O que os guerreiros de terracota revelam sobre cotidiano da China Antiga
- Author, Xiaoying You
- Role, BBC Innovation
Eles não falam. Não se mexem. Mas os enigmáticos guerreiros chineses de terracota são excelentes na arte de contar histórias.
Durante a escavação de um poço na região central da China, 50 anos atrás, um grupo de agricultores descobriu acidentalmente o monumental conjunto de estátuas.
Desde então, as figuras de argila em tamanho real vêm revelando detalhes impressionantes sobre os soldados de Qin – o Estado feudal que unificou a China no ano 221 a.C., sob o governo do primeiro imperador do país, Qin Shi Huang.
Os guerreiros foram descobertos em fossos enterrados a nordeste da cidade de Xian, perto do túmulo do imperador.
E seu exame detalhado mostra como era a vida na antiga dinastia Qin, desde as roupas que as pessoas vestiam até os locais de origem dos soldados do exército.
Certamente, não são os sapatos a primeira coisa que chama a atenção nessas esculturas com 2,2 mil anos de idade, portando armas reais e dispostas em formação militar para proteger o imperador na vida após a morte.
Mas uma análise preliminar dos seus calçados demonstrou que esses humildes acessórios podem ter desempenhado papel fundamental no exército de Qin, contribuindo para sua capacidade de conseguir uma vitória após a outra.
A análise ainda aguarda o escrutínio de outros cientistas ou sua publicação em revistas científicas.
Mas dois pesquisadores chineses, responsáveis pelo estudo, analisaram os sapatos de um arqueiro ajoelhado – a única espécie de guerreiros de terracota escavada até agora que revela a sola dos seus sapatos.
Eles fizeram uma cópia do calçado, usando os mesmos métodos e materiais de fabricação de sapatos usados pelo povo Qin na época da elaboração dos guerreiros de Xian.
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O estudo comparou os sapatos reproduzidos com dois pares de calçados modernos com múltiplas camadas.
A conclusão foi que as réplicas eram extremamente flexíveis e permitiam que seus usuários caminhassem de forma "mais confortável, estável e eficiente".
As solas dos calçados também exibiram melhores propriedades antideslizantes em condições úmidas.
Seus "processos de produção únicos e magníficas técnicas artísticas eram impressionantes", segundo Cha Na, um dos autores do estudo e estudante de graduação da Faculdade de Engenharia e Ciências da Biomassa da Universidade de Sichuan em Chengdu, na China.
O que mais surpreendeu Cha foi a sola dos sapatos, conhecida como sola de "mil camadas". Ela é composta de diversas camadas de folhas de rami coladas, costuradas e comprimidas entre si.
"Quando tive nas mãos as réplicas modernas dos calçados que podem ter sido usados por soldados Qin há mais de 2 mil anos, fiquei profundamente impressionado com o seu requinte", afirma Cha.
"Pude observar claramente os pontos que foram pressionados através das solas de 'mil camadas' e organizadamente alinhados. As solas eram extremamente macias, confortáveis e podiam ser dobradas com muita facilidade."
A sola dos calçados do guerreiro ajoelhado foi dividida em três seções, cada qual com diferentes números de pontos. A seção do antepé tinha os padrões mais densos, seguida pelo calcanhar e, por fim, pelo meio do pé.
Este mesmo design foi adotado nas réplicas elaboradas pelos pesquisadores. Eles afirmam que este detalhe se baseava nas necessidades dos pés humanos e pretendia fornecer "conforto, apoio e durabilidade ideais".
O tecido absorvente utilizado na sola também teria ajudado os solados em condições úmidas, fornecendo um calçado antiderrapante que teria permitido que eles se movessem com agilidade sobre terrenos de difícil acesso.
"As solas dos sapatos são pequenas, mas elas desempenham papel fundamental para [nos ajudar a] compreender estilos de vida, técnicas de produção e culturas antigas", afirma Cha.
Cores vivas e contrastantes
As roupas dos guerreiros são igualmente fabulosas. Suas cores eram brilhantes.
Quando foram criados originalmente, os guerreiros de terracota foram pintados com tons brilhantes de vermelho, roxo e verde. Acredita-se que fossem as mesmas cores das roupas usadas pelos próprios soldados Qin.
Em muitos casos, a tinta não sobreviveu aos séculos de incêndios e enchentes enfrentados pelos guerreiros de Xian. Mas alguns deles foram desenterrados com sua coloração original, em grande parte ainda intacta.
Muitos desses guerreiros de terracota recém-desenterrados tinham características faciais, cabelos e roupas em cores vivas.
Mas a exposição ao ambiente fez com que a tinta dos guerreiros se desidratasse e descascasse em questão de minutos, deixando apenas a argila nua.
Um estudo de 2019 concluiu que os pigmentos eram originalmente misturados com diversos aglutinantes à base de proteínas, como colas de origem animal, leite e ovos, antes dos soldados serem pintados. Sua função era ajudar a fixar a tinta.
O estudo também concluiu que diferentes esculturas recebiam diferentes aglutinantes. Isso indica que os pintores provavelmente encontravam os materiais localmente ou usavam seus próprios costumes durante o processo de produção.
O fundo aplicado sobre a argila cozida antes da pintura era produzido com seiva de árvore processada e altamente sensível a alterações de umidade. Por isso, ele seca e descasca facilmente, levando com ele a tinta.
Mas cientistas e especialistas em preservação vêm desenvolvendo formas de conservar os padrões policromáticos.
Exames químicos e microscópicos da tinta encontrada em outros guerreiros também forneceram novas indicações sobre sua provável aparência antes de serem enterrados.
Reconstruções baseadas nessa pesquisa parecem indicar que a moda na era Qin, pelo menos no que se referia ao exército, eram as cores contrastantes.
Todas as classes de guerreiros vestiam conjuntos de roupas com combinações de cores chamativas, segundo Yuan Zhongyi, um dos primeiros arqueólogos enviados para o local das escavações, em 1974.
Chamado de "o pai dos guerreiros de terracota" pela imprensa chinesa, Yuan descreveu em detalhes as cores das roupas dos guerreiros em um estudo publicado em 2001.
Ele conta que foi encontrado um general vestindo um longo casaco interno vermelho, um sobretudo longo roxo escuro e calças de tom verde-rosado.
Ele usava ainda uma coroa marrom, sapatos pretos e uma armadura multicolorida presa por cordões vermelhos.
Outro guerreiro ajoelhado vestia um longo sobretudo verde com colarinho e pulsos vermelhos, calças azuis cobertas com protetores de pernas roxos, uma faixa vermelha na cabeça e sapatos de tom preto acastanhado, segundo Yuan.
O pesquisador menciona duas cartas escritas por soldados Qin, encontradas em um antigo túmulo que hoje faz parte da província de Hubei, na região central da China.
As duas cartas, entalhadas em tiras de bambu, mostram que os dois soldados eram irmãos. Eles pediam à sua família que mandasse dinheiro e roupas.
Entre os mais de dez tons encontrados pelos arqueólogos nas esculturas, o roxo é o mais enigmático, já que é uma tintura sintética de produção complexa.
Pesquisadores indicaram que os monges taoistas descobriram acidentalmente o pigmento da "púrpura chinesa" ao produzir jade artificial com vidro.
O mesmo ocorreu com o "azul chinês", um pigmento relacionado que também foi descoberto nos guerreiros de terracota.
Eles acreditam que os monges faziam experiências, misturando bário com diversos minerais contendo cobre.
As pesquisas de Yuan indicam que o roxo era uma das quatro cores mais populares das roupas do povo Qin, ao lado do verde, vermelho e azul.
Não existem registros históricos da existência dos guerreiros de terracota.
Isso significa que eles passaram mais de dois milênios esquecidos na necrópole de Qin Shi Huang.
Mas existem indicações de que o exército de 7 mil soldados de argila pode ter sido elaborado com base em pessoas reais como modelos.
Um estudo examinou as orelhas de 30 estátuas e encontrou "variações consideráveis" dos seus formatos.
Os pesquisadores chegaram ao ponto de afirmar que "não há duas orelhas exatamente iguais".
Em 2022, um grupo de pesquisadores comparou as características faciais de 58 guerreiros com 29 grupos étnicos chineses modernos, como os mongóis, Jingpo e Xibo. Eles concluíram que as características dos guerreiros de Xian "relembram muito" as dos povos chineses contemporâneos.
Os pesquisadores afirmam que esta conclusão indica que as estátuas foram baseadas em retratos reais. E o estudo também revelou que as esculturas se parecem mais com pessoas do norte e do oeste da China.
A arqueóloga Li Xiuzhen, do University College de Londres, participou dos dois estudos. Ela afirma que o povo Qin se originou na parte ocidental da China.
Parte do seu exército foi formada por integrantes do povo Rong, composto por diversas tribos nômades que viviam no noroeste do país, que havia sido conquistado pelos Qin.
Os Rong lutaram pelos Qin e venceram seis Estados rivais, segundo Li.
"Por isso, muitos guerreiros de terracota tinham as características faciais do povo Rong", explica ela.
Estas descobertas reforçam a ideia de que o vasto mausoléu do exército de Xian foi criado para reproduzir as forças armadas que serviram ao imperador Qin durante sua vida e protegê-lo após a morte.
A enorme quantidade de armas de bronze descoberta nos fossos com os guerreiros, incluindo 40 mil pontas de flechas, é mais um ponto que sustenta esta teoria.
Até agora, foram escavados apenas cerca de 2 mil guerreiros de terracota, mas outros são descobertos todos os anos. Os arqueólogos chineses acreditam que pode levar um longo tempo para escavar todos os guerreiros de Xian.
E, à medida que eles são retirados dos seus túmulos, seus segredos continuam a revelar novas indicações da vida na China Antiga da dinastia Qin.
O que já ficou claro é que o conhecimento e as técnicas usadas na sua criação são tão admiráveis quanto a força militar que eles representam.
"Nossas pesquisas demonstraram mais uma vez que as pessoas que elaboraram os guerreiros de terracota não eram apenas trabalhadores, mas artistas que criavam suas obras com base na realidade", conclui Li.
Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Innovation.