O crime compensa? Chega uma altura em que um pai é confrontado com essa pergunta pela descendência. As respostas podem ser teológicas, criminais ou virtuosas.
O crime não compensa porque Deus existe.
O crime não compensa porque a lei (e a prisão) existe.
O crime não compensa porque a infelicidade de caráter existe.
No primeiro caso, haverá uma retribuição divina para nossos pecados terrenos. No segundo, a retribuição será humana. No terceiro, será interior e inegociável. Não temos como escapar. Melhor levar uma vida justa.
Em teoria, tudo certo. Mas o que acontece se Deus não existe, e se não formos apanhados pela polícia, e se a consciência for uma invenção judaico-cristã?
Pior ainda: como dizer que o crime não compensa quando é possível admirar múltiplos casos em que o crime, de fato, compensou?
A felicidade dos criminosos não desmente todos os preceitos religiosos, punitivos ou éticos?
São perguntas tão velhas como a humanidade: Platão, por exemplo, inaugurou as hostilidades com o célebre mito do Anel de Giges na sua "República", que tanto influenciou J.R.R. Tolkien.
Mas essas questões estão presentes, com uma insistência obsessiva, nos filmes de Woody Allen. O mais recente, "Golpe de Sorte em Paris", que entra em cartaz no dia 19, regressa literalmente ao local do crime.
Essa obsessão começou lá atrás, com "Crimes e Pecados" (1989), o mais terrível e subversivo dos filmes de Woody Allen.
Judah Rosenthal (o inesquecível e saudoso Martin Landau), médico oftalmologista de sucesso, encomenda a morte da amante para se livrar das suas chantagens. A amante é morta. Judah nunca é incriminado. A consciência o persegue durante meses.
Mas, como ele próprio confessa no final, o tempo passa e tudo se dissolve. Culpa? Qual culpa? A vida continua.
Em 1989, essa era a resposta de Woody: Dostoiévski estava errado; Raskolnikov, o personagem agonizante de "Crime e Castigo", era um histérico e por isso se deixou devorar pela sua mente acossada.
Não é fácil aguentar essa visão niilista sobre a condição humana. E Woody Allen, apesar de seu pessimismo, não aguentou: nos dois filmes seguintes que retomaram o mesmo tema, vemos uma inversão da sua visão moral.
Em "Ponto Final – Match Point" (2005), o criminoso é inocentado por um golpe de sorte; mas a amante assassinada ficará pairando na sua consciência assombrada.
Em "O Sonho de Cassandra" (2007), não há ambiguidade alguma: os crimes dos irmãos serão punidos pelos próprios irmãos.
Quando assisti a esse trio de filmes e escrevi sobre eles, a inversão ética de Woody Allen era indesmentível. Como se houvesse no diretor o mesmo desconforto de Ivan Karamazov, outro personagem célebre de Dostoiévski, para quem a inexistência de Deus tudo permitiria.
Woody negava essa premissa: nem tudo é permitido, mesmo na ausência de Deus. Qual seria a evolução a partir daí?
Com "Homem Irracional" (2015) —e atenção ao spoiler do recém-estreado "Golpe de Sorte em Paris"—, os crimes não compensam porque existe uma retribuição cósmica (e cômica) para os criminosos. O primeiro é engolido pelo poço do elevador. O segundo é abatido por caçadores quando tentava caçar a sua presa.
Em 2024, estamos muito longe de Judah, o criminoso aliviado e feliz de "Crimes e Pecados". Nos filmes posteriores, será a contingência a arrastar os viciosos para o abismo. Nunca mais haverá crimes sem castigos.
Mas quem controla essa contingência, sobretudo quando ela parece atuar sempre no mesmo sentido?
Woody Allen é um ateu relutante: ele quer um mundo sem Deus, mas onde a justiça divina ainda se sente.
Ou, citando um crente como Martin Luther King, ele subscreve a ideia de que "o arco do universo moral é longo, mas se inclina em direção à justiça".
Não sei o que isso nos diz sobre a vida psíquica de Woody Allen. Ostracizado por Hollywood depois das acusações nunca provadas de que teria abusado da filha menor, será que ele deseja para os seus inimigos esse "rendez-vous" fatal com o destino?
Mistério. Uma coisa é certa: quando meu filho me perguntar se o crime compensa, terei os filmes de Woody Allen para lhe mostrar.
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