Thomas L. Friedman

Editorialista de política internacional do New York Times desde 1995, foi ganhador do prêmio Pulitzer em três oportunidades

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Biden pode ter unido o Ocidente, mas teme não conseguir reunificar os EUA

Possibilidade de republicanos colocarem democracia americana em risco em 2024 me apavora

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The New York Times | The New York Times

O presidente dos EUA, Joe Biden, me convidou para almoçar na Casa Branca. Mas foi tudo "off the record", de modo que não posso revelar nada do que ele disse.

Posso, porém, lhe contar duas coisas: o que comi e como me senti depois. Comi um sanduíche de salada de atum com tomate no pão de trigo integral, uma tigela de frutas mistas e, de sobremesa, um milk shake de chocolate tão bom que deveria ser ilegal.

O que senti depois foi o seguinte: vocês todos, idiotas da Fox que dizem que Biden não consegue juntar duas frases coerentes, fiquem sabendo que o presidente acaba de unir a Otan, a Europa e toda a aliança ocidental —do Canadá à Finlândia e chegando até o Japão— para ajudar a Ucrânia a proteger sua democracia nascente contra a investida fascista de Vladimir Putin.

Biden está à frente das bandeiras dos EUA e do Japão; ele veste terno e grava e está próximo de microfones
O presidente americano, Joe Biden, durante entrevista em Tóquio, no Japão - Saul Loeb - 23.mai.22/AFP

Assim, deu condições a Kiev de impor perdas importantes ao Exército russo, graças a um deslocamento rápido de treinadores dos EUA e da Otan e de transferências maciças de armas de precisão. Nem um único soldado americano perdeu a vida.

É o melhor exemplo de gestão e consolidação de alianças visto desde outro presidente que eu cobri e admirava –e sobre o qual também havia quem dissesse que ele era incapaz de juntar duas sentenças: George H.W. Bush. Bush pai ajudou a administrar a queda da União Soviética e a reunificação da Alemanha sem disparar um tiro e sem a perda de uma única vida americana.

Infelizmente, porém, deixei nosso almoço de estômago cheio, mas com o coração pesado. Biden não o disse explicitamente, mas não foi necessário. Pude ouvir nas entrelinhas: mesmo tendo reunificado o Ocidente, ele receia que talvez não consiga reunificar os EUA.

Essa é claramente sua prioridade, mais que qualquer medida contida no programa Build Back Better, que prevê reformas sociais e ambientais. E Biden sabe que é por isso que foi eleito: porque uma maioria temia que o país estivesse se desfazendo e achou que esse velho cavalo de guerra chamado Biden, com seus instintos bipartidários, seria a melhor pessoa para uma reaproximação.

Foi essa a razão por que ele decidiu se candidatar em primeiro lugar, porque sabe que, sem alguma unidade fundamental de propósito e disposição de fazer concessões, nada mais é possível.

Mas diante de cada dia que passa, cada massacre, cada mensagem racista disfarçada, cada iniciativa de "desfinanciar a polícia", cada decisão da Suprema Corte que racha a nação, cada orador expulso de um campus, cada alegação falsa de fraude eleitoral, eu questiono se Biden poderá de fato nos reaproximar.

Pergunto-me se já não é tarde demais.

Receio que dentro de muito breve vamos quebrar algo muito valioso. E, uma vez que o tivermos quebrado, terá desaparecido. E talvez nunca mais consigamos recuperá-lo.

Estou falando de nossa capacidade de transferir o poder de modo pacífico e legítimo, capacidade que demonstramos desde a fundação deste país. Isso é a pedra angular da democracia americana. Se a quebramos, nenhuma de nossas instituições continuará a funcionar por muito tempo e seremos mergulhados no caos político e financeiro.

Agora mesmo estamos olhando diretamente para esse abismo porque uma coisa é eleger Donald Trump e candidatos pró-Trump que querem limitar a imigração, proibir o aborto, reduzir os impostos corporativos, extrair mais óleo, limitar a educação sexual nas escolas e liberar os cidadãos da obrigação de usarem máscaras numa pandemia. Essas são políticas públicas em relação às quais é possível haver diferenças de opinião legítimas, que são a matéria que compõe a política.

Mas as primárias recentes e as investigações em torno da insurreição de 6 de Janeiro no Capitólio estão revelando um movimento de Trump e seus partidários que não é movido por nenhum conjunto coerente de políticas públicas, e sim por uma mentira gigantesca —a de que Biden não conquistou a maioria dos votos no Colégio Eleitoral de maneira livre e justa e que, portanto, é um presidente ilegítimo.

Assim, a prioridade é instalar no poder candidatos cuja fidelidade principal seja a Trump e à sua grande mentira –não à Constituição. E eles estão mais do que dando a entender que, no caso de uma eleição apertada em 2024 —ou nem tão apertadas assim—, estarão dispostos a dar as costas às regras e declarar a vitória de Trump ou outros republicanos que não tivessem recebido o número maior de votos. Eles não estão cochichando essa plataforma, estão baseando suas campanhas nela.

Assistimos a um movimento nacional que nos diz, publicamente e em alto e bom som: "VAMOS OUSAR FAZER ISSO". E isso me apavora porque já vi isso acontecer antes.

Minha experiência formativa no jornalismo foi assistir a políticos libaneses ousando fazer isso no final dos anos 1970 e mergulhando sua democracia frágil numa guerra civil prolongada. Portanto, não venha me dizer que isso não poderia acontecer aqui. Não quando gente como o senador estadual da Pensilvânia Doug Mastriano —negacionista eleitoral que marchou até o Capitólio em janeiro de 2021— acaba de vencer a primária, tornando-se o candidato republicano a governador.

Não tenha dúvidas: essas pessoas jamais farão o que fez Al Gore em 2000 —aceitar uma decisão dos tribunais numa eleição extremamente apertada e reconhecer seu adversário como presidente legítimo. E não farão o que fizeram após 2020 os republicanos com princípios: aceitar os votos conforme foram tabulados, aceitar ordens judiciais que confirmaram que não houve irregularidades significativas e permitir que Biden assumisse o poder legitimamente.

É de virar o estômago ver o número de trumpistas baseando campanhas na afirmação da grande mentira de Trump —sabemos que eles sabem que nós sabemos que eles sabem que eles não acreditam em uma só palavra do que dizem. Dr. Oz, J.D. Vance e tantos outros. Mesmo assim, estão dispostos a pegar carona no bonde de Trump para chegar ao poder e o fazem sem corar.

Tudo isso me leva de volta ao almoço com Biden. É evidente que ele está preocupado porque construímos uma aliança global para apoiar a Ucrânia e defender princípios americanos fundamentais no palco internacional, enquanto em casa o Partido Republicano está abandonando os princípios mais prezados.

É por isso que tantos líderes aliados vêm dizendo a Biden reservadamente, enquanto ele e sua equipe reanimaram a aliança ocidental a partir dos pedaços rachados em que Trump a deixou: "Graças a Deus, os EUA estão de volta". Mas então indagam: "Por quanto tempo?". Biden não tem como responder a essa pergunta, porque nós não temos como responder a ela.

Ele não é isento de culpa nesse dilema, e o Partido Democrata tampouco —especialmente sua ala mais à esquerda. Sob pressão para injetar ânimo novo na economia e confrontado com demandas grandes da ultraesquerda, Biden passou tempo demais fazendo gastos expansivos.

E os democratas da Câmara mancharam uma das mais importantes conquistas bipartidárias de Biden —um projeto de lei de infraestrutura gigante—, fazendo-o refém de outras demandas por gastos excessivos. Além disso, a ultraesquerda prejudicou Biden e todos os candidatos democratas com propostas radicais como "desfinanciar a polícia", ideia insana que, se implementada, teria prejudicado sobretudo a base negra e hispânica da legenda.

Para derrotar o trumpismo só precisamos que 10%, digamos, dos republicanos abandonem seu partido e se aliem a um Biden de centro-esquerda, que é o que ele foi eleito para ser e o que ainda é no íntimo. Mas, se a percepção geral for que o futuro do Partido Democrata será definido pela ultraesquerda, talvez não consigamos a adesão de nem sequer 1% dos republicanos.

Foi por isso que saí do meu almoço com o presidente de estômago cheio, mas coração pesado.

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