Deng Xiaoping, pai da China potência emergida após a década de 1970, afirmou que a cor do gato não importa, desde que ele pegue camundongos. Referia-se a concessões capitalistas numa economia planificada que se abria para a iniciativa privada, mas o ditado poderia aplicar-se à sua medicina tradicional.

A ciência da saúde ocidental despreza outras modalidades de cura que não correspondam a seu ideal de medicina baseada em evidências. Desse ângulo, só merecem reconhecimento tratamentos que tenham passado por testes clínicos duplo-cego randomizados controlados por placebo, o padrão-ouro.

Não é o caso de negar que seja um bom guia, sobretudo quando se trata de escolher em que terapias investir verbas públicas. Não faz muito sentido o SUS admitir homeopatia, por exemplo, cujo fundamento empírico é escasso, para dizer o mínimo.

Só que a homeopatia é, no Brasil, especialidade médica reconhecida pelo Conselho Federal de Medicina desde 1980. O mesmo CFM que defendeu a cloroquina sem comprovação, em nome da autonomia do médico, e não faz muito tentou banir o uso de canabinoides da maior parte das aplicações, apesar de evidências em favor.

Deng deve estar a revirar-se na tumba. Deturparam sua sabedoria para concluir que não importa se o gato pega o roedor, mas sim se ele é comunista ou patriota.

Pois bem, uma reportagem do jornal The New York Times sobre a estação espacial Tiangong, o "palácio celestial" da China, menciona que tratamentos à base de ervas da medicina tradicional foram levados a bordo da estação. Mais que isso, as ervas são usadas também para banhos nos taikonautas quando voltam à Terra.

Quem concluir daí que a China é um país irracional, anticientífico, negacionista etc., portanto sem condições de se desenvolver economicamente, cairá em óbvia contradição. Os caras puseram uma estação espacial lá em cima, caramba.

Com sua medicina atrasada, coisa de curandeiros na visão ocidental, os chineses já gozam da mesma expectativa de vida dos americanos. Chegaram lá mesmo com cerca de um quarto da renda per capita nos EUA.

Trata-se de uma ótica tão enviesada quanto prognosticar que a potência asiática não conseguiria desenvolvimento econômico e social sem liberdades políticas. Ciência e tecnologia, nesse raciocínio, dependeriam da livre circulação de ideias e opiniões, e a ditadura asiática cedo ou tarde acabaria engendrando limites para a própria economia e a redução da pobreza que a legitimam.

A cada ano, analistas deste lado do globo queimam a língua com tais previsões. A China nada de braçada em muitas áreas. Nosso instrumental analítico não dá conta de entender o que acontece lá —ou então nossos pressupostos não são tão universais quanto pensamos.

Não se trata de relativismo. Não troco a medicina ocidental pela chinesa. Tampouco fecho os olhos para estudos que apontam haver evidências de alta qualidade só para 1 a 4 em 10 tratamentos consagrados no Ocidente.

Liberdades e direitos humanos são um bem universal, por mais falação que se deite sobre o confucionismo pôr interesses coletivos acima dos individuais. Para os presos políticos e os mortos da Praça da Paz Celestial, a doutrina de um filósofo de 25 séculos atrás não passa de um verniz malcheiroso para o despotismo.

A China é um país governado por engenheiros, e supor que eles aceitem ervas na Tiangong só por crendice não explica nada. Pensar assim diz mais sobre nossas limitações do que sobre as deles. Medicina, cura e bem-estar envolvem mais coisas do que os efeitos que se possam medir com testes clínicos duplo-cegos.