Nos últimos dias, se tornaram conhecidas as denúncias contra o professor Alysson Mascaro, da USP, publicadas aqui pelo Intercept Brasil. Dez homens o acusam de assédio e abuso sexual, o que nos aponta para um alarmante cenário sobre o comportamento de mais um homem da esquerda brasileira, mais uma figura política e mais um professor universitário.
O Brasil tem falado muito de assédio, felizmente. Essa marca tão presente na nossa sociedade – moldada sob as regras do capitalismo, do racismo e do patriarcado – tem sido desnaturalizada e cada vez mais denunciada. É muito positivo que essa violência seja escancarada, e que as pessoas que a praticam sejam expostas, para que sejam devidamente responsabilizadas após as necessárias investigações e direito de defesa.
Porém, foi sendo cristalizada no nosso imaginário social a ideia de que as mulheres, e apenas as mulheres, são vítimas de assédio e de abuso sexual. Essa é uma ideia profundamente misógina, que tenta reafirmar um suposto papel de absoluta fragilidade feminina, ao mesmo tempo em que enaltece a suposta força inabalável dos homens.
Obviamente, justamente pela presença visceral do patriarcado nas nossas vidas, mulheres e meninas são as maiores vítimas de violências sexuais, pois são consideradas, inúmeras vezes, objetos disponíveis para o prazer masculino.
Por hora, nascem 44 bebês de mães adolescentes no Brasil, segundo dados do SUS. Isso deveria nos envergonhar profundamente, além de nos mobilizar ainda mais pela derrota da PEC 164/2012, apelidado de PEC do Estupro, o projeto que criminaliza o aborto mesmo em situações de estupro, que futuramente será votada no plenário da Câmara.
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Mas o fato das mulheres e meninas serem as maiores vítimas não apaga, nem por um segundo, a realidade de que homens e meninos também são. E falar abertamente sobre o lugar de vítima ocupado por esses homens e esses meninos ainda é um tabu, justamente por causa do patriarcado e a nociva ideia de força e virilidade das pessoas do sexo masculino.
Uma mulher, quando denuncia uma violência sexual, corre o risco de ser vista como como piranha, como puta. Um homem, quando denuncia uma violência sexual, corre também o risco de ser visto como bicha, como viado.
Todas as vítimas de assédio e abuso sexual são interpretada como promíscuas.
A misoginia e a homofobia andam juntas, violando corpos e depois controlando esses corpos para que não se rebelem, para que não tenham voz. Ou para que suas vozes sejam deslegitimadas.
E os homens gays? E as travestis? Aí acessamos mais uma camada de preconceitos e estereótipos. Afinal, gays e travestis são vistos, por grande parte da sociedade, como corpos sempre dispostos ao sexo. Então, portanto, não poderiam ser vítimas de violência sexual. Se seus corpos foram tocados e invadidos é porque assim o quiseram, é porque permitiram.
No final, todas as vítimas de assédio e abuso sexual são interpretadas, de alguma forma, como promíscuas. As mulheres cis porque estavam com a roupa errada, ou no lugar errado. Os homens cis é porque são gays, mesmo que não assumidos. E os homossexuais e as travestis é porque são pessoas sujas e vulgares. Interpretações violentas produzidas por uma realidade violenta.
Quem poderia imaginar que uma sociedade que foi moldada por homens, financiada por homens e governada por homens, teria tantos mecanismos de silenciamento das identidades que tentam se proteger das violências exercidas por esses homens?
Após as denúncias reveladas contra o professor Alysson Mascaro, a internet foi tomada, mais uma vez, por pessoas (na sua maioria homens cis, obviamente) dispostas a questionar as vítimas.
Teve teoria da conspiração, teve ataque ao jornalismo do Intercept, teve minimização dos atos denunciados (afinal, qual o problema de um professor dar uma cantada num aluno? Ou em dezenas de alunos? Quanto moralismo, poxa). Teve tudo.
Todos os artifícios comumente usados para defender assediadores e agressores sexuais. E, por óbvio, Alysson Mascaro precisa ter direito a defesa, com as investigações sendo feitas de forma séria e transparente.
Mas, afirmar isso não é a mesma coisa que atacar as denúncias que foram feitas por diferentes pessoas. Por qual motivo tantos homens se sentem tão compelidos a se colocarem logo no lugar do agressor, não no lugar da vítima?
A vítima pode ser qualquer um de nós.
O óbvio precisa ser dito: mulheres e homens podem ser assediados, assim como mulheres e homens podem ser assediadores. Mas também é óbvio que, num sistema onde a cisgeneridade e a heterossexualidade são compulsórias, e onde mulheres cis ainda são vistas como seres humanos menores, a balança continuará pesando em favor de quem detém o poder.
Um poder que é masculino, mas não só. Também é cis, hétero e branco.
Um sistema de poder que faz com que seja “natural” os milhares de questionamentos serem sempre para as supostas vítimas, nunca para os supostos assediadores.
Um sistema de poder que faz com que um número incalculável de homens (gays ou não), mulheres trans e travestis se calem diante das violências sexuais que sofrem, porque sabem exatamente como serão vistos e tratados após uma denúncia.
Um sistema de poder que automaticamente dúvida de dez diferentes pessoas, menosprezando suas dores e seus sofrimentos.
É positivo que estejamos falando tanto de assédio, de forma aberta e franca. Mas ainda é muito temerário que os papéis de “vítima” e de “agressor” ainda estejam tão engessados na nossa cabeça, como num filme de mocinho e bandido. A vítima pode ser qualquer um de nós. E sim, o assediador pode ser um ídolo seu.
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