específicas para minorias, mas também um olhar sobre como políticas públicas amplas, de educação a segurança, impactam grupos mais vulneráveis de maneiras distintas, de acordo com Pedro Marin, coordenador de planejamento e orçamento público da Fundação Tide Setubal.
"Vamos olhar para o conjunto das políticas públicas, ver de que forma elas estão incorporando o combate às desigualdades de gênero e raça, e trazer isso para dentro do orçamento", diz.
Acre e Rio de Janeiro já aprovaram leis para construir um orçamento sensível ao gênero, e ambos estão produzindo um relatório para avaliar as políticas públicas para esse grupo. Na lei orçamentária deste ano, o estado do Rio destinou R$ 155 milhões ao Orçamento Mulher.
Um dos estados mais avançados no tema é o Ceará, segundo Pedro Marin. O PPA (plano plurianual) cearense de 2024-2027 conta com temas transversais e passará a levantar dados sobre como o estado tem atendido mulheres, pessoas negras e população LGBTQIA+, entre outros.
Mulheres e pessoas negras são as que mais utilizam serviços públicos como saúde e educação. A população preta e parda compõe a maior parte, quase 60%, dos alunos matriculados em escolas públicas, de acordo com dados do Censo Escolar de 2023.
Além disso, mulheres e negros são maioria (70% e 61%, respectivamente) dos usuários do SUS, segundo dados da Pesquisa Nacional de Saúde, cuja última edição foi lançada em 2019.
No Ceará, é a primeira vez que um plano plurianual vai avaliar indicadores sobre a população mais vulnerável. O governo vai destinar os recursos a partir dos problemas identificados, para construir políticas orientadas a dados e evidências.
Antes, o estado não tinha indicadores específicos para avaliar como as políticas estavam sendo entregues para a população mais vulnerável. No geral, as informações eram tiradas de relatórios nacionais, que não refletem por completo a realidade cearense.
Um exemplo prático dos efeitos da nova política será na área de combate à violência de gênero, de acordo com o PPA. O governo vai implantar um observatório para mapear agressões contra mulheres no estado, com informações sobre regiões onde há maior número de casos.
Com os dados, a gestão poderá direcionar para aquele local mais unidades móveis de atendimento à mulheres que sofreram violência e mais Casas da Mulher Cearense, que oferecem assistência psicossocial e jurídica às vítimas.
"O que interessa mesmo é a ação para reduzir essa violência independente da casa, porque a gente não vai poder construir um imóvel em cada unidade do estado. Mas o indicador de violência contra a mulher em determinado local vai chamar mais investimento para aquela unidade", afirma Sandra Machado, secretária do Planejamento e Gestão do estado.
Ainda no combate à violência, o Ceará vai monitorar crimes letais e intencionais contra a população negra, com a implementação do observatório pela equidade racial. Entre as ações, o plano plurianual deste triênio já prevê a capacitação de agentes de segurança sobre a violência contra pessoas vulneráveis, incluindo pretos e pardos.
No Acre, as mudanças partiram de dados de violência contra a mulher. O estado é um dos que têm maior índice de feminicídios, com taxa de 2,4 mortes por 100 mil habitantes, de acordo com levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
A lei de orçamento sensível ao gênero foi aprovada no Acre no ano passado. Agora, a gestão está desenvolvendo um relatório sobre, a partir desses dados, para avaliar quais áreas precisam de mais investimento, com apoio da Fundação Tide Setubal.
"Das políticas públicas hoje, vamos enxergar aquilo que está sendo efetivamente entregue à população, direcionado a reduzir lacunas de gênero, e aquilo que não está", afirma Denyscley Bandeira, gestor de políticas públicas no estado.
Segundo Bandeira, uma possibilidade seria construir novas creches, por exemplo, para permitir que mais mulheres tenham acesso à educação e ao mercado de trabalho.
O estado, que tem 78% da população preta, parda ou indígena, segundo o Censo 2022, também pretende expandir a política para demarcadores de raça, de acordo com o gestor. Isso deve ocorrer após concluírem a implementação do orçamento de gênero.
No governo federal, a discussão sobre orçamento sensível a gênero está em pauta desde 2004, com a formação da primeira secretaria especial de políticas para a mulheres, no primeiro mandato de Lula, segundo Tathiane Piscitelli, professora de direito da FGV.
O tema avançou quando o Congresso aprovou a obrigatoriedade de elaboração do Orçamento Mulher na LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias) de 2022. No entanto, o relatório referente àquele ano, publicado pelo Ministério do Planejamento no início de 2023, revelou a falta de gastos específicos para reduzir a desigualdade de gênero.
Assim como gênero, houve inclusão de raça em planos plurianuais, mas sem acompanhamento do orçamento.
De acordo com Piscitelli, o novo PPA do governo federal traz uma estrutura mais adequada para identificar despesas com políticas voltadas para mulheres e pessoas negras.
"O plano tenta estabelecer marcadores específicos que vão deixar mais transparente o estado da política pública. Hoje, há um cenário bastante favorável para que seja implementada efetivamente uma agenda transversal."
Atuando para que gestões públicas insiram a alocação de recursos voltada a grupos mais vulneráveis, a Fundação Tide Setubal é uma das realizadoras do prêmio Orçamento Público, Garantia de Direitos e Combate às Desigualdades. O concurso, que neste ano teve a terceira edição, dá até R$ 20 mil para autores de manuscritos acadêmicos inéditos relacionados a temas como orçamento público, sistema tributário, entre outros.
Na primeira edição, foram oito artigos selecionados, sobre temas como a redução do orçamento ambiental para a Amazônia, a atuação do Ministério Público do Trabalho na erradicação do trabalho infantil e uma análise da dinâmica orçamentária do Fundo de Amparo ao Trabalhador.
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