Às vésperas de um dos julgamentos mais conturbados de sua história, o Supremo Tribunal Federal recebeu um recado de forma sibilina: se concedesse o habeas corpus, quem posteriormente garantiria a liberdade dos ministros do STF? A ameaça foi feita em 1892 pelo então presidente da República, o marechal Floriano Peixoto.
A declaração do comandante do Exército, general Villas Bôas, no Twitter, na véspera do julgamento do HC do ex-presidente Lula, remete o país para o início da Primeira República. Na época, os militares viam o Judiciário como um enfeite no novo regime. Pressionavam a corte a ler a Constituição como eles, os militares, queriam.
Episódios de pressão de militares sobre o Supremo se acumulam na história brasileira. Há 50 anos, o governo militar baixou o Ato Institucional nº 5 (AI-5) e criou as condições para cassar ministros do STF com os quais não concordava. Com a saída de cinco ministros da corte, inclusive do presidente Gonçalves de Oliveira, era preciso eleger um novo ministro para comandar o STF. Desde sua instalação em 1891, o tribunal escolhia seus presidentes seguindo a ordem de antiguidade. Em 1969, portanto, seria a vez de Adalício Nogueira, juiz de carreira indicado para o STF pela ditadura. Mas o que os militares achariam dessa escolha? O nome de Nogueira seria visto com bons olhos ou como provocação? Teria trânsito entre os militares?
O roteiro completo dessa história é contado em detalhes no livro "Tanques e Togas – O STF e a Ditadura Militar", recém lançado pela Companhia das Letras. Os ministros votaram em Adalício Nogueira, mantendo a tradição, mas, ante às ameaças dos militares ao tribunal, exigiram que ele renunciasse ao cargo em seguida. Com isso, passou a comandar o tribunal o ministro Oswaldo Trigueiro, político experiente e com bom trânsito entre as autoridades do Executivo.
Em outro episódio, presidia o Supremo o ministro Ribeiro da Costa. O tribunal concedeu um habeas corpus para o governador cassado de Pernambuco, Miguel Arraes. Descontentes com o resultado do julgamento, os militares decidiram cumprir apenas simbolicamente a decisão. Soltaram Arraes, para logo prendê-lo de novo com base em outro inquérito policial militar. Ribeiro da Costa viu a autoridade do Supremo ameaçada e iniciou um embate com os militares por correspondência, numa crise que só foi resolvida com a intervenção do presidente da República, Castello Branco.
O mesmo Ribeiro da Costa veio a participar de novo embate, desta vez reagindo à proposta do governo de enviar ao Congresso uma proposta de aumentar o número de ministros do STF. Em entrevista ao jornal "Correio da Manhã", Ribeiro da Costa afirmou: “Já é tempo de que os militares se compenetrem de que nos regimes democráticos não lhes cabe o papel de mentores da nação”. Costa e Silva, ministro da Guerra, reagiu: “Agora fomos mandados pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, fomos mandados recolher-nos aos quartéis. Mas por que saímos dos quartéis? Saímos dos quartéis a pedido do povo, a pedido da sociedade que se via ameaçada e só voltaremos para os quartéis quando o povo assim o determinar, mas permaneceremos de armas perfiladas para evitar que volte a este País a subversão, a corrupção, a indisciplina e o desprestígio internacional”. O tribunal se solidarizou com Ribeiro da Costa, ampliando seu mandato de presidente da corte.
Décadas depois, o comandante do Exército, general Villas Bôas, diz agora “compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à Democracia”. Acrescentou que o Exército “se mantém atento às suas missões institucionais”. O contexto é diferente, mas o discurso é semelhante às palavras de Costa e Silva. Tomando essa posição pública, o que esperava o comandante do Exército senão mandar um recado ao STF? E o que defendia senão a manutenção da possibilidade da execução da pena após o julgamento em segunda instância?
Mas a Constituição mudou, o país é outro, os militares de hoje pensam e agem diferentemente. Vivemos numa democracia. O Judiciário, sobretudo o Supremo, não é um poder desidratado como era na década de 60. A presidente Cármen Lúcia deixou expresso, no início da sessão, que não são os militares, mas o Supremo, o guardião da Constituição.
“O Supremo Tribunal Federal do Brasil [é] responsável pela guarda da Constituição e que atua no seu cumprimento de maneira independente e soberana. Nesta sessão, como em todas as outras em que cumprimos o nosso dever, este colegiado cumpre as suas obrigações constitucionais de decidir em última instância causas de importância maior para o Brasil e para os cidadãos brasileiros”, afirmou a ministra em resposta indireta a Villas Bôas.
Como disse há mais de 50 anos o ministro Ribeiro da Costa, “a atividade civil pertence aos civis, a militar a estes que, sob sagrado compromisso, juraram fidelidade à disciplina, às leis e à Constituição”.
Na ditadura, os ministros do Supremo tinham poucos meios de reação. Agora, o cenário é outro. Não precisam temer pelos seus cargos. Têm autoridade no cenário político. São ouvidos pela imprensa. Possuem, enfim, os meios para lidar com ameaças –seja para reagir, seja simplesmente para ignorá-las.
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