O avanço da cocaína mais forte e mais pura no mundo

Cocaína confiscada pela polícia portuguesa em latas de suco

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Legenda da foto, Cerca de 23,5 milhões de pessoas entre 15 e 64 anos consumiram cocaína no último ano em todo o mundo

Nunca antes tanta cocaína esteve disponível no mundo — e nunca tantas pessoas consumiram a droga.

Dados do Relatório Mundial sobre Drogas da Organização das Nações Unidas (ONU) de 2024 mostram que o mercado ilegal de cocaína atingiu seu recorde nos últimos anos.

A alta é motivada por um aumento na oferta diante da alta produtividade na América Latina, mas também de um crescimento na procura pela droga em todo o planeta.

Apesar do número de apreensões ter crescido exponencialmente nos últimos anos — em uma taxa inclusive superior à da expansão do mercado —, o saldo final ainda é de um aumento considerável na disponibilidade de cocaína.

Especialistas dizem ainda ser uma grande fonte de preocupação um processo atípico observado especialmente na Europa, que é hoje o segundo maior mercado consumidor da droga.

Enquanto o preço da cocaína segue estável há meses em muitos países, a droga vendida ilegalmente está cada vez mais pura.

"Na prática, a cocaína está mais barata, porque, pelo mesmo preço, é possível comprar a droga bem mais pura", avalia Thomas Pietschmann, um dos pesquisadores responsáveis pelos relatórios elaborados anualmente pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC).

Embora especialistas admitam que os dados sobre a composição das drogas comercializadas no mundo são mais confiáveis nos países europeus, eles afirmam também que a tendência no crescimento na pureza da cocaína já é uma realidade mundo.

"A cocaína lançada hoje no mercado é mais pura do que nunca — e ainda é vendida a preços comparativamente mais baixos", afirma Bernd Werse, diretor do Centro de Pesquisa de Drogas (CDR) da Universidade de Frankfurt.

O cenário de crescimento global da droga, por sua vez, impacta diretamente no aumento do consumo nos países de trânsito do tráfico, entre eles o Brasil.

'Cocaína de sobra'

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A abundância de cocaína no mercado atual tem sua origem especialmente na América do Sul, mais especificamente na Colômbia, na Bolívia e no Peru.

A cocaína é extraída das folhas da planta de coca, chamada oficialmente de Erythroxylon coca, que é nativa desses países.

Para produzir a droga, as folhas de coca são maceradas na presença de ácido sulfúrico, resultando em uma pasta. Ao misturar essa pasta com ácido clorídrico, os criminosos produzem o cloridrato de cocaína, conhecido como cocaína em pó.

Os três países sul-americanos são responsáveis por quase 100% da produção mundial de coca, apesar de novos campos de cultivo serem encontrados pelas autoridades em outros países de tempos em tempos.

Estima-se que, só de cocaína pura, tenham sido produzidas cerca de 2,757 toneladas em 2022 — um aumento de 20% em relação a 2021 —, segundo a ONU.

Laurent Laniel, pesquisador da Agência de Drogas da União Europeia (Euda, na sigla em inglês), atribui o cenário às inovações incorporadas ao cultivo nos últimos anos, com mais investimentos em fertilizantes e investigação genética para obtenção de mais e novas variedades de coca.

"Os produtores usam cada vez mais espécies que possuem maior quantidade de cocaína em suas folhas, são mais resistentes à fumigação [em ações de combate às plantações] e rendem mais de maneira geral", diz.

Ao mesmo tempo, também foi registrado um crescimento no cultivo da coca. Entre 2021 e 2022, a área cultivada aumentou 12%, chegando a 355 mil hectares.

Só na Colômbia, o país líder em produção, a área cultivada cresceu mais de 25 mil hectares — o equivalente a aproximadamente 34 mil campos de futebol — entre 2021 e 2022.

Em 2023, segundo dados do Ministério da Defesa, havia 246 mil hectares de coca cultivados no país — o equivalente a cerca de um terço da área dedicada ao cultivo de café, o produto agrícola mais exportado pela economia local.

Na Colômbia, em especial, uma mudança na estratégia adotada pelo governo para combater as culturas ilícitas impulsionou a ampliação do cultivo.

Durante anos, o governo colombiano usou a fumigação aérea com glifosato para acabar com as plantações.

Essa política, estreitamente alinhada com as recomendações dos Estados Unidos, foi suspensa em 2015 devido a dúvidas sobre os efeitos do uso desse herbicida na saúde.

Ana María Rueda, coordenadora da área de Políticas sobre Drogas da Fundação Ideias para a Paz, explicou em entrevista à BBC News Mundo que "na ausência de pulverização aérea, o arbusto de coca atinge os seus níveis máximos de produtividade".

Ou seja, a mesma planta de coca produz mais cloridrato de cocaína e podem ser produzidas seis colheitas por ano, em vez de três.

Segundo especialistas, o aumento na produção de cocaína no mundo e o cultivo de plantas mais "potentes" ajuda a explicar não só a grande disponibilidade da droga no mercado mundial, mas também a alta na pureza das substâncias apesar da estabilidade nos preços.

"Há muita cocaína na Colômbia, há mais cocaína na Bolívia e no Peru, há mais opções de onde comprar, e há mais cocaína em todo o mercado. Isso dá ao traficante a liberdade de estabelecer novas condições", diz Ana María Rueda.

Ainda segundo a ONU, o aumento prolongado na oferta e demanda de cocaína "coincide com um aumento da violência em países ao longo da cadeia de suprimentos, principalmente no Equador e nos países do Caribe, e um aumento nos danos à saúde nos países de destino, incluindo a Europa Ocidental e Central."

Fazendeiro não identificado pulveriza pesticida em sua plantação de coca em 31 de agosto de 2002 em La Hormiga, Colômbia

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Legenda da foto, Colômbia, Bolívia e Peru são responsáveis por quase 100% da produção mundial de coca

Consumo e pureza nas alturas

Mas apesar do aumento da produção na América do Sul ser apontado como a razão principal por trás do cenário atual, os especialistas são categóricos ao afirmar que também há um crescimento notável no consumo.

"Não podemos negar que há uma prontidão dos mercados para consumir essa produção, principalmente na Europa Ocidental nos últimos anos", avalia Thomas Pietschmann, do UNODC.

Em um relatório divulgado em 2024, com dados de 2022, as Nações Unidas estimam que algo em torno de 0,45% da população entre 15 e 64 anos havia usado cocaína nos 12 meses anteriores.

Isso equivale a algo em torno de 23,5 milhões de pessoas — mais do que toda a população do Estado de Minas Gerais.

Isso significa que, entre 2018 e 2022, o número de consumidores da droga cresceu algo em torno de 22% em todo o mundo.

A percepção de especialistas da área e profissionais da saúde envolvidos no acolhimento e tratamento de usuários é que esse aumento segue acontecendo — isso se não se tornou ainda mais vertiginoso.

Nesse contexto, chama a atenção dos especialistas o avanço do consumo na Europa, ao mesmo tempo em que a droga comercializada no continente fica cada vez mais pura e potente.

Um novo relatório da Agência de Drogas da União Europeia (Euda), divulgado em junho de 2024, aponta que quase 4 milhões de pessoas entre 15 e 64 anos usaram cocaína nos países da União Europeia (UE) no último ano — algo em torno de 1% dos cidadãos desta faixa etária.

Esse total inclui desde pessoas que experimentaram a droga apenas uma vez nos últimos 12 meses até usuários regulares.

Mas, entre as quase 60 mil pessoas que receberam algum tipo de tratamento para vício em cocaína em qualquer um dos países da UE, 27% relataram o uso diário da droga.

"Quanto mais tempo as pessoas usam cocaína, mais elas consomem", alerta Pietschmann.

Segundo a Euda, os países com maior prevalência no uso de cocaína entre a população adulta foram Holanda, Espanha, Irlanda, Noruega e Dinamarca.

A agência também identificou um aumento de 80% nos traços de cocaína encontrados nas águas residuais de diversas cidades no centro e sudeste da Europa desde 2011.

Somado a isso, a pureza média da cocaína disponível para venda na Europa atingiu um nível 45% maior em 2022 do que o registrado uma década antes, ao mesmo tempo em que os preços permaneceram estáveis.

"Estamos observamos consequências na saúde pública causadas por esse cenário, mas também na segurança", diz Laurent Laniel, analista do órgão.

Segundo Laniel, cada vez mais países na Europa enfrentam problemas de violência nas ruas relacionados ao consumo e tráfico da cocaína.

"Temos visto traficantes matando uns aos outros — e, às vezes, matando pessoas que não estão envolvidas com o tráfico."

Avanço do crack

Os dados do relatório da Euda apontam ainda um avanço significativo do crack entre a população europeia.

O crack é produzido a partir do cloridrato de cocaína diluído em água e acrescido de bicarbonato de sódio, ou amônia, e aquecido.

O resultado é uma forma cristalizada da cocaína que pode ser fumada — e que é extremamente viciante e capaz de provocar comportamento violento nos usuários.

O aumento na disponibilidade de cocaína no mercado, portanto, pode ter levado também à maior disponibilidade de crack.

Ao mesmo tempo, estudos apontam que muitos dos usuários de crack passam por um estágio de uso de cocaína antes de migrar para a droga mais pesada.

Entre 2017 e 2002, os centros de atendimento a usuários em toda a Europa registraram 42% mais novos pacientes tratados para dependência em crack ou que tem a substância como droga primária.

Mas os principais efeitos da popularidade do crack são vistos nas ruas de algumas das grandes cidades europeias, que desenvolveram "cracolândias" próprias.

Na Alemanha, por exemplo, as autoridades locais tem sofrido para controlar os efeitos negativos dos milhares de usuários que se reúnem todos os dias em regiões de cidades como Frankfurt, Berlim, Hamburgo e Hanover.

Onze toneladas de cocaína confiscadas pela polícia espanhola em dezembro de 2023

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Legenda da foto, Onze toneladas de cocaína confiscadas pela polícia espanhola em dezembro de 2023

Frankfurt, aliás, passa por um processo observado não só na Alemanha, mas em todo o continente, de transição do uso de drogas injetáveis como a heroína para a cocaína e o crack.

O crescimento da cocaína e do crack na Europa contrasta com o que ocorre nos Estados Unidos, uma região que ainda é a número um em termos de consumo, mas que viu seu mercado contrair nas últimas décadas.

Segundo Thomas Pietschmann, os cartéis de droga sul-americanos têm encontrado um caminho mais fácil para escoar sua produção para os países europeus do que para os Estados Unidos.

"Para traficar para os Estados Unidos, eles precisam usar pessoas no México como intermediárias, enquanto na Europa eles conseguem fazer isso diretamente e lucrar mais", diz.

"Eu diria também que a cocaína tem uma imagem melhor entre os europeus. O crack causou muitos estragos nos Estados Unidos e passou a ser associado com violência e favelas. Na Europa, a cocaína ainda é, em parte, uma droga da elite."

A associação entre a classe social e o consumo, aliás, também ajuda a explicar o crescimento da cocaína em todo o mundo, segundo o pesquisador da ONU.

"Onde quer que haja uma nova classe média surgindo, há um aumento na cocaína. Não que toda a classe média use a droga, mas algumas pessoas neste grupo começam a frequentar mais festas e comprar mais drogas a medida que melhoram de vida."

Pietschmann cita China e Índia como dois países onde o consumo da cocaína é historicamente baixo, mas onde tem ocorrido um aumento nas últimas décadas.

O Brasil como país de trânsito

Em meio a um cenário de crescimento geral da droga, os chamados países de trânsito da cocaína mundial também têm experimentado uma disparada no consumo.

Na América do Sul, uma das nações mais utilizadas para transporte e escoamento da produção é o Brasil, por seu acesso estratégico ao Oceano Atlântico.

No levantamento feito pelo UNODC sobre os países de onde os carregamentos apreendidos em todo o mundo entre 2019 e 2022 foram escoados, o Brasil só ficou atrás da Colômbia.

As apreensões locais também evidenciam o papel brasileiro no mercado de cocaína global: entre 2013 e 2023, a Polícia Federal apreendeu 730 toneladas de cocaína no país.

Nesse período, o crescimento das apreensões foi de 73,7%, segundo o 18º Anuário Brasileiro de Segurança Pública.

E, de acordo com o UNODC, a droga é geralmente transportada para o Brasil e depois escoada para a África, de onde posteriormente é enviada para a Europa e Ásia, ou por vezes diretamente para o Velho Continente.

Sacos de cocaína dentro de bolsa preta

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Legenda da foto, Drogas que saíram do porto de Santos, no Brasil, foram apreendidas pela polícia na Bélgica em 2021

Além disso, o país é atualmente o segundo mercado de cocaína no mundo, atrás apenas dos Estados Unidos, de acordo com a ONU.

Quando analisado o consumo de crack, o Brasil aparece no topo da lista, com consequências devastadoras para a saúde pública e as políticas habitacionais de grandes cidades como São Paulo.

De acordo com o Ministério da Saúde, o número de mortes atribuídas a distúrbios causados pelo uso de cocaína — em todas as duas formas — no Brasil cresceu mais de 600% entre 2000 e 2022.

Segundo Thomas Pietschmann, a elevada oferta da cocaína nos países vizinhos, assim como a grande circulação de carregamentos pelo território brasileiro, contribui para esse cenário.

"Em muitos países de trânsito, as pessoas envolvidas no tráfico são pagas em cocaína, e a droga acaba sendo comercializada no mercado local", diz Pietschmann.

"Com mais cocaína sendo exportada, isso também cresceu nos últimos anos."

Queda na produção de opioides

Ao mesmo tempo em que a cocaína cresce, os especialistas observaram uma queda brusca na produção de opioides (drogas como heroína, morfina, fentanil, metadona) no mundo.

Esse cenário é impulsionado principalmente por uma proibição ao cultivo de ópio instaurada pelo grupo Talebã no Afeganistão.

O país costumava produzir mais de 80% de todo o ópio do planeta. E a heroína produzida com o ópio afegão representava 95% do mercado europeu.

Mas em abril de 2022, o líder supremo do Talebã, Haibatullah Akhundzada, decretou que o cultivo da papoula — da qual é extraído o ópio, o principal ingrediente da heroína — fosse rigorosamente proibido.

Qualquer pessoa que violasse a proibição teria seu campo destruído e sofreria as penas de acordo com as leis da Sharia, a lei islâmica.

Um porta-voz do Talebã declarou à BBC que a proibição foi imposta devido aos efeitos prejudiciais do ópio e porque contraria suas crenças religiosas.

Com a mudança, as Nações Unidas registraram uma queda de 74% na produção global de ópio em 2023. Enquanto, no Afeganistão, esse total desmoronou em 95%, Mianmar surgiu como alternativa no cultivo de papoulas, equilibrando o resultado final.

Fato é que a diminuição da produção de opioides e, consequentemente, da confecção de novos carregamentos de heroína, gerou rumores de um possível impacto indireto no aumento do consumo de outras drogas, em especial a cocaína.

Alguns especialistas temiam que usuários e, especialmente, traficantes buscassem alternativas à heroína para manter seu mercado.

Em um cenário de explosão na produção de cocaína, a droga vinda da América do Sul parecia a substituta perfeita.

Mas, segundo os dados compilados pelas Nações Unidas, a queda na produção ainda não produziu um impacto na oferta nos mercados e no consumo de heroína e outros opioides no mundo, já que os traficantes se anteciparam e acumularam estoques consideráveis antes do corte na produção.

O escritório da ONU sobre drogas e crime afirma, porém, que o cenário pode mudar no futuro, caso o cultivo no Afeganistão continue proibido.