O renomado neurocientista que não acredita no livre-arbítrio: 'Somos a soma do que não podemos controlar'

Legenda do áudio, Robert Sapolsky é professor de biologia e neurologia na Universidade de Stanford, nos EUA
  • Author, Margarita Rodríguez
  • Role, Da BBC News Mundo

Em uma sociedade construída em torno da ideia de que as pessoas deveriam se sentir culpadas pela falta de controle sobre si ou outras coisas, se dar conta de que talvez não exista o livre-arbítrio pode ser um pensamento libertador.

É isso que pensa o neurologista americano Robert Sapolsky, professor de Biologia e Neurologia da Universidade de Stanford, nos EUA. Para ele, o livre-arbítrio - fazer escolhas por vontade própria, sem qualquer influência - é uma ilusão.

Considerado um dos cientistas mais venerados da atualidade pela revista New Scientist, Sapolsky passou três décadas estudando babuínos selvagens no Quênia, o que lhe permitiu descobrir interações sociais complexas.

Suas pesquisas ajudaram a compreender aspectos do comportamento humano e o impacto do estresse na saúde.

Mas sua posição é minoritária entre pensadores contemporâneos.

Sapolsky é autor de vários livros, entre eles de Comporte-se: A biologia humana em nosso melhor e pior (pela Companhia das Letras) e de Determined: A Science of Life Without Free Will (Determinado: A ciência da vida sem livre arbítrio, em tradução livre), lançado no final do ano passado nos EUA e ainda sem edição em português.

No livro mais recente, Sapolsky afirma que "detrás de cada pensamento, ação e experiência há uma cadeia de causas biológicas e ambientais, que se estende desde o momento em que surge o neurônio até o início de nossa espécie e mais além. Em nenhuma parte desta sequência infinita há um lugar onde o livre-arbítrio pode desempenhar um papel".

Sapolsky conversou com a BBC News Mundo, serviço em espanhol da BBC, sobre o livro.

O que é livre-arbítrio?

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Segundo o pesquisador, a melhor forma de explicar o livre-arbítrio é explicando o que não é livre-arbítrio.

"É onde as pessoas cometem o maior erro. Circunstâncias em que tomamos uma decisão existem todos os dias, por exemplo, onde escolher o que comer. Mas não é disso que falamos quando falamos em livre-arbítrio", explica.

"Para tomar uma decisão, estamos conscientes, temos uma intenção e agimos em conformidade. Sabemos qual será o resultado provável, sabemos também o que temos ou o que não temos que fazer, temos alternativas e, para a maioria das pessoas, intuitivamente isso seria ter livre-arbítrio."

"Nos Estados Unidos, todo o sistema jurídico é baseado na ideia de que as pessoas têm escolhas e, conscientemente, poderiam ter tomado outra decisão."

Mas, segundo Sapolsky, sua perspectiva vai muito além disso.

"Como você se tornou o tipo de pessoa que tende a ter esse tipo de intenção ou a tomar certo tipo de decisão? Como isso aconteceu? E aqui é onde o livre-arbítrio simplesmente não existe, aí é onde ele evapora."

Outra área onde as pessoas tendem “emocionalmente e intuitivamente” a ver o livre-arbítrio está em grandes conquistas, diz Sapolsky.

Por exemplo, quando você olha para alguém que talvez não fosse tão talentoso em determinadas áreas e, ainda assim, com muito trabalho e autodisciplina, se destacou.

"Quando a pessoa poderia estar curtindo a vida com os outros, ela ficou estudando. E isso é muito inspirador. Talvez ela não tivesse uma ótima memória ou uma grande mente lógica ou analítica, mas teve muita tenacidade."

Quando alguém tem muito talento mas os outros consideram que a pessoa “os disperdiçou”, também tendem a pensar em livre-arbítrio - a pessoa teria escolhido não agir.

“Essas são duas áreas onde as pessoas simplesmente decidem que é onde está o livre-arbítrio, mas ele não está lá. Acho que não está em lugar algum.”

Crédito, Getty Images

Legenda da foto, Quais os fatores que nos levam a tomar as decisões que tomamos?

Determinismo

Sapolsky propõe que quando o nosso cérebro gera um comportamento particular, ele é determinado por algo que aconteceu antes, que, por sua vez, é determinado por algo que ocorreu antes disso, numa longa cadeia.

“Para mim, é como se cada momento fosse resultado do que veio antes”, afirma ele, explicando o que é determinismo. “Este é um mundo em que não há nada que aconteça sem explicação, sem um precedente.”

“O que aconteceu, aconteceu por causa do que aconteceu antes e isso se aplica a todos os mecanismos que nos tornam quem somos.”

Sapolsky parou de acreditar no livre-arbítrio quando era adolescente.

“Tem sido um imperativo moral para mim ver os humanos sem julgá-los e sem acreditar que alguém merece algo especial. Isso é viver sem odiar e sem acreditar que mereço privilégios”, escreve ele no livro.

“Se você aceita que não existe livre-arbítrio, que somos nada mais nada menos que a soma da biologia e do meio ambiente, se você realmente acredita nisso, a culpa e a punição não fazem sentido, a menos que você os entenda em termos instrumentais”, explica ele à BBC News Mundo.

Por exemplo, diz ele, se pegarmos uma lesma-do-mar do gênero Aplysia, um molusco que tem sido objeto de extensos estudos no campo da neurociência, sabemos que se batermos na cabeça dele, isso causará uma reação.

“Você faz isso para entender o comportamento. Você não bate nele porque acha que ele é mau”, explica.“Da mesma forma, elogios e recompensas não têm sentido em si mesmos. Eles podem ser usados ​​instrumentalmente, mas não são virtudes em si.”

“E se for esse o caso, ninguém tem o direito de ter as suas necessidades consideradas mais importantes do que as necessidades dos outros. E odiar alguém faz tanto sentido quanto odiar um coronavírus.”

“Algo precisa ser feito sobre o fato de que todos nós fomos criados para aceitar que algumas pessoas são tratadas muito melhor do que outras por coisas sobre as quais elas não tiveram nenhum controle”, afirma.

"Da mesma forma, alguns são tratados de forma muito pior por coisas sobre as quais não tiveram controle. O maior problema é que tratamos isso com naturalidade na maior parte do tempo."

Teias de Aranha

Na discussão sobre o livre-arbítrio, há uma pergunta que, para Sapolsky, é fundamental: de onde veio a intenção (para fazer determinada coisa)?

Não se fazer essa pergunta, diz ele, é como acreditar que tudo o que é preciso para avaliar um filme é ver apenas os últimos três minutos.

Para me explicar o significado dessa pergunta, ele pega uma caneta e diz que está fazendo esse ato conscientemente, que o ato de segurá-la é “cheio de intenção”.

“É inconcebível para mim imaginar todas as coisas que levaram a este momento, seria muito difícil fazê-lo”, afirma.

Além disso, “nossa intenção ao fazer algo parece tão poderosa que nem imaginamos que não poderíamos ter essa intenção se quiséssemos”.

Ou em outras palavras: nosso desejo de fazer algo é tão forte que não passa pela nossa cabeça que não podemos não desejar o que desejamos.

O pesquisador descreve outro cenário: imagine um homem que assassinou um grupo de pessoas.

Aos 10 anos, esse indivíduo havia sofrido um acidente de carro que destruiu 75% de seu córtex frontal, área do cérebro importante para a interpretação, expressão e regulação das emoções.

“Por que essa pessoa se tornou quem é? Um único acontecimento [o acidente] foi como um terremoto” em sua vida, diz ele. "Agora olhe para o resto de nós. Imagine que existem milhões e milhões de teias de aranha invisíveis, pequenos fios, que trouxeram você até este momento e fizeram de você quem você é."

O acidente de trânsito no caso do criminoso ou a altura do corpo de um astro do basquete são “causas únicas” e são “muito fáceis de entender”.

Os problemas surgem – explica o especialista – quando abordamos a “causalidade distribuída”.

“Quando falamos sobre quem somos, na maioria dos casos são milhões desses pequenos fios invisíveis juntos, isso é tão determinístico quanto ter seu córtex frontal destruído em um acidente de carro."

O argumento científico

Sapolsky explica que qualquer neurônio (célula do sistema nervoso) funciona como resultado do que os outros milhares de neurônios ao seu redor estão fazendo.

"Ele poderia ter conexões com até 50 mil outros neurônios, não é uma ilha. O que quer que esteja fazendo se enquadra nesse contexto."

Como argumento em defesa de sua tese, ele pede que lhe seja mostrado “um neurônio (ou um cérebro) cuja geração de comportamento é independente da soma de seu passado biológico”.

O professor nos convida a pensar na nossa adolescência, na nossa infância, em quando estávamos no útero.

"Os seus neurônios são compostos pelos genes com os quais você começou quando era uma célula."

E muito antes disso: "Os seus antepassados ​​eram pastores ou agricultores? Viveram numa floresta tropical ou no deserto? Porque isso será transmitido século após século e o trabalho de cada geração é esculpir o cérebro dos seus filhos para que eles tenham os mesmos valores culturais".

O mesmo vale para outros mecanismos de funcionamento do corpo.

O trifosfato de adenosina (ATP), por exemplo, é uma molécula que as células utilizam para obter energia.

Se você não dormiu bem na noite passada ou não comeu, certas células apresentarão menos ATP do que o normal.

"Anos atrás, meu laboratório mostrou que se você estiver sob estresse enquanto dorme, acumulará menos ATP no cérebro do que se não estivesse estressado."

Outro exemplo são os hormônios. Se tivermos um nível mais elevado de um determinado hormônio, isso pode influenciar se, por exemplo, nos sentiremos mais irritados ou mais abertos a correr riscos, e também o quão sensível será o nosso cérebro a determinados estímulos externos.

Sapolsky nos lembra que os hormônios regulam os genes e que, por sua vez, os genes têm muito a ver com a encruzilhada da tomada de decisões.

Com tudo isso em mente, ele coloca o desafio: “vá e mude todos esses fatores. Se o neurônio fizer exatamente a mesma coisa, isso é livre-arbítrio."

"Mostre-me que seu cérebro apenas produziu um comportamento independente de tudo isso, e se você fizer isso, estará demonstrando livre-arbítrio", diz ele.

Para o neurobiólogo, no século 21 temos muito conhecimento científico que tem mostrado o quão importante são os genes, a parte hormonal, o meio ambiente como peças que, juntas, nos tornam quem somos.

“Não me cabe provar que livre-arbítrio não existe. Acho que o ônus da prova recai sobre as pessoas que insistem que existe livre-arbítrio”, diz ele. "Mostre-me hormônios que fazem o oposto do que normalmente fazem. Mostre-me que você acabou de mudar sua sequência de DNA. Faça isso e depois vamos falar sobre livre-arbítrio."

Visão pessimista

Mas essa não seria uma visão um pouco pessimista? Afinal, qual seria o sentido de nos esforçarmos para tomar as melhores decisões se, no final, como ele diz em seu livro, “não somos nem mais nem menos do que a soma do que não podemos controlar”: a nossa biologia, o nosso ambiente e a interação entre os dois.

"Penso que é totalmente pessimista", responde, explicando por que acha não ser a pessoa certa para responder a essa pergunta.

"Porque tive sorte na vida, as coisas correram bem para mim por motivos que não controlo.”

Ele afirma que muitas pessoas não tiveram a mesma sorte e que a culpa não é delas ou por que lhes falta autocontrole.

“Para a maioria das pessoas, isso deveria ser uma ótima notícia, porque é toda uma sociedade que foi construída em torno da ideia de que você deveria se sentir muito mal consigo mesmo ou com coisas sobre as quais não tem controle”.

Na verdade, ele acredita que a ideia de que não somos os donos do nosso destino pode ser uma visão bastante “libertadora e humana”.

Reações

Embora ao longo da história tenha havido alguns céticos do livre-arbítrio, também há muitos que, dentro e fora da academia, defendem a sua existência.

O livro de Sapolsky gerou reações distintas.

Adam Piovarchy, pesquisador da Universidade de Notre Dame, escreveu um artigo no site de notícias científicas The Conversation intitulado: "Professor de Stanford diz que a ciência prova que o livre-arbítrio não existe. Veja por que ele está errado."

Piovarchy sustenta que Sapolsky comete o erro de assumir que as questões sobre o livre-arbítrio “são respondidas simplesmente observando o que a ciência diz”, e ele acrescenta que o livre-arbítrio é também uma questão metafísica e moral, algo que os filósofos vêm estudando há muito tempo.

John Martin Fischer, filósofo e professor da Universidade da Califórnia, especialista em livre-arbítrio, também questiona a abordagem do neurocientista.

“Sapolsky deseja abrir nossos olhos para o que ele considera nossas falsas crenças de que somos livres e moralmente responsáveis, e até mesmo agentes ativos, três aspectos centrais e fundamentais da vida humana e de nossa navegação através dela”, escreveu Fischer em uma resenha publicada pela Universidade de Notre Dame. Segundo ele, o cenário é muito diferente se o problema é abordado pela perspectiva da filosofia. “A ciência, claro, é relevante; mas isso não torna o livre-arbítrio uma questão científica.”

Sapolsky não vê as coisas dessa forma: “de certa forma, só a ciência tem algo a dizer sobre isso”, ele me diz, pois é o que nos ajuda a “entender como você se tornou a pessoa que é agora”.

Para o escritor Oliver Burkeman, o autor demonstra em sua obra que enfrentar a inexistência do livre-arbítrio “não precisa nos condenar à amoralidade ou ao desespero”.

Em resenha do livro, publicada no jornal britânico The Guardian, Burkeman afirma que quando o cientista aborda como deveríamos viver sem livre-arbítrio, sua “visão de mundo humanista vem à tona”.

“Alguns argumentam que perceber que nos falta liberdade pode nos transformar em monstros morais. Mas ele argumenta de forma comovente que é na verdade uma razão para viver com perdão e compreensão, para ver 'o absurdo de odiar alguém por qualquer motivo’.”

Keiran Southern escreveu no jornal The Times que "se as ideias de Sapolsky fossem amplamente aceitas, elas levariam a mudanças sociais profundas, principalmente no sistema de justiça criminal".

Talvez Sapolsky queira convencer de que o livre-arbítrio não existe, mas se não conseguir, pelo menos convida a pensar que é possível que haja menos livre-arbítrio do que se supõe.

“Já sabemos o suficiente para compreender que o número infinito de pessoas cujas vidas são menos afortunadas que as nossas não merecem ser ignoradas”, escreveu o cientista.