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Medicina se baseia em diferenças raciais que não existem, diz biólogo

Para Joseph Graves Jr., prática médica parte de suposições racistas para associar raças a doenças

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Em 2011, uma revisão do Robbins and Cotran Pathologic Basis of Disease, um dos livros de patologia mais utilizados nos cursos de medicina, constatou que, de 31 afirmações vinculando ascendência africana a doenças, 17 não puderam ser confirmadas pela literatura e três foram desmentidas. Esse é um dos muitos exemplos da prevalência de falsas crenças sobre diferenças raciais tanto no ensino quanto na prática biomédica, a chamada "racialização da medicina", que resulta em atrasos nos diagnósticos e tratamentos inadequados.

Para o biólogo evolutivo Joseph Graves Jr., professor da North Carolina AT&T State University, é urgente reformar os currículos das escolas de medicina e incluir disciplinas com uma compreensão da ciência moderna acerca da diversidade biológica humana, como a antropologia biológica. Graves se apresentou numa sessão virtual da Reunião Anual da AAAS (Associação Americana para o Avanço da Ciência, na sigla em inglês), a maior sociedade científica multidisciplinar do mundo. O encontro, em formato híbrido, começou nesta quinta-feira, 2, em Washington (EUA).

Arte ilustra tiras de rostos de diferentes perfis sobre um fundo rosa e intercalados: pessoas brancas, negras, pardas, amarelas.
lustração: Valentina Fraiz - Instituto Serrapilheira

"Categorias como ‘negro’, ‘branco’ e ‘asiático’ não representam diferenças genéticas entre os grupos", ele explicou. "Aí reside o maior equívoco racial que persiste na comunidade médica: grupos definidos socialmente continuam a ser vistos como reflexos precisos da variação biológica na espécie humana."

No século 20, análises biológico-antropológicas e de genética populacional demonstraram de maneira conclusiva que os humanos não têm raças biológicas, e traços físicos como cor da pele e medidas craniofaciais não podem ser usados para delinear grupos raciais. "Mas a não existência de raça biológica não significa a não existência de racismo", destacou Graves.

"É claro que algumas adaptações estão ligadas à predisposição a certas doenças – por exemplo, a variação da cor de pele conforme a latitude [e, consequentemente, a maior ou menor exposição ao sol] pode ser associada à predisposição ao câncer de pele", continuou o biólogo. "Mas saber que isso é verdade não é o mesmo que relacionar grupos a determinadas doenças. Isso precisa ser eliminado da medicina."

Para Graves, raramente é neutra a conexão entre raças socialmente definidas e doenças. Em um artigo que publicou na revista The New England Journal of Medicine no ano passado com Andrea Deyrup, professora de patologia da Duke University, ele cita uma associação que frequentemente é feita entre queloides e pessoas de ascendência africana.

Um estudo publicado em 2021, que dizia que "os queloides foram relatados em 5% a 16% dos indivíduos de ascendência hispânica e africana", não fornecia dados experimentais e se apoiava em uma discussão publicada, mas não revisada por pares, a partir de uma reunião de dermatologia de 1931, baseada em observações sobre mineiros do Congo.

"Nessa mesma reunião, no entanto, outro pesquisador relatou que um estudo populacional em adultos suíços revelou que 13,3% deles tinham queloides. A relevância clínica dessa disparidade (16% vs. 13,3%) é questionável", afirma o artigo. Em outubro de 2021, Deyrup forneceu aos autores do estudo equivocado dados que demonstram a fragilidade da associação entre raça e formação de queloides, e o estudo foi parcialmente ajustado.

Vale dizer que, para exercer medicina nos Estados Unidos, é preciso passar em uma prova oficial, a United States Medical Licensing Examination (USMLE). Em 2017, um estudo analisou o UWorld Step 1 QBank, um dos exames preparatórios para a USMLE mais populares do país, e verificou se, nas questões que traziam descrições de raça e etnia, estas eram essenciais para a correta interpretação de seus enunciados. Enquanto a descrição "branco/caucasiano" era central em apenas 7,4% das questões, a descrição "indígena" era decisiva para o "diagnóstico" 100% das vezes.

"Dada a longa história de suposições racistas na medicina, o treinamento contínuo será necessário para corrigir gerações de desinformação", diz o biólogo.

Graves começou a refletir sobre como as pessoas pensavam raça nos anos 90, e publicou três livros sobre o assunto desde então. O último, Racism, Not Race: Answers to Frequently Asked Questions [Racismo, não raça: respostas para perguntas frequentes], escrito em parceria com o antropólogo Alan H. Goodman e publicado no ano passado, aborda equívocos comuns e desfaz o mito da diferença racial baseada em genes. "As desigualdades atribuídas à raça são, na verdade, causadas pelo racismo", ressalta.

Eugenia e estatística

Com o tema "ciência para a humanidade", a reunião anual da AAAS de 2023 – a 189ª edição – tem parte da programação fortemente dedicada a discutir pautas como racismo, desigualdades na academia e ética na inteligência artificial. Na abertura do evento, Gilda Barabino – segunda mulher negra a presidir a AAAS em seus 175 anos – lembrou que tanto a organização quanto a revista Science (publicada pela AAAS) abraçaram a eugenia no passado, o que foi reconhecido recentemente em um editorial.

Uma das sessões virtuais do primeiro dia refletiu sobre "como falar de Ronald Fisher", um dos fundadores da ciência estatística que trouxe avanços fundamentais, mas que fazia parte do movimento eugenista. Na era do cancelamento, vem ganhando força nas redes sociais a discussão sobre "gênios controversos", que, apesar de terem feito grandes contribuições a suas áreas, têm biografias manchadas por históricos de racismo e sexismo.

"Fisher realmente acreditava haver bases biológicas na diferença de inteligência entre seres humanos, apoiava a esterilização de classes mais baixas e encorajava pessoas com ‘melhores genéticas’ a terem mais filhos", apontou Jana Asher, professora do Departamento de Matemática e Estatística da Slippery Rock University, na palestra intitulada "R.A. Fisher e eugenia: como um homem tão brilhante pôde entender tudo tão errado?"

"As pessoas dizem que Fisher [nascido no fim do século 19] era produto de seu tempo. Sim e não. Nem todo mundo na época acreditava em eugenia." Asher comentou que, ao falar sobre Fisher em suas aulas de estatística, não deixa de lembrar que ele era um ser humano com defeitos e que não aceitava que podia estar errado. "Para honrá-lo, precisamos reconhecer tanto suas contribuições quanto o mal que causou, no mesmo patamar de discussão."

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Clarice Cudischevitch é jornalista e coordenadora do blog Ciência Fundamental.

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