Já não tinha nenhuma dúvida acerca do completo divórcio entre a classe política e a realidade das contas públicas no país, mas, se tivesse, bastaria a alteração da LRF (Lei de Responsabilidade Fiscal) perpetrada recentemente pela Câmara para ter certeza absoluta a esse respeito.
A LRF estabeleceu que estados e municípios não podem gastar mais do 60% de sua receita corrente líquida com pessoal, condição infringida mais vezes do que seria saudável, levando ao uso de critérios nebulosos de contabilidade para disfarçar a real extensão do problema.
Já a mudança da LRF permite a municípios a violação desse limite, caso sua receita tenha caído mais do que 10% por força da redução das transferências federais (devido a isenções tributárias concedidas pela União) ou queda nos royalties.
À primeira vista, parece uma mudança bastante razoável. Afinal de contas, o governante não poderia ser punido por fatores fora de seu controle como os acima descritos. Um olhar mais aprofundado, porém, revela consequências potencialmente destrutivas da decisão.
A começar porque, como sabe qualquer família, não é prudente fixar suas despesas em níveis elevados quando suas receitas podem variar. As receitas relativas a royalties flutuam, por exemplo, com os preços de commodities, como ilustrado pela crise do Rio de Janeiro.
Caso as despesas, com pessoal inclusive, sejam definidas com bases em receitas originadas em um momento favorável do ciclo econômico, torna-se bastante provável seu “estouro” quando vier a reversão cíclica.
Nesse sentido, a Câmara deu permissão a esse tipo de comportamento, ao sinalizar que administradores não sofrerão sanções em razão de um evento que, num período razoavelmente longo, é praticamente uma certeza.
Afora isso, revela-se o que já sabíamos: boa parte, se não a maioria dos municípios do país, é financeiramente inviável sem as transferências federais, o que deveria nos levar a questionar sua existência autônoma, não o perdão ao comportamento irresponsável.
Abre-se, por fim, um precedente perigoso. Nada impede, mais à frente, que novas alterações ampliem o leque de alternativas para aumento de gastos, em particular relativos a pessoal.
Tudo isso ocorre num contexto em que, sob a LRF, municípios vêm gastando como nunca. As despesas municipais, medidas a preços constantes, atingiram R$ 606 bilhões (8,9% do PIB) nos 12 meses terminados em junho de 2018, ante R$ 490 bilhões (7,6% do PIB) em 2010.
No mesmo período, as despesas com pessoal saltaram de R$ 223 bilhões (3,5% do PIB) para R$ 298 bilhões (4,4% do PIB), ou seja, de 46% para 49% da despesa corrente.
A contrapartida foi a queda da participação da provisão de serviços à população (de 35% para 30% da despesa). É bastante claro que o aumento do gasto beneficiou mais os servidores municipais do que os munícipes, replicando um padrão infelizmente comum no setor público brasileiro.
Esse episódio apenas reforça a percepção muito clara sobre a apropriação do Orçamento público por grupos corporativos, alegremente sustentados por políticos cuja conexão com o interesse da população é mínima.
Num país em que estados importantes se encontram à beira da falência e mesmo o governo federal enfrenta sérias dificuldades, a última coisa de que precisamos é abrir as porteiras para o gasto desenfreado. No entanto, foi exatamente com isso que o Congresso nos brindou.
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