Fabrício Corsaletti

Poeta e cronista, autor de "Esquimó" e "Perambule".

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Fabrício Corsaletti

Sambista cronista

Sou viciado em letra de música, quase não presto atenção à melodia. O que me interessa são os versos

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Na segunda quinzena de janeiro, em que mal pus os pés na rua, enrolado com um trabalho novo e sem muito dinheiro pra me movimentar (havendo trabalho não devia haver falta de dinheiro, mas a vida no Brasil é surreal, como diria André Breton), fiquei em casa ouvindo tudo o que encontrei, no Spotify e no YouTube, de Adoniran Barbosa. Fazia tempo que eu queria pensar com calma na sua linguagem.

Sou um desses viciados em letra de música. Quase não presto atenção à melodia. O que me interessa são os versos, as palavras. E que poeta era Adoniran!

Seu vocabulário é concreto e vira-lata —moderno. Ele não faz pose de profundo. 

Pelo contrário, veste máscara de palhaço. Mas dá pra ver o sofrimento por trás do seu humor. E que bonito isso: quando, em “Iracema”, ele diz que hoje a amada morta “vive lá no Céu”, o Céu parece ser apenas um bairro distante, de acesso difícil, como Jardim Pantanal ou Engenheiro Marsilac. Nele o trágico não vem do alto mas da calçada, misturado ao cômico, ao patético, ao ridículo. É o Nelson Rodrigues da canção popular. O Dostoiévski do samba. 

Ilustração de Romolo para a coluna de Fabrício Corsaletti "Sambista cronista"
Romolo

“Abrigo de Vagabundo”, obra-prima das obras-primas, começa assim: “Eu arranjei o meu dinheiro / Trabalhando o ano inteiro / Numa cerâmica fabricando pote”. Não há metáforas, nenhum tipo de embelezamento retórico, o primeiro verbo do texto é “arranjar”, coloquial até dizer chega, e a ênfase no final da estrofe nessa palavra intranscendente, “pote”, é estranha e sublime —na tela das nossas cabeças, surge um pote fictício em toda a sua materialidade de barro.

Como rimador, Adoniran chega a flertar com a metalinguagem, ao explicitar como nenhum outro letrista a gambiarra de rimar um substantivo comum com um nome próprio: manhã/Jaçanã, prefeitura/João Saracura, maloca/Joca, bagunça/Pafunça, faz/Brás, milanesa/Teresa. Oportunismo poético pra lá de barato, que no entanto cria um efeito de verdade: o personagem real devia mesmo ter aquele nome; senão, por que não botar outra coisa qualquer em seu lugar?

Em boa parte dos mais de 80 sambas que gravou, o autor de “Saudosa Maloca” nos conta histórias. E essas histórias de operários e malocas, vazadas no estilo ordinário de que tratei acima, fazem de Adoniran um dos mais singulares compositores brasileiros. Um poeta da prosa. Um sambista cronista. Um cantor de voz esburacada. 

Como a São Paulo que ele cantou com deboche e melancolia, enquanto as casas velhas e os palacetes assobradados eram substituídos pelos “edifício arto”.

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