João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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João Pereira Coutinho

O Natal e o bem-estar dos animais

Se os animais tiverem uma vida prazerosa, por que motivo não posso ter uma também, comendo-os?

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O Natal se aproxima. Comedores do mundo inteiro, entre os quais me incluo, lamentam em surdina que as casas modernas não tenham um "vomitorium". Relembro: é aquela sala que os romanos reservavam para vomitar e comer, comer e vomitar, nas palavras de Sêneca a Lucílio.

Fato: essa sala nunca existiu na Roma antiga e o "vomitorium" era outra coisa (passagens ou saídas em anfiteatros, auditórios etc.). Mas, como conceito, ele assalta a imaginação dos comedores. Acontece quando, inchados como balões da Capadócia e algures na consoada da noite de Natal, eles olham para mais um prato de doces como Dante olhava para Beatriz, sabendo que ela não seria mais dele.

É uma imagem decadente, essa, da qual não me orgulho. Mas será eticamente condenável, sobretudo quando há um peru na travessa —dourado, estaladiço— esperando pelo nosso garfo?

O filósofo Peter Singer, no recente ensaio "Consider the Turkey", diz que sim. Há mais de 50 anos que Singer defende o bem-estar animal com argumentos utilitaristas de peso.

Se a ideia, desde Jeremy Bentham, é promover "a maior felicidade para o maior número", então é preciso incluir nesse número todas as criaturas dotadas de senciência. Nós, humanos, mas também os animais com certa complexidade neuronal, somos capazes de experimentar emoções e sensações, como o prazer e a dor.

Como justificar o sofrimento que infligimos aos animais quando não o toleramos em seres humanos?

Aliás, sofrimento é palavra demasiado branda, explica o autor, descrevendo com minúcia a longa tortura a que 210 milhões de perus são submetidos todos os anos pela indústria norte-americana. Não reproduzo os pormenores porque a Folha é um jornal de família.

Mas, abreviando, tudo começa com a inseminação artificial (há "masturbadores" de perus, acredite ou não, que depois inseminam as fêmeas; são trabalhadores que, em média, duram apenas um ano na função).

Seguem-se meses em condições abjetas, para a engorda dos bichos, onde a violência e até o canibalismo entre as aves são comuns em espaços exíguos.

Um peru luta desesperado para se livrar de intestinos humanos que o envolvem como uma jibóia, prestes a devorá-lo
Angelo Abu/Folhapress

Finalmente, o transporte até o matadouro, onde os perus são degolados sem estarem suficientemente entorpecidos, como a lei exige.

É impossível ler essas descrições e não sentir um nó no ventre. Por mim falo. Conheço os argumentos clássicos dos opositores dos direitos dos animais. Costumam ser de dois tipos: teológicos ou racionalistas.

Para os primeiros, se os humanos foram criados à imagem de Deus, isso significa que a restante criação não habita o mesmo patamar moral. Donde a criação existe para servir os seres humanos.

Os racionalistas optam por outro caminho, com iguais resultados: só os humanos são dotados de razão (no sentido mais elevado e sofisticado do termo). Isso lhes confere uma superioridade no trato com as outras espécies.

Estou perto dos racionalistas, confesso: não acredito que os animais tenham direitos. Mas acredito, sim, que os seres humanos têm deveres para com eles. Evitar extremos de sofrimento é o mais básico, motivo pelo qual abomino touradas e outros esportes cruéis.

Como abomino a desumanidade da pecuária industrializada, que, só nos Estados Unidos, usa e abusa de 5 bilhões de aves (e 100 milhões de mamíferos) todos os anos.

Claro que, lendo o argumento de Peter Singer, há uma pergunta que não quer calar: se os perus fossem tratados condignamente, isso tornaria o seu consumo eticamente sustentável?

Peter Singer não responde diretamente à pergunta. Apenas admite essa hipótese como mal menor, embora o bem maior seja uma dieta que dispensasse a carne. Quando existem alternativas, que desculpa temos nós para continuar a consumir animais?

Aliás, para reforçar a sua posição, Singer chega ao limite de terminar o ensaio com algumas receitas festivas capazes de substituir nossa dependência da carne. Seitan, tofu, cogumelos —os suspeitos do costume.

Leio as receitas, imagino o meu Natal com elas —e sinto uma vontade estranha de me suicidar.

E então percebo que o único argumento que me resta para justificar a dieta é o prazer. O bom e velho prazer. Não é um argumento sofisticado?

Depende. Através do prazer podemos chegar a um princípio de reciprocidade como forma válida de respeitar os animais: se eles tiverem uma vida prazerosa, por que motivo não posso ter uma também, comendo-os?

Não é isso "a maior felicidade para o maior número"?

Neste ano vou comprar o meu peru de quem tratou bem do animal.

E depois, na noite da consoada, brindarei ao meu amigo com respeito e gratidão.

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