A Páscoa sempre traz memórias. Os almoços em família, as visitas à aldeia do meu pai, no norte de Portugal. As conversas com o padre Manuel. Pobre homem. Santo homem. O que ele teve de suportar.
Nessas conversas, um Little Couto com 14 ou 15 anos pretendia saber o que significava a frase "pai, perdoa-lhes, porque eles não sabem o que fazem", que Jesus profere na cruz segundo o Evangelho de Lucas.
Quem eram "eles"?
E qual era a "ignorância" que Jesus perdoava?
"Eles" eram os assassinos de Cristo, dizia o padre. "Eles" desconheciam que matavam o filho de Deus, acrescentava.
O pequeno teólogo não desarmava. "Eles" eram os judeus? Era Caifás? Era o governador romano Pôncio Pilatos?
"Eram todos, porra!", berrava o padre, e a conversa ficava por ali, após intervenção parental.
A explicação não me satisfazia. Mal eu imaginava que o saudoso padre Manuel, homem simples e bom, era também um sábio.
Que o diga o filósofo David Lloyd Dusenbury, que me tem acompanhado por estes dias com o seu magistral "The Innocence of Pontius Pilate: How the Roman Trial of Jesus Shaped History", ou a inocência de Pôncio Pilatos: como o julgamento romano de Jesus moldou a história, da editora C. Hurst & Company.
Tese de Dusenbury: o julgamento de Jesus, e a sua condenação à morte, acabou por definir a cultura política e legal da Europa e das Américas. Segundo Dusenbury, é no contexto desse julgamento que se opera a distinção fundamental entre o poder secular e a autoridade sagrada.
Foi Jesus quem a estabeleceu perante Pilatos. "O meu reino não é deste mundo." (João 18:36).
Dito de outra forma: a ideia de que existem duas esferas de poder —uma secular, outra religiosa, cada uma no seu galho— está contida naquele julgamento e naquelas palavras.
É com tais alicerces que teólogos, juristas ou filósofos posteriores vão inscrevendo e reinscrevendo a linha de demarcação entre os assuntos que são "deste mundo" e os assuntos que não são.
Para se compreender melhor a natureza revolucionária dessa divisão, que permitiu a emergência moderna das ideias de tolerância, liberdade e democracia, David Lloyd Dusenbury revisita a "vexata quaestio" da inocência de Pilatos. Até que ponto o governador da Judeia romana tem as mãos limpas de sangue?
Curiosamente, a inocência de Pôncio Pilatos foi defendida durante séculos por pagãos, judeus, muçulmanos e até cristãos. As razões são múltiplas e nem sempre admiráveis, sobretudo quando lembramos a acusação (medieval e cristã) de que foram os judeus, não os romanos, que mataram Cristo.
Os textos canônicos desautorizam essa leitura: foi Pilatos a sentenciar Jesus (Lucas 23:24) e foram os seus soldados que o pregaram na cruz (João 19:23).
Mas isso basta para aferir a culpa de Pilatos?
Sim e não, defende Dusenbury, baseando-se nas palavras agônicas de Jesus ("pai, perdoa-lhes, porque eles não sabem o que fazem") e nos textos de Paulo. Pode haver culpa sem conhecimento, questiona Paulo?
Ou os governantes deste mundo, enquanto prisioneiros desse "saeculum", não souberam o que fizeram?
Sim, como dizia o padre Manuel, "todos são culpados, porra!" Mas são culpados da morte de Jesus (um homem inocente e, para muitos, um profeta). Não são culpados da morte de Cristo porque não o reconheceram como tal, ou seja, como o Escolhido, o Redentor, o Salvador, segundo a fé apostólica.
Na elegante e inteligentíssima definição de Dusenbury, não existem assassinos de Cristo no julgamento de Jesus porque a "dupla jurisdição" da qual este homem falava era incompreensível para judeus e pagãos.
Será compreensível hoje?
Depende. Quando olho para o Brasil e para os Estados Unidos, por exemplo, é difícil não ver a tentação de várias igrejas em negar a "dupla jurisdição" contida nos evangelhos.
Para essas denominações ou tendências, só existe uma jurisdição porque a política é um mero prolongamento da religião. Isso significa, simplificando, que os valores espirituais que são válidos numa dimensão espiritual devem ser impostos no plano secular.
O problema dessa ambição não está apenas no seu iliberalismo, o que já seria bastante. Está também no fato de ser uma ambição anticristã, que atraiçoa o exemplo e a doutrina de Jesus Cristo.
É uma forma de regresso ao paganismo, em suma, que levaria muitos desses cristãos a condenar Jesus Cristo à morte mais uma vez.
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