O aristocrata francês que entendeu a evolução 100 anos antes de Darwin

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, Leclerc diferenciou-se por suas contribuições ao cálculo infinitesimal
  • Author, Dalia Ventura
  • Role, BBC News Mundo

Charles Darwin publicou sua obra-prima A Origem das Espécies em 1859, na qual descreveu um mundo antigo em que a vida mudava gradualmente de uma forma a outra sem a necessidade de intervenção sobrenatural.

E quando a fúria desencadeada por suas ideias radicais ainda não estava apaziguada, o naturalista começou a ler um livro de um sujeito chamado Georges-Louis Leclerc, um aristocrata francês cujo título de nobreza era conde de Buffon.

Ele havia morrido cerca de 80 anos antes e, quando despertou o interesse do pioneiro da teoria da evolução, já não era tão conhecido.

Darwin ficou muito surpreso.

"Páginas inteiras (do livro de Buffon) são ridiculamente parecidas com as minhas", escreveu ele a um amigo. "É surpreendente ver o seu ponto de vista nas palavras de outro homem."

Tal foi o impacto que em edições posteriores de A Origem das Espécies, Darwin reconheceu Buffon como uma das "poucas" pessoas que tinham compreendido, antes dele, que as espécies mudam e evoluem.

"E mais: no 100º aniversário de Darwin, houve uma série de homenagens em que se disse que o trabalho de Darwin não pode ser subestimado, mas que cada ingrediente necessário para a teoria da evolução já estava presente nas ideias de Buffon", disse o escritor Jason Roberts à BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC.

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Uma conquista enorme, mas que Buffon não podia apresentar abertamente em seu tempo: ele tinha que disfarçar, observou Roberts, que investigou a vida e obra de Darwin para o livro Every Living Thing ("Cada Ser Vivo", em tradução livre),

"Vários historiadores dizem que (Buffon) sabia que não era o momento adequado para divulgar essas informações, pois o tempo todo ele tinha problemas com a igreja.

"Foi Buffon quem disse pela primeira vez que a Terra tinha talvez bilhões de anos, e a escala de tempo era tão grande que a vida poderia ter evoluído a partir de um único ancestral."

Dizer algo assim o expôs e fez com que fosse chamado de herege, por apontar que a Terra era mais antiga do que dizia a Bíblia.

"Ele sabia que era radical. Por isso, assim que escreveu, acrescentou um parágrafo dizendo: 'Mas esta é, claro, uma especulação ridícula, porque o Livro de Gênesis nos diz o contrário'."

Não foi a única vez que ele usou essa estratégia de expor suas ideias e depois atenuá-las em suas obras, particularmente em sua magistral História Natural, Geral e Particular (1749-88).

São ideias que surpreendem hoje tanto quanto surpreenderam Darwin há mais de um século e meio, pois a compreensão do cientista francês ia muito além da teoria da evolução.

Da mudança climática...

Legenda da foto, Livro de Roberts fala sobre Buffon e Carl Linneo: eles dedicaram suas vidas à mesma tarefa, mas com visões opostas

Embora Buffon seja lembrado como um aristocrata, ele só recebeu seu título de nobreza aos 65 anos, além de um lugar fixo na intelectualidade francesa como um matemático, escritor e erudito brilhante.

Sua origem, na verdade, era muito mais humilde: era filho de um cobrador de impostos na Borgonha rural, e a expectativa era que também se tornasse um funcionário público menor.

"Mas quando seu tio-avô morreu, deixou-lhe uma fortuna. De repente, aos 11 anos, seu mundo mudou, e ele foi criado para ser um aristocrata presunçoso, embora tenha acabado com muito mais interesse na aristocracia da mente, das ideias."

E dedicou grande parte de sua fortuna a criar o que Roberts descreve como "a primeira reserva ecológica".

Ela comprou 40 hectares de terra, plantou árvores e preparou-se para observar não só como elas cresciam, mas também quais espécies surgiam.

"Foi talvez a primeira pessoa a estudar a natureza no seu contexto, em vez de espécimes mortos isolados, e, como sabia que tudo demoraria a amadurecer, quando tinha 27 anos, impôs-se um rigoroso regime físico para se manter na melhor forma possível durante o maior tempo possível."

Aparentemente, surtiu efeito porque "viveu mais de 80 anos, e as pessoas diziam que até morrer parecia ser 20 anos mais jovem".

Crédito, Wellcome Collection

Legenda da foto, Uma das muitas ilustrações da 'História Natural, Geral e Particular', composta por 36 volumes, que Buffon levou 50 anos para escrever

Foi também em sua propriedade onde ocorreu um experimento conhecido: ele aqueceu e deixou em vermelho vivo bolas sólidas de ferro de diferentes tamanhos e observou quanto tempo demoravam para esfriar.

Com os dados que obteve, extraiu uma equação sobre a relação entre o tempo de resfriamento e o volume, e usou-a para calcular a idade da Terra.

Seu resultado foi sem sentido, mas tinha lógica: se, como tinham indagado pensadores como Isaac Newton, a Terra poderia ter começado como um pedaço de ferro vermelho brilhante, talvez um remanescente da colisão de um cometa com o Sol, quanto tempo teria demorado para que esfriasse até que pudesse ser habitada, no ponto em que a água não evaporasse?

"Nunca ficou totalmente claro se ele realmente fez essa experiência, ou se foi uma experiência hipotética para que as pessoas entendessem o conceito. Ele chegou à conclusão de que foi um tempo muito longo", diz Roberts.

"E, escrevendo na década de 1750, ele disse que a mudança climática era uma realidade, que os humanos estavam mudando indelevelmente o meio ambiente do planeta. Ele não previu especificamente o aquecimento global, porque era uma era pré-industrial, mas advertiu que pensássemos mais profundamente sobre por que estávamos explorando recursos e nos assentando em grande escala sem ser necessário."

... até o DNA

Crédito, Wellcome Collection

Legenda da foto, Retrato do conde de Buffon que ficava em uma farmácia em Granada, na Espanha

Como se isso não bastasse, suas observações o levaram a intuir a existência do DNA, o ácido nucleico que contém as informações genéticas usadas no desenvolvimento e funcionamento de todos os organismos vivos, responsável pela transmissão hereditária.

"O conceito de Buffon era que, se toda a vida tinha evoluído a partir de um ancestral único, isso significava que os componentes básicos da vida eram os mesmos, que havia moléculas orgânicas que se montavam para criar organismos", conta Roberts.

"Então ele disse, basicamente, 'tem que haver algo no processo de reprodução que mudou com o tempo, de maneira que as regras de montagem tenham sido diferentes'."

"Se fosse esse o caso, ele questionou, então fazia sentido que houvesse algum tipo de matriz interna, um 'molde' ou um conjunto de instruções que dessem aos organismos sua forma particular."

Como no caso de Darwin, que sem dúvida merece o crédito pela teoria da evolução, Gregor Mendel merece o crédito por ter resolvido os aspectos das regras da genética na herança vegetal.

"Mas Buffon lançou a ideia. E não podemos afirmar com certeza que tenha inspirado Mendel, embora tenhamos o livro que ele leu quando começou a experimentar e ele contenha uma passagem sobre Buffon que está sublinhada", afirma o escritor.

Todas essas ideias, por mais que as disfarçasse, levaram Buffon a ser oficialmente censurado por instituições da Igreja Católica e pela Universidade da Sorbonne, que na época era controlada pela igreja.

"Ameaçado apresentar acusações formais contra ele se não renegasse suas afirmações. Ele escreveu uma declaração dizendo: 'Eu me cubro de pó e cinzas e renego qualquer coisa no meu livro que seja contra os ensinamentos da igreja'. Ele pegou essa carta e a colocou na próxima edição de sua obra, e não mudou uma palavra. E disse: 'É melhor ser recatado do que ser enforcado'."

Os motivos do esquecimento

Tendo feito tudo isso e muito mais, por que Buffon não é mais conhecido?

"Ele era", diz Roberts.

"Quando Buffon morreu, ela era uma das pessoas mais famosas do mundo. Em Paris havia uma enorme estátua em sua homenagem e cerca de 20 mil pessoas saíram às ruas em seu funeral. Seus escritos foram tão populares que durante o século seguinte seguiu sendo o autor francês mais popular."

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Legenda da foto, Estátua do naturalista Georges-Louis Leclerc de Buffon (1707-1788), no Jardin des Plantes, em Paris

As razões para o esquecimento são várias, incluindo o fervor anti-aristocrático da Revolução Francesa.

Mas, acima de tudo, a rivalidade com outro pioneiro científico que foi seu contemporâneo e também se dedicou à tarefa de explorar a vida: o sueco Carl Linneo, pai da taxonomia.

Era seu oposto, inlusive na maneira de encarar sua vida pública. Linneu cultivava a admiração (chamava seus pupilos de "apóstolos"), enquanto Buffon enxergava elogios públicos como "um espectro vão e enganoso".

No entanto, o que mais favoreceu Linneu foi uma competição ideológica póstuma incomum na qual sua visão de mundo estava mais em sintonia com as aspirações das potências europeias.

"Linneo foi o grande classificador e taxônomo que quis categorizar e rotular tudo. Com a ascensão do colonialismo global, o conceito de apagar os nomes indígenas para as espécies, ou qualquer conhecimento prévio sobre a vida, e essencialmente colonizar conceitualmente através da concessão de novos 'nomes científicos', que muitas vezes imortalizavam quem 'descobria', apelava à mentalidade da época", explica Roberts.

"Isso, e a ideia de que a própria natureza poderia ser domesticada."

Buffon concordou que o conceito de espécie era necessário para se garantir que se falava do mesmo animal. Mas não era necessário colocar tudo em hierarquias ordenadas, pois isso implicava impor à natureza uma ordem que não existia, explica Roberts.

"Ele disse: 'não finjamos que estamos domesticando a natureza colocando essa estrutura artificial sobre ela'."

A discordância entre os dois não se reduzia à natureza que rodeava os humanos, mas a eles próprios.

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Legenda da foto, A capa do 'Il Nuovo Buffon', uma versão italiana para crianças, do começo do século XX, da famosa obra de Buffon publicada na primeira metade do século XVIII

Linneu acreditava que os humanos deveriam ser classificados de acordo com os valores europeus. É por isso que lhe é atribuído ter estabelecido categorias raciais para as pessoas.

Ele colocou os europeus brancos claramente no topo. O Homo europaeus, como ele o chamava, era loiro, de olhos azuis, "gentil, agudo e inventivo".

O Homo africanus era escuro e "lento, malicioso e negligente" enquanto o Homo americanus era de pele vermelha e "inflexível e alegre", e o amarelo Homo asiaticus, "severo, altivo, ganancioso".

Buffon rejeitou essa hierarquia racial.

"As diferenças são meramente externas", escreveu ele em 1758. "As alterações da natureza são superficiais."

"Além disso, pensava que os humanos provavelmente evoluíram para sua forma atual não na Europa, a crença comum, mas sim em algum próximo ao (à linha do) Equador, e certificou-se de que incluísse o norte da África e a China. Isso quando se assumia que os brancos eram o homem original e todos os outros eram uma cópia ruim", afirma Roberts.

"Muitos cientistas no século XIX incomodavam-se com a abordagem de Buffon."

É por isso que ele foi relegado para o segundo plano.

Mas, pouco a pouco, desde o século XX, a visão de Buffon e a importância das suas ideias começaram a ser redescobertas.

Com o avanço da ciência, foi-se confirmando o quão pertinente muito do que o aristocrata francês escreveu, e cada vez mais se reafirma o lugar que merece na história.