Não há uma segunda chance para causar uma primeira boa impressão. Frase conhecida. Frase pacífica. O problema só acontece quando encurtamos a frase para metade. Não há uma segunda chance. Ponto. Quem aceita a ideia?
Poucos. Descobri isso em discussão animada com amigos que espumavam de raiva contra Janan Ganesh, o brilhante colunista do Financial Times que escreveu sobre "o mito das segundas oportunidades". Dizia ele que existem escolhas e acidentes que acabam determinando grande parte do que somos ou não somos.
O pessoal aceita os acidentes. Que remédio. Não aceita as escolhas.
E, no entanto, Ganesh não perdoava essa vaidade última. Há escolhas nossas que não têm retorno, mesmo que acreditemos que sim. Há escolhas nossas que fecham outras portas, e fecham para sempre.
Para ficarmos no exemplo mais óbvio: os filhos. Como dizia o personagem de Bill Murray em "Encontros e Desencontros", depois de termos filhos, a vida que conhecíamos desaparece. Ganhamos outra, às vezes bem melhor. Mas não é a mesma e nunca mais será.
Não sou tão dogmático como Janan Ganesh. Aceito que, por cada escolha feita, há mil escolhas que abandonamos. Essa é a natureza agônica do pluralismo: não é possível ter tudo. Mas não estou tão certo da irreversibilidade das escolhas. Às vezes é possível voltar atrás.
Meu ponto, porém, é outro: por que motivo as pessoas se indignam tanto com a mera hipótese de não existirem segundas oportunidades?
Arrisco uma hipótese: porque essa negação contradiz a grande promessa da modernidade.
Aconteceu na virada do mundo medieval para o mundo moderno: os seres humanos, até então definidos por papéis sociais fixos, começaram a experimentar uma liberdade nova.
Era possível ser algo mais do que uma peça anônima no grande teatro da humanidade. Pico della Mirandola, o "ideólogo" do Renascimento, resumiu o espírito do novo tempo: criados por Deus, era hora de sermos deuses. E que fazem os deuses?
Criam seus universos próprios, com suas regras, suas possibilidades, suas identidades. Foi a partir do Renascimento, explica a historiadora Tara Isabella Burton no seu "Self-Made", que a experiência da individualidade ganhou raízes profundas que nunca mais nos abandonaram.
Os artistas saíram do anonimato e ganharam nome e fama. Os filósofos imaginaram novas formas de organização social, capazes de respeitar essa individualidade revelada —e os revolucionários agiram em conformidade.
Nasceram os dândis, nas sociedades aristocráticas da Europa –e o "self made man" nos Estados Unidos. Também nasceram os líderes carismáticos, que moldaram as massas a seu bel-prazer e as levaram ao abismo —mas não vamos falar disso.
Falemos do essencial: o direito à criação e à autocriação se converteu em mandamento divino. A ideia de que existem limites intransponíveis a esse mandamento é um arcaísmo ameaçador que indigna o homem e a mulher modernos.
O problema, como lembra Tara Isabella Burton, é que existem dois equívocos na crença das possibilidades individuais ilimitadas. O primeiro é que não somos apenas indivíduos; somos "animais sociais", para citar Aristóteles. Dependemos dos outros. Os outros dependem de nós. E mesmo a identidade que achamos exclusivamente nossa é determinada por eles.
Mas o segundo equívoco é bem pior que o primeiro: se tudo depende da nossa divina autossuficiência, quem teremos para culpar quando os desejos não correspondem à realidade? A sociedade? Mas como, se a recusamos "a priori"?
Os culpados somos nós. Grande parte das infelicidades que reinam nas sociedades afluentes do Ocidente é a consequência inevitável dessa crença na nossa plasticidade infinita. O pessoal comprou a passagem para subir às nuvens, mas o avião nunca chegou a decolar.
Da rigidez absoluta do passado passamos para a fluidez absoluta do presente. Segundas oportunidades? Teremos sempre terceiras, e quartas, e quintas. Teremos sempre Paris, certo?
Não, não teremos, tal como os apaixonados de "Casablanca" nunca tiveram. Esta, aliás, é a lição que fica: por via das dúvidas, saibamos abraçar as primeiras oportunidades como se fossem as últimas.
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