Um engenheiro se vale do prestígio acumulado na infraestrutura pública para se candidatar à presidência do time de maior torcida do Brasil. Empossado no principal cargo do Clube de Regatas do Flamengo, empresta os símbolos rubro-negros ao projeto autoritário de poder – à revelia até dos mínimos parâmetros de cidadania. Ainda durante o mandato, convive em Brasília a ponto de as políticas partidária e esportiva serem indistinguíveis, em fraterna conciliação com os militares.
Com essa descrição, poderíamos falar de dois personagens diferentes, de épocas muito diferentes, do Flamengo. Na segunda metade da década de 1960, Veiga Brito manteve ao mesmo tempo os postos de presidente do Flamengo e de deputado federal pela Aliança Renovadora Nacional, a Arena, partido de sustentação da ditadura civil-militar.
O político era um aliado histórico de Carlos Lacerda, então ex-governador do estado da Guanabara e uma das mais eloquentes vozes da ofensiva contra o regime democrático. Os ataques culminaram na derrubada do presidente João Goulart, em 1964.
Mas a legislatura da qual Veiga Brito participou teve função mais refinada: revestir de legitimidade o autoritarismo no período que antecedeu o Ato Institucional Número Cinco, o AI-5, e a intensificação do regime.
O fato de o presidente rubro-negro não ser o único dirigente esportivo na limitada política partidária do período simulava alguma naturalidade, entre cassações e silenciamentos – Wadih Helu conciliou o cargo de deputado estadual, pelo partido da situação, com o comando Corinthians.
Com o futebol, valores circulam pela sociedade. Ontem e hoje. Todo mundo comenta sobre o esporte: até quem não o acompanha tem algo a dizer. No interior da cultura popular, propostas autoritárias se chocam contra ideias democráticas – e num simples papo sobre o jogo do fim de semana.
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Disputar os clubes não deixa de ser também tentar se comunicar com multidões e, como consequência, deslocar essas dinâmicas. Investidas ditatoriais se associam a dirigentes esportivos, não é à toa.
Veiga Brito foi convidado constante do programa Grande Resenha Facit, a principal mesa redonda exibida ao vivo à época pela TV Globo. A bancada tinha tamanha influência que reunia como participantes fixos o treinador do vice-campeonato na Copa do Mundo de 1950, Flávio Costa, e o futuro técnico da seleção: a popularidade que João Saldanha alcançou com as transmissões foi um dos principais fatores que o levaram ao comando do time da Confederação Brasileira de Desportos (CBD) em 1969.
A presença recorrente do presidente rubro-negro coincide com corridas eleitorais e cerimônias de posse nos cargos. Períodos, assim, em que a projeção para mais audiências é bem-vinda para candidatos.
Em linhas gerais o programa demonstrou proximidades com ideais da União Democrática Nacional (UDN), partido que incentivou a derrubada da democracia, mas foi extinto após o Ato Institucional Número Dois (AI-2). Veiga Brito havia sido filiado à legenda antes de migrar para a Arena.
No antigo estado da Guanabara, sua passagem remete ao abastecimento hídrico. Medidas tomadas durante o governo Lacerda encararam o histórico de falta d’água do antigo Distrito Federal e até hoje existe uma adutora batizada de Veiga Brito na zona oeste do Rio de Janeiro.
Na política esportiva e partidária, sua atuação teve como legado a normalização da violência por pertencer a um Congresso que se prestou a só observar o avanço sobre direitos básicos, como o habeas corpus, e a sistematização da tortura.
A história se repete com Landim
O engenheiro Rodolfo Landim assumiu a Gávea em 2019 exatos meio século após Veiga Brito deixar a presidência. Nos dois mandatos do antigo servidor da Petrobras, o Flamengo observou a escalada da adesão ao bolsonarismo.
Em conquista de títulos, o gramado se tornou palanque para representantes da extrema direita – como o deputado Rodrigo Amorim, aquele que quebrou a placa da vereadora assassinada Marielle Franco, e seviciou sua memória ao governador Wilson Witzel, que prometeu abertamente execuções sumárias.
Na pandemia, o presidente do clube e o chefe do departamento médico viajaram para Brasília para defender o retorno prematuro do calendário do futebol.
Durante o aumento das mortes por covid, negligenciaram o uso de máscaras ao lado do então presidente Jair Bolsonaro e de representantes do Vasco da Gama. Adversários do esporte se congraçavam na sede do governo federal para transparecer clima de tranquilidade – enquanto a rotina ruía. A afinidade era tanta que Landim chegou a receber o convite para presidir o conselho de administração da Petrobras.
No processo eleitoral que definiu a volta de Luís Inácio Lula da Silva ao Palácio do Planalto, a agenda se intensificou: foram compartilhadas fotos de dirigentes do clube gesticulando o número do candidato à reeleição; Bolsonaro foi convidado para recepcionar a taça da Libertadores da América, conquistada na véspera, no desembarque dos campeões; jogadores sobrevoaram a cidade ao lado do líder da chapa que, ao fim da contagem, seria derrotada nas urnas.
Depois do resultado, outra representante da gestão, Angela Machado, publicou insultos aos nordestinos.As mensagens que atribuíam aos habitantes do nordeste características bovinas vinham da diretora de responsabilidade social do Flamengo Angela Machado, mulher de Landim.
Justamente a região que sofreu com restrições de mobilidade durante a votação, em ação orquestrada pelo comando da Polícia Rodoviária Federal contra a principal base eleitoral anti-bolsonarista.
Tudo isso no final de 2022, período documentado pelo indiciamento na justiça como de intensa movimentação para a investida golpista.
Em vez de imaginar a grande maquinação para manipular ingênuos, é urgente enxergar como esses gestos ficam encardidos à cultura popular. Cada aceno em direção a rupturas da democracia facilita que o absurdo seja recebido por gente comum com menos espanto.
Afinal, agora se ouve falar em qualquer esquina sobre descredibilização de eleições, em decretação de estado de sítio, em sabotagem ao governo eleito e em tentativas de execução do presidente ou do vice-presidente da República, além de ministro do Supremo Tribunal Federal.
Na contramão do trânsito desses valores – talvez como consequência dos perigos trazidos pelas ideias –, tanto na ditadura civil-militar quanto no governo Bolsonaro, contra-ofensivas democráticas partiram do clube.
A rebeldia das torcidas jovens dos anos 1960, o movimento Flanistia pela volta de perseguidos políticos, a campanha por eleições livres da Fladiretas, os protestos de rubro-negros antifascistas na pandemia e ações como o Flamengo da Gente em meio ao autoritarismo apontam nesse sentido.
Essas multidões gritam por protagonismo enquanto a discussão é para achar os motivos de o golpe ter fracassado – há quem atribua, imaginem, a oficiais das Forças Armadas que sabiam e não interromperam a articulação à condição de legalistas.
A votação desta segunda-feira no Flamengo determina o final do segundo mandato de Landim na presidência do clube, mas os sentidos cultivados pela extrema direita continuarão impregnados. O futebol é carregado de disputas que vão continuar a interferir no destino do país.
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