Por que há quem veja a Paixão de Cristo como origem do antissemitismo

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Legenda da foto, A coroa de espinhos, o flagelo e a crucificação são descritos em detalhes como as últimas horas de Jesus Cristo nos evangelhos canônicos
  • Author, Alejandro Millán Valencia
  • Role, BBC Mundo

Antes que o filme 'A Paixão de Cristo', de Mel Gibson, chegasse às telas em 2004, vários grupos da comunidade judaica nos Estados Unidos tentaram boicotar a estreia.

A maioria dos judeus que se opunham ao filme dizia que a obra, que retrata de forma bastante crua as últimas horas de Jesus Cristo com base no Novo Testamento, promovia o antissemitismo.

Eles diziam que o filme, com o alcance global do cinema dos grandes estúdios, aumentaria a rejeição contra o povo judeu e sua cultura.

O boicote acabou não acontecendo. A Paixão de Cristo, por sua vez, tornou-se um dos mais lucrativos filmes da história. Proibido para menores de 14 anos, o longa-metragem tinha orçamento de US$ 30 milhões, mas arrecadou mais de US$ 600 milhões.

A polêmica gerada trouxe à tona um debate sobre uma questão antiga: seria a narrativa da Paixão de Cristo fonte do antissemitismo moderno?

Os acontecimentos que, segundo a crença cristã, culminaram na morte de Jesus estão no centro das comemorações da Semana Santa e são descritos nos evangelhos canônicos - os únicos aceitos pela maioria das denominações cristãs como legítimos.

"Não é possível dar uma resposta simples a uma pergunta como essa, antes de definirmos o que estamos falando, se é antissemitismo clássico ou antissemitismo moderno", disse à BBC Jonathan Elukin, professor de história judaico-cristã no Trinity College, de Connecticut (EUA).

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Legenda da foto, Em 2004 houve protesto contra o filme 'A Paixão de Cristo', de Mel Gibson

"O antissemitismo moderno tem mais a ver com uma concepção política e racial do que com uma religião", explicou o acadêmico.

Para o professor, é preciso fazer uma revisão profunda da história onde há elementos que, ao mesmo tempo, afirmam e negam essa ligação da história narrada nos evangelhos e o sentimento de desconfiança em relação aos judeus.

Antissemitismo x Antijudaísmo

Antissemita é, segundo o dicionário, alguém contrário à raça semítica, aos semitas, especialmente, aos judeus. A palavra foi popularizada pelo jornalista alemão Wilhelm Marr em vários artigos publicados no século 19, onde ele insinuava que a "ameaça" dos judeus à Alemanha era racial.

Mas existem registros documentados de vários escritos antigos que falam de "rejeição" e "medo" do povo judeu – o que é definido como antijudaísmo clássico.

O jornalista espanhol César Cervera aponta que o escritor grego Diodoro Sículo escreveu em seu documento Historical Library, do século 1 a.C., que "os judeus elevaram seu ódio à humanidade ao nível de uma tradição".

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Legenda da foto, Há registros de escritores que culpavam os judeus pela morte de Cristo, mas pesquisadores contemporâneos dizem que essa versão não prevaleceu

Vários historiadores, como o alemão Peter Schäfer, indicam o crescente desprezo pelo judaísmo que foi expresso durante a helenização do Oriente por Alexandre, o Grande.

No Império Romano, não era bem visto o caráter monoteísta da religião judaica e nem, como assinala Schäfer, "a crença de que eram o povo escolhido por Deus".

"É verdade que os romanos não viam bem os costumes judaicos, nem o fato de que eles adoravam a apenas um Deus, mas eu não acho que isso os enchesse de medo", observa o professor de história judaico-cristã Jonathan Elukin. "Enquanto eles não gerassem uma rebelião, os romanos tinham coisas mais importantes para lidar do que os judeus", explica o professor.

'O povo que matou Jesus'

No entanto, há acadêmicos que apontam que, após a morte de Cristo e a publicação das primeiras versões dos evangelhos, o sentimento foi ainda maior devido a textos como os de Justino e Santo Agostinho.

Justino, que morreu por volta de 168 d.C. , é reconhecido como um dos primeiros a fazer apologia antijudaica, tendo indicado em vários textos que os judeus eram culpados de perseguir cristãos, e que faziam isso desde que "eles tinham matado Jesus".

Já Santo Agostinho, um dos principais pensadores cristãos da Idade Média, destacou ser necessário promover a coexistência pacífica com os judeus, mas pesquisadores lembram que ele assinalou que "eles não podem escapar do castigo divino de serem culpados da morte de Cristo".

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Legenda da foto, Jonathan Elukin: 'O antissemitismo moderno tem mais a ver com uma concepção política e racial do que com uma religião'

"Desde o século 2, a Igreja Católica desenvolveu uma teologia altamente hostil ao judaísmo", escreveu a historiadora italiana Anna Foa. "E o que se desenvolveu foi chamado de 'Teologia da substituição': com a chegada de Cristo, Deus teria substituído a antiga escolha (ou preferência) pelos judeus com seu novo favoritismo para os cristãos", acrescentou a historiadora.

Passada a Idade Média, o judaísmo voltou a obter sua condição de "igualdade" e avançou na secularização. Mas emergiram outros tipos de ataques: o econômico e o racial.

O professor Jonathan Elukin diz que desde o século 19 o povo judeu começou a ser visto "como uma ameaça econômica e política que precisava ser erradicada". "É quando começamos a falar sobre o antissemitismo moderno, que atingiu seu ponto máximo com o holocausto nazista."

Mas muitos historiadores rejeitam a versão de que os evangelhos, os escritos de Justino – que deram ênfase especial ao papel dos judeus na paixão e morte de Jesus – e alguns textos de Santo Agostinho geram um sentimento antijudaico.

"É certo que os evangelhos não têm nada a ver com esse sentimento. O de São João, supostamente antissemita, afirma que a salvação vem dos judeus", diz o acadêmico mexicano Jean Meyer à BBC Mundo, o serviço em espanhol da BBC News.

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Legenda da foto, No Império Romano, não era bem visto o caráter monoteísta da religião judaica, dizem especialistas

Meyer é autor do livro La Fábula del Crimen Ritual: El Antisemitismo Europeo 1880-1914 (A Fábula do Crime Ritual: o Antissemitismo Europeu 1880-1914) e escreveu num artigo que até o papa emérito Bento 16 diz que "essa afirmação não tem fundamento e nenhum cristão pode responsabilizar os judeus pela morte de Jesus".

"A morte de Cristo, diz o catecismo da própria Igreja Católica, foi o efeito de sua vontade e não da violência de seus inimigos", acrescenta o especialista mexicano.

O professor de história judaico-cristã Jonathan Elukin compartilha da mesma opinião e cita Santo Agostinho. "É verdade que em alguns escritos de Santo Agostinho há referências que podem ser vistas como antijudaicas, mas a coisa clara é que ele sempre apontou para o povo judeu como responsável pela salvação na qual os católicos acreditam", diz ele.

"Santo Agostinho marca, por exemplo, que o cristianismo toma o Antigo Testamento da tradição judaica, concedendo-lhe desta forma (ao judaísmo) uma condição de religião ancestral", acrescenta.

'Culpa' infundada

No entanto, para alguns pesquisadores, há posições que sustentam, do ponto de vista histórico, que a origem do antissemitismo não reside tanto nos acontecimentos da Paixão de Cristo como tal, mas nas interpretações daqueles momentos que vários autores fizeram ao longo dos séculos.

"A origem do antissemitismo está nos primeiros anos do cristianismo, mas não tanto por causa da Paixão de Cristo, mas por causa dos debates que duraram séculos entre o judaísmo e o novo cristianismo", diz Monika Schwarz-Friesel, especialista em questões religiosas na Universidade Técnica de Berlim.

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Legenda da foto, Nos escritos de Santo Agostinho há referências que podem ser vistas como antijudaicas, mas especialistas afirmam que ele destacou ser necessário promover a coexistência pacífica com os judeus

No livro Dentro da Mente do Antissemitismo, Schwarz-Friesel argumenta que "o antissemitismo tem uma origem que pode ser vista dois milênios atrás, que não se limita a ações concretas, mas a simples verbalizações – frases depreciativas sobre os judeus – que se tornaram comuns ao longo dos anos".

"E tudo isso aconteceu quando o judaísmo e o cristianismo se separaram e o ódio religioso passou de mão em mão, numa sequência que durou dois mil anos", explica a especialista.

"Entre muitas coisas, a acusação de que Jesus foi morto pelos judeus de acordo com a lei hebraica tinha a ver com esse ódio primário", acrescentou o estudioso.

No entanto, Schwarz-Friesel conclui que essa visão – de que os judeus eram os culpados – mudou com os anos dentro da Igreja Católica, especialmente por causa da evidência de que seria improvável que a lei judaica se aplicasse quando a região estiva sob o total controle dos romanos.

A verdade é que o debate continua num momento em que o sentimento antissemita está crescendo de forma alarmante na Europa e tanto a Igreja Católica quanto os líderes do judaísmo tentam aumentar as instâncias do diálogo para erradicar esse mal.

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