Aviso de gatilho: este texto contém relatos de tortura.
“Eles acharam que eu estava morto e me jogaram lá”. É assim que Ezequiel Ferreira Leite, um jovem negro de 19 anos, descreve o final da sessão de tortura à qual afirma ter sido submetido em um supermercado da rede Coelho Diniz, em Governador Valadares, em Minas Gerais, em novembro de 2023.
Depois de horas sendo brutalmente espancado pelos seguranças e submetido a choques elétricos, ele relata ter sido colocado no porta-malas de um carro e deixado às margens de uma lagoa da cidade.
As agressões ocorreram na unidade Pio XII da rede de supermercados que pertence à família do deputado federal e secretário-geral do MDB de Minas Gerais, Hercílio Coelho Diniz.
O Intercept Brasil teve acesso ao boletim de ocorrência e ao laudo do Instituto Médico Legal que atesta dezenas de lesões no corpo do jovem, compatíveis com tortura física, agressões com objetos e choque elétrico.
O caso aconteceu em 16 de novembro de 2023. Mais de um ano depois, as investigações sobre estão praticamente paradas. Agora, Leite quebrou o silêncio sobre a violência que sofreu.
Naquele dia, o jovem relata que, ao entrar no supermercado, foi abordado com violência e levado a uma área isolada, onde foi torturado por sete ou oito pessoas – incluindo homens e uma mulher.
“Eles me tiraram a blusa, conseguiram me bater com mangueira, ripa e ainda jogaram água para dar choque em mim”, descreve, visivelmente abalado. Ele conta que foi encontrado desacordado somente 36 horas depois de ter sido deixado próximo à lagoa e, só então, foi levado ao Hospital Municipal de Governador Valadares.
A tortura relatada por Leite é a segunda denúncia de violência e racismo na rede Coelho Diniz, que tem mais de 20 lojas no interior de Minas, em menos de um ano.
Em dezembro de 2023, outro jovem relatou ter sido vítima de racismo na mesma rede. João Paulo Lopes da Silva, estudante e militante do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, foi abordado de maneira discriminatória pelos seguranças, que o levaram para uma sala no subsolo para revistá-lo e questioná-lo a portas fechadas.
“Independentemente do que estamos portando, de como agimos, se guardamos a mochila no guarda-volumes, somos sempre suspeitos e atropelados pela impunidade. Mas levaremos esse caso até a última instância”, disse Silva, cuja audiência estava inicialmente marcada para 3 de junho, mas foi cancelada e ainda não foi remarcada.
No caso de Ezequiel Leite, seu advogado, Márcio dos Santos, afirma que a situação é uma das mais graves que ele já acompanhou. “É um caso claro de tortura. O que fizeram com ele foi desumano. Nenhum cidadão merece passar pelo que Ezequiel passou, e nós exigimos justiça”, disse.
O relato de Leite sobre os métodos de tortura utilizados pelos seguranças foram corroborados pelo laudo pericial, que descreve as dezenas de lesões compatíveis com tortura e choque. Entre as marcas estão sangramentos, escoriações e queimaduras elétricas em diversas partes do corpo, incluindo rosto, costas, pernas e braços.
O documento confirma o uso de “meios cruéis” e descreve como as lesões foram infligidas com o uso de “instrumentos contundentes” e “choque elétrico”, assim como relatado pelo jovem. O perito responsável, Dr. Amim Souza Felipe da Silva, destacou que, apesar de não haver elementos suficientes para confirmar risco de vida, o quadro das lesões é grave e compatível com tortura.
No trecho do laudo que questiona como se a ofensa foi produzida com o uso de tortura ou outro meio insidioso ou cruel, a resposta do perito confirma: “Sim para tortura, levando-se em consideração a quantidade e tipo de lesões. Sim para meio cruel, levando-se em consideração a quantidade e tipo de lesões”.
Na época do caso, a rede de supermercados pertencia ao deputado Hercílio Diniz e a seus irmãos, Alex Sandro Coelho Diniz, primeiro suplente do senador Cleitinho Azevedo, do Republicanos, além de André, Fabio, Helton e Henrique Coelho Diniz. Desde meados deste ano, o deputado Hercílio Diniz deixou o quadro societário do supermercado – mas a rede segue com seus irmãos.
Questionados, Hercílio Coelho Diniz e a rede de supermercados Coelho Diniz não responderam. Já a Polícia Civil informou apenas que “testemunhas foram intimadas e ouvidas” e que “diversas diligências estão em andamento para a completa apuração dos fatos”. O MDB, partido de Hercílio, afirmou que não iria comentar o caso.
Nenhuma imagem, nenhuma testemunha?
Os advogados de Leite tiveram o pedido de acesso às imagens de segurança negado pelo supermercado, segundo documentos judiciais aos quais o Intercept teve acesso. O Ministério Público cobrou a empresa a respeito do fornecimento das imagens.
Questionada pela reportagem sobre as câmeras, a Polícia Civil afirmou apenas que “foram solicitadas perícias no sistema de armazenamento de imagens do circuito interno de monitoramento do estabelecimento”.
Essa também é uma das dificuldades enfrentadas nas investigações do caso da tortura sofrida por Leite que preocupam seu advogado, que assumiu a defesa do jovem de forma voluntária, juntamente com o colega Arnaldo de Oliveira. “Não estamos conseguindo obter sequer as filmagens das câmeras da região, o que obviamente levanta suspeitas”, disse Santos.
Questionado sobre as imagens de segurança e o andamento do caso, o delegado Ciro Roldão, atual responsável pela 1ª Delegacia Regional de Governador Valadares, respondeu apenas que “foi feita uma nova requisição ao setor de perícia” e que “o inquérito é sigiloso, mas as investigações continuam.” O delegado não soube explicar o motivo pelo qual, após um ano, o caso de Leite não obteve nenhuma atualização.
As suspeitas dos advogados sobre a suposta falta de imagens no entorno do supermercado – uma região bastante movimentada – se ampliam porque prédios vizinhos têm, sim, câmeras de segurança, algumas em locais bem visíveis.
Há, por exemplo, um edifício na frente do mercado e que possui uma câmera, mas nenhuma imagem do ocorrido foi entregue às autoridades, de acordo com os advogados.
Leite foi encontrado em terreno ligado à família Hercílio Diniz
Após o episódio, Leite foi encontrado na avenida Minas Gerais, próximo ao número 4285, às margens de uma lagoa na altura do Instituto Federal de Minas Gerais. A poucos metros dali fica um terreno ligado a Hercílio Diniz. Em 2014, ele fez para a prefeitura de Governador Valadares uma solicitação para intervir no local, uma Área de Preservação Permanente.
Um parecer técnico da prefeitura, emitido na época, mostra o endereço exato. No local está prevista a construção de um condomínio de luxo chamado Gran Olympus, do qual a família Coelho Diniz é sócia. Fotos e vídeo mostram os irmãos e o deputado Hercílio Diniz e sua família visitando o empreendimento.
O quadro de sócios e administradores do Gran Olympus inclui a Haf Empreendimentos, empresa que atua no agronegócio, construção civil e mercado imobiliário. Cada irmão da família Coelho Diniz possui participação por meio de empresas próprias, incluindo o deputado Hercílio Diniz, representado pela Hvl Investimentos e Participações. As informações foram confirmadas por meio da ferramenta CruzaGrafos, que relaciona dados de empresas e pessoas físicas.
Além de deputado federal, Hercílio é secretário-geral do MDB e figura entre os dez parlamentares mais ricos do Brasil, com um patrimônio declarado de R$ 65,9 milhões.
Donos de mercados e de poder político
“Esse caso é emblemático porque expõe não só o problema da violência por parte de seguranças, mas também como o poder econômico e a influência política na investigação e, em última instância, na justiça”, declarou uma defensora dos direitos humanos da cidade que preferiu não se identificar por medo de represálias.
A rede Coelho Diniz apoiou o atual prefeito de Governador Valadares, o Coronel Sandro, do PL – e, segundo o próprio, foi determinante na sua vitória. Poucas horas após o resultado do primeiro turno das eleições municipais de 2024, Sandro agradeceu aos irmãos em uma entrevista à TV: “Sem os irmãos Coelho Diniz, especialmente Alex e André Diniz, a nossa candidatura não teria emplacado. Em um momento muito importante, uma decisão nós tomamos [o prefeito, os irmãos e o vice-prefeito], a decisão de disputar a eleição e acertamos”, disse Sandro.
Desde que o episódio aconteceu, Leite vive com o constante medo de retaliações, especialmente após um encontro com um dos seguranças da rede em Governador Valadares.
“Ele olhou para mim e disse: ‘Você tá aí, né?’”, relatou o jovem, que teme ser alvo de novas ameaças. A agressão deixou marcas profundas, físicas e emocionais, comprometendo seu bem-estar psicológico. Para seu advogado, o trauma do jovem é consequência das atrocidades que sofreu.
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Leite contou que se sente perseguido e teme que outras pessoas ligadas ao supermercado possam ameaçá-lo novamente. “Depois de tudo o que aconteceu, eu não sei mais o que esperar. Sinto que estou sendo seguido. Só quero que eles paguem pelo que fizeram”.
Em 30 de setembro de 2024, Leite foi preso sob acusação de tráfico de drogas. De acordo com o boletim de ocorrência, ele teria admitido à polícia que comprou uma pedra de crack para uso pessoal, alegando ser dependente químico.
À Defensoria Pública, ele contou que sofreu maus tratos por parte da PM durante a prisão. No dia seguinte, durante a audiência de custódia, o juiz Dr. Jadir Halley Silva Cunha declarou a prisão ilegal e determinou sua liberação. No entanto, apesar da denúncia sobre a agressão policial, nenhum militar foi investigado.
Sem provas visuais nem testemunhas da tortura que o jovem sofreu, a investigação segue em ritmo lento. Mas Leite e sua defesa aguardam respostas das autoridades com a esperança de que esse caso de racismo não seja mais um a ficar esquecido nas estatísticas. “Este caso não pode ser silenciado. Vamos lutar para que Ezequiel tenha sua dignidade restaurada e para que casos assim não voltem a acontecer.”
Atualização: 10 de dezembro de 2024, 19h13
O texto foi atualizado com a afirmação de que o MDB não comentaria o caso.
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