'Vendi sangue para sobreviver nos EUA'
- Author, Jorge Carrasco
- Role, BBC News Mundo
Como encontrar a cura para o câncer ou a Aids se não houver pessoas dispostas a se submeter a tratamentos experimentais? Mas quem são esses voluntários? O que os motiva a fazer isso? A que riscos estão expostos?
Nos Estados Unidos, todos os anos são realizados milhares de estudos clínicos remunerados.
Há um grande número de voluntários dispostos a participar desses experimentos. Alguns são migrantes e pessoas de baixa renda que buscam maneiras de pagar despesas básicas, como moradia, alimentação e transporte.
A indústria farmacêutica dos EUA - conhecida como Big Pharma - não pode vender produtos cuja eficácia e segurança não tenham sido testadas antes em seres humanos. E precisa receber um sinal verde da agência que controla os alimentos e medicamentos do país (FDA, na sigla em inglês).
Graças a esses estudos, são realizados avanços importantes no tratamento de todos os tipos de doenças, que salvam a vida de milhões de pessoas em todo o mundo.
Mas essas pesquisas com seres humanos também envolvem riscos, embora nem todas as "cobaias" sejam expostas a eles.
Os ensaios clínicos costumam ter quatro fases. Embora a fase 1 seja potencialmente mais perigosa - uma vez que, nesta etapa, os voluntários são os primeiros seres humanos a testar os medicamentos ou tratamentos - as fases 2, 3 e 4 não costumam envolver mais do que alguns efeitos colaterais, como náusea, perda de cabelo, erupções cutâneas e visão turva.
De qualquer forma, antes de participar de uma pesquisa científica, recomenda-se consultar um profissional de saúde.
Confira abaixo o relato de um cidadão cubano de 49 anos, identificado nesta reportagem como "Luís", que emigrou para Miami, nos EUA, em 2013.
No mesmo ano, em meio a sérias dificuldades financeiras, ele se inscreveu pela primeira vez como voluntário de pesquisa científica.
Desde então, ele viajou pelo país, de uma clínica para outra, participando de todo tipo de ensaio clínico em troca de dinheiro.
Esta é a minha filosofia: não tenho muito medo da morte, tampouco muito apego à vida.
Se algo acontecer comigo por causa de algo voluntário, paciência: me dei mal.
Talvez quando estiver à beira da morte, lamente ter colocado minha saúde em risco para ganhar US$ 6 mil em 15 dias. Mas onde você ganha tanto dinheiro em tão pouco tempo em Miami?
Decidi participar de um estudo clínico pela primeira vez em meio a uma situação de emergência. Eu morava sozinho em um quartinho de 4x4 dentro de um trailer. E trabalhava como jornalista para uma publicação digital que faliu.
Me restavam US$ 250 no bolso e não tinha como pagar o aluguel.
Uma amiga cubana estava participando havia cerca de seis anos de estudos clínicos pagos. Ela ganhava a vida assim porque não gostava de trabalhar para os gringos.
"Os gringos são exploradores", ela dizia.
Minha amiga não tinha casa. Ela vivia de hospital em hospital, sendo submetida a estudos quase todos os meses. Por exemplo, se a pesquisa durava 20 dias, ela vivia ali durante aquele período e, quando saía, ficava os dez dias restantes do mês na casa de algum parente.
Eles pagavam muito bem. Ela me contava que às vezes ganhava US$ 6 mil por apenas 15 dias de internação. Eu criticava ela. Ria dela. Dizia que era uma rata de laboratório.
Mas há momentos na vida em que você é atingido por duro golpe e se pergunta: de onde eu tiro dinheiro?
Lembrei então desta minha amiga e liguei para ela. Ela me deu o endereço de uma clínica em Miramar, na Flórida.
O comprimido 'não faz nada'
Foi ali que participei do meu primeiro estudo clínico, em 2013. Havia 180 pessoas, quase todas eram migrantes cubanos que tinham acabado de chegar aos EUA. Não havia um americano sequer.
Eu mesmo tinha acabado de migrar para o sul da Flórida. Havia saído de Cuba para a Espanha e da Espanha para o Canadá, onde cruzei a fronteira.
O estudo pagava US$ 2,8 mil para cada voluntário por dez dias de internação.
Fui até a clínica com minha carteira de identidade e meu número de seguro social. Eles me registraram no banco de dados e disseram que iriam entrar em contato.
Dois ou três dias depois, me ligaram. Era para testar um comprimido que estava prestes a ser lançado. E a mulher ao telefone me falou que o comprimido "não fazia nada".
Eles sempre dizem isso aos novatos. Em geral, nunca alertam que o remédio pode fazer mal.
No máximo, advertem sobre os efeitos colaterais, como coceira, diarreia, náusea ou dor de cabeça. Quando você participa pela primeira vez, eles não se importam, porque não te conhecem.
Mas, quando você vai à mesma clínica várias vezes e ganha a confiança deles, muitas vezes recomendam que você não se submeta a alguma medicação específica, caso algum voluntário tenha sofrido vômitos ou desmaios nas fases anteriores.
Dei entrada na clínica dias antes do início do estudo. Lá, eles explicam quantas coletas de sangue serão feitas no total e se certificam de que você não usou drogas ou álcool antes de dar entrada.
O dia em que te dão o comprimido para tomar pela primeira vez é conhecido como PK. É quando coletam mais sangue.
Você pode ser furado a cada 15 minutos nas primeiras quatro ou seis horas, para ver o impacto da medicação em seu corpo.
Como não permitem que você saia do hospital, o que os voluntários fazem no tempo livre é ver televisão, jogar xadrez e dominó. Outros fazem piadas, falam bobagem e compartilham suas histórias.
Não é permitido ter relações sexuais, e as mulheres dormem separadamente dos homens. Tampouco você pode comer mais do que te oferecem no café da manhã, almoço e jantar.
Se te pegam fazendo alguma dessas coisas, te tiram da clínica e não te pagam.
Ganhar dinheiro
Quando o estudo acabou, me deram o cheque e fui embora. Senti um alívio... não porque tinha terminado, mas porque eu tinha dinheiro.
Também estava feliz que não tinha acontecido nada comigo. Só fiquei com alguns hematomas no antebraço.
Essa foi a parte mais dolorosa, além do fato de que eu tive que vender meu sangue para sobreviver.
Fui até a minha casa e paguei o aluguel. Meu quarto custava uns US$ 500 por mês. Comprei comida, e o dinheiro que sobrou dava para pagar vários meses de aluguel.
Quando contei à minha amiga, ela ficou feliz. Eu também estava. Sempre agradeci a ela por me dar essa "luz", porque nessa cidade muitas vezes é difícil encontrar uma maneira de ganhar dinheiro.
Nesse primeiro estudo conheci "Nica". Chamavam ele assim porque era da Nicarágua. Zombava dele pelas cicatrizes que tinha nos antebraços, por ter sido furado durante tantos anos.
"Pode zombar, se você continuar com isso, vai ter (cicatrizes) um dia também", dizia ele para mim, enquanto mostrava as marcas em forma de pontos nos antebraços.
Nica me disse que em poucos dias precisariam de voluntários para outro estudo em Daytona.
Pagariam US$ 6.390 por 18 dias.
Quando você entra nessa, 15 dias depois de sair um estudo, começa a procurar o próximo.
Em fevereiro de 2014, participei do segundo.
Era um comprimido também. Esse estudo foi tão bom que Nica, que estava nessa há mais de 15 anos, disse que foi o melhor que já fez.
No primeiro dia, nos deram um comprimido às 8h da manhã - e deste momento até as 22h da noite, só coletaram sangue quatro vezes. No restante dos dias, fomos submetidos apenas a uma coleta diária.
Nica era gente boa, mas feio demais. Ele gostava de mulheres mais novas e andava com uma foto de uma garota de 18 anos. Dizia que ela estava apaixonada por ele e iam se casar.
Eu dizia a ele: "Nica, é porque você está com dinheiro".
Por cinco anos, me submeti a uma série de estudos clínicos, uma média de seis ou sete por ano. Durante 2014 e a metade de 2015, me sustentei apenas com o que ganhava nas clínicas.
Fui para a Flórida, Arizona, Texas, Illinois, Wisconsin. Cruzei as estradas dos EUA para ir até as clínicas.
Em 2015, conheci minha mulher e me mudei para um apartamento com ela.
Minha esposa e muitas pessoas me diziam que os estudos clínicos eram um risco para a saúde, que não havia necessidade de fazer isso, que eu tinha talento para sobreviver com outra coisa. Que era preferível ganhar US$ 8,46 por hora.
Em Miami, tem gente que ganha bastante dinheiro, mas muitas pessoas trabalham por um salário mínimo e não recebem nem US$ 2 mil por mês.
As pessoas que trabalham por um salário mínimo em uma cidade como essa têm que fazer mais de 40 horas semanais para poder viver. Em parte, é por isso que tive dificuldade de me adaptar aqui.
Se você chega a este país com 14 ou 15 anos, tem uma vida pela frente. Mas cheguei com mais de 40.
Nesse momento, o que você quer é acelerar as coisas. Demonstrar logo que você tem conhecimento para fazer algo. Você precisa avançar em outro ritmo.
Em todos os lugares por onde passei, meus chefes reconheciam que eu trabalhava e me expressava bem, que era educado. Mas eu não via prosperidade.
Por isso, acho que os estudos são uma boa ajuda financeira, e os da fase 3 e 4, que são aqueles de que participei, não são tão perigosos como se imagina. Embora minha mulher conheça o caso de um senhor que perdeu um olho.
Também é necessário que haja pessoas dispostas a ajudar a ciência a testar medicamentos novos. Me sinto útil nesse sentido, mas o que mais me motivou foi o dinheiro.
18 dias com diarreia
Toda vez que voltava de uma clínica, minha esposa dizia que eu chegava um pouco alterado. Segundo ela, isso durava dois ou três dias, embora eu não percebesse.
No caso da amiga que me apresentou aos ensaios, o namorado a deixou porque, segundo ele, a pele dela cheirava a medicação o tempo todo. A substâncias químicas. Há anos ela se submetia a praticamente um estudo por mês.
Lembro da vez que ela ficou com catarro e coriza (irritação nasal) por vários meses após um estudo. Ficou tão assustada que parou por um tempo.
Nunca participei de uma pesquisa em que tenha acontecido algo de mal a alguém. Sim, tive amigos que desmaiaram e tiveram que abandonar o estudo. Se você desmaiar ou vomitar o comprimido, está fora. Só é pago pela noite em que foi internado e se dá mal.
Para qualquer contingência, há sempre um médico ou enfermeiro por perto.
Em 2017, participei de um estudo em Dallas, no Texas, que pagava US$ 7 mil por 23 dias de internação - dos quais, passei pelo menos 18 dias com diarreia.
Não foi um estudo ruim, porque eles só coletavam sangue duas vezes por dia. Mas eu tive muita diarreia e voltei para casa muito fraco.
Nunca tive medo dos efeitos que os medicamentos poderiam me causar no longo prazo, mas recusei dois estudos.
Em um deles, o medicamento não tinha sido testado em seres humanos antes e quando testado em ratos causou palpitações e inflamação no fígado. Também pagavam muito pouco. Cerca de US$ 4.950 por 20 dias. Não era conveniente.
E rejeitei outro porque tiravam muito sangue. Não pagavam mal, mas era demais.
Quando coletam muito sangue, o nível de hemoglobina diminui muito e não te admitem em nenhuma clínica.
No ano passado, passei quase o tempo todo com a hemoglobina baixa. Toda vez que eu fazia exames médicos para entrar em um estudo, minha taxa era de cerca de 12,8.
Para ser aceito em um estudo clínico, esse número deve estar acima de 13 em média. Algumas pessoas recuperam hemoglobina rapidamente. Outros, não. Eu me recupero muito devagar.
Por isso, precisei muitas vezes reforçar minha alimentação (comer mais carne, ovos, espinafre, brócolis) para conseguir participar do estudo seguinte.
Metas
No início, eu tinha um objetivo com cada estudo. Eram pequenas metas.
Primeiro, comprar um carro, depois um computador novo. Em seguida, fazer uma viagem a Orlando com minha esposa. Ir ao México. À Costa Rica. À Espanha.
No fim das contas, nunca fomos a muitos desses lugares. O carro, sim, eu comprei.
É errado pensar que todos aqueles que fazem estudos clínicos são pobres.
Muita gente faz isso por necessidade, obviamente. Uma vez, conheci um rapaz que estava estudando para ser neurologista, e era assim que ele pagava os estudos.
Mas o que outras pessoas querem é bancar uma vida de luxo. Já vi gente chegar às clínicas de Mercedes-Benz e com várias correntes de ouro.
O que eu gosto de fazer com o dinheiro que ganho nos estudos é comer fora. Aproveito também para poupar, pensando no que pode vir pela frente.
Já tenho 49 anos e, quando você passa dos 55 anos, poucos estudos te aceitam. A faixa etária em que há mais oportunidade é entre 18 e 45 anos.
A pessoa que quer viver disso tem um prazo limitado.
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