Lula inscreveu-se –e inscreveu o Brasil– no discurso do antissemitismo. Mauro Vieira e Celso Amorim tentam convencer-nos de que falou por falar, quase de brincadeira. Tornamo-nos ridículos e, ao mesmo tempo, indecentes.
O antissemitismo contemporâneo divide-se em duas etapas, separadas pela fundação de Israel. Antes dela, sua senha era a dos Protocolos dos Sábios do Sião: os judeus organizam uma conspiração multigeracional para dominar o mundo, a partir do controle sobre o sistema financeiro. Essa conversa não acabou, mas reduziu-se a um ruído de fundo. Depois da fundação do Estado judeu, a senha clássica do antissemitismo é a repetida por Lula.
Ei-la: o Estado judeu imita Hitler. Finalidade política da mensagem: lançar sobre Israel a maldição da ilegitimidade. Assim como o Reich nazista precisava ser eliminado, Israel deve desaparecer.
Os Estados, quase sem exceção, deixam no seu caminho um rastro de violências. O que a Austrália fez com os aborígenes? Os EUA ou o Brasil com os indígenas? A França com os cátaros? O Zimbábue com os ndebele? Singularizar Israel, pela via da identificação com o nazismo, o mal absoluto, nada tem a ver com indignação moral.
O nome do procedimento é antissemitismo, que emerge em retóricas explícitas (é dever dos árabes exterminar todos os judeus, segundo a Carta do Hamas) ou disfarçadas ("sou antissionista, não antissemita"). O Hamas foi o primeiro a aplaudir a declaração de Lula, o que deveria envergonhá-lo.
Lula forneceu um cilindro de oxigênio a Netanyahu, propiciando-lhe expressar a repulsa de todos os judeus, em Israel e fora dele, ao paralelo ignóbil. Ofereceu um discurso ao bolsonarismo, no exato momento em que a Justiça o encurrala. Esvaziou nossa diplomacia de credibilidade. Tornou letra morta nossas necessárias condenações dos abusos e crimes contra civis palestinos cometidos por Israel na sua guerra contra o Hamas: afinal, quem liga para o discurso de santarrões antissemitas?
Nesse caso, porém, isso tudo é irrelevante, porque concerne ao cálculo pragmático de perdas e ganhos. O verdadeiramente trágico é o que a declaração de Lula fala sobre nós, como nação. Nós –como nação– somos capazes de brincar de antissemitismo. Somos obscenos, portanto.
Por que uso a palavra "brincar"? Porque Lula não parece levar a sério o que diz.
Se, como afirmou, Israel age com os palestinos da mesma forma que Hitler agiu com os judeus, o mínimo que se precisa fazer é romper relações diplomáticas com o Estado devotado a reeditar o Holocausto. E isso como intróito a um chamado às nações civilizadas para uma guerra total contra o novo Hitler. Mas Lula não pensava em nada desse tipo. Pretendia, exclusivamente, fazer barulho –e surpreendeu-se com a reação de Israel.
"Oh, horror!, Israel humilhou nosso embaixador", segundo o pobre Vieira. "Não passam de amadores diplomáticos, esses israelenses que escalam a crise", segundo Amorim, um profissional da diplomacia ideológica. Por que eles fazem tempestade no copo d’água de uma equivalência inocente entre o Estado judeu e o Estado que aniquilou os judeus? Por que não retrucaram com uma notinha anódina de protesto?
De fato, um e outro imploram, quase de joelhos, que não se leve a sério as palavras de Lula. Vida que segue, entre países amigos, o Brasil democrático e o Reich israelense –eis a mensagem dos dois foliões que comandam nossa diplomacia. O Itamaraty, mal recuperado do vandalismo bolsonarista, afunda novamente sob o peso do vandalismo lulista.
"Mantenha sua posição", aconselhou Amorim a Lula, afastando a hipótese de retratação. Note-se, aí, que o conselheiro não qualificou a declaração do presidente como verdadeira. A "posição" deve ser mantida por uma curiosa razão de honra pessoal –e às custas de enlamear o país inteiro. É que, para eles, a verdade não importa.
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