Na segunda quinzena de janeiro, em que mal pus os pés na rua, enrolado com um trabalho novo e sem muito dinheiro pra me movimentar (havendo trabalho não devia haver falta de dinheiro, mas a vida no Brasil é surreal, como diria André Breton), fiquei em casa ouvindo tudo o que encontrei, no Spotify e no YouTube, de Adoniran Barbosa. Fazia tempo que eu queria pensar com calma na sua linguagem.
Sou um desses viciados em letra de música. Quase não presto atenção à melodia. O que me interessa são os versos, as palavras. E que poeta era Adoniran!
Seu vocabulário é concreto e vira-lata —moderno. Ele não faz pose de profundo.
Pelo contrário, veste máscara de palhaço. Mas dá pra ver o sofrimento por trás do seu humor. E que bonito isso: quando, em “Iracema”, ele diz que hoje a amada morta “vive lá no Céu”, o Céu parece ser apenas um bairro distante, de acesso difícil, como Jardim Pantanal ou Engenheiro Marsilac. Nele o trágico não vem do alto mas da calçada, misturado ao cômico, ao patético, ao ridículo. É o Nelson Rodrigues da canção popular. O Dostoiévski do samba.
“Abrigo de Vagabundo”, obra-prima das obras-primas, começa assim: “Eu arranjei o meu dinheiro / Trabalhando o ano inteiro / Numa cerâmica fabricando pote”. Não há metáforas, nenhum tipo de embelezamento retórico, o primeiro verbo do texto é “arranjar”, coloquial até dizer chega, e a ênfase no final da estrofe nessa palavra intranscendente, “pote”, é estranha e sublime —na tela das nossas cabeças, surge um pote fictício em toda a sua materialidade de barro.
Como rimador, Adoniran chega a flertar com a metalinguagem, ao explicitar como nenhum outro letrista a gambiarra de rimar um substantivo comum com um nome próprio: manhã/Jaçanã, prefeitura/João Saracura, maloca/Joca, bagunça/Pafunça, faz/Brás, milanesa/Teresa. Oportunismo poético pra lá de barato, que no entanto cria um efeito de verdade: o personagem real devia mesmo ter aquele nome; senão, por que não botar outra coisa qualquer em seu lugar?
Em boa parte dos mais de 80 sambas que gravou, o autor de “Saudosa Maloca” nos conta histórias. E essas histórias de operários e malocas, vazadas no estilo ordinário de que tratei acima, fazem de Adoniran um dos mais singulares compositores brasileiros. Um poeta da prosa. Um sambista cronista. Um cantor de voz esburacada.
Como a São Paulo que ele cantou com deboche e melancolia, enquanto as casas velhas e os palacetes assobradados eram substituídos pelos “edifício arto”.
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