O que explica recorde de incêndios no Pantanal

Incêndio queima vegetação do Cerrado brasileiro

Crédito, Getty Images

  • Author, Geraldo Alves Damasceno Junior
  • Role, The Conversation Brasil*

Imagine a cena: um caminhão rodando por uma estrada solta uma pequena faísca que é suficiente para fazer pegar fogo na vegetação ao lado.

O fogo se espalha tão rapidamente que alcança o próprio caminhão, que pega fogo e explode.

Pode parecer uma cena de filme de ação, mas aconteceu de fato, numa estrada do Pantanal. E uma série de fatores contribuem para tornar possível uma cena como essa na região.

De início, dá para ver que o Pantanal atingiu, entre agosto e setembro, a "Regra dos 30" (que é uma expressão comum entre as pessoas que trabalham com fogo): 30 dias sem chover, umidade abaixo de 30%, temperatura acima de 30ºC e ventos acima de 30 km/h.

Mas, além da conjunção de tantos 30s, essa é uma região forjada no fogo, dependente dele. É uma área úmida, onde não se imagina o fogo como parte da paisagem natural. Mas ele é fundamental para a manutenção das características do local.

Os lugares que mais queimam no Pantanal são também os lugares que mais inundam, semelhante ao que ocorre no delta do Okavango, em Botsuana. Nos períodos úmidos, há muita produção de matéria orgânica.

Muitos dos capins do Pantanal são adaptados ao fogo, e produzem muita matéria seca, ou seja, crescem e, quando rebrotam, o capim do ano anterior seca e permanece ali. Nos períodos secos, essa biomassa produzida fica disponível para queima.

Atualmente, o Pantanal está vivendo um período de uma seca extrema, que começou em 2019.

Nesse tempo, só houve um ano de cheia: 2023. Então, toda a biomassa produzida na cheia do ano passado é hoje material passível de entrar em combustão.

Como acontecem as cheias e secas no Pantanal?

Um bombeiro do Instituto Ambiental de Brasília (IBRAM) trabalha para apagar um incêndio florestal no Parque Ecológico Burle Marx, em Brasília, Brasil, 27 de agosto de 2024.

Crédito, EPA-EFE/REX/Shutterstock

Legenda da foto, Bombeiro trabalha para apagar incêndio no Parque Burle Marx, em Brasília
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O que chamamos de Pantanal é, na verdade, um lugar onde chove pouco. Da borda leste para a borda oeste do Pantanal, temos uma precipitação média de cerca de 1.000 mm/ano.

Seria quase clima quase de semiárido, não fossem as chuvas nas cabeceiras. Da parte norte do Pantanal, vêm as águas dos rios Paraguai e Cuiabá, que são os mais caudalosos. Da parte leste, principalmente dos rios Aquidauana e Miranda.

Quando esses rios vertem grande volume de água, eles transbordam e o Pantanal inunda.

E o que temos observado nesses últimos anos é um decréscimo das chuvas, de uma maneira geral, nas cabeceiras. Então, no Cerrado e um pouco já na transição para a Amazônia (áreas das cabeceiras desses rios), está chovendo menos.

Historicamente, a região tem os ciclos plurianuais de seca e cheia. A série mais longa de dados que temos é do rio Paraguai, onde a Marinha faz medições desde 1900. Do início das coletas até 1960, houve bastante oscilação, com anos mais cheios e anos mais secos.

Em 1960, o Pantanal entrou num ciclo de seca, até 1974, com alguns poucos anos de cheias no meio, como agora em 2023. De 1974 até 2018, o Pantanal viveu um ciclo de grandes cheias, até que, em 2019, voltamos ao padrão de 1960.

Há certamente na região uma questão cíclica. E isso se alia aos eventos extremos, que são efeito das mudanças climáticas. Estamos, portanto, vivendo um ciclo de seca, exacerbado pelos eventos extremos.

E estamos ainda em um período de aprendizagem. Como estamos num ciclo de seca que começou em 2019, depois de um longo período de cheias, as pessoas mais novas, mesmo as que estão acostumadas ao Pantanal, ainda não viveram um ciclo de seca como esse de agora. Para eles é uma novidade e pouca gente sabe o que fazer.

Resiliência e adaptação

Em 2024 convergiram todos esses fatores: a regra dos 30, a grande quantidade de biomassa produzida no ano anterior de cheias, um ciclo de seca, mudanças climáticas, período de aprendizagem.

Isso faz com que esse ano a região enfrente incêndios que superam o registrado no mesmo período de 2020, ano recorde de queimadas.

E a esses fatores se junta ainda outro: a capacidade de adaptação da flora local para essa alternância de fogo e água.

O Pantanal é mais preparado para o fogo do que a Amazônia. Por aqui, um ambiente, quando muito sensível, leva cerca de 20 anos para se recuperar.

Na Amazônia, há registro de regiões que demoraram mais de 40 anos para se recuperar, ou que nunca voltaram a ser o que eram.

Algumas áreas do Pantanal, como as matas ciliares, são mais sensíveis ao fogo.

Dependendo da intensidade, o fogo vai moldar como essa mata ciliar vai crescer, restrita a árvores que consigam se estabelecer nesses ambientes.

O Cerrado tem cerca de 12 mil espécies da flora, contando árvores, arbustos, ervas e todos os outros hábitos de crescimento.

O Pantanal tem apenas 2.500 para todos os hábitos de crescimento, porque sobrevivem aqui apenas as que conseguem driblar a questão da inundação e também do fogo.

Já os campos inundáveis são extremamente resistentes ao fogo: você queima hoje, amanhã eles começam a rebrotar.

Algumas gramíneas podem crescer junto com a inundação e chegar a 5m de altura — às vezes ficam maiores que a cana-de-açúcar.

Mesmo quando os campos não inundam, só a subida do lençol freático leva a uma produção grande de biomassa.

O efeito desse fogo associado a inundação é tornar a paisagem mais aberta. Depois que uma área inunda, só vão germinar as árvores que conseguem conseguem germinar embaixo d'água ou que resistem a inundação após a germinação no seco.

Com a ocorrência de fogo, essas árvores que germinaram e/ou cresceram sob a influência da inundação, podem morrer. A tendência é que os ambientes fiquem mais abertos, com árvores e arbustos substituídos por densas áreas de campo com gramíneas.

Nos grandes incêndios, perdem todos

Recentemente o governo federal aprovou a Política Nacional do Manejo Integrado do Fogo, e o Mato Grosso do Sul também aprovou sua lei estadual do manejo.

Esse manejo envolve todo um trabalho educativo, de valorização do manejo tradicional que as pessoas fazem e definição dos momentos e lugares adequados para a realização desse manejo.

Não é só controle e combate de incêndios, mas um processo de conversar com as pessoas, planejar quem vai queimar, quando vai queimar, quantas áreas vão queimar. Tudo isso para reduzir a biomassa disponível para os períodos mais secos do ano.

Estávamos auxiliando o governo do estado na criação de um programa de fogo prescrito em fazendas com o uso da plataforma SIFAU, que foi desenvolvida pela UFRJ em parceria com a UFMS para auxiliar o planejamento do Manejo Integrado do Fogo.

Com o uso do fogo prescrito, é possível reduzir a biomassa através da queima preventiva num período em que não há risco de incêndio para evitar que, no período mais seco, exista combustível suficiente para gerar os grandes incêndios. É combater o fogo com fogo.

Quando o governo estava prestes a implementar o programa, os incêndios começaram. A queima prescrita ficou em segundo plano, e agora lidamos com o combate.

Isso leva a prejuízos em diversos níveis. Na questão de saúde, incêndios grandes produzem muita fumaça, que afeta a saúde das pessoas, com o aumento de doenças respiratórias.

Na frente econômica, o fogo pode destruir cercas, tratores e construções nas fazendas. Até o aeroporto de Corumbá acaba ficando fechado por dias quando não há visibilidade para pousos e decolagens.

Além disso, apesar da capacidade de adaptação da flora local, se o fogo se torna muito frequente, algumas espécies mais sensíveis vão eventualmente se tornar raras no sistema ou até sumir.

Uma pesquisa em andamento sobre liquens mostrou que as áreas de mata que pegaram fogo em 2020 não tinham liquens. Já áreas que pegaram fogo há 20 anos voltaram a tê-los.

É como um efeito sanfona, que acontece também com a fauna da região. Mas esse efeito sanfona tem um limite. Sem a implementação de uma política adequada de manejo do fogo, o Pantanal tende a sofrer cada vez mais com essa conjunção de fatores, agravados pelas mudanças climáticas.

Geraldo Alves Damasceno Junior*: Professor do Instituto de Biociências, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS).

**Este artigo foi publicado no The Conversation e reproduzido aqui sob a licença Creative Commons. Clique aqui para ler a versão original.