O problema dos profetas é que nunca são escutados no seu tempo. Já escrevi nesta Folha sobre o caso Robert Kagan. Seus ensaios de inícios do século 21 me pareceram hiperbólicos quando os li, 20 anos atrás.
Mas, 20 anos depois, sou obrigado a reconhecer que Kagan viu longe: nossos dramas geopolíticos em 2024 –guerra na Europa, guerra no Oriente Médio, possível guerra no Pacífico– foram antecipados, com certo pedantismo intelectual, por Kagan, que ria sem pudor dos tolinhos do "fim da história".
A pergunta, portanto, é inevitável: será que o mais recente ensaio de Kagan será também profético?
O título é "Rebellion: How Antiliberalism Is Tearing America Apart Again" (rebelião: como o antiliberalismo está destruindo a América novamente) e, sem surpresas, o autor tem recebido pauladas da crítica inteligente. Sempre assim foi.
Eu, com alguma humildade, aproximei-me do seu texto e, apesar de não subscrever todas as teses, reconheço um fundo de validade que arrepia.
Eis a tese de Kagan: os Estados Unidos sempre tiveram duas culturas políticas distintas, como se albergassem dois países dentro do mesmo país.
A mais conhecida é a cultura política liberal que triunfou na Revolução de 1776. Por "liberal" entenda-se: um mecanismo constitucional que procura preservar certos direitos e liberdades individuais contra a "tirania da maioria" e a "tirania de um só". Essa foi a ambição dos Pais Fundadores.
Certo, certíssimo: falamos de direitos e liberdades dos brancos. Os negros não entravam nessa contabilidade.
Mas isso não altera a natureza radical da Revolução Americana: de início, os colonos pretendiam que o rei George 3º respeitasse a própria Constituição britânica, não cobrando impostos nas colônias porque estas não estavam representadas no Parlamento de Londres. É o famoso bordão "no taxation without representation".
Mas, quando isso não foi possível, os revolucionários apelaram para outros direitos –direitos naturais, pertencentes ao homem enquanto homem– e assim forjaram uma nova nação.
Nem todo mundo gostou. E aqui entra a segunda tradição política americana: uma tradição antiliberal que se opõe aos desmandos de Washington, defende direitos tradicionais, não aceita a retórica e a lógica dos direitos naturais e sempre procurou manter as hierarquias sociais e raciais.
Essa tradição, ao longo da história, foi sofrendo derrotas sobre derrotas: assim foi na Guerra Civil, na reconstrução, na Primeira Guerra Mundial, na Grande Depressão, na Segunda Guerra, na luta pelos direitos civis, na Guerra Fria –o liberalismo, em seus múltiplos trajes, foi marcando a pauta política do país.
Ou, como escreve Kagan, a ordem liberal foi-se impondo a uma sociedade pré-liberal e até antiliberal.
Mas essa sociedade nunca desapareceu; ela se manteve dormente, com temporárias erupções de fanatismo ou violência (a Ku Klux Klan, o macarthismo, os populismos de Huey Long ou George Wallace). Até chegar, intacta, aos nossos dias. Até chegar a Donald Trump, o mais bem-sucedido líder dessa facção.
Fato: a ascensão de Trump não se explica apenas pela força dessa corrente subterrânea na cultura política do país –e Robert Kagan falha nessa cegueira primordial.
E também falha na forma displicente como trata o progressismo americano de feição "woke", que pode ser tão antiliberal como muitos seguidores de Trump.
Mas Kagan acerta quando antecipa a dissolução civil (não é o mesmo que guerra civil) que as eleições deste ano podem representar. Que será dos Estados Unidos se Donald Trump vencer o pleito?
Pergunta errada, avisa Kagan. Vencendo ou perdendo, a rebelião é certa. Se Trump perder, as eleições serão vistas como fraudulentas pelos seus seguidores –e, no momento mais sombrio do ensaio, Kagan não exclui que alguns estados possam constituir-se como uma espécie de confederação pró-Trump, em claro desafio ao governo federal.
Nesse caso, que fará Joe Biden? É o mesmo dilema que Abraham Lincoln enfrentou no século 19.
Se Trump vencer, a rebelião começa pelo topo: pelo desmantelamento do patrimônio liberal –separação de Poderes, autonomia do Legislativo etc.– que a Constituição americana consagrou. Que farão os liberais perante esse assalto?
Em novembro deste ano, saberemos as respostas aos cenários do profeta.
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