Ah, Portugal, essa terra de leite e mel! Me lembro, algures em 2015, quando colegas estrangeiros me perguntavam, admirados e abismados, por que motivo Portugal era imune a fenômenos de direita radical.
Eu sorria. Depois tentava explicar. Somos diferentes. A União Europeia, para nós, não é um problema nem uma ameaça. É um maná vindo dos céus, que garantiu prosperidade e consolidação democrática depois da Revolução dos Cravos de 1974. O euroceticismo que alimenta a direita radical em outras latitudes não teria grande mercado entre os lusos.
Além disso, o regime democrático nasceu à esquerda. Depois de uma ditadura de direita, que durou quase meio século, os portugueses ficaram vacinados contra qualquer experiência extremista de direta.
Se dúvidas houvesse, bastaria olhar para os partidos moderados da direita democrática que, nascidos com a revolução, escondiam o seu perfil ideológico na escolha dos respectivos nomes.
O PSD, de centro-direita, intitula-se Partido Social Democrata —uma originalidade onomástica que confunde as mentes sábias: social-democracia não é de esquerda? Nem sempre, gente, nem sempre.
E o CDS, partido conservador, preferiu o mais modesto Centro Democrático Social.
Moral da história: a orquestra partidária do país começava na extrema esquerda, com um Partido Comunista ortodoxo, e acabava no centro. À direita desse centro só existia uma parede, como afirmou um antigo líder do CDS.
As eleições de domingo acabaram definitivamente com esse mito. Sim, a vitória pertence a uma coligação de direita onde o PSD, o CDS e o Partido Popular Monárquico (uma excentricidade sem relevância) fazem as honras da casa.
Mas o Chega, partido de direita radical e antissistema, quebrou o bipartidarismo que dominava o país havia 50 anos. Em 2019, elegeu um deputado. Em 2022, 12. Em 2024, 48. O futuro do novo governo, que nasce cercado à esquerda e à direita, não é inspirador.
Como explicar tudo isso?
Clichê: o povo é fascista/burro/antidemocrático (pode escolher). O doutor Salazar, pelos vistos, deixou milhares de órfãos (agora, 1 milhão) que perderam a vergonha e saíram dos seus buracos. Essa foi a melodia analfabeta que os outros partidos e alguns comentadores martelaram nos últimos anos.
Nunca subscrevi essa versão. O cientista político Larry Bartels também não. Em obra incontornável para entender o fenômeno populista na Europa ("Democracy Erodes from the Top"), Bartels analisa os inquéritos do European Social Survey entre 2002 e 2019 para concluir: em todos os países europeus existe um "reservatório de sentimentos populistas" mais ou menos constante ao longo do tempo.
A diferença, porém, está nos fatores que levam esse reservatório a transbordar. Três, em especial: o fracasso dos partidos tradicionais em responderem aos anseios da população; a histeria da mídia com os movimentos populistas; e, finalmente, a existência de uma liderança carismática.
Esses três fatores assentam no Chega como uma luva.
Sim, há certos temas que foram explorados pelo Chega perante a deserção ou o silêncio dos outros partidos, como a corrupção e a segurança.
Sim, a histeria foi dominante nos últimos cinco anos, contribuindo assim para insuflar um partido residual em 2019.
O Partido Socialista, nesse quesito, foi de uma irresponsabilidade sem limites: para o PS, quanto mais o Chega crescesse, menos espaço teria a direita moderada para ser alternativa de governo.
Essa foi a estratégia de François Mitterand na França com a Frente Nacional de Jean-Marie Le Pen. Deu no que deu.
E, sim, André Ventura é um político talentoso na exploração dos medos e dos ressentimentos da população mais vulnerável —os esquecidos dos subúrbios e do Alentejo, por exemplo, que não votavam ou votavam no velho Partido Comunista. Não mais.
A juntar a tudo isso, temos as redes sociais, claro, onde o partido leva vantagem sobre todos os restantes, conquistando, em particular, os mais jovens.
O líder da coligação vencedora, Luís Montenegro, espera formar um governo minoritário, mantendo a sua promessa de que não haverá qualquer entendimento com o Chega. É uma atitude corajosa, que segue o ensinamento europeu: casamentos entre a direita moderada e a direita radical são prejudiciais para a primeira e só beneficiam a segunda.
Mas os portugueses sabem, ou pelo menos intuem, que a solução será frágil: quando for necessário separar as águas (na discussão do Orçamento do Estado para 2025), os socialistas (que perderam por pouco) e o Chega (assim rejeitado pela centro-direita) farão contas para ajustar contas.
Na política portuguesa, acabaram-se os tempos de leite e mel.
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