O que explica fascínio nas redes sociais por Luigi Mangione, suspeito de matar CEO em NY
- Author, Alessandra Corrêa
- Role, De Washington para a BBC News Brasil
Mais de uma semana depois do assassinato do executivo Brian Thompson, CEO (diretor-executivo) da gigante de planos de saúde UnitedHealthcare, as reações nas redes sociais continuam a incluir não apenas choque com o crime, mas fascínio pelo suspeito.
Thompson, que tinha 50 anos de idade e era pai de dois filhos adolescentes, foi executado a tiros em Nova York na última quarta-feira (04/12), quando chegava ao hotel onde seria realizada uma conferência de sua empresa.
No entanto, apesar da frieza do crime, que foi capturado por câmeras de segurança, vários dos comentários nas redes sociais não são de empatia com a vítima, e sim de desdém e até apoio ao suspeito pelo assassinato — identificado dias depois pela polícia como Luigi Mangione, de 26 anos.
O advogado do jovem, Thomas Dickey, já afirmou à imprensa local que "ainda não tinha visto nenhuma evidência" que implicasse seu cliente. Ele afirmou que Mangione deve se declarar inocente.
Quando a UnitedHealthcare anunciou a morte no Facebook, o CEO Brian Thompson foi descrito como "um colega e amigo respeitado por todos que trabalhavam com ele". A empresa lamentou a tragédia.
Dezenas de milhares de reações ao post, porém, traziam o emoji de risada. Muitos comentários relatavam casos de pessoas que tiveram cobertura por tratamento médico negada por seus planos de saúde e acabaram morrendo ou ficando endividadas.
Reações semelhantes logo se espalharam por todas as redes sociais, com memes e piadas, usuários celebrando o crime e torcendo pelo atirador e vários relatos de injustiças sofridas no sistema de saúde americano.
"Parece ser um movimento orgânico, as pessoas estão genuinamente frustradas com o sistema de saúde", diz à BBC News Brasil o especialista em redes sociais Tim Weninger, professor da Universidade de Notre Dame.
"O vigilantismo [prática em que pessoas buscam fazer justiça com as próprias mãos] existe há muito tempo ao redor do mundo. É a forma errada de lidar com essas coisas e não é uma resposta aceitável a questões políticas", ressalta Weninger.
A organização Network Contagion Research Institute (NCRI), que monitora a disseminação de ameaças nas redes sociais, publicou um relatório sobre as reações online ao assassinato de Thompson.
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Segundo a NCRI, logo após o crime, houve "uma onda de postagens altamente engajadas nas mídias sociais glorificando o incidente, algumas até mesmo pedindo mais atos de violência, gerando impressões [quantidade de vezes que um conteúdo na internet foi visto] na casa das dezenas de milhões".
De acordo com o levantamento, das dez postagens com maior engajamento no X (antigo Twitter) que mencionam Thompson ou a UnitedHealthcare, seis "expressaram apoio explícito ou implícito ao assassinato ou atacaram a vítima".
"A glorificação e a exaltação do incidente e do suspeito são diferentes de tudo que já vimos", diz à BBC News Brasil o consultor sênior da NCRI, Alex Goldenberg.
"Eu caracterizaria a resposta generalizada nas mídias sociais ao assassinato como um ponto de virada, um catalisador para a normalização da violência política, que nos Estados Unidos tem [até então] sido tradicionalmente confinada a extremistas [que atuavam] nas margens", afirma.
"O atirador realmente se transformou em um meme que canalizou queixas amplamente difundidas nos Estados Unidos contra a indústria de saúde", ressalta Goldenberg.
Produtos e avaliações negativas de 'delatores'
Antes mesmo de Mangione ser identificado como suspeito, muitos nas redes sociais já tratavam o atirador como uma espécie de herói popular, descrito como um "vingador", e buscavam obsessivamente informações sobre ele.
A polícia ainda investiga os motivos do crime, mas a escolha da vítima e a revelação de que cartuchos de bala encontrados no local tinham inscritas as palavras em inglês "deny" (negar), "defend" (defender) e "depose" (destituir) levaram muitos a imaginar que o atirador poderia ser alguém que teve tratamento negado por planos de saúde.
Essas palavras parecem ser referência às táticas usadas por planos de saúde para negar cobertura e são semelhantes ao título de um livro sobre o tema publicado em 2010 pelo escritor Jay Feinman.
Logo esses três termos se espalharam em mercadorias vendidas online — com camisetas, moletons, canecas, adesivos e até enfeites de Natal inspirados pelo crime e celebrando o atirador.
Alguns produtos traziam mensagens e imagens mais violentas, como armas ou guilhotinas. Enquanto muitos foram retirados do ar por empresas como a Amazon, por violarem as regras, outros continuam sendo anunciados.
Imagens de câmeras de segurança mostrando parte do rosto do atirador, uma delas na qual ele aparecia sem máscara e sorrindo, aumentaram ainda mais o interesse pelo suspeito.
Várias músicas em sua homenagem pipocaram na rede social TikTok. Todos os detalhes de sua aparência e de suas ações, desde a mochila que usava até como escapou de bicicleta, começaram a ser dissecados na internet.
Um casaco parecido com o que o atirador usava nas imagens do crime teve milhares de visualizações no site da loja e cerca de 700 unidades vendidas em 48 horas.
Em Manhattan, região da cidade de Nova York, um concurso de sósias foi acompanhado por dezenas de pessoas. Em entrevista à imprensa americana, o vencedor não quis se identificar, mas criticou o sistema de saúde e disse que comemorou as ações do atirador.
Depois da informação de que o albergue em Manhattan onde o suspeito havia se hospedado estava colaborando com a investigação policial, o local recebeu uma enxurrada de avaliações negativas online.
O mesmo aconteceu com o McDonald's de Altoona, cidade no Estado da Pensilvânia onde Mangione foi preso na segunda-feira (09/12). Um funcionário chamou a polícia após constatar que ele se parecia com um homem que vinha sendo apontado como suspeito.
Sites como o Google e o Yelp receberam tantas avaliações negativas do restaurante, muitas chamando os funcionários de "delatores", que tiveram de intervir. O Google removeu várias avaliações por violarem suas regras, enquanto o Yelp postou um alerta explicando que desativou temporariamente os comentários sobre o restaurante.
Vaquinhas online arrecadaram milhares de dólares para a defesa do suspeito, e muitos dos doadores elogiaram e agradeceram Mangione. Uma das plataformas, o GoFundMe, removeu essas campanhas por violarem regras que proíbem arrecadações de fundos para a defesa legal de crimes violentos.
'Jovem, rico e atraente'
Goldenberg, da NCRI, salienta que o suspeito estava sendo celebrado antes mesmo que se soubesse quem era ou que suas imagens fossem divulgadas.
"Mas o fato de que, quando foi preso, [revelou-se que] era um indivíduo jovem, educado em escolas de elite e bonito, certamente impulsionou isso ainda mais", afirma.
Weninger, da Universidade de Notre Dame, acrescenta que o fato de Mangione ser jovem, rico e atraente tem peso na maneira como muitos estão torcendo por ele.
"O aspecto visual realmente importa. Há muitas coisas no imaginário coletivo que ele representa", afirma Weninger.
A identificação de Mangione como o suspeito complicou as teorias iniciais sobre as motivações do crime, que continuam sem esclarecimento.
O acusado vem de uma família rica e tradicional do Estado de Maryland. Apesar de relatos de que sofria de dores crônicas na coluna — as quais interferiam em sua rotina diária e na vida romântica, além de o terem levado a fazer uma cirurgia —, não há indícios de que ele tenha tido tratamento negado por um plano de saúde.
A polícia disse que Mangione trazia consigo um manifesto escrito à mão no qual denunciava a "corrupção e ganância corporativa" e o fato de os EUA terem "o sistema de saúde mais caro do mundo" mas, mesmo assim, estarem atrás em expectativa de vida.
Entretanto, as críticas não parecem relacionadas a qualquer experiência própria.
A revelação da identidade do suspeito não diminuiu o fervor nas redes sociais, onde muitos passaram a investigar todos os detalhes de sua vida: a trajetória escolar em instituições de elite, a temporada em que morou no Havaí, os livros que lia e suas postagens sobre alimentação saudável, exercícios e teorias psicológicas.
Suas leituras incluem o manifesto de Ted Kaczynski, o Unabomber, que criticava a sociedade moderna e foi responsável por uma série de ataques a bomba entre as décadas de 1970 e 1990 — as quais deixaram três mortos e dezenas de feridos.
Parentes e amigos de Mangione se disseram "chocados e devastados" com a prisão e a acusação contra ele.
Conhecidos deram depoimentos à imprensa americana dizendo que ele era considerado "um cara legal" e que não havia indícios de que seria capaz de cometer um crime como esse.
Risco de mais violência
A reação ao assassinato de Thompson deixou clara a frustração de muitos americanos com os planos de saúde.
Não é incomum que usuários tenham pedidos de cobertura negados, mesmo após pagarem milhares de dólares pelo serviço. Muitos deixam de ir ao médico ou tomar remédios por causa dos custos.
Uma pesquisa divulgada no ano passado pela organização sem fins lucrativos KFF, focada em políticas de saúde, revelou que 58% dos adultos americanos tiveram algum problema com seu plano de saúde no ano anterior.
Contas inesperadas, atrasos e pedidos de cobertura negados estão entre as queixas mais comuns.
O processo de apelação contra as decisões dos planos costuma ser burocrático e complicado. Entrar na Justiça é ainda mais difícil e caro, e há pouca esperança de que reformas legislativas venham a mudar esse quadro.
A indústria de planos de saúde tem forte lobby em Washington. Segundo a organização sem fins lucrativos Open Secrets, que monitora doações de campanha, a indústria de seguros gastou mais de US$ 60 milhões (cerca de R$ 360 milhões) em contribuições para políticos democratas e republicanos nas últimas eleições.
A UnitedHealthcare, que fornece planos de saúde para quase 50 milhões de americanos, é citada ao lado de outras empresas em um relatório do Congresso sobre o aumento da taxa de pedidos de autorização prévia negados por planos de saúde.
O documento critica as empresas do setor por "colocar os lucros à frente dos pacientes".
Thompson é descrito pelos que o conheceram como um homem "trabalhador" e "decente", que atuou na empresa por 20 anos até chegar ao topo. Em uma declaração, sua família disse que ele era "incrivelmente amoroso, generoso e talentoso".
Seu assassinato e a reação ao crime não apenas chocaram os que o conheciam, mas também deixaram outros executivos de grandes empresas em alerta e buscando mais medidas de segurança.
De acordo com a NCRI, postagens com alto engajamento em redes como X, Bluesky, TikTok e Telegram após o crime incluíam declarações sugerindo que outras figuras corporativas "devem temer por suas próprias vidas".
Um dos principais posts no X dizia "Estamos começando agora, então?", o que foi interpretado como provável "referência ao início de um movimento maior".
A postagem recebeu mais de 1,8 milhão de impressões, com comentários referindo-se a uma "guerra de classes".
Também circularam postagens em algumas redes com os nomes de outros executivos do setor de saúde e "apelos explícitos à violência".
"Há motivos para preocupação de que esses padrões reflitam o surgimento de uma estrutura de permissão para violência direcionada", diz o relatório.
Goldenberg salienta que, nos últimos dias, surgiram cartazes de "Procurado" nas ruas de Manhattan com os rostos de outros CEOs da indústria de saúde.
Ele também destaca que o departamento de polícia na Pensilvânia, que prendeu o suspeito, recebeu inúmeras ameaças de morte contra seus policiais.
"A hostilidade não é apenas contra a indústria de saúde", ressalta Goldenberg. "Isso está sendo enquadrado de maneira mais ampla como um golpe inicial em uma guerra de classes."