Organizado por:
Bassalo
ÍNDICE
Prefácio de Clovis Bevilaqua
Advertência do tradutor espanhol
Prefácio do tradutor português
Prefácio da tradução espanhola
I — Introdução
II — O interesse na luta pelo direito
III — A luta pelo direito na esfera individual
IV — A luta pelo direito na esfera social
V — O direito alemão e a luta pelo direito
Prefácio
Der Kampf um’s Recht é um livro admirável, que fala à razão e ao sentimento,
convencendo e comovendo; onde as idéias originais cintilam deslumbrando e as frases felizes dão
ao pensamento a expressão que ele reclama; um livro feito de eloqüência e saber, que não
somente instrui e educa, mas ainda mostra o direito na sua realidade palpitante, ressumando da
vida social, enrodilhando-se nela, impulsando-a, adaptando-a a certos fins, dirigindo-a, e, ao
mesmo tempo, amoldando-se a ela e sendo, afinal, uma de suas expressões mais elevadas.
Não admira que um tal livro tenha tido número tão considerável de traduções. Os
japoneses, como os franceses, os espanhóis, os italianos e os gregos, leram-no, ficaram
encantados e nacionalizam-no. A nós também nos impressionou fortemente o opúsculo vibrante
do grande mestre, e não tardamos em traduzi-lo.
JOÃO VIEIRA, o adiantado espírito ao qual está intimamente ligado o movimento
progressivo do direito penal entre nós, deu-nos a primeira tradução portuguesa da Luta pelo
direito, e, agora, o inteligente e operoso cultor das letras jurídicas, o Sr. Dr. José TAVARES
BASTOS, empreende a segunda, o que mostra, bem claramente, o interesse que, entre os juristas
pátrios, soube despertar a curiosa conferência que IHERING realizou em Viena, no ano de 1872.
Trinta e sete anos já passaram depois que o pensamento do egrégio jurisconsulto
revestiu a forma que admiramos na Luta pelo direito, mas, apesar das agitações intelectuais dos
últimos tempos, que não respeitaram os princípios mais solidamente estabelecidos da filosofia e
das ciências, como os conceitos da matéria e da conservação e transformação da força, aquelas
frases lapidares encontram a mesma repercussão simpática nas inteligências, porque continuam a
ser a tradução feliz de um dos aspectos da idéia do direito.
Comparai a obra dissolvente de Jean Cruet, A vida do direito e a inutilidade das leis,
em que a finura de espírito de um advogado, descrente do prestígio da lei torturada pela chicana e
abalada pelas interpretações acomodatícias não deixa ver as grandes linhas do quadro da vida
jurídica, perdendo-se nos meandros sutis das particularidades, e o opúsculo imortal em que se
destaca, luminosa e profunda, a idéia do direito, movendo-se pelo esforço, realizando-se pela
luta e caminhando para firmar a paz, como alvo final na vida do indivíduo ou na vida dos povos,
e reconhecereis que a Vida do direito é apenas um livro de somenos interesse, agradando mais
pela feição literária do que pela sinceridade das observações, ao passo que a Luta pelo direito é
um opúsculo imortal, porque revela uma verdade científica, e incita as almas para a conquista de
um nobre ideal de paz e de justiça.
FOUILLÉE diz que “a França não cessou de sustentar contra a Alemanha e a
Inglaterra, a primazia do direito sobre a força, da fraternidade sobre o ódio, da associação sobre a
concorrência vital”, e LAGORGETTE acha que o citado FOUILLÉE, GUYAU, TARDE,
ESPINAS, GIDE, DURKHEIM, e WORMS contribuíram para a exclusão do darwinismo social,
combatendo a purificação pela carnificina.
Sem dúvida há na Luta pelo direito a aplicação de uma idéia que é mola essencial da
concepção darwínica, e Rudolf Von IHERING assinala o papel da força na formação e
desenvolvimento do direito, mas seria dar prova de invencível obstinação, depois da leitura das
obras do grande jurista filósofo, afirmar que ele advoga a organização social pela violência, e
desconhecer que a luta que ele mostra efetuando a realização do direito, é um aspecto dessa
mesma energia que elabora o polimorfismo dos seres e a perfeição da humanidade, impelindo-a
da barbárie para a cultura.
A nós não nos turbam felizmente a razão preconceitos de nacionalidade.
Podemos, por isso, ver a majestade do pensamento científico em todo o seu esplendor,
sem tentar fugir à sua benéfica influência, porque ele primeiro brilhou num ponto do globo e não
em outro.
E, assim, a bela tradução do empolgante opúsculo de IHERING, há de, certamente,
encontrar, entre nós, o acolhimento de que são dignas as obras-primas da inteligência humana.
Rio, 26 de Março de 1909.
CLOVIS BEVILAQUA.
ADVERTÊNCIA DO TRADUTOR ESPANHOL
Atendendo aos diversos assuntos que são tratados no seguimento do trabalho cuja
tradução damos à publicidade, fizemos uma divisão que nos pareceu conveniente em capítulos,
sem, entretanto, termos alterado absolutamente em coisa alguma a ordem seguida pelo autor no
original.
PREFÁCIO DO TRADUTOR PORTUGUÊS
Cursávamos o primeiro ano da Faculdade de Direito quando, pela primeira vez,
manuseamos a preciosa obra de R. Von Ihering, — A luta pelo direito, traduzida pelo douto João
Vieira de Araujo.
A impressão que tivemos calou, mas profundamente, no nosso espírito, então jovem e
bastante. As proposições sugestivas de Ihering atraíram a nossa atenção. Mais tarde, tivemos a
satisfação de ler a versão espanhola de Adolfo Posada y Biesca.
O prólogo de Leopoldo Alas despertara-nos ainda mais o entusiasmo que nutríamos
pelo trabalho a que nos referimos.
Promotor Público de várias comarcas do Estado do Rio tivemos, por inúmeras vezes,
de reproduzir os elegantes períodos que se lêm nas páginas quentes do professor de Direito da
Universidade de Viena.
Magistrado temos, a cada momento, reconhecido o que seja o direito, como evoluiu, e
o que há de ser. É neste cargo que folheamos múltiplas vezes o opúsculo de Ihering, vendo como
ressalta das suas páginas a alta importância que assume a luta do indivíduo pelo seu direito,
quando ele mesmo diz — é o direito todo inteiro que se tem lesado e negado em meu direito
pessoal, é ele que vou defender e restabelecer.
Sem dúvida que temos compreendido e visto nas proposições ardorosas de Ihering, que
é a energia da natureza moral que protesta contra o atentado do direito, testemunho mais belo e
mais elevado que o sentimento legal pode dar de si mesmo, verdadeiro fenômeno moral tão
interessante e tão instrutivo para o estudo do filósofo como para a imaginação do poeta.
É neste posto árduo de magistrado que temos, de perto, reconhecido as palavras do
mestre que — resistir à injustiça é um dever do indivíduo para consigo mesmo, porque é um
preceito da existência moral, é um dever para com a sociedade, porque essa resistência não pode
ser coroada pelo sucesso, senão quando ela se torna geral.
Sim, dizemos como o douto Ihering, — aquele cujo direito é atacado deve resistir; é
um dever para consigo mesmo: — o homem sem direito desce ao nível dos brutos.
Neste opúsculo acha-se escrito, com eloqüência de forma e como verdadeiro estímulo
ao distribuidor da justiça numa circunscrição, que aquele que é encarregado de guardar e proteger
a lei e se faz assassino dela, é como o médico que envenena seu doente, o tutor que faz perecer
seu pupilo.
Que sirvam, pois, de incentivo aos magistrados, as palavras acima transcritas.
Todo leitor convidamos ao estudo do prólogo de Leopoldo Alas, pela sua douta
exposição e calor que dera à tradução espanhola.
Nestas páginas em que ele prefacia A Luta pelo direito, encontrar-se-á o mesmo
entusiasmo de exposição e arroubo de eloqüência com que se depara em cada capítulo do
precioso opúsculo do sábio professor de Viena.
Não nos arrependemos, pois, de furtar algumas horas aos nossos trabalhos para vertêlo para o vernáculo.
Da sua utilidade o leitor se certificará.
É suficiente, para isso provar, a leitura do Prefácio do douto autor do Projeto do
Código Civil, o imortal Clovis Bevilaqua, robusto talento, possuidor de invejável erudição e de
incansável operosidade e respeitado por todos que cultivam a ciência do Direito.
José TAVARES BASTOS.
PREFÁCIO
DA
TRADUÇÃO ESPANHOLA
Somente a vontade pode dar ao direito o que constitui sua essência, — a realidade.
Por mais elevadas que sejam as qualidades intelectuais de um povo, se faltam a força
moral, a energia e a perseverança nesse povo, jamais poderá o direito prosperar.
(IHERING, — Espírito do Direito Romano, t. I, § 24).
O opúsculo, a cuja tradução espanhola servem estas páginas de prefácio, atrairia
sempre, e dignamente, a atenção dos leitores pelo seu mérito intrínseco e pelo nome ilustre do
autor; mas entre nós, hoje mais que nunca, torna-se oportuna essa leitura, porque pode servir de
estímulo aos espíritos enfraquecidos e corrigir muitas perniciosas aberrações da vontade e da
inteligência.
Esta obra é de tal valor que suas lições são úteis a todos, porquanto podem entendê-las
e aproveitá-las ainda mesmo aqueles que se tenham por filósofos e jurisconsultos, ou o sejam na
realidade, e para a maioria dos leitores que, por ser alheia aos estudos técnicos do direito, se
inclina a julgar que é incapaz de utilizar-se desta doutrina.
Sem proceder como tantos outros que para vulgarizar a ciência a profanam e
adulteram, Ihering, senhor de si mesmo, expõe originais e profundas reflexões científicas, de
modo que qualquer inteligência medianamente educada pode acompanhá-lo em todos os seus
luminosos raciocínios.
E, graças a isto, tem cabimento utilizar-se este livro como de propaganda, cujo
conteúdo se refere a assuntos que na atualidade interessam não só aos políticos como aos
jurisconsultos, tanto aos filósofos como ao povo.
Não importa, ou melhor, convém que a forma da Luta pelo direito seja naturalmente
muito diferente da que se costuma usar, sobretudo em França e Espanha, quando se deseja que
um opúsculo ocupe a atenção pública.
Ihering, alheio às lutas dos partidos e preocupado, como artista do direito, com os
interesses deste, sob o ponto de vista científico, coisa alguma escrevera em sua importante obra
que destoasse da serenidade e prudência próprias dos trabalhos científicos.
Entretanto, nem por isso deixa de servir, e servir melhor, o intento de contrariar
correntes de influência doentia que, por desgraça, dominam em muitas das inteligências
chamadas a procurar o progresso efetivo da liberdade e do direito.
Quaisquer que sejam as opiniões de Ihering em assunto da política atual, e apesar de
certas tendências em excesso conservadoras que tem às vezes manifestado, A luta pelo direito é,
em rigor, uma obra de conseqüências revolucionárias, emprestando-se a este adjetivo o sentido
menos alarmante possível.
Ainda que o autor aplique os princípios que, com nobre coragem, estabelece à esfera
do direito privado, não oculta que análogas considerações possam convir a outras matérias
jurídicas, pois o essencial são os próprios princípios.
Sem violentar a doutrina deste valorosíssimo trabalho, sem pretender misturar suas
puras e elevadas indagações com os elementos da atualidade política em que vivemos, pode-se, e
julgo conveniente, apontar as relações de subordinação e coordenação que existem entre as
verdades deduzidas por Ihering e outras cujo conhecimento julgo de grande importância e
oportunidade em a nossa época e nosso povo.
Nossos partidos liberais que, com justo título, se apresentam como representantes das
modernas teorias e aplicações do direito ressentem-se de dois conceitos, nestes infelizes dias que
atravessamos: pecam pela maneira abstrata de entender a idéia jurídica e as distintas instituições
capitais do direito, defeito já antigo; e, de alguns anos para cá, também pecam pela tristíssima
fraqueza com que se deixam levar por estes sofismas enervantes da inércia e da paralisação,
inventados pelos covardes e indolentes, sofismas que são conhecidos com denominações mais ou
menos ocas ou bárbaras; sofismas que tomam sua aparência dos argumentos de onde provêm, ora
das ciências naturais, recebendo então a denominação de — evolução; ora de mal interpretados
positivismos e experimentalismos, e neste caso falam do possível, do oportuno, do prático e do
histórico.
Existe íntima relação entre uma e outra enfermidade do nosso espírito liberal e por
isso, do primeiro mal, do — formalismo, de que se pode dizer que quase todos, já há tempos,
estão infeccionados, não será estranho que da nova lepra, que se chama — possibilismo — ou
que poder-se-ia chamar quietismo, — cheguem a padecer aqueles liberais que hoje não têm a
fortuna de conhecê-la.
É evidente que um mal provém de outro; pouco importa que os adeptos da passividade
política, do indiferentismo disfarçado de hipócritas aparências de misticismo político se digam
inspirados pela ciência, pela moderna idéia, pelo progresso dos estudos históricos e naturais; de
tudo isto tomam a cor, mas como enfermidade o quietismo — (que também poder-se-ia dizer —
jobismo — já que agradam os nomes novos), deriva necessariamente da influência formalística
de que, por vício secular, sofre o conceito do direito mais vulgarizado.
Quando o direito é alheio em realidade à vida do povo, enquanto pode sê-lo, isto é —
enquanto o povo dele não tem noção clara, nem com decidida vontade, como vocação especial, o
procura; quando o direito se cultiva principalmente como idéia, segundo a representação
subjetiva de cada um ou das coletividades, sejam escolas ou partidos, sem atenção à unidade e
solidariedade de suas diferentes esferas e instituições; quando o direito é para uns uma metafísica
em cuja existência se crê, com essa fé vaga e nunca muito eficaz com que se crê no
indeterminado ideal; quando o direito se não nos representa como realidade imediata que abrange
toda vida e que se obtém em luta perene com a injustiça, como o pão quotidiano no combate do
trabalho, — que admira que o espírito liberal caia nessa atonia que hoje se exalta como o único
remédio para os males dos que sofrem pela ausência do direito?
Para consolar-nos da ausência de uma abstração, é suficiente uma outra abstração.
Por meio de uma vã teoria se diz ao povo que deve esperar pelo reinado do direito: —
Natura non facit saltum.
A antiga revolução substituiu-se com o dogma pela moderníssima evolução: tudo se
desenvolve por evolução, os animais, as plantas, a vida da sociedade, enfim tudo.
Seria um absurdo pretender-se alterar essa marcha das coisas, é uma rebelião contra as
leis da natureza.
O direito, como todas as coisas, evolucionou paulatinamente.
É inútil que o homem se canse; não terá mais direito que o correspondente ao estado
do desenvolvimento social em que vive, e este progresso depende das leis universais, alheia à
vontade humana: — depende do determinismo universal.
Assim como não se pode alterar o curso das estações, não se pode inverter a ordem dos
governos, e, o que se fizer neste sentido, dará lugar a uma perturbação acidental, cujo efeito se
encarrega de desfazer uma ação violenta e o curso natural volta a ser restabelecido; e nada
adianta, nem um dia, a impaciência irracional dos homens.
Não se negará que seja esta a linguagem que sempre se emprega, e nem sempre com
tais aparências de lógica, para dissuadirmos de toda pretensão revolucionária.
Pois bem: semelhante teoria de aplicação para a conduta se funda no conceito falso por
abstrato e deficiente do direito e, por conseguinte das leis de sua vida.
Diga-se o que se quiser do grande progresso de nossos tempos na vida jurídica, o
direito não chegará a ser compreendido e sentido em sua unidade, nem tão pouco praticado com
consciência da solidariedade necessária e sistemática de suas diferentes esferas e instituições.
Demais, desconhece-se na realidade a influência deste fim da vida em todos os outros;
e ainda que nos livros de filosofia de direito e nas enciclopédias jurídicas se fale desta influência,
os povos não a sentem tal como é, e a justiça defende-se com fraqueza, como alguma coisa de
abstrato, à semelhança dos dogmas religiosos.
Por este ou aquele direito concreto, histórico, se travam combates e se derrama
abundante sangue, chega-se ao heroísmo.
Uns defendem aqui sua independência, outros ali uma estipulação, acolá foros antigos,
por toda a parte um conjunto de direitos.
Por tudo isso se prova que na sociedade existe, por felicidade, a força necessária para
conseguir uma digna vida jurídica, e que não é o medo que detém os povos, sim a ignorância do
que o direito é na realidade, a falta do sentido comum jurídico em sua unidade e em sua
totalidade.
O próprio Ihering nos proporciona exemplos destas defesas parciais do direito, defesas
que poderíamos chamar empíricas, porque se originam em fatos isolados em que cada um só luta
contra a injustiça que imediatamente o fere naqueles interesses que ele, com atenção e vocação
especial, cultiva; fala-nos do aldeão para quem o direito de propriedade é tudo, que nem sequer
sente a dor da sua dignidade ferida, enquanto que a menor injustiça, sua ou alheia, no direito de
propriedade a reputa tão grave que por ela sacrifica repouso, fortuna, tudo enfim, até obter
reparação, sem que estranhe igual proceder nos demais.
Falará Ihering do militar em que se observa um sentimento jurídico contrário, sendo
para ele as ofensas da honra as mais graves.
Este diferente sentimento do direito em cada profissão tem, assim, alguma coisa do
direito absoluto; por quanto a injustiça cada um, sobre o ponto que a encara, a reputa como
absoluta, não sendo questão de quantidade certa, de utilidade subjetivamente apreciada, mas
como necessidade de reparação, custe o que custar.
Entretanto nem por isto o sentido jurídico deixa de ser parcial, relativo, enquanto nasce
não da consciência do direito, primeiramente por si, e depois para toda a vida, mas sim da
ocasião; do mesmo modo que a injustiça ferindo no calcanhar de Aquiles, na parte sensível e
vulnerável, varia em cada indivíduo segundo o rumo que dá a sua atividade.
Na nossa época não temos outro modo de sentir o direito, condição necessária para que
a vontade se mova a aceitá-lo, como não só suporta o frio sentimento que em alguns homens de
estudo possa engendrar o cultivo intelectual de uma filosofia da direito quase inteiramente
abstrata, subjetiva, feita a priori e fundada, as mais das vezes, em sistemas metafísicos já criados,
sem atenção ao direito e que, desde a elevação ideal em que os imagina, ditam suas leis a essa
pobre filosofia jurídica. (1)
Esta filosofia assim em tudo erra, porque baseia seus princípios em sistemas estranhos
à sua essência, e na multiplicidade das suas dissertações especiais marcha cegamente através de
instituições históricas das quais nada sabe, e a que pretende dar um caráter de filosófica
necessidade sem lhes aplicar o harmonioso nome de — “direito natural”.
O sentimento do direito, que em tão pobre fonte se inspira, pouca energia pode
adquirir, e ainda que esta fonte produzisse, e os sábios tivessem a consciência do direito real, em
toda a sua transcendência, com unidade e perfeito conhecimento da importância de suas relações,
tudo isso seria muito pouco para o fim de que se trata.
Enquanto os povos, pelas condições de sua natureza e pelo seu próprio esforço, não
estiverem senhores dessa consciência do direito, como se exige para sua eficácia, quase nada
poderão conseguir no progresso da justiça; entretanto haverá generosas aspirações, luta de parcial
eficácia, algum avanço na doutrina, mas somente isto.
Quando tal sucede tomam incremento os vaticínios dos diletantes da democracia, dos
partidários de agora, como dizia o inolvidável Fígaro que adivinhou muitas coisas e, entre elas o
— possibilismo!
Observe-se essa tática dos inimigos da liberdade e da justiça social que consiste em
afastar os povos da causa generosa da democracia, fazendo-lhes ver que derramam seu sangue
por vãs teorias inaplicáveis, infecundas e inteiramente alheias aos interesses reais da sua vida.
Como sabem que o fazem?! Como sabem que facilmente se enfraquece uma fé que se
nutre de abstrações?!
Como sabem que uma intuição poderosa diz ao operário, ao camponês, ao povo
inteiro: — o teu direito é alguma coisa mais que tudo isto que te oferecem; não te contentes só de
gozar essas garantias de sábio cidadão e perfeito, que te deleitam como um supremo bem?!
Por isso se vê tanta decepção nos dias de prova e no futuro anos de infortúnio.
Por um lado fala ao povo a voz do interesse no dia em que desfruta o materialismo
conservador.
Trabalha lhe diz, em teu ofício; este é o teu dever, esta é a tua conveniência; — que
pão te dariam os direitos? — Pensa em tua pessoa, pensa em teus filhos, e eu te direi como tu
andas, como tu se esqueces das tuas aspirações, das obras públicas em que trabalhas, das oficinas
nacionais; eu farei prosperar a riqueza: isto é o positivo; não penses em aventuras.
Por outro lado, outra voz mais sedutora diz ao povo: “abandona a política e todo o
propósito ideal; são eles quimeras que não entendes, inventadas por aqueles que te exploram; o
mundo é da força e a força é a tua pessoa; tens sobejamente sofrido e sobejamente tens trabalhado
para que outros gozem; levanta-te, subleva-te, proclama que te chegou a hora do poder, isto é —
de gozar os bens terrestres, porque assim o queres, — quia nominor leo.
“Isto é o que é prático, o positivo; o mais, — engano, farsa retórica que não entendes.”
E, além destas vozes que enchem o espírito de dúvidas e o atormentam e aumentam
com peso enorme de fadiga o peso das fadigas diárias, ouve o povo a voz da negligência mais
suave, mais astuciosa: — “O dia do direito chegará, o progresso é necessário, mas lento, virá por
si; tu não te alteres; — a paz é a maior riqueza; — todo esforço é inútil: descansa e espera.”
E como o que espera o povo desse direito que lhe predizem, segundo o entendem os
que o anunciam e o próprio povo, à força de ouvi-los, nada é que satisfaça esses instintos que
pretendem acariciar a seu modo o materialismo conservador e o materialismo dos demagogos,
senão vantagens em sua maior parte ideais, que o pobre povo não apreende bem, a inércia domina-o e lhe vão conquistando o ânimo os adeptos da política estática, da preguiça hábil, que
pretendem ganhar a partida, esperando a santa exaltação de uma deidade fantástica, de uma dama
de seus pensamentos, a que chamam a liberdade e que existe não sabe em que Toboso.
Tudo o que se disse até aqui se reduz a vã declamação se não se fizesse ver a
legitimidade da luta pelo direito, a necessidade do esforço enérgico e constante até o sacrifício
para conquistar o reino da justiça que não chega por si só.
Neste assunto a demonstração de Ihering é convincente e completa, e não me animo a
tratar superficialmente desta matéria que tão magistralmente vão encontrar os leitores nessa obra.
A argumentação do ilustre romanista contra as teorias de Savigny é poderosa o
concludente.
Parece-me oportuno prestar certos esclarecimentos a uma objeção que poderia fazer-se,
fundando-se no próprio conceito do direito.
Entretanto não é somente isto a que me proponho; demorar-me-ei em dizer que, por
causa da concepção abstrata do direito, da ausência de sua acepção profunda e total, hoje carece
da energia eficaz que pode tornar efetivo o império da justiça e dar a um povo, a uma civilização
títulos suficientes para que se reconheça sua especial vocação para vida jurídica; isto igualmente
necessitará de demonstração que procurarei expor, uma vez tratada a primeira tese.
Já Ihering falara da antinomia aparente da luta e do direito e, como verá o leitor, a
resolve sem dificuldade, segundo os limites em que a expõe, porém a objeção fundada em dizer-
se contraditórios os conceitos relacionados pode reaparecer sob outra forma, e impressionar
grandemente os que encaram o direito como uma relação puramente espiritual, tão estranho à
materialidade dos assuntos a que se refere como a própria moralidade.
Certamente que este conceito não predomina, tirando-se as demais teorias pelo lado da
abstração, sem entretanto abandonar certo grosseiro materialismo que escraviza o direito e o
deixa para sempre em infecunda servidão, preso ao terreno da fatalidade natural a que é estranho.
Não se deve, entretanto, ter em consideração, para que seja a argumentação magnífica
e sincera, o conceito defeituoso, adornado de materialismo, porque não poderia objetar a nossa
afirmativa mais do que o que Ihering tão facilmente derrocara.
Deve considerar-se o conceito do direito segundo este se verifica, exigindo-se em todo
o caso que a vontade de um ser livre, e com consciência, preste as condições que dele depende,
como meio, para o fim racional dos seres capazes de finalidade jurídica. (2)
Pois bem, afirmar-se-á, se para todo o direito se exige o livre arbítrio, o favor
voluntário da condição por parte de um indivíduo uma vez que não se trate do direito imanente, é
estranho ao poder de coação, porquanto não se ignora que não se obriga a vontade por meios
coercitivos; e assim sendo, — para que a luta?
Esta será ineficaz.
Se, para existir o direito, é suficiente que se ofereça a condição, seja qual for, com
coação ou sem ela, concorra ou não a boa intenção do responsável, então compreende-se a luta, a
força.
A força e a luta servirão para tornar efetiva a prestação do meio que atinge o fim.
Mas eu digo que o direito para mim não é isso; se não concorre a intenção do agente,
do responsável, sua boa vontade livremente prestada, o direito, por seu lado não se cumpre: tão
injusto é depois, como antes da prestação.
Isto mesmo revela o senso comum, que não chama varão justo àquele que por medo ou
engano executa o mandato da lei.
Como, pois, resolver a antinomia?
Como se concilia esse conceito do direito puramente espiritual que, só pela razão do
meio, atinge às vezes, nem sempre, a natureza, no exterior e coercível, com o outro termo desta
relação, a luta, que supõe coação e esforço exterior efetivo? Será porque se trata de uma luta
metafórica que se limitará aos esforços da eloqüência que por meio da persuasão podem obrigar o
responsável a prestar voluntariamente o que deve?
Também não.
Trata-se de uma luta efetiva, real, demasiadamente material, por infelicidade, muitas
vezes.
Entretanto parece, dir-se-á, que quem assim o escreve se deleita em tornar irresolúvel a
contradição que se apresenta.
Não há tal coisa.
Com uma distinção que não é sutileza, mas que exige um espírito isento de certas
preocupações muito comuns, tudo se explica satisfatoriamente.
Oxalá que tivesse a arte de dar às minhas palavras a clareza e precisão com que
facilmente se concebe o que de seguro vou, sem elegância e em frase forçada, exprimir.
É verdade que o direito não se deve encarar, como é costume, pelo lado do indivíduo
para quem se aplica em um dado caso, mas em relação ao assunto que sirva aos fins, o que
Ihering denomina com impropriedade de palavra, na minha humilde opinião, — direito subjetivo.
Alguns julgarão que me refiro a toda a matéria, entretanto não é senão a consideração
parcial de um limite daqueles que entram na relação.
Mas, ainda que o direito esteja nessa relação, não é ao fim a que se deve atender, nem
ao modo de existir desse fim; não é na essência da prestação ou objeto responsável, nem ao meio
ou matéria da prestação, por ser de fácil compreensão que, sendo o mesmo o indivíduo para quem
é o direito, a mesma a matéria ou o meio (que parece dar nome ao direito), pode acontecer que,
sem realizar-se o direito de que se trata em relação ao ser responsável, a prestação do mesmo
meio se efetue como a que deve ser cumprida por outro indivíduo.
De sorte que aquilo que vulgarmente se entende por direito, — o direito subjetivo de
Ihering, — fica realizado e, não obstante, não se apresenta na primeira relação, a que
supúnhamos, com um primeiro indivíduo que voluntariamente não presta a condição embora a
preste.
Para aquelas pessoas pouco habituadas a estas palavras — meio, fim, sujeito,
prestação, etc., — na acepção rigorosa que aqui são tomadas, para esclarecê-las, um exemplo
basta.
Todo escravo tem direito à liberdade; o senhor tem obrigação de lha dar,
voluntariamente, porém não lha concede; intervém a lei, e apesar dos esforços daquele que
comete a injustiça para mantê-la, o Estado restabelece o direito, — liberta o escravo.
Sempre aqui se trata do mesmo assunto, do mesmo meio: do direito da liberdade, como
todos nós dizemos; a liberdade consegue-se e, em linguagem corrente, se diz que o direito se
realizou; mas no conceito do direito, que damos por perfeito e a cuja virtude se opõe a objeção
que combato, temos que distinguir: — o direito da primeira relação não está realizado; o senhor
que a lei obriga a alforriar, como não o fez voluntariamente, não deixa de ser injusto, não cumpre
o direito; mas o Estado, que no momento em que tivesse consciência da injustiça e que pudesse
desfazê-la, estaria obrigado, com relação ao escravo, a procurar-lhe a liberdade pelo meio
coercitiva, nessa outra relação de direito teria cabalmente cumprido a sua realização. A este
respeito, ainda no sentido mais restrito, pode-se afirmar que o direito se realizou.
Há duas relações distintas em que o meio e a natureza do fim têm sido o mesmo, e a
essência da prestação mudou.
A obrigação do primeiro era a concessão voluntária da liberdade; a do segundo é a
voluntária intervenção coercitiva para conseguir, como quer que seja, a liberdade do escravo.
Como o direito se define geralmente, ainda que com impropriedade de termos, em
consideração do sujeito para quem é, e como a matéria desse direito ou meio é o que costuma
dar-lhe o nome, daí o dizer-se em linguagem usual que o direito está realizado, quando somente o
está em uma das relações.
Neste mesmo exemplo vemos desfeita a antinomia: — Os povos têm lutado com
esforço generoso e eficaz pela liberdade dos escravos.
Lembrêmo-nos pelo menos da tremenda guerra dos Estados Unidos.
Os escravagistas opunham-se com todo o vigor a esta justa reparação.
É claro que, de suas vontades, nada se podia esperar; entretanto nem por isso deixava
de ser eficaz a luta, porque havia princípios de direito que podiam dar a liberdade contra a
decisão contrária dos senhores: e para que os coagidos neste sentido empregassem os esforços
necessários para a consecução daquele fim, a liberdade servia a luta pelo direito, que não é outra
coisa que a luta que o indivíduo emprega para conseguir o que procura no que lhe pertence.
Se por exemplo, os escravos conseguissem casualmente sua liberdade, sem intervenção
de vontade alguma, pela morte dos senhores, ninguém diria que tivessem conquistado o direito de
liberdade.
Neste ou outro qualquer exemplo não se trata do direito, senão enquanto supomos a
existência de agentes jurídicos, de cuja livre atividade depende esse fim, como podendo perturbar
ou não oferecer a condição necessária para que se realize aquilo que estão obrigados.
Não, não há contradição alguma, a luta pelo direito existe para o agricultor que
defende suas terras contra o que pretende perturbar-lhe a posse; ele luta pelo direito, porque se
não pode conseguir que voluntariamente ceda em seu desejo o adversário, consegue que o Estado
intervenha e preste a sua intervenção para o direito que defende, a coação, que sanciona em
último caso a declaração explícita a que também o Estado está obrigado, pelos títulos legítimos
que possui o proprietário.
Invoquemos outro exemplo, mesmo do direito econômico: na miserável condição em
que existia o trabalho na antiguidade, quando era desprezível e servil, até a presente situação em
que disputa ao capital o predomínio na distribuição do produto, aspirando levar as leis à sanção
de suas pretensões: existe aí uma enorme distância que supõe uma larga história de lutas em prol
do direito.
Como e em que consistiu esta luta?
Em cada caso particular, por certo o capital não teria sido cedido voluntariamente,
consistindo aqui a luta em obrigar o Estado a interpor sua força.
Muitas vezes nem o Estado, nem o que gozava o privilégio de explorar o operário
teriam cedido de bom grado; mas então a luta pelo direito não consistia
em vencer esta oposição; aqui era a luta pelo fato; o direito existia naqueles que se
emancipavam e que tinham a obrigação, depois de adquirida a consciência da injustiça que
suportavam, de pelejar até o sacrifício pelo fato da emancipação do trabalho.
Isto era lutar pelo direito: — unir as forças, ampliar a convicção da justiça que assistia
ao trabalho, contrariar com esforços constantes o privilégio que resistia a suas legítimas
pretensões.
Até aqui já dissemos alguma coisa a que Ihering chama a luta pelo — direito objetivo.
Repitamos as suas palavras: “O direito contém uma dupla idéia: — a idéia objetiva,
que nos oferece o conjunto dos princípios do direito em vigor, — a ordem legal da vida; — e a
idéia subjetiva, que é, por assim dizer-se, o precipitado da regra abstrata no direito concreto da
pessoa.”
Pois bem, a luta pelo direito tem também esta trincheira imensa da regra positiva
jurídica, a qual não é só a lei promulgada por um poder público, mas também o uso, e ainda mais:
numa acepção geral predominante, o sentimento do direito e as idéias recebidas pela generalidade
como adequadas ao justo.
Apresenta-se aqui, lutando contra o poder, contra a ignorância, contra o vício e muitas
vezes contra o crime.
Neste ponto, a objeção que antes combatíamos já não seria a propósito, porque não se
trata do direito puramente dito, mas dessa acepção metafórica em que se usa da palavra para
significar a regra de direito.
É sobre este aspecto da questão que menos insiste Ihering, quando trata especialmente
do que chama direito subjetivo, na esfera do direito privado; é onde reside a força da
argumentação contra o quietismo jurídico que combatemos.
As ilusões da escola histórica que criara uma cosmogonia particular para o mundo
jurídico, desfá-las o nosso escritor, como já dissemos, com raciocínio poderoso por ocasião de
atacar as teorias de Savigny e de Puchta.
Entretanto, convém aqui insistir neste aspecto da luta pelo direito, porque a negação de
modernas escolas, ora jurídicas, ora políticas, refere-se a este ponto particularmente.
A partir deste conceito de um direito ideonatural, que existe na consciência como
arquétipo criado de uma vez e para sempre, pela mesma razão, — ab eterno, (conceito cuja
generalização histórica nos indica com grande perspicácia o insígne escritor inglês Sumner
Maine) (3), chegou-se a desconhecer o processo biológico da regra jurídica, dando ao futuro, ou
como queiram chamar-lhe, uma preponderância tal na formação histórica das instituições
jurídicas, que pouco ou nada se deixa nesta criação à iniciativa humana e ao trabalho penoso dos
povos e legisladores.
E a antiga escola que justamente se afigurava ser chamada a desfazer esses erros, e a
combater os excessos da idealidade do filosofismo, deu novo incremento à aberração com suas
teorias do direito nacional onde se defende uma espécie de geração espontânea do direito.
Com semelhante doutrina impossível é crer-se na eficácia e necessidade da luta pela
regra jurídica, e toda política ativa, real, no sentido de medir as forças para obter o triunfo, permanece em absoluto condenada, e deixa sacrificado o espírito que se chamará aventureiro,
segundo a forma científica do direito, e o jurisconsulto será como o inglês, eminentemente
fanático pela tradição, (4) como o romano, atrevido e reformista.(5)
Mas o direito como regra, o direito objetivo segundo lhe chamam Ihering e tantos
outros autores, não surge nem vive como afirma essa abstração histórica, que antes parece um
conto fantástico que uma história; é obra humana, produto das gerações e, antes de tudo, produto
de sua energia, de seu sangue, se assim nos podemos exprimir, referindo-se a grande parte da
história conhecida.
Primeiramente o direito conquista-se na consciência, ainda que às vezes seja
simultânea a idéia de um direito com a intenção de conseguí-lo, de estabelecê-lo, graças à força
da necessidade que serviu de sugestão ao pensamento e de estímulo à vontade.
Mas os povos não começam formando um ideal sistemático duma constituição e suas
partes, porém só de modo empírico, como vemos ainda hoje em cada um ao defender seu direito.
A necessidade é que desperta o direito que se mostra isolado, desejado pelo interesse
imediato, de inegável realidade jurídica, mas sem relação com outras instituições análogas, nem
mesmo com fatos análogos, sem relação alguma.
Assim nasceram as Themistas ou — as sentenças, — primitiva forma do direito grego,
como adverte Sumner Maine.
Estas manifestações primárias do direito não são leis, são julgamentos; o legislador
neles não se funda nem nos antecedentes nem em leis estabelecidas, nem em usos conservados.
As Themistas são sentenças isoladas que para cada caso são proferidas, como que por
inspiração divina, fundando-se, na realidade, no que o critério dita ao juiz e ao sacerdote.
“Zeus, diz Grote em sua História da Grécia, não é um legislador, — é um juiz.(6) — O
costume, em que se queria ver a origem do direito nele inato, confundido com ele (tendo-se deste
modo uma clara explicação das origens); o costume é posterior, é a acumulação lenta dessas
Themistas ou sentenças, mas não inconsciente e ditada ao povo pela voz oculta do próprio caráter
nacional.
O nosso autor, em a sua obra monumental — o Espírito do Direito Romano, concorda
com este pensar de Sumner Maine quanto às origens das instituições jurídicas, até o ponto de dar
ao direito processual (em quanto se lhe puder aplicar este nome tratando daqueles tempos) uma
grande importância, como fonte de direito, importância que os demais romanistas em sua maior
parte desconhecem.
O direito(7) aparece com a ocasião, afirma Ihering; o trabalho dos primeiros
jurisconsultos, daqueles que, por serem atualmente menos apreciados e conhecidos, não deixam
de ter sido os principais autores daquele direito, (8) consistia principalmente em descobrir
as relações jurídicas, sua conexão e divisão na prática, na vida do direito, nos casos
verdadeiramente concretos.
O motivo porque é impossível estudar com proveito a história jurídica de Roma,
especialmente na época do direito estrito, sem atender muito especialmente ao processo, para
cujas necessidades se criaram tantos meios engenhosos que foram determinando o progresso
daquele direito que chegaria a chamar-se, senão com propriedade, com justo entusiasmo, — a
razão escrita.
E que revela isto?
Que o direito, como lei do Estado, como convicção do povo, costume, e produção
artística da jurisprudência, é obra do trabalho humano, e obra que exige esforços e luta constante
com muitos obstáculos de espécie diversa.
Porque não é somente a luta com a ignorância, com a inexperiência que se tem a
considerar.
Também se luta com os interesses que o direito necessita contrariar, pois não se trata
de uma álgebra jurídica cujos termos são por sua natureza indiferentes.
O direito marcha como o carro da deidade índica, sobre as entranhas da vítima que é
necessário sacrificar, caminha sobre as injustiças da terra que são para os tiranos, para os
exploradores do gênero humano, como as próprias entranhas.
O cinzel do legislador ou do jurisconsulto trabalha em carne viva; todo o direito que se
desfruta tira a vida a alguma coisa que deve morrer, mas que alguém defende até o último alento:
— aquele que vive do injusto.
É já a tristíssima necessidade de lutar às vezes até derramar sangue: já não são apenas
os metafóricos combates de que se falara. E que nos oferece a história pragmática, que
acompanha a história do direito, senão o espetáculo quase sempre sanguinolento, dessa luta que
há de sancionar a evolução da lei?
Ainda é menos triste o quadro, quando por um lado, ao menos, combate o direito!
Em quantas guerras, que a história registra, não se depara mais que o choque de duas
injustiças!
E, quando assim é o mundo, a realidade, para o bem ou para o mal, — é que se prega a
inação, o marasmo, e o sofrimento! — é que se defende a paz a todo o custo, ainda que
enfraqueça, ainda que destrua o caráter, ainda que favoreça a injustiça, fortalecendo o seu
reinado!
Que fanatismo moderno é este que se propaga?
Nestes povos europeus que conquistaram o pouco que gozam da vida da liberdade e do
direito, com hercúleos esforços e supremas dores, prega-se o — nirvana político; não com caráter
do pessimismo como seria mais lógico, mas em nome de um otimismo superficial, excessivo,
abstrato, absurdo, otimismo que é materialista quando nega à ação humana uma influência capaz
de destruir os efeitos do determinismo natural na regeneração do espírito e que, por outro lado, é
ingenuamente providencialista e quase idólatra, quando espera do alto uma misteriosa e salvadora
força invisível, que vá realizando o ideal da justiça, em cada momento, a bel prazer, por um
processo invariável, mas seguro, alheio à vontade do homem.
Que diria, se tudo isso ouvisse, aquela plebe romana que nasceu sem direito, e chegou
a ditar leis ao mundo; que, em sua própria cidade nada podia no começo, nada era, e chegou a
encher os anais de sua história com seus cônsules, censores, pretores, tribunos e pontífices?
Oh! Não foi certamente um possibilismo o que inventou a plebe romana para vencer a
nobreza, para deixar eterno exemplo que imitar à plebe de todos os povos futuros.
Em muitos livros, alguns de valor, fala-se com entusiasmo da especial vocação do
nosso século (e em geral da época moderna) pelo direito, a cujo fim, afirma-se, se consagram as
mais vivas forças da sociedade.
Esta crença, muito generalizada, contraria o que acima se deixa afirmado.
Mas é verdadeira essa vocação?
No direito público, enquanto direito das relações entre os poderes, e destes com o
indivíduo, não resta dúvida que existe grande atividade em nossos dias; mas não é eficaz como
podia ser, se fosse presidida por mais claro conhecimento de toda a vida jurídica, cujo conceito
de unidade e cujo sentimento faltam em absoluto ou são muito deficientes.
Verdade é que, em direito político, tem-se feito grandes conquistas, mas têm sido sobre
o domínio da tirania do privilégio odioso.
Tem-se derrocado o poder absoluto em umas partes por completo, em outras por meio
de transações, de garantias mútuas, inventando-se para isso o sistema monárquico-constitucional
que deixa subsistente uma não escassa porção do poder pessoal arbitrário. (9)
Mas este trabalho de destruição se é de magno valor, não nos deu um direito público,
que seja real garantia da liberdade, nem que preste as condições necessárias para perfeição de
nossos fins, nem muito menos este conhecia a eficaz relação com o direito inteiro, em princípio
na sua unidade e depois na sua rica variedade.
Nada disto possuímos: sendo por este motivo que os espíritos que se chamam —
positivos — se têm afastado das lutas políticas desenganados de seu proveito.
Não se pode sofrer o poder arbitrário, que se destrói, o que já é muito: todavia
enganam-se aqueles que crêem que isto basta para que o direito tenha na vida a salutar influência
para que é invocado.
E, não obstante, há partidos políticos liberais que não prometem outra coisa: direitos
individuais (isto é — as condições absolutamente necessárias para que ao menos se possa falar de
um Estado e de um direito público), liberdade para todas as atividades cuja concorrência social de
modo algum tem sido regulada, e afinal — descentralização administrativa.
Esta última frase — descentralização administrativa, empregada sinceramente,
demonstra o que dizemos: — que os nossos progressos políticos pouco têm feito em prol do
direito em si, pois nos tem deixado nas divisões abstratas.
E enquanto nos julgamos soberanos, graças a certos indícios exteriores, somos
escravos, como sempre, naquelas relações de direito que de mais próximo importam à realidade
da existência.
Quanto se fala do positivismo e realismo em nossa época! E ninguém se alinha com o
positivismo jurídico que consistiria em arremessar as cascas e permanecer imóvel com as nozes!
Divide-se o direito em político e administrativo e em público e privado, — isto, que é
muito bom para que melhor os estudantes aprendam, é de conseqüências deploráveis na realidade
da vida, porque se toma a divisão escolástica em um sentido em que não deve ser tomada.
Também a alma se divide em mais ou menos faculdades, segundo os diferentes autores
e, não obstante, vivemos bem longe de proceder segundo essas divisões. O direito administrativo
é tão político como o próprio político: se, como subdivisão interior deste se pode admitir a
distinção, isto não impede que seja absurda essa separação de sua essência que supõe proclamar
legítima a descentralização administrativa, enquanto que se considera abominável a política, que
se ornamenta com nomes tenebrosos e de tristíssima história.
Este erro provém, como muitos outros, de que reina a abstração do direito escolástico,
em vez de vencer o sentido do direito real.
Tem razão Ihering: são fatais ao direito moderno a — publicidade e plasticidade(10)
do direito romano antigo, e por este motivo se confunde com os outros elementos da vida.
Em nossos negócios continuamente se trata de relações jurídicas sem que o
suspeitemos sequer, e sofremos males que têm remédio jurídico, sem que invoquemos tal
remédio, e toleramos lesões que por intermédio do direito podiam ser reparadas, sem que nos
fosse preciso pedir semelhante reparação.
Somente no que se chama por antonomásia direito político(11) existe certa
publicidade, enganadora em grande parte, pois o principal do direito público é ser secreto, ou
pelo menos florescer entre poucos.
Mas nas outras esferas jurídicas apenas o povo forma uma vaga idéia do que se passa.
O direito tem-se tornado demasiadamente escolástico e demasiadamente curialesco
para que se possa sonhar com uma vida jurídica popular de real e eficaz efetividade.
Convém reproduzir algumas palavras do autor deste opúsculo que, com profundeza e
elegância, disse sobre este assunto: — “Esta indivisibilidade dos movimentos e das operações do
direito atual, esta natureza neo-plástica que o caracteriza estende-se ao direito do processo.
“Recentes reformas têm dado outro aspecto exterior, é verdade, ao processo criminal,
mas ainda há pouco não tinha, como o civil, mais existência que no papel.
“Começando e concluindo-se sobre o papel, nem um nem outro ofereciam momento
algum dramático, nem se manifestavam mais que em suas conseqüências.
“Poder-se-ia dar como lema à justiça uma pena em vez de uma espada, porque as penas
lhe são necessárias como aos pássaros.
“Mas ao contrário destes a sua rapidez está na razão inversa das penas que
emprega.”(12)
Esta falta do elemento dramático em nossa vida jurídica origina-se de que o direito não
chega a ser assimilado pelo cidadão atual a ponto de formar parte do seu caráter, a correr em
glóbulos no seu sangue.
Muitas vezes está seriamente abalado o nosso direito e não o conhecemos, não
sentimos a dor de uma injustiça que positivamente se nos faz.(13)
Observa-se em o nosso povo como passam facilmente, sem protesto mesmo, os
maiores atentados jurídicos na ordem econômica; como um ministro da Fazenda, sob pretexto de
se tratar de um tecnismo financeiro que nem todos entendem, sob pretexto de que tem um plano,
corta e aumenta na Fazenda Pública, isto é — na fazenda de todos, dando lugar a incômodos
irritantes com a cobrança, faltando ou deixando que os subalternos faltem a todos os direitos
possíveis, até aos direitos individuais, empreendendo direitos ruinosos, comprometendo o futuro
da riqueza e tudo sem que aparentemente transgrida a Constituição nem as leis orgânicas.
Invoquemos outro exemplo e outra prova nas relações do direito privado e direito
público.
Como se elaboram hoje as chamadas leis civis? Não se trata agora da legitimidade da
fonte donde provém, ainda que muito se pudesse dizer, nem tão pouco dos sistemas em uso para
legislar nestas matérias, sobre que muito havia a apontar; (14) mas trata-se da influência do povo
na formação dessas leis, influência em rigor nula em nosso tempo e nestes países.
É de causar pasmo a facilidade com que umas Cortes podem, sem mais nem menos,
transformar bem ou mal, leis referentes aos mais importantes interesses da família e da
propriedade, a todo o direito civil em fim.
A faculdade constitucional não lhes falta; e como o voto dos eleitores é coisa tão alheia
a toda a previsão das conseqüências que pode trazer ao direito o resultado dos sufrágios, pode
encontrar-se o país com umas Câmaras, que efetivamente não elegeu, mas que consentiu que
elegessem uns certos, e que transformam o seu direito, ofendem o que é mais querido e sagrado.
E, devido ao descuido, derrogam e sub-rogam leis e aprovam outras, sem que seja em
rigor esta obra mais do que de uns poucos de senhores advogados, e às vezes leigos, que têm
tomado a si a honra de ser membros da comissão. Outras vezes é um ministro que teve a
iniciativa e que leu ou não leu muitos livros franceses, italianos, ingleses ou alemães, pouco
importando o grau de sua erudição; este ministro acha tudo mau e desfaz o que está feito e afinal
se engana, e, não obstante, no Parlamento, a sua obra, sua ponderosíssima obra passa por perfeita;
todos a aceitam e, aqueles que não hipotecam o seu voto é porque estão atarefados com os
interesses diários, com a política corrente; mas a lei passa, daí resultando, às vezes, que todos os
casados do país estão mal casados, pelo menos muitos, ou que a reforma estudada com pouca
atenção sobre a alienação, é uma medida comunista, pelo que tem de ser revogada.
Por fim, é necessário organizar o direito e trazê-lo à colação para que uns poucos de
senhores escrevam um Código que sirva para todos, ainda para aqueles para quem não serve na
realidade.
Compor e destruir constantemente!
E tudo isso sem que o país se importe com coisa alguma, até que, um a um, os
cidadãos vão sentindo por sua vez as conseqüências desatrosas daquelas leis ou decretos, porém
quando já é tarde e quando o protesto de cada um é já de inútil oposição. A lei e o decreto! outro
exemplo que revela que vivemos de aparências e que a base do direito nos escapa.
O decreto é alguma coisa menos solene que a lei, porque não cria direito em matéria
grave, mas procura a reta aplicação das decisões das leis promulgadas; por esse motivo o decreto
é do poder executivo; divisão sábia, explicação satisfatória... e acontece às vezes que os decretos
interessam mais que a lei porque quaisquer que sejam a facilitam ou dificultam, a anulam ou
adulteram; e como deles depende a aplicação, não sendo parte da lei, convém admitir-se no país
mais decretos do que leis; mas se nestas o país não tem grande parte, naqueles nenhuma.
Os decretos! Ainda não se sabe até que ponto poderia danificar um governante, sem
sair da Constituição, só publicando decretos; é o que afirmam os povos por experiência desta
matéria.
A polícia, os delegados, as juntas, são os tentáculos do poder de cuja legitimidade não
se permitirá que pessoa alguma duvide, sob pena de merecer o apodo de anarquista.
Assim imagine o leitor a soma de incômodos, arbitrariedades, atentados à segurança do
cidadão que constitui a história da polícia, dos delegados e das juntas.
Em mãos destes pequenos deuses do Estado encontra-se quase sempre, a cada
momento, o direito de cada habitante, e, não obstante, os próprios que declamam contra a tirania,
contra o déspota que fulmina decretos, sofrem milhares de empecilhos que a ignorância e a
maledicência das autoridades locais sem piedade lhes flagelam.
Aquila non capit muscas.
Em todas as esferas do direito se encontram abundantes provas de que a vida moderna
tem reivindicado o direito expresso, sendo este em parte exíguo, mas sem ao menos ter procurado
libertar-se de muitas injustiças de que sofre, por que não vê como direito o que é de direito, e
julga incômodos necessários e azares do acaso o que um povo, que tivesse consciência perspicaz
da realidade jurídica, procuraria remediar lutando pelo direito.
Omitirei, porque não é possível outra coisa, infinidades de relações que nos convidam
com a clareza evidente de seu exemplo; deter-me-ei somente na consideração do direito do que
chamarei, para me servir de palavra muito usual — a autonomia.
É este aspecto do direito importantíssimo, tanto por seu valor intrínseco, como porque
não se pode escolher indício mais evidente da ausência da vocação jurídica que o abandono em
que jaz por parte dos povos e legisladores esta garantia capital, principalmente de todo o direito
definitivo, real, digno de tal nome.
Por outra parte, a consagração da autonomia é o único meio para despertar este
sentimento e essa vontade que podem habituar os povos à luta pelo direito e ao racional
aproveitamento da vitória.
A teoria do contrato social é, como explicação hipotética das origens da sociedade, a
mais inverossímil de quantas se tem idealizado (no interior da ciência compreende-se, porquanto
na legenda paradisíaca há maior inverosimilhança); mas hoje reconhece-se, passado já o prurido
da reação contra a doutrina de Rousseau, que tanta influência teve na Europa, que foi de grande
utilidade para a conquista da liberdade individual semelhante hipótese, que supunha nos
princípios da vida humana um estado de independência natural em que o homem gozava, sem
quebra para o Estado, de todas as suas faculdades originais, sem entraves e sem limites.
Muito fácil tem sido para a arqueologia jurídica demonstrar que todos os vestígios que,
servindo de indícios, falam de tão remotos tempos, afirmam o contrário do que supõe o contrato
social, (15) que a vida humana começou sendo coletiva, sem que pudessem subsistir os homens
de outro modo, naqueles terríveis tempos de luta constante com a natureza.
Mas é outra coisa apresentar como do direito natural a teoria da origem familiar das
sociedades.
Assim nasceram, é verdade, e pode dizer-se que está demonstrado que do direito
patriarcal se originou o direito público, propriamente dito; que os primeiros povos não foram
mais que naturais agregações de diferentes famílias sob o poder de seus respectivos chefes ou
patriarcas, famílias provavelmente unidas por afastados laços de parentesco que tendiam a unir-se
à comunidade presumível, se não averiguada, de origem.
Mas esta origem histórica que, pode dizer-se, pertence à história natural do homem,
age mais pela sugestão das circunstâncias naturais do que pela livre escolha e não obriga a
considerar como contrária ao direito a formação de sociedades adultas em que o contrato, ou
melhor, o pacto, são a base, o fundamento histórico do Estado.
E com efeito assim tem sucedido, formando-se povos tão poderosos como os romanos
que, segundo observação profunda do autor deste opúsculo, deve em grande parte seu eminente
espírito jurídico e seu poderoso caráter a ser o produto da união artificial de três povos;(16) assim
se formaram em nossos tempos os Estados Unidos, de cuja prosperidade não se duvida.
Não obstante, se o pacto pôde ser fundamento da criação de um Estado, não se
compreende como o direito nasça naquela sociedade com o pacto, erro que, como Rousseau,
compartilharam muitos e de que, ainda hoje, talvez informem alguns dos defensores do pacto.
O célebre pensador das Antinomias, gênio fecundo em robustas criações, brilhante em
excesso (se pode haver excesso no brilho), apaixonado argumentador, se necessário fosse, amigo
da antítese e ainda do paradoxo, igualmente recorreu ao pacto, esquecendo também que o direito
é anterior necessariamente a todos os pactos possíveis e que a força jurídica de toda a convenção
sempre nasce de direitos preexistentes, não sendo mais o pacto, por fim, que a determinação das
relações do direito que existem entre as partes que convêm ou tratam, na forma e até o limite que
livremente escolhem.
De sorte que o pacto jamais criará direito, sempre o determinará; porém jamais
determinará todo o direito possível entre os contratantes, porquanto a determinação é uma
limitação, e na confinação necessária de todo o pacto não cabe a infinidade possível do direito.
Ainda que o ilustre e sábio estadista Pi y Margall (17) procure demonstrar que não se
pode atribuir os erros da doutrina de Rousseau à de Proudhon, é verdade que no ponto a que me
refiro tanto erra o Princípio federativo como o Contrato social.
Proudhon, descobrindo contradições em tudo, deparou uma entre a autoridade e a
liberdade (18) e, como engenhoso meio de reduzir seus efeitos, não para resolvê-la, discorreu,
diminuindo o poder da autoridade dissolvendo-a, reduzindo-a a uma divisão quase atônica; para
esse fim se serviu do pacto da federação.
Esta origem tem entre nós a facção que procura, a todo custo, a autonomia, como única
garantia certa do direito.
Para os outros, com efeito, o indivíduo é senhor de todo o seu direito, de toda sua
relação jurídica; cada obrigação que com os estranhos estabelece é como alguma coisa que perde
de sua liberdade.
O Estado, como qualquer outro contratante, não tem para com o indivíduo mais
direitos que os contratados.
Se as necessidades da vida pedem outra concessão, outra diminuição da liberdade
individual, seja concedida, porém mediante modificação do contrato, para que conste que aquela
nova prerrogativa do Estado fora contratada e que só atinja até o ponto determinado.
Finalmente, que o cabedal do direito esteja no indivíduo e, com este cabedal, gaste em
suas relações com o Estado só o que for preciso para manter garantidas as seguranças que o
Estado lhe oferece.
Assim entendem muitos daqueles que proclamam a autonomia, e assim a entendendo é
forçoso confessar que se torna impossível toda a sociedade jurídica.
Prossiga-se nesta ligeira exposição crítica, porquanto de outro modo seria
extemporânea, porque me interessa que não se confunda o que aqui se chama o direito da
autonomia, cujo valor anda embaraçado nas doutrinas correntes com que por causa do nome
poderia confundir-se.
O grande equívoco desse autonomismo que acabo de louvar, consiste em não ver mais
autonomia que a individual, caindo assim em muitos dos lamentáveis erros do individualismo
antiquado que todos combatem, sem notar que existe contradição entre certas salutares tendências
das que se chamam socialistas (para aterrorizar aos conservadores que estão na aurora da
existência a este respeito) e essa autonomia individual exclusiva.
Não, a autonomia não diz em geral senão isto: — lei de si mesmo, isto é — o poder
jurídico em cada pessoa do próprio direito; não diz que essa pessoa seja individual, e refere-se a
toda a personalidade jurídica que possa ter um Estado. Assim o indivíduo poderá dizer com
justiça: o meu Estado sou eu..., e também o pode dizer — o Estado.
Na autonomia individual como única do direito, como única não instituída, necessária,
se encontra o pacto social ou a autonomia artificiosa e falsa de Proudhon.
Somente reconhecendo em cada Estado uma autonomia, isto é, em cada pessoa do
direito um estado, se pode fundar com justiça esta doutrina do direito autonômico, sem que em
coisa alguma ofenda o direito individual.
O mesmo que se pretende defender com o autonomismo individual, a saber: a ação
própria de cada um em toda a relação do direito em que o indivíduo participa, obrigando-se ou
obrigado, se defende sustentando a autonomia dos outros Estados, — o municipal, o provincial, o
nacional, etc., etc., (19) porque todo o direito nestas esferas é igualmente direito do indivíduo,
não como indivíduo, mas como membro desse Estado superior; e, na última realidade do direito,
a que se encontra em todos os Estados pertence ao homem.
Assim, procurar a autonomia nacional, a autonomia provincial, a autonomia municipal
não é menos trabalhar pela realidade do direito, que quando se atende à integridade dos direitos
do indivíduo em seu próprio Estado.
Em Espanha existe um numeroso partido cujo ideal político característico é a
autonomia provincial; a este chamam agora — federais, por motivos transitórios, relacionados
com o que eu disse acerca da procedência das teorias que muitos destes autonomistas defendem.
Em França o partido federal é caracterizado pela aspiração à autonomia do município;
mas nem uns nem outros entendem que trabalham senão em favor da autonomia em todos seus
graus, não só pelo indivíduo como pelo município e Nação.
Todo o desequilíbrio nesta matéria é absorvente ou dissolvente; se à autonomia
individual se sacrificam as demais, há anarquia; se predomina a municipal, a Nação dissolve-se e
o indivíduo não sofre menos, é vexado por um tirano local, como poderia ser por um imperador
do Sacro Império ou de todas as Rússias.
Se a autonomia nacional é que antes de tudo se procura, com desprezo dos círculos
interiores, — ha absorção, há a centralização, sendo esta a situação da maioria das Nações.(20)
Assim compreendida a autonomia, denominação de que, como tenho dito, me sirvo por
que é das usuais a que mais se aproxima do conceito de que trato, compreende-se que nela se veja
a pedra de toque de todos os direitos e que o estudo de sua situação atual nos sirva para observar
se, com efeito, se acertava ao dizer-se que o direito não é atualmente apreciado em sua unidade
com clara compreensão, e sentido com toda a eficácia possível.
Pois bem: — em que Nações está reconhecida a existência real e necessária dessas
pessoas do direito?
Verifico por mim a descentralização administrativa que nos oferecem muitos liberais
como grande satisfação às reclamações da autonomia.
Não se julgue que nos mesmos países em que existe a federação, esta implique uma
garantia segura ao direito autonômico; começa por não estar o direito individual na federação
austro-húngara, nem na federação dos Estados Unidos, onde existem certas leis contraditórias que
com satisfação os escritores ultramontanos citam.
É porque a federação pode ser um meio entre outros (21)
para assegurar a autonomia de cada círculo jurídico do Estado próprio, mas um meio que
pode ser ineficaz como os outros.
Entretanto, ainda mais triste (e melhor prova do que afirmo) que a ausência de leis que
dêem ao direito da autonomia tudo o que na justiça lhe pertence, muito mais triste é a ausência da
idéia jurídica da autonomia dos povos.
Quase ninguém se queixa, nestes países sobre tudo, da espécie de empalmação do
próprio direito que, com duvidosa habilidade, mas com desfaçatez admirável, nos oferecem os
poderes constitucionais no espetáculo contínuo, que equilibrados bem ou mal entre si, conspiram
com perfeita harmonia com o fim de tornar ilusória a soberania popular.
É o povo um soberano - in-partibus infidelium.
E, não obstante, partidos liberais inteiros que oferecem mil felicidades, nem sequer,
ávidos pelo direito, nos dão um meio para impedir este jogo em que o povo sempre perde.
É que estes partidos liberais não sentem a necessidade de converter em realidade essa
soberania tão decantada para crer na qual é necessária uma fé não menos ardente que para crer na
eficácia das relações que a Igreja mantém com o céu.
Se com sufrágios se alcança a glória, com sufrágios se conquista essa soberania.
A verdade é que não está demonstrada nem uma nem outra.
O que se faz primeiro ao povo com a sua soberania é pô-la onde não a veja; como —
voto, — o cidadão é tão soberano como qualquer outro; mas como homem, nem sequer é senhor
de si mesmo. (22)
Recordemos aqui o predomínio da abstração que caracteriza o conceito do direito em
nossos dias; se no processo civil o direito consiste em papel e pena, no direito público o processo
não é mais plástico, nem menos invisível; toda a soberania se reduz a uma chapa em que o
cidadão escreve o nome de um representante.
E direi já que essa soberania, esse direito do indivíduo em intervir na ação do Estado e
em todos os Estados interiores, é de impossível realização, enquanto existir a centralização
política, que se funda em um conceito abstrato da Nação e depois simboliza esta em um como
protótipo de cidade: — a capital.
Esquece-se por completo a relação do direito no espaço, e que esta exige que se deduza
o meio de cada um, se há de ser autônomo e soberano, ou seja, antes de tudo, onde o seu direito
tenha as mais imediatas necessidades no espaço em que vive, em seu lar ou no seu povo.
Faltando este primeiro momento da soberania, do restante se faz vã abstração que
jamais dará aos povos a verdadeira noção do direito e a idéia de sua importância.
É preciso que o cidadão intervenha diretamente ali onde pode diretamente intervir na
ação do direito público.
Demais, é preciso também que tenha meios para levar seu concurso à obra da
transformação do direito privado, para que a história deste lhe dê por fim um caráter original(23),
que diga claramente ser produto da energia nacional, obra da vontade popular, sem que importe
que se revista ou não de uma cor local, porquanto isto não se opõe à tendência da universalidade,
que vai adquirindo o direito como uma totalidade.
Muito pouco se pensou nesta relação entre o espaço e o direito(24), e por esse motivo
muitos partidários sinceros da liberdade e da vida jurídica real e total dos povos, expõem
doutrinas deficientes para o cumprimento deste ideal.
Não resta dúvida que os meios são de difícil estudo, que a habilidade jurídica tem
muito que fazer para acertar com o modo de tornar efetiva as distintas autonomias, sem que em
cada uma falte a intervenção dos subordinados, que afinal são a sua essência.
Neste prólogo, embora se pudesse, não seria oportuno tratar este assunto com mais
prudência; mas o que importa é observar que, difícil ou não, não há outro meio de dar realidade,
unidade, calor natural à vida do direito que o que faz respeitar esta relação de espaço, não
procurando o impossível: que o cidadão seja autônomo por completo, tendo o seu poder
simbolizado em uma abstração representativa e os mais caros interesses sem a garantia do próprio
poder do direito, sem defesa na justiça.
Já o vimos em síntese, embora fiquem muitos assuntos por tratar: — a vida jurídica
atual carece dessa base de eficaz energia que somente gera o sentimento vigoroso e constante do
direito, o qual só aparece onde a justiça é uma realidade que tudo fecunda, que chega a todos os
atos como deve e em tudo revela sua salutar influência.
Nem na forma do direito, nem nas relações de suas instituições, nem no conteúdo
destas, tal como hoje existem, se depara indício do trabalho enérgico de um povo que tem a
vocação do direito.
Na falta de irritabilidade ao contato de tanta e tanta injustiça que passa sem ser sentida,
há nova prova de que este esforço, de que tanto se gabam alguns escritores, feito por nossa época
em defesa do direito público, é muito pouca coisa em comparação do que racionalmente devemos
ambicionar.
Sigam-se as tendências de livros como A luta pelo direito, combata-se a política e as
doutrinas do fatalismo perigoso e enervante(25), e alguma coisa se terá avançado no caminho do
renascimento do Direito.
Poder-se-ia bem chamar de renascimento essa era feliz, se aparecesse; porque já a
história nos fala de um povo em que o direito, com toda sua realidade e eficácia, tal como então
podia ser, se cultivou como vocação especial em todas as condições, que em rápida análise que
antecede descrevemos.
Sim: foi o povo romano; o povo que, antes de conquistar a mundo, lutou por tornar-se
senhor de si mesmo.
Ihering investiga as causas que fizeram de Roma a Nação do direito, e encontra como
principal característico — o egoísmo; um egoísmo nobre porque não é o torpe egoísmo
individual; um egoísmo que em rigor não o é, mas o sentimento da própria dignidade e da justiça
que se lhe deve, sentimento que em seguida se estende a toda a pátria e chega a fazer do direito
do Estado uma religião.
Mas, como nascera esse Estado?
Tinha sido o produto da vontade, da intenção e do trabalho, da luta pelo direito; o povo
romano foi o resultado das transações que três povos vizinhos, mas irmãos, tiveram que fazer
para poderem suportar sua vida repleta de azares e perigos; ali começou a convenção (o direito)
sendo algum tanto reflexivo, imposto pela necessidade.
O próprio Hegel reconhece, nas origens de Roma, este caráter de convenção e de luta
que tanto influiu em sua vocação definitiva; — a necessidade impôs-lhe a luta por tarefa, a luta a
fez aguerrida, deu-lhe vigor; com a coragem veio a energia da vontade, com esta o gênio criador
do direito.
O direito público não nasceu em Roma de abstrações, mas foi uma expansão natural do
direito privado; a guerra impeliu a formar o exército; a instituição militar criou o Estado político
que não era mais que a união das — gentes in procinctu; dos castras nasceram os — comitia e o
Estado, que principiou sendo as — gentes armadas para a guerra, subsistiu na paz; fez-se Estado
civil, mas sem que perdesse jamais nem o vigor de milícia disciplinada, nem os vestígios de sua
origem familiar e gentílica.
Assim, nunca desapareceu naquele direito público o sentido da realidade que em sua
essência deve existir; sempre se acreditou na solidariedade dos interesses, dos direitos, sem
recorrer a teorias abstratas e poéticas de patriotismo; aprendeu-se na tradição e por experiência
que todos eram do Estado e o Estado de todos... de todos os que tivessem assistido à sua criação
lenta ou de futuro conquistaram o direito de cidadãos com todas as prerrogativas.
Os plebeus o conquistaram. E, como ali tudo nascera da mesma realidade, da carne
viva das — gentes, — direito público e direito privado, a plebe em suas conquistas sucessivas,
modelo eterno de coragem, arte e constância, não aspirava a direitos ou garantias da ordem
política somente, mas atendia ao mesmo tempo ao direito privado; havia o plebeu tribuno, censor,
cônsul, pontífice, e mais ainda pedia o connubium com os patrícios e queria a igualdade no
direito familiar como no direito das honras.
Todos sabem a eficácia daqueles processos da plebe romana; tinham consciência de
sua coragem, de que se tornavam precisos a Roma e tinham a consciência da importância do que
exigiam, porque ali se encarava o direito como ele é, como uma condição indispensável para a
felicidade que se deve alcançar nesta vida.
Se hoje o direito parece ao vulgo alguma coisa que está no papel selado, para o plebeu
de Roma o direito era alguma coisa com que se fazia o pão, tão necessário como a farinha.
Eram ali as lutas jurídicas guerras de vizinhanças, tão ferozes e sanguinolentas, às
vezes, como estas soem ser; mas havia a vantagem de que o romano sempre conhecia o bem que
lhe trazia o defender a sua causa: — esta consciência de seu valor dava-lhe muito alento para por
ele combater.
Um dia reclamava terra para lavrar, outro o perdão de dívidas contraídas por bem da
República, outro uma dignidade, um ofício público, outro um código de leis para todos iguais; e
ora a monarquia era derrubada por um ataque à honra de um só romano, ora caía o poder
ditatorial dos decênviros só para vingar o ultrage de Virgínia.
Compreendiam aqueles homens o direito, porque o possuíam em casa, porque Roma, o
Estado, começava e acabava em Roma.
Lutava-se pela cidade como hoje se luta pela própria vida e pelo domicílio.
O direito não estava nos livros nem nas tábuas do édito somente.
Andava nas ruas, ao ar livre, movia-se, e via-se ir e vir da consulta ao foro, estava na
praça e nos comícios...
O rumor que de longe se ouvia ao chegar a Roma era a voz do direito, era a estiputatio,
era a declaração escrita nos comícios, era a fórmula solene da mancipatio, coro majestoso; era o
monólogo da in jure cessio, era o elegante falar do sábio prudens, conciso e severo, era a loquaz
retórica do hábil e ardoroso orator.
E o rumor crescia, o tribuno arengava aos seus, desabava a tempestade, o estrondo era
horríssono, a plebe caminhava; não se ouvia a sua justa pretensão e saía..., saía para voltar com a
justiça.
Também aqueles ruídos formidáveis de motim e da revolução eram a voz do direito!
Janeiro, 1881.
LEOPOLDO ALAS.
A Luta pelo Direito
CAPÍTULO I
Introdução
O direito é uma idéia prática, isto é, designa um fim, e, como toda a idéia de tendência,
é essencialmente dupla, porque contém em si uma antítese, o fim e o meio.
Não é suficiente investigar o fim, deve-se também saber o caminho que a ele conduz.
Eis duas questões para as quais o direito deve sempre procurar uma solução, podendose dizer que o direito não é, no seu conjunto e em cada uma das suas divisões, mais que uma
resposta constante a essa dupla questão.
Não há um só título, por exemplo o da propriedade ou o das obrigações, em que a
definição não seja imprescindivelmente dupla e nos diga o fim que propõe e os meios para atingilo. Mas o meio, por mais variado que seja, reduz-se sempre à luta contra a injustiça.
A idéia do direito encerra uma antítese que se origina nesta idéia, da qual jamais se
pode, absolutamente, separar: a luta e a paz; a paz é o termo do direito, a luta é o meio de obtê-lo.
Poder-se-á objetar que a luta e a discórdia são precisamente o que o direito se propõe
evitar, porquanto semelhante estado de coisas implica uma perturbação, uma negação da ordem
legal, e não uma condição necessária da sua existência.
A objeção seria procedente se se tratasse da luta da injustiça contra o direito; ao
contrário, trata-se aqui da luta do direito contra a injustiça. Se, neste caso, o direito não lutasse,
isto é, se não resistisse vigorosamente contra ela, renegar-se-ia a si mesmo.
Esta luta perdurará tanto como o mundo, porque o direito terá de precaver-se sempre
contra os ataques da injustiça.
A luta não é, pois, um elemento estranho ao direito, mas sim uma parte integrante de
sua natureza e uma condição de sua idéia.
Todo direito no mundo foi adquirido pela luta; esses princípios de direito que estão
hoje em vigor foi indispensável impô-los pela luta àqueles que não os aceitavam; assim, todo o
direito, tanto o de um povo, como o de um indivíduo, pressupõe que estão o indivíduo e o povo
dispostos a defendê-lo.
O direito não é uma idéia lógica, porém idéia de força; é a razão porque a justiça, que
sustenta em uma das mãos a balança em que pesa o direito, empunha na outra a espada que serve
para fazê-lo valer.
A espada sem a balança é a força bruta, a balança sem a espada é o direito impotente;
completam-se mutuamente: e, na realidade, o direito só reina quando a força dispendida pela
justiça para empunhar a espada corresponde à habilidade que emprega em manejar a balança.
O direito é o trabalho sem tréguas, e não somente o trabalho dos poderes públicos, mas
sim o de todo o povo. Se passarmos um golpe de vista em toda a sua história, esta nos apresenta
nada menos que o espetáculo de uma nação inteira despendendo ininterruptamente para defender
o seu direito penosos esforços, como os que ela emprega para o desenvolvimento de sua atividade
na esfera da produção econômica e intelectual.
Todo aquele que tem em si a obrigação de manter o seu direito, participa neste trabalho
nacional e contribui na medida de suas forças para a realização do direito sobre a terra.
Sem dúvida, este dever não se impõe a todos na mesma proporção. Milhares de
homens passam sua vida de modo feliz e sem luta, dentro dos limites fixados pelo direito, e, se
lhes fôssemos dizer, falando-lhes da luta pelo direito, — que o direito é a luta, não nos
compreenderiam, porque o direito foi sempre para eles o reino da paz e da ordem.
Sob o ponto de vista de sua experiência pessoal, têm toda a razão; procedem como
todos os que, tendo herdado ou tendo conseguido sem esforço o fruto do trabalho dos outros,
negam esta proposição: — a propriedade é o trabalho.
O motivo desta ilusão está nos dois sentidos em que encaramos a propriedade e o
direito, podendo decompor-se subjetivamente de tal modo que o gozo e a paz estejam de um lado,
a luta e o trabalho noutro. Se interpelássemos aqueles que o encaram sob este último aspecto,
certamente nos dariam uma resposta em contrário.
O direito e a propriedade são semelhantes à cabeça de Jano, têm duas caras; uns não
podem ver senão um dos lados, outros só podem ver o outro, daí resultando o diferente juízo que
formam do assunto.
O que temos dito do direito, aplica-se não somente aos indivíduos, mas sim às
gerações inteiras. A paz é a vida de umas, a guerra a de outras, e os povos como os indivíduos
estão, em conseqüência desse modo de ser subjetivo, expostos ao mesmo erro; e, embalados em
um belo sonho de uma longa paz, cremos na paz perpétua, até o dia em que troe o primeiro tiro
de canhão, vindo dissipar nossas esperanças, ocasionando com tal mudança o aparecimento duma
geração, posterior à que vivera em deliciosa paz, que se agitará em constantes guerras, não
desfrutando um só dia sem tremendas lutas e rudes trabalhos.
No direito como na propriedade, assim se partilham o trabalho e o gozo sem que sofra
entretanto a sua correlação o menor prejuízo. Se viveis na paz e na abundância, deveis ponderar
que outros têm lutado e trabalhado por vós. Se se quiser falar da paz sem a luta, do gozo sem o
trabalho, torna-se mister pensar nos tempos do Paraíso, porque nada se conhece na história que
não seja o resultado de penosos e contínuos esforços.
Mais além desenvolveremos o pensamento de que a luta está para o direito, como o
trabalho para a propriedade; e que, atendendo-se à sua necessidade prática e à sua dignidade
moral, deve ser colocado inteiramente na mesma linha.
Vimos assim retificar uma lacuna da qual com razão se acusa a nossa teoria, e não
somente a nossa filosofia do direito, como também a nossa jurisprudência positiva.
Observa-se facilmente que a nossa teoria se ocupa muito mais com a balança do que
com a espada da justiça.
A estreiteza do ponto de vista puramente científico com que se encara o direito e que é
onde se ostenta menos o seu lado real, como idéia de força, do que pelo seu lado racional, como
um conjunto de princípios abstratos, tem dado, julgamos, a todo esse modo de encarar a questão,
uma feição que não está muito em harmonia com a amarga realidade. A defesa da nossa tese o
provará.
O direito contém, como é sabido, um duplo sentido; — o sentido objetivo que nos
oferece o conjunto de princípios de direito em vigor; a ordem legal da vida, e o sentido subjetivo,
que é, por assim dizer, — o precipitado da regra abstrata no direito concreto da pessoa.
Nessas duas direções o direito depara com uma resistência que deve vencer, e, em
ambos os casos, deve triunfar ou manter a luta.
Por mais que nos tenhamos proposto tomar diretamente como objeto de estudo o
segundo desses dois pontos de vista, não devemos deixar de estabelecer, em consideração ao
primeiro, que a luta, como dissemos anteriormente, é da própria essência do direito.
Para o Estado que quer manter o domínio do direito é este um assunto que não exige
prova alguma. O Estado não pode conseguir manter a ordem legal, sem lutar continuamente
contra a anarquia que o ataca.
Entretanto a questão muda de aspecto se se trata da origem do direito e se estuda: ou a
sua origem sob o ponto de vista histórico, ou a constante e contínua renovação que nele se opera
todos os dias sob as nossas vistas, tal como a supressão de títulos em vigor, a anulação de artigos
de leis que também estão em vigor, em uma palavra o progresso e o direito.
Com efeito, se sustentamos que o direito está subordinado a uma mesma lei, ainda que
se trate de sua origem ou de toda a sua história, estabelecemos uma teoria diferente da geralmente
aceita em nossa ciência do Direito Romano.
Conforme esta doutrina, que denominaremos com o nome de seus principais
representantes, de Savigny e Puchta, sobre a origem do direito, este desenvolve-se
insensivelmente sem dificuldade, como a linguagem.
Segundo afirma essa doutrina, não é necessário lutar; até mesmo é inútil a
investigação, porque essa força da verdade que ocultamente age na vida, avança com passo lento,
porém firme e sem violentos esforços, e o poder da persuasão vai produzindo pouco a pouco a luz
nos corações que, operando sob sua influência, o revestem de uma forma legal.
Surge, portanto, um preceito de direito tão singelamente como uma regra gramatical, e
para explicar de acordo com esta teoria como o antigo Direito Romano chegou a permitir ao
credor vender ao devedor insolvente ou a autorizar o proprietário de um objeto roubado a
reivindicar a coisa em qualquer ponto em que a encontrasse, basta dizer que se assemelha ao
modo como foi introduzida na velha Roma a regra do cum regendo o ablativo.
Esta é a idéia que eu tinha sobre a origem do direito quando deixara a Universidade e
sobre cuja influência permaneci por muitos anos.
Será ela verdadeira?
O direito, necessário é reconhecê-lo, desenvolve-se sem necessidade de investigações,
inconscientemente, empregando-se a palavra que se introduziu, organicamente, intrinsecamente,
como a linguagem.
E é deste desenvolvimento interno que se derivam todos os princípios de direito, que
os arestos análogos e igualmente motivados interpõem pouco a pouco nas relações jurídicas,
como as abstrações, os corolários, as regras que a ciência aufere do direito existente, por meio do
raciocínio, e põe logo em evidência.
Porém, o poder destes dois agentes, as relações e a ciência, é limitado; pode dirigir o
movimento nos limites fixados pelo direito existente, impeli-lo, mas não lhes é dado romper os
diques que impedem as águas de tomar um novo curso.
Somente a lei, isto é, a ação voluntária e determinada do poder público, é que tem esta
força, e não por acaso, mas em virtude de uma necessidade, que está na natureza íntima do
direito, porquanto todas as reformas introduzidas no processo e no direito positivo se originam
das leis.
Certo que pode acontecer que uma modificação feita pela lei no direito existente, seja
puramente abstrata, que sua influência esteja limitada a esse mesmo direito, sem se notar no
domínio das relações concretas se foram estabelecidas sobre a base do direito até então em vigor;
neste caso, o fato é como uma reparação puramente mecânica, que consiste em substituir um
parafuso ou uma roda qualquer usada por outra melhor. Muitas vezes acontece que uma
modificação não se pode operar sem ferir ou lesar profundamente direitos existentes e interesses
privados: porque os interesses de milhares de indivíduos e de classes inteiras estão de tais modos
identificados com o direito no curso dos tempos, que não é possível modificar aquele sem
sentirem vivamente tais interesses.
Se colocarmos então o princípio do direito ao lado do privilégio, declara-se por esse
fato só a guerra a todos os interesses, tenta-se extirpar um pólipo que agarra com todos os seus
tentáculos.
Está no instinto da conservação pessoal que os interesses ameaçados a mais violenta
resistência oponham a toda a tentativa de tal natureza, dando vida a uma luta que, como qualquer
outra, não será resolvida pelos raciocínios, mas pelas forças nela empenhadas, produzindo
freqüentemente o mesmo resultado que o paralelograma das forças: o desvio das linhas retas
componentes em uma diagonal.
Este é o único meio de explicar como as instituições, durante tanto tempo condenadas
em princípio, perduram por muitos séculos, não sendo a vis inertiae que as mantém, mas a
oposição, a resistência que fazem aos interesses violados.
Quando o direito existente é assim defendido pelos interesses oriundos da sua
atividade, o do futuro não pode vencer sem ter sustentado uma luta que tenha persistido muitas
vezes por mais dum século; e mais ainda quando os interesses se tenham revestido do caráter de
direitos adquiridos.
Então há dois partidos em presença um do outro, inscrevendo cada um, como lema, em
sua bandeira — santidade do direito.
Um invoca a santidade do direito histórico, do direito do passado; e outro a santidade
do direito que se desenvolve e se renova continuamente, do direito primordial e eterno da
humanidade em constante mutação.
Existe um conflito da própria idéia do direito consigo mesma; e para os indivíduos que,
depois de se haverem sacrificado pela defesa de suas convicções, com todas as suas forças, e toda
a sua existência, sucumbem em fim perante o juízo supremo da história — é, sem dúvida, um
conflito que tem alguma coisa de trágico.
Todas essas grandes conquistas que se podem registrar na história do direito: — a
abolição da escravidão, a eliminação dos servos, a livre disposição da propriedade territorial, a
liberdade da indústria, a liberdade da consciência, não têm sido adquiridas sem uma luta das mais
encarniçadas e que freqüentemente tem durado vários séculos, e quase sempre banhadas em
ondas de sangue. O direito é como Saturno devorando seus próprios filhos; renovação alguma lhe
é possível sem romper com o passado.
Um direito concreto que invoca a sua existência para pretender uma duração ilimitada,
a imortalidade, faz lembrar o filho que ergue o braço contra sua mãe; despreza a idéia do direito,
sobre a qual se apoia, porque o direito será eternamente o porvir; assim o que existe deve dar
lugar à nova evolução, como nos diz o célebre autor do “Fausto”:
...Tudo o que nasce
deve voltar ao nada.
O direito considerado em seu desenvolvimento histórico, apresenta-nos, portanto, a
imagem da investigação e da luta, em uma palavra — dos mais penosos esforços. O espírito
humano que forma inconscientemente a linguagem, não depara violenta resistência, e a arte não
tem outro inimigo a vencer que o seu passado, isto é — o gosto existente.
Entretanto não sucede assim com o direito encarado sob o aspecto de — fim.
Colocado no meio destes complicados mecanismos onde se agitam todos os diversos
interesses humanos, o direito deve estudar e investigar, sem interrupção alguma, o verdadeiro
caminho, e encontrando-o, abater todos os obstáculos que se lhe opõem e o impedem de avançar.
Se está fora de dúvida que esta marcha é regular e tão interna como a da arte e da
linguagem, não é menos certo que se opera por modo muito diferente, e neste sentido é preciso
corrigir ousadamente o paralelo, tão rápida e geralmente aceito, que Savigny estabelecera entre o
direito de um lado e do outro a linguagem e a arte.
Falsa em teoria, porém não perigosa, essa doutrina como máxima política — é um dos
erros mais fatais que se pode imaginar, porquanto vem aconselhar ao homem que espere quando
deve agir com todas as suas forças e com pleno conhecimento de causa.
Incita-o a esperar, como se lhe dissesse que as coisas caminham por si mesmas, e que o
melhor a fazer é cruzar os braços, e esperar confiadamente o que cair pouco a pouco da fonte
primitiva do direito, que se chama opinião pública em matéria de legislação.
Daí se origina a aversão de Savigny e de toda a sua escola contra a iniciativa do poder
legislativo, e que Puchta tenha desconhecido completamente em sua teoria do direito
consuetudinário a verdadeira significação do costume.
O costume não é, para Puchta, senão um meio de descobrir a persuasão legal, mas esse
grande talento esquecera-se completamente de notar que essa persuasão começa a formar-se
somente quando age, e que é esta própria ação que lhe dá o poder e a força de dominar; em uma
palavra quer no direito costumeiro, quer em qualquer outro, pode-se dizer: — o direito é uma
idéia de força.
Em verdade, Puchta não fazia mais que pagar o seu tributo à época em que vivia.
Dominava o período romântico da nossa poesia, e se não repugnasse aplicar esta idéia
à jurisprudência, tendo-se o trabalho de comparar as direções seguidas neste duplo terreno, não
nos admiraríamos da idéia de poder denominar esta escola — a escola romântica do direito.
É na verdade uma idéia romântica representarse o passado sob um falso ideal e figurarse o direito surgindo sem trabalho, sem esforço algum, sem ação, como as plantas nascem nos
campos.
A triste realidade, entretanto, convence-nos do contrário!
Se a contemplarmos um pouco, mostra-nos os povos que não alcançaram estabelecer o
seu direito, sem o preço de grandes esforços, e a estas questões tão graves que se suscitam
tumultuariamente, podemos acrescentar todo o testemunho do passado, qualquer que seja a época
em que façamos essas investigações.
Não ficam para a teoria de Savigny senão os tempos pré-históricos, a respeito dos
quais não possuímos dados alguns.
Permita-se-nos, porém, uma hipótese: — oporemos à doutrina de Savigny, que nos
representa o direito surgindo simplesmente da persuasão popular, a nossa teoria que é diametralmente oposta; e será preciso reconhecer-se que tem ao menos, com a época pré-histórica, perfeita
analogia em relação ao desenvolvimento histórico do direito e que julgamos ter a vantagem da
maior verossimilhança psicológica.
A época primitiva!
Foi um tempo que a moda resolveu adornar com todas as mais belas qualidades, e
assim dela se fez uma idade que não conheceu senão a verdade, a franqueza, a fidelidade, a
simplicidade e a fé religiosa.
Certamente o direito ter-se-ia desenvolvido em um terreno semelhante, sem necessitar
de outra força senão do poder da persuasão legal, — o braço não teria sido mais necessário que a
espada.
Hoje, entretanto, está averiguado que essa piedosa época, ainda que tivesse todas essas
virtudes, não poderia estabelecer o seu direito mais facilmente que as gerações posteriores.
Estamos convictos que o direito não se formou senão após um trabalho mais penoso
ainda que os dos outros períodos e julgamos também os princípios do direito Romano tão
sensíveis como estes: — o poder dado ao proprietário de reivindicar sua coisa de qualquer
possuidor, a faculdade dada ao credor de vender como escravo seu devedor insolvente, não
entraram em vigor, senão após uma luta das mais encarniçadas.
Como quer que seja, deixando o passado ao testemunho autêntico da história, será isto
suficiente para se poder afirmar que o nascimento do direito é sempre como o do homem, — um
parto doloroso e difícil.
Devemos, pois, lamentar que isto assim se passe?
Certamente que não, porque esta circunstância por força da qual os povos não chegam
ao direito sem penosos esforços, sem inúmeros trabalhos, sem lutas contínuas, e até derramando
seu próprio sangue, é justamente a que origina entre os povos e o seu direito um laço íntimo, que
no começo da vida, no nascimento, se estabelece entre a mãe e o recém-nascido.
Pode dizer-se de um direito obtido sem esforço o que se diz dos filhos da cegonha, —
a raposa ou o abutre pode perfeitamente roubar-lhos, porém — quem arrancará facilmente o filho
dos braços de sua mãe?
Quem despojará um povo de suas instituições e de seus direitos obtidos à custa do seu
sangue?
Forçoso é reconhecer-se que a energia e o amor com que um povo defende suas leis e
seus direitos estão em relação proporcional com os esforços e trabalhos empregados em alcançálos.
Não é o costume unicamente que dá vida aos laços que ligam os povos com o seu
direito, mas sim o sacrifício é que os une de modo mais duradouro, e, quando Deus quer a
prosperidade de um povo, não lha dá por meios fáceis, porém por caminhos mais difíceis e
penosos.
Neste sentido não vacilamos em proclamar que a luta, que exige o direito para se
tornar prático, não é uma maldição mas a graça.
CAPÍTULO II
O interesse na luta pelo direito
A luta pelo direito concreto de que nos vamos ocupar nesta segunda parte tem, como
causa, uma lesão ou uma subtração deste direito.
Direito algum, tanto o dos indivíduos como o dos povos, está isento daquela
permutação e desvio, resultando daí que essa luta pode travar-se em todas as esferas do direito,
desde as inferiores regiões do direito privado até as alturas do direito público e do direito das
gentes.
Não obstante a diferença do objeto em litígio, das formas e dimensões da luta, a guerra
e as revoluções, a lei de Linch, o cartel na Idade Média e a sua última expressão no duelo
moderno — que são? Que são, enfim, a defesa obrigatória e essa luta dos processos, senão cenas
de um mesmo drama — a luta pelo direito?
Para tratar deste assunto de magna importância, escolhemos a menos ideal de todas as
suas formas, — a luta legal pelo direito privado, porquanto é justamente neste caso que a
verdadeira causa do pleito pode, a maior parte das vezes, escapar, não só à penetração do público,
como também até aos próprios homens de lei; enquanto o móvel aparece em todas as outras
formas do direito, sem obscuridade, e o espírito mais acanhado compreende que os bens em
questão mereçam grandes sacrifícios, ninguém dirá: — porque lutar; não será melhor ceder?
O majestoso espetáculo que oferece o desenvolvimento das maiores forças humanas,
aliado aos mais árduos sacrifícios, arrastam irresistivelmente o homem e elevam-no a altura de
um ideal.
O contrário sucede quando se trata da luta pelo direito privado; pelo escasso círculo de
interesses relativamente fúteis, no qual se move, por quanto sempre a questão do meu e do teu,
com seu prosaísmo inseparável, parece desterrá-lo exclusivamente a essa região onde se não
calcula mais que as vantagens materiais e práticas; ainda que as formalidades a que sua ação está
submetida tornam difícil seu emprego, a impossibilidade também que tem o indivíduo de agir
livre e energicamente não concorre para diminuir uma impressão já desfavorável.
Outrora, em que questões semelhantes se decidiam na liça, nesse eterno problema do
meu e do teu, fazia-se claramente sobressair a verdadeira significação da luta.
Quando a espada era invocada a pôr termo às querelas do meu e do teu, quando o
cavaleiro da Idade Média enviava o cartel de desafio, aqueles que presenciavam a luta podiam
pressentir perfeitamente que não se lutava somente pela coisa em seu valor material, para evitar
uma perda pecuniária, porém se defendia alguma coisa mais, defendia-se o direito de cada um,
sua honra e sua própria pessoa.
Mas, para que evocar tão velhas lembranças para dar uma explicação que a história do
presente, ainda que diferente na forma, porém exatamente semelhante no fundo, pode ministrarnos tão bem como o passado?
Lancemos, com efeito, um olhar sobre os fenômenos da vida atual; façamos algumas
investigações psicológicas sobre nós mesmos e chegaremos às mesmas conclusões.
Quando um indivíduo é lesado em seu direito, faz-se irremissivelmente esta
consideração, nascida da questão que em sua consciência se apresenta, e que pode resolver como
bem lhe aprouver: — se deve resistir ao adversário ou se deve ceder.
Qualquer que seja a solução, deverá fazer sempre um sacrifício; — ou sacrificará o
direito à paz ou a paz ao direito. A questão assim apresentada parece limitar-se a saber qual dos
dois sacrifícios é o menos oneroso.
O rico, por exemplo, poderá, em uma dada ocasião, dar, para não ferir a paz de sua
vida, uma quantia para si insignificante, enquanto o pobre sacrificará a paz, porque será para si a
mesma soma de relativa importância.
A luta pelo direito não seria então mais que uma pura regra de cálculo, na qual se
aferiria de um lado os lucros, e do outro as perdas, nascendo desta espécie de balanço — a
decisão.
Entretanto sabe-se que na realidade não é assim o que se passa.
Diariamente a experiência nos apresenta demandas nas quais o valor do objeto do
litígio não tem relação alguma com o sacrifício provável, os esforços e os gastos pecuniários que
será mister despender.
Aquele que tiver perdido um cruzado não gastará certamente dois para tornar a
encontrá-lo, e a questão de saber quanto dará não será em realidade mais que uma operação de
cálculo.
E porque não sucede assim numa demanda? Não se venha dizer que se espera ganhá-la
e que as custas recaem sobre o adversário, porque muitos têm a certeza de pagar caro o triunfo,
não sendo isso bastante para que não intentem uma ação em juízo.
Quantas vezes o magistrado, ao fazer ver os enormes gastos do litígio a uma parte,
tenm como resposta: — “Quero intentá-lo, custe o que custar!” Bem conhecida é a resposta que
ordinariamente se dá, dizendo-se: — é a mania de litigar, o puro amor à chicana, o desejo ardente
e irresistível de fazer mal ao adversário.
Deixemos, porém, esta espécie, e em lugar de dois indivíduos, suponhamos dois povos.
Um apoderou-se ilegalmente de uma légua quadrada de terreno inculto e sem valor que é do
outro; que fará este último? Deve declarar a guerra?
Consideremos a questão sob o ponto de vista em que se coloca essa teoria — da mania
de demandar, como se se tratasse de julgar a conduta do camponês cujo vizinho se apoderou de
alguns palmos de terreno que àquele pertenciam e a quem, por tanto, se tem prejudicado em sua
propriedade.
O que vale uma légua quadrada de terreno estéril, em comparação a uma guerra que
custará a vida a milhares de indivíduos, que semeará a dor e a ruína do pobre e do rico, que
destruirá cabanas e palácios, que devorará milhões do tesouro público e ameaçará talvez a
existência do Estado?
Empregar tantos sacrifícios por semelhante causa, não será o caminho da loucura?
Certo que seria tal esse juízo, se fosse possível medir com a mesma bitola — o camponês e o
povo.
Todos, porém, abster-se-ão bem de dar ao segundo o mesmo conselho que ao primeiro.
Não há pessoa alguma que deixe de afirmar que um povo que não resistisse ante semelhante
violação do seu direito confirmaria por si mesmo a sua condenação à morte.
A um povo que tolerasse que se lhe ocupasse e usurpasse impunemente uma légua
quadrada de seu terreno, pouco a pouco se iria ocupando todas as demais até que não lhe restasse
coisa alguma, deixando de existir como Estado; não merecena em verdade mais digna morte, nem
melhor destino.
Se, conseguintemente, o povo deve recorrer às armas quando se trata de uma légua
quadrada, sem se preocupar de seu valor, — porque é que o camponês de que temos falado não o
deverá fazer?
Será preciso detê-lo com este decreto ou sentença: — quod licet Jovi non licet bovi?
E assim como não é somente para defender um pedaço de terra, mas sim sobretudo a
sua existência, sua independência e honra — que um povo lança mão das armas; de modo
semelhante nas ações e nos pleitos judiciais, em que existe uma grande desproporção entre o
valor do objeto e os sacrifícios de qualquer natureza que neles é mister despender, não se vai
demandar, não se litiga pelo valor insignificante talvez do objeto, mas sim por um motivo ideal, a
defesa da pessoa e do seu sentimento pelo direito.
Quando o que litiga se propõe semelhante fim e vai guiado por tais sentimentos, não há
sacrifício nem esforço que tenha para si peso algum, porquanto vê no fim que quer atingir a
recompensa de todos os meios que emprega.
Não é o interesse material vulnerado, que impele o indivíduo que sofre tal lesão a
exigir uma satisfação, mas sim a dor moral que lhe causa a injustiça de que é vítima.
A grande questão para ele não é a restituição do objeto que muitas vezes é doado a
uma instituição de beneficência, a que o pode impelir a litigar; o que mais deseja é que se lhe
reconheça o seu direito.
Uma voz interior lhe brada que não lhe é permitido retirar-se da luta, que não é só o
objeto que não tem valor algum, mas sim a sua personalidade, seu sentimento pelo direito e a
estima que ele deve a si mesmo, que estão em jogo; em uma palavra, a demanda é antes uma
questão de interesse que uma questão de caráter.
A experiência, porém, nos ensina também que outros indivíduos colocados em
semelhante situação tomam uma decisão inteiramente contrária; — preferem a paz a um direito
conquistado tão trabalhosa e penosamente.
Como julgamo-los?
Bastará dizer-se: — é uma questão de gosto e de temperamento; este ama a paz, aquele
o combate, e, sob o ponto de vista do direito, ambos são respeitáveis, porque todo o interessado
pode escolher ou abandonar o seu direito ou fazê-lo valer.
Consideramos este modo de ver que se encontra muitas vezes na vida, como
perfeitamente condenável e contrário à própria essência do direito.
Se fosse possível supor que chegasse alguma vez a prevalecer, destruir-se-ia o próprio
direito, porque defende a fuga diante da injustiça, enquanto o direito não existe sem lutar contra
ela.
Por nossa parte opomos o duplo princípio que vamos agora submeter à atenção do
leitor: Resistir à injustiça é um dever do indivíduo para consigo mesmo, porque é um preceito da
existência moral; — é um dever para com a sociedade, porque esta resistência não pode ser
coroada com o triunfo, senão quando for geral.
CAPÍTULO III
A luta pelo direito na esfera individual
Aquele que for atacado em seu direito deve resistir; — é um dever para consigo
mesmo.
A conservação da existência é a suprema lei da criação animada, por quanto ela se
manifesta instintivamente em todas as criaturas; porém a vida material não constitui toda a vida
do homem; tem ainda que defender sua existência moral que tem por condição necessária o
direito: é, pois, a condição de tal existência que ele possui e defende com o direito.
O homem sem direito desce ao nível dos brutos, assim os Romanos não faziam mais
do que deduzir uma lógica conseqüência desta idéia, quando colocavam os escravos, considerada
sob o ponto de vista do direito abstrato, ao nível do animal.
Temos, pois, o dever de defender nosso direito, porque nossa existência moral está
direta e essencialmente ligada à sua conservação; desistir completamente da defesa, o que
atualmente não é muito prático, porém que poderia ter lugar, equivaleria a um suicídio moral.
Do que vem de ser dito se depreende que o direito não é mais que o conjunto dos
diferentes tratados ou títulos que o compõem e, em cada um deles se reflete uma condição
particular da existência moral; na propriedade, como no matrimônio, no contrato como nas
questões de honra, em tudo isto, é legalmente impossível renunciar a uma só dessas condições
sem renunciar a todo o direito.
Entretanto pode acontecer que não sejamos atacados em uma ou em outra dessas
esferas, e este ataque é o que somos obrigados a repelir, porque não basta colocar estas condições
vitais sob a proteção de um direito representado pelos princípios abstratos, — é mister ainda que
o indivíduo desça ao domínio da prática para defendê-las, e a ocasião é evidente quando a
arbitrariedade ousa atacá-las.
Toda a injustiça não é, portanto, mais que uma ação arbitrária, isto é — um ataque
contra a idéia do direito.
O possuidor de uma coisa minha e que se considera seu proprietário, não nega em
minha pessoa a idéia da propriedade, apenas invoca um direito ao lado do meu, reduzindo-se toda
a questão, a saber, qual é o proprietário. Mas o ladrão, os salteadores colocam-se fora do domínio
legal da propriedade; negam por seu turno a idéia da propriedade, condição, portanto essencial à
existência da minha pessoa; e generalizando-se assim o seu modo de proceder, a propriedade
desaparecerá na teoria e na prática.
Assim não atacam apenas os meus bens, porém sim a minha personalidade, e, se tenho
o direito e o dever de me defender quando sou atacado, neste caso, só o conflito deste dever com
o interesse superior da minha vida pode, às vezes, motivar uma outra decisão; por exemplo, um
salteador, tolhendo-me qualquer movimento, põe-me na alternativa de entregar-lhe a bolsa ou a
vida.
Entretanto o meu dever é, nos outros casos, combater, por todos os meios de que
disponha, toda a violação ao direito da minha personalidade; sofrê-la seria consentir e suportar
um momento de injustiça em minha vida, o que jamais deveria ser permitido.
Completamente diferente é a minha posição diante de um possuidor de boa fé.
Neste caso não é ao meu sentimento do direito, ao meu caráter ou a minha
personalidade, porém aos meus interesses, que pertence ditar a norma a seguir, porquanto toda a
questão se reduz ao valor que o objeto possa ter.
Posso, pois, perfeitamente calcular, no caso figurado, as vantagens, e, em vista delas,
intentar a demanda ou transigir. As transações entre as partes onde se expõem e se ajuízam os
cálculos mais ou menos verdadeiros sobre o litígio é o melhor meio de proceder nestes casos.
Pode, entretanto, chegar-se a um ponto em que o acordo das partes, ou qualquer outra
circunstância, dificulte o ajuste, que os cálculos se dividam favoravelmente para cada uma das
partes, chegando cada um dos litigantes a supor a existência de má fé no outro: começa então a
questão, embora desenvolvendo-se judiciariamente sob a forma de uma injustiça objetiva —
reivindicatio — revestindo psicologicamente para a parte o caráter de que falamos no caso
precedente de uma lesão premeditada e a tenacidade com que o indivíduo defende seu direito, é
partindo desse ponto de vista, tão motivada e justificada como a pode e deve usar-se no referido
caso do ladrão.
Procurar em semelhante caso intimidar a parte, fazendo-lhe prever os dispêndios que
resultarão, as más conseqüências que acarretará para si a demanda, não será mais que perder
tempo, por quanto não se age então pelo interesse material; a questão vem degenerar numa
questão de competência e, a única esperança que pode nutrir-se é a de chegar a fazer desaparecer
a suposição da existência de uma intenção no adversário que faz agir.
E se ainda assim resiste, para eliminar de algum modo essa resistência, pode alterar-se
novamente a demanda, sob o ponto de vista do interesse e obter, por esta forma, a transação.
É bem verdadeiro que essa resistência sistemática, por assim dizer, essa prevenção e
desconfiança de algumas partes não nascem muitas vezes do caráter e maneira de ser do
indivíduo, mas sim da sua educação e profissão.
No camponês é que mais difícil se torna vencer essa desconfiança.
A mania dos demandistas que se colocam neste caso, não é mais que o produto de dois
fatores que o impelem especialmente a obrar; — o sentimento da avareza ou amor profundo à
propriedade, — e a desconfiança.
Ninguém conhece melhor os seus interesses que ele, nem os defende tão ardentemente,
e não há pessoa alguma que tudo sacrifique a uma demanda tão facilmente.
Isto que parece uma contradição, não o é entretanto na realidade.
É justamente porque o seu sentimento e amor pelo direito são tão excessivos e tão
profundos, estão tão desenvolvidos, que qualquer lesão é para ele muito sensível, tornando-se
portanto a reação muito violenta.
Essa mania de demandas é um vício, uma exageração, que derivam da sua
desconfiança e do seu amor à propriedade, assemelhando-se ao que o ciúme produz no amor,
dirigindo suas armas contra si mesmo, fazendo perder justamente o que se queria conservar.
O Direito romano antigo oferece uma interessante prova do que acabamos de dizer;
exprimiu precisamente sob a forma de princípios legais essa desconfiança do camponês que
supõe, em todo o conflito, que o seu adversário age de ma fé; considerava toda a injustiça
objetiva: como conseqüência derivada de uma injustiça subjetiva, aplicando — uma pena ao
vencido.
Não era para o indivíduo em que se tinha irritado, ou melhor, exagerado o sentimento
do direito, uma satisfação suficiente a de restabelecer a perturbação sofrida em seu direito; ainda
exigia uma reivindicação especial da ofensa que o seu adversário, ou não, lhe havia feito.
Hoje, como outrora, seria entre nós assim se os camponeses tivessem de ditar as leis.
Esta desconfiança desapareceu em face dos mesmos princípios do Direito romano,
motivada pelo progresso que fez distinguir duas espécies de injustiça: — a injustiça culpável ou
não culpável, ou subjetiva e objetiva (ingênua, como dizia Hegel).
Esta distinção é, todavia, de uma importância secundária para a questão que nos ocupa,
a saber: — que conduta deve seguir um indivíduo lesado em seu direito ante a injustiça.
Tal distinção exprime bem sob que ponto de vista o direito encara a questão; fixa as
conseqüências que a injustiça acarreta, mas nada nos diz do indivíduo,
e nem explica como a injustiça exalta o sentimento do direito, que não se regula segundo
as idéias de um sistema.
Um fato particular pode produzir-se em circunstâncias tais que a lei considere o caso
como uma lesão do direito objetivo e o indivíduo possa com fundamento supor má fé, injustiça
notória por parte de seu adversário, e é perfeitamente equitativo que seja seu próprio juízo quem
lhe dite a conduta que deve seguir.
O direito pode dar-me contra o herdeiro do meu credor, que não conhece a dívida e
torna o pagamento dependente da minha prova, a mesma conditio ex mutuo que me dá contra o
devedor que nega impunemente o empréstimo que eu lhe fiz ou que recusa sem causa o
reembolso. Entretanto não poderia eu considerar de modo diferente a maneira de proceder de um
e de outro.
Comparo o devedor ao ladrão que procura apoderar-se de alguma coisa pertencente à
minha pessoa, com pleno conhecimento de causa; como o ladrão ele viola o direito, com a única
diferença apenas de que pode cobrir-se com o manto da legalidade.
Ao contrário, comparo o herdeiro do devedor com um possuidor de boa fé, por quanto
não nega que o devedor deva pagar, mas combate apenas a minha pretensão.
Como devedor, posso aplicar-lhe tudo quanto disse daquele a quem o comparo; posso
com ele transigir: — basta desistir; mas devo sempre demandar o devedor de má fé e devo fazêlo, custe o que custar, porque é um dever; e não o cumprindo sacrificaria, com este direito, todo o
direito.
Dir-se-á, entretanto: — o povo sabe por acaso que o direito de propriedade e o de
obrigações são condições da existência moral? Sem dúvida que não. Mas não o sente?
É esta uma questão que esperamos resolver prontamente e pela afirmativa.
Que sabe o povo acerca dos rins, do fígado, dos pulmões, como condições da
existência física?
Entretanto ninguém há que sentindo um dano qualquer no pulmão, uma dor nos rins,
no fígado, não tome as precauções necessárias para combater o mal desta espécie.
A dor física anuncia-nos uma perturbação no organismo, a presença de uma influência
funesta; abre-nos os olhos ao perigo que nos ameaça e nos obriga a remediar a tempo.
Do mesmo modo é a dor moral que nos causa a injustiça voluntária; sua intensidade
varia como a da dor física e depende (mais além discorreremos sobre este ponto) da sensibilidade
subjetiva, da forma e do objeto da lesão, porém anuncia-se, entretanto, em todo o indivíduo que
não esteja completamente habituado à ilegalidade.
Esta dor moral força a combater a causa de onde se origina, não tanto para fazê-la
cessar, como para manter a saúde, que se acharia comprometida se a sofresse passivamente sem
reagir contra ela; e lhe recorda, em uma palavra, o dever que tem de defender a existência moral,
como a emoção produzida pela dor corporal recorda o dever de defender a existência física.
Para exemplificar, tomemos um caso qualquer, seja o menos duvidoso dum ataque à
honra, e na classe em que o sentimento da honra é mais desenvolvido, a classe militar. Um oficial
que suportou pacientemente uma afronta à sua honra, inabilita-se.
E por quê?
A defesa da honra não é um dever puramente pessoal?
Por que o corpo ou a classe militar lhe dá uma importância muito especial?
É que considera, com razão, que sua posição depende necessariamente da coragem que
revelam seus membros na defesa da personalidade, e que uma classe, que é por sua natureza a
que representa a bravura pessoal, não pode sofrer a covardia de um dos seus, sem sacrificar-se e
desacreditar-se toda inteira.
Suponhamos agora um camponês que defende com toda a tenacidade possível a sua
propriedade; porque não procede assim quando se trata da sua honra?
É que tem o verdadeiro sentimento das condições particulares da sua existência.
Não é chamado a provar a sua valentia mas a trabalhar.
A sua propriedade não é senão a forma visível do trabalho que tem feito durante a vida.
Um camponês indolente que não cultiva seus campos ou que dissipa rapidamente suas
rendas é tão desprezado pelos outros, como o militar que barateia a sua honra o é pelos seus
companheiros de armas.
Assim, um homem rústico não exprobará a outro por não haver iniciado um processo
por injúrias, nem um capitão censurará ao seu companheiro por ter sido um mau administrador.
A terra que cultiva e o rebanho que cria são para o camponês a base da sua existência e
a paixão excessiva com que persegue o visinho que lhe usurpara uns palmos de terra, ou o
mercador que não lhe pagou o preço estipulado pelas cabeças de gado que lhe vendera, não é
mais que um modo peculiar de lutar pelo direito, analogamente como o que o tem o militar por
meio da espada à qual confia a defesa da sua honra.
Sacrificando-se ambos sem temer e sem atenderem as conseqüências, não fazem senão
o seu dever.
Agindo assim, não têm mais que obedecer a lei particular da sua conservação moral.
Mandai-os sentar nos bancos dos jurados; submetei primeiramente aos militares um
delito, e aos camponeses uma questão de honra; em seguida invertei os papéis e vereis qual a
diferença existente entre os veredictos.
Está averiguado que não há juízes mais severos nas demandas de propriedade que os
camponeses; e, ainda que não possamos falar por experiência própria, ousamos assegurar que, se
um camponês por acaso intentasse uma ação sobre reparação das injúrias, o juiz poderia com
mais facilidade fazê-lo transigir do que se tratasse de uma questão acerca de propriedade.
O camponês no antigo direito romano contentava-se com a indenização de 25 azes por
uma bofetada e, se lhe varassem um olho, podia o autor entender-se com ele para não usar da
pena de talião como lhe permitia a lei.
Mas, quando se tratava de um ladrão, exigia da lei e esta concedia-lhe, que se o
prendesse em flagrante delito, o reduzisse à escravidão e até o pudesse matar, se resistisse.
Seja-nos lícito acrescentar um terceiro exemplo: — o do comerciante.
O crédito é para ele o que a honra é para o militar e a propriedade é para o camponês;
deve mantê-lo porque é a sua condição vital.
Aquele que o acusasse de não ter cumprido todas as suas obrigações e compromissos,
feri-lo-ia mais sensivelmente do que se o atacasse na sua pessoa ou na sua propriedade, e todavia
o militar rir-se-ia de tal acusação e o camponês senti-la-ia muito pouco.
É por isso tão particular a situação do comerciante que faz que nas leis atuais,
especialíssimas em certos casos, sejam exclusivos e peculiares certos delitos aos comerciantes,
como a bancarrota simples e o crime da falência culposa.
Com o que temos exposto, não procuramos somente provar que a irritabilidade do
sentimento do direito se apresenta sobre esta ou aquela forma, variando segundo as classes e as
condições, porque o indivíduo bitola o caráter de uma lesão pelo interesse que pode a sua classe
ter em suportá-la ou não.
A demonstração deste fato serviria para estabelecer claramente uma verdade de ordem
superior, isto é — que todo o indivíduo atacado defende no seu direito as condições da sua
existência moral.
É justamente nestas qualidades em que temos reconhecido as condições essenciais da
existência destas classes, onde o sentimento do direito se manifesta em seu mais alto grau de
sensibilidade; e disto se depreende facilmente que a reação do sentimento legal não se origina
exclusivamente como uma paixão ordinária, segundo a natureza especial do temperamento e
caráter do indivíduo, sem que uma causa moral haja nela, sendo esta o sentimento de que tal ou
qual título ou seção do direito seja precisamente de uma necessidade absoluta para o fim
particular da vida desta classe ou deste indivíduo.
O grau de energia com que o sentimento reage contra as lesões, segundo o nosso modo
de ver, é uma regra certa para conhecer até que ponto um indivíduo, uma classe ou um povo
sentem a necessidade do direito, tanto do direito em geral como de uma das suas partes, atento o
fim especial da sua existência.
Para nós este princípio é uma verdade perfeitamente aplicável, tanto ao direito público
como ao direito privado. Se os encargos especiais de uma classe e de uma profissão podem dar a
certa esfera do direito uma importância mais elevada e aumentar por conseguinte a sensibilidade
do sentimento legal da pessoa que se vê atacada no que é essencial ao seu especial modo de vida,
também pode enfraquecê-lo.
É impossível que os lacaios e serventes apreciem e desenvolvam o sentimento da honra
como as demais classes, porque há certas humilhações ligadas, por assim dizer, a seu ofício e
posição a que debalde o indivíduo tentara subtrair-se, pois que a classe inteira as suporta.
Quando o sentimento da honra se subleva em um homem submetido a esta condição,
não lhe resta outro caminho senão o de acalmar-se ou mudar de ocupação.
Se alguma vez tal sensibilidade se fizer sentir na massa social, então nada mais existe
para o indivíduo, senão a esperança de não consumir suas forças numa resistência inútil.
Poderá reuni-las às dos homens cujo coração pulsa como o seu, empregando-as
utilmente, estimulando em seus semelhantes o sentimento da honra, assegurando-lhes a mais alta
consideração até o ponto de alcançá-la da parte das demais classes sociais e das mesmas leis.
A história do desenvolvimento social nos últimos cinqüenta anos pôde registrar, sobre
este ponto, um imenso progresso, e o que acabo de dizer, pode-se aplicar dentro destes cinqüenta
anos a quase todas as classes.
O sentimento da honra tem-se nelas apurado, sendo isto o resultado e a expressão da
posição legal que têm sabido conquistar.
O sentimento da honra e o da propriedade podem ser postos, pelo que toca ao seu
apreço, no mesmo paralelo.
É possível que o verdadeiro sentimento da propriedade, — porque não entendemos,
sob esta expressão, o amor do lucro, a procura do dinheiro e da fortuna, mas o nobre sentimento
do proprietário, cujo modelo temos apresentado no camponês que defende seus bens não tanto
pelo seu valor, como porque são seus, é bem possível, repetimos, que este sentimento se
enfraqueça sob as influências deletérias de causas e situações desfavoráveis, do qual a cidade em
que vivemos oferece a melhor prova.
O que existe de comum entre a minha propriedade e a minha pessoa? muitos
perguntarão.
Os meus bens não são mais que os meios de prover a minha existência, de
proporcionar-me dinheiro, prazeres, e do mesmo modo que não tenho o dever moral de
enriquecer-me, não pode haver quem me exija ou aconselhe intentar uma demanda por uma
bagatela que não merece enfado e nada vale.
O único motivo que me pode determinar a correr aos meios judiciais não pode ser
outro que aquele que me guia na aquisição ou no emprego da minha fortuna e do meu bem estar.
Uma questão sobre o direito de propriedade é uma questão de interesse, um negócio
como um outro qualquer.
Aqueles que assim raciocinam, parece-nos, têm perdido o verdadeiro sentimento da
propriedade e têm deslocado a sua base natural.
Não é na riqueza nem no luxo que está o perigo para o sentimento do direito no povo;
não são responsáveis por estas doutrinas, mas a imoralidade da cobiça.
A origem histórica e a justificação moral da propriedade é o trabalho, não só o material
e o braçal, mas ainda o da inteligência e do talento, e não reconhecemos somente ao operário,
porém igualmente ao seu herdeiro, um direito ao produto do trabalho, isto é achamos no direito
da sucessão uma conseqüência necessária e indispensável do princípio da propriedade.
Assim sustentamos que deve ser tão permitido ao operário conservar o que ganhar
como bem lhe aprouver, como deixá-lo a quem quer na sua vida ou para depois de sua morte.
Esta constante relação com o trabalho é que faz manter a propriedade sem mancha; e é
nessa fonte que sempre deve refrescar-se, fazendo ver o que em realidade é para o homem,
aparecendo clara e transparente inteiramente.
E, quanto mais se afasta de tal fonte para perder-se e adulterar-se, para assim nos
exprimirmos, provindo de lucros fáceis e sem esforço algum, tanto mais perde o seu caráter e
natureza até se converter em jogos de bolsa e em agiotagem. fraudulenta.
Quando as coisas chegaram a tal extremo, quando a propriedade perdeu o seu último
vestígio de idéia moral, é evidente que não se pode falar no dever moral para a defender; não há
já aqui o sentimento da propriedade, tal qual existe no homem que tem que ganhar o pão com o
suor do seu rosto.
O que há de mais grave em tudo isto é que essas doutrinas e os hábitos que engendram
se alargam paulatinamente até um círculo em que não poderão desenvolver-se espontaneamente e
sem contato.
Até a cabana do pobre se ressente da influência que exercem os milhões ganhos nos
jogos da bolsa, e indivíduos que suportariam em outras circunstâncias alegremente o trabalho,
não o suportam e suam sob o peso que os enerva com o viver numa atmosfera tão viciada.
O comunismo não poderia proliferar senão naquelas partes em que está inteiramente
esquecida ou abastardada a idéia da propriedade, não se encontrando porém onde haja a idéia da
sua verdadeira origem.
Aquela influência pode ser certificada examinando-se o que sucede entre os
camponeses, em que a maneira como as classes elevadas consideram a propriedade tanto influi.
O que vive em suas terras, tendo alguma relação com o camponês, involuntariamente
adquirirá, ainda que o seu caráter e posição não o arrastem a isso, algum sentimento da
propriedade e da economia que distingue o homem rústico; e um mesmo indivíduo poderá ser
econômico quando vive entre os camponeses, e pródigo e gastador quando vive em uma cidade
como Viena, se ele se achar entre milionários.
Qualquer que seja a causa dessa atenuação de caráter pela qual o amor a comodidade
induz a fugir da luta pelo direito, uma vez que o valor do objeto não seja de tal natureza que
aconselhe à resistência, devemos caracterizá-la como ela é.
O que é que a filosofia prática da vida prediz com isso, senão a política da covardia?
O covarde que abandona o campo da batalha, salva o que os outros oferecem em
sacrifício, a vida, porém salva-a à custa da sua honra.
A resistência que os outros continuam fazendo é que o coloca, bem como à sociedade,
ao abrigo das conseqüências que forçosamente apareceriam se todos, pensando como ele, de
modo idêntico procedessem.
O mesmo se pode dizer daquele que abandona seu direito, porém isto, como ato
isolado, não tem conseqüência; entretanto se se tornasse em máxima de conduta — o que seria do
direito?
Ainda neste caso a luta pelo direito contra a injustiça não sofreria em seu conjunto
mais que uma defeção isolada, porquanto os indivíduos são, na verdade, os únicos chamados a
participar desta luta.
Quando um Estado está organizado, a opinião pública participa enormemente,
influindo sobre os tribunies em todos os ataques graves feitos ao direito de uma pessoa, à sua
vida ou à sua propriedade, achando-se assim os particulares desembaraçados da parte mais
penosa do trabalho.
Entretanto não é isto o bastante.
A polícia e o ministério público ainda velam para que o direito jamais seja sacrificado,
quando se trata de lesões abandonadas à ação individual, porque nem todos seguem a política do
covarde, e este mesmo luta quando reconhece que o valor do objeto merece os seus incômodos.
Suponhamos um estado de coisas em que o indivíduo não tenha a proteção que
asseguram a polícia e uma boa administração da justiça; remontemo-nos aos tempos primitivos,
como em Roma, em que o procedimento contra o ladrão e o bandido era exclusivamente entregue
ao que fora lesado.
Quem não vê até onde poderia chegar esse covarde abandono do direito?
Não seria isto um incitamento aos ladrões e salteadores?
Pode, sem dúvida, ser isto aplicado perfeitamente à vida das Nações.
Nenhum povo pode, em caso algum, abandonar a defesa de seu direito; recordemos o
exemplo da légua quadrada que supunhamos roubada por um povo a outro povo, e poder-se-á
imaginar que conseqüências traria para a vida dos povos o ter como norma a teoria pela qual a
defesa do direito depende do valor do objeto móvel da demanda.
Uma máxima que é inadmissível, que causa a ruína do direito a que se aplica, não se
legitima, ainda quando chegue a praticar-se, graças a certas e excepcionais circunstâncias.
Mais além teremos ocasião de demonstrar quanto prejudicial ainda ela é num caso
relativamente favorável. Afastemos, pois, essa moral que jamais incutirá no povo ou no indivíduo
sentimento algum pelo direito, e que é apenas sinal e produto do sentimento legal paralisado e
enfermo, resultado do grosseiro materialismo dominando o direito, materialismo que tem neste
domínio sua razão de ser.
Aproveitar-se do direito e dele se servir e fazê-lo valer, não são, quando se trata de
uma injustiça objetiva, mais que verdadeiras questões de interesses, e o direito não é, segundo a
definição que damos em outro lugar mais que — um interesse protegido pela Lei.
Perante a arbitrariedade que ataca e que não respeita o direito, estas considerações
perdem todo o seu valor, por que neste caso aquele que ataca arbitrariamente não pode atacar
nem lesar meu direito, sem atacar ao mesmo tempo a minha pessoa.
Pouco importa que o meu direito tenha por objeto tal ou tal coisa.
Se o acaso me coloca na posse de uma coisa, eu poderia justamente ser despojado dela
sem haver lesão de direito em minha pessoa; porém não foi o acaso, mas sim a minha vontade
que estabeleceu o laço entre mim e este objeto, e, se a tenho, devido ao trabalho que me tem
custado ou que custara a outro que ma dera, a questão varia de aspecto.
Apropriando-me da coisa, imprimo-lhe o cunho da minha personalidade, e qualquer
ataque dirigido a esse objeto me atacará, porque a minha propriedade sou eu: a propriedade não é
mais que a periferia da personalidade estendida a uma coisa.
Esta conexão do direito com a pessoa confere a todos os direitos, de qualquer natureza
que sejam, o valor incomensurável que temos chamado ideal, em oposição ao valor puramente
real que tem: sob o ponto de vista do interesse, sendo essa relação íntima a que faz nascer na
defesa do direito esta abnegação e energia de que acima já nos ocupamos.
Esta concepção ideal não está reservada às naturezas privilegiadas; a todos é possível,
tanto ao homem mais grosseiro, como ao mais ilustrado, não só ao rico, como ao pobre, tanto aos
povos selvagens como aos mais civilizados.
É precisamente isso que nos mostra que semelhante ponto de vista ideal tem sua
origem na natureza íntima do direito, e que, por outra parte, não faz, na verdade, mais que
demonstrar o bom estado do sentimento legal.
O direito que parece, por um lado, degradar homem à região do egoísmo e do
interesse, eleva-o por outro a uma altura ideal, onde esquece todas as suas subtilezas, todos os
cálculos e essa medida de interesse que se habituara a aplicar por toda a parte, e esquece-se para
sacrificar-se pura e simplesmente por uma idéia.
O direito, que é, por um lado, a prosa, torna-se, na luta por uma idéia, em poesia,
porque o combate pelo direito é, em verdade — a poesia do caráter.
E, como se opera este prodígio?
Não é nem pelo saber nem pela educação, mas pelo simples sentimento da dor.
A dor que é o grito de angústia, de socorro da natureza ameaçada, verdade esta
aplicável, como notamos, não só ao organismo físico, como também ao ser moral.
A patologia do sentimento legal é para o legista e para o filósofo do direito — ou,
melhor, devia sê-lo, porque seria inexato afirmar que seja realmente assim — o que a patologia
do corpo humano é para os médicos: revela inquestionavelmente o segredo de todo o direito.
A dor que o homem experimenta quando é lesado, é a declaração espontânea,
instintiva, violentamente arrancada do que o direito é para ele, a princípio em sua personalidade e
logo como indivíduo de uma classe.
A verdadeira natureza e a real importância do direito revelam-se mais completamente
em tal momento, sob a firma de afeção moral, do que durante um século de gozo tranqüilo.
Aqueles que não tiveram ocasião de medir pessoalmente esta dor não sabem o que é o
direito, ainda que tenham em sua cabeça todo o Corpus júris; e isto por que não é a razão, mas o
sentimento que pode resolver esta questão.
Também a linguagem tem indicado, e bem, a origem primitiva e psicológica de todo o
direito, apelidando-o de sentimento legal.
Consciência do direito, persuasão legal, são outras tantas abstrações da ciência que o
povo não compreende.
A força do direito descansa como a do amor no sentimento, e a razão não o pode
substituir quando aquele impera.
Assim como há momentos em que se ignora a existência do amor, e, num instante, ele
se revela inteiramente, assim também sucede com o sentimento do direito: em quanto se não foi
lesado não se conhece de quanto é capaz, mas a injustiça obriga-o a manifestar-se, pondo a
verdade à luz e revelando as forças em toda a sua intensidade.
Já dissemos em que consiste essa verdade; direito é a condição da existência moral da
pessoa, e mantê-lo é defender a sua própria existência moral.
Não é somente a dor, mas também, em muitos casos, a violência, ou tenacidade, com a
qual o sentimento do direito reage a uma lesão, que é a pedra de toque de sua saúde.
Por esse motivo o grau de dor que experimenta a pessoa lesada é o indício do valor em
que tem o objeto da lesão.
Experimentar a dor e permanecer indiferente, suportá-la com paciência sem defenderse, constitui uma negação do sentimento do direito que as circunstâncias podem desculpar em
dado caso, porém que em geral não deixariam de acarretar graves conseqüências para o
sentimento do mesmo.
Com efeito, a ação é da mesma natureza do sentimento legal, que não pode existir
senão sob condição de agir.
Se ela não age, desaparece gradualmente; extingue-se pouco a pouco até ficar anulada
por completo a faculdade sensível.
A irritabilidade e a ação, isto é, a faculdade de sentir a dor causada por uma lesão em
nosso direito e a coragem aliada à resolução de repelir o ataque, são o duplo critério mediante o
qual se pode reconhecer se o sentimento do direito é são.
É mister renunciarmos a desenvolver aqui, com mais extensão, este assunto tão
interessante e instrutivo da patologia do sentimento legal; permitam-nos, porém, ainda algumas
reflexões. Sabe-se que ação tão diferente exerce uma mesma lesão sobre pessoas pertencentes a
classes diversas.
Já procuramos explicar este fenômeno.
E a conclusão que disso tiramos é que o sentimento do direito não é igualmente lesado
por todos os ataques, por quanto enfraquece ou aumenta segundo os indivíduos e os povos vêem
na lesão que se faz ao seu direito uma ofensa mais ou menos grave à condição de sua existência
moral.
Quem quisesse continuar a questão, sob este ponto de vista, seria fartamente
recompensado em seus esforços.
Desejaríamos juntar aos exemplos da honra e da propriedade, um capítulo que
recomendamos especialmente — o matrimônio.
Quantas reflexões poderiam fazer-se do modo diverso como os indivíduos, os povos e
as legislações consideram o adultério!
A segunda condição do sentimento legal, isto é — a força de ação, é uma pura questão
de caráter. A atitude de um homem ou de um povo em presença de um atentado cometido contra
o seu direito é a pedra de toque mais segura para julgá-lo.
Se compreendermos por caráter a personalidade plena e inteira, não há, sem dúvida,
melhor ocasião de exibir esta nobre qualidade que em presença do que arbitrariamente lesa, ao
mesmo tempo, o direito e a pessoa.
As formas pelas quais se produz a reação causada por um atentado ao sentimento do
direito e da personalidade que se traduzem, sob a influência da dor, em vias de fato, apaixonadas
e selvagens, ou que se manifestam por uma grande e tenaz resistência, de modo algum podem
servir para determinar a força do sentimento legal.
Seria, pois, um erro e dos mais grosseiros supor em uma Nação selvagem, e em um
homem da plebe, um sentimento mais ardente que o de um homem educado, porque aqueles
tornam o primeiro partido e estes o segundo.
As formas são quase sempre devidas à educação e ao temperamento, principalmente
quando uma resistência firme e tenaz não cede em importância a uma reação violenta e
apaixonada.
Seria deplorável que isso fosse de outro modo, pois seria o mesmo que dizer que o
sentimento do direito se extingue nos indivíduos e nos povos em proporção e medida do
progresso que fazem no seu desenvolvimento intelectual.
Um olhar lançado sobre a história e sobre o que se passa na vida é suficiente para nos
convencer do contrário.
Não é igualmente na antítese da pobreza e da riqueza que poderemos achar a solução,
por quanto, por mais diferente que seja a medida econômica, conforme a qual o rico e o pobre
julgam um mesmo objeto, quando se trata de um ataque à propriedade, como já fizemos observar,
não tem aplicação alguma, porque não se trata neste caso do preço material desse objeto, mas do
valor ideal do direito e, por conseqüência, da energia do sentimento legal relativamente à
propriedade; não é a quantidade mais ou menos considerável da riqueza que decide, mas a força
do sentimento legal.
E a melhor prova que se pode considerar é a que o povo inglês nos oferece.
Jamais a sua riqueza alterou o sentimento do direito; pelo contrário, temos muitas
vezes sobre o continente ocasião de julgar e nos persuadirmos da energia com que este
sentimento se manifesta nas mais simples questões de propriedade.
É conhecida por todos essa figura do viajante inglês que, para não ser vítima das
trapaças das hospedarias, hoteleiros, cocheiros, etc., opõe uma resistência tal que dir-se-ia que se
tratava de defender o direito da velha Inglaterra; detém-se na viagem se for mister, chegando a
depender o décuplo do valor do objeto, antes de ceder.
O povo ridiculariza-o sem o compreender... Valeria muito mais porém que o
compreendesse!
Naquela pequena quantidade de dinheiro, ele defende a Inglaterra e prova, com este
proceder, que não é homem que abandone a sua pátria.
Não é nossa intenção ofender nem causar o menor pesar a alguém, mas a questão é tão
importante que somos forçados a estabelecer um paralelo.
Suponhamos um austríaco gozando da mesma posição social e colocado nas mesmas
circunstâncias que um inglês; como procederia ele em igual caso?
Se tivéssemos de responder com a nossa experiência, diríamos — não chegarão a dez
por cento os que imitam o inglês, porque eles recuam diante dos desgostos oriundos de uma
contenda, temem os resultados de uma interpretação má, o que não teme o inglês; em uma
palavra, eles pagam.
Mas no dinheiro que o inglês recusa e o austríaco paga, há alguma coisa de
característico da Inglaterra e da Áustria: há a história secular do seu respectivo desenvolvimento
político e da sua vida social.
Este pensamento oferece-nos uma transição fácil, mas permita-se-nos, antes de
terminar esta parte, repetir o princípio que estabelecemos no começo: A defesa do direito é um
ato da conservação pessoal e, por conseguinte, um dever daquele que foi lesado para consigo
mesmo.
CAPÍTULO IV
A luta pelo direito na esfera social
Trataremos de provar agora que a defesa do direito é um dever que temos para com a
sociedade. Para fazê-lo, devemos primeiramente mostrar a relação que existe entre o direito
objetivo e o subjetivo.
Mas qual será ela?
Segundo o nosso modo de ver, é o contrário do que nos diz a teoria hoje mais aceita
em afirmar que o primeiro supõe o segundo.
Um direito concreto não pode originar-se senão da reunião das condições que o
princípio do direito abstrato liga à sua existência.
Eis aqui tudo quanto nos diz a teoria dominante das suas relações; e, como se vê, é
apenas um lado da questão.
Tal teoria faz exclusivamente sobressair a dependência do direito concreto com relação
ao direito abstrato e não diz absolutamente coisa alguma dessa relação que existe também em
sentido inverso.
O direito concreto restitui ao direito abstrato a vida e a força que recebe; e como está
na natureza do direito que se realiza praticamente, um princípio legal que jamais esteve em vigor,
ou que perdeu a sua força, não merece tal nome, é uma roda gasta que para coisa alguma serve no
mecanismo do direito e que se pode destruir sem em nada alterar a marcha geral.
Esta verdade aplica-se sem restrição a todas as partes do direito, tanto ao direito
público, como ao privado e ao criminal.
A legislação romana sancionou explicitamente esta doutrina, fazendo da — desuetudo
uma causa da revogação das leis; a perda dos direitos concretos pelo não uso prolongado (nonusus) também significa exatamente a mesma coisa.
Enquanto a realização prática do direito público e do penal está assegurada, porque
está imposta como um dever aos funcionários públicos, a do direito privado apresenta-se aos
particulares sob a forma de direito, isto é, por completo abandonada a sua prática à sua livre
iniciativa e à sua própria atividade.
O direito não será letra morta e realisar-se-á no primeiro caso se as autoridades e os
funcionários do Estado cumprirem com o seu dever, no segundo, se os indivíduos fizerem valer
os seus direitos.
Mas, se por qualquer circunstância, por comodidade, por ignorância ou por medo, estes
últimos ficarem longo tempo inativos, o princípio legal perderá por esse fato o seu valor.
As disposições do direito privado podemos, pois, dizer, não existem na realidade e não
têm força prática, senão na medida em que se fazem valer os direitos concretos; e, se é certo que
estes devem sua existência à lei, não é menos certo que por outra parte eles lha restituem.
A relação que existe entre o direito objetivo e o subjetivo ou abstrato e concreto
assemelha-se à circulação do sangue, que partindo do coração aí de novo volta.
A questão da existência de todos os princípios do direito público repousa sobre a
fidelidade dos empregados no cumprimento dos seus deveres; a dos princípios do direito privado
sobre a eficácia destes motivos, que levam o lesado a defender o seu direito: — o interesse e o
sentimento.
Se estes móveis não são suficientes, se o sentimento se extingue, se o interesse não é
bastante poderoso para sobrepujar o amor da comodidade, vencer a aversão contra a disputa e a
luta, para dominar o recuo de um processo, será o mesmo que se o princípio legal não vigorasse.
Mas dir-se-á: — que importa?
O lesado não está só em causa?
Ele recolherá os maus frutos.
Relembremos do exemplo de um indivíduo que foge do campo da batalha.
Se mil soldados entram em ação, pode perfeitamente suceder que não se note a falta de
um só; porém, se cem deles abandonam a sua bandeira, a posição dos que permanecem fiéis será
mais crítica, porque todo o peso da luta cairá sobre eles.
Esta imagem, parece-nos, reproduz bem o estado da questão.
Em verdade, trata-se no terreno do direito privado de uma luta do direito contra a
injustiça, de um combate comum de toda a Nação na qual todos devem achar-se estreitamente
unidos.
Desertar em semelhante caso, é também trair a causa comum, porque é engrossar as
forças do inimigo, aumentando a sua ousadia e audácia.
Quando a arbitrariedade, a ilegalidade ousam levantar descomedida e impudentemente
a cabeça, pode sempre reconhecer-se por este sinal que aqueles que eram chamados a defender a
lei não cumpriram o seu dever.
Portanto, cada um está encarregado na sua posição de defender a lei, quando se trata do
direito privado, porque todo o homem está encarregado, dentro da sua esfera, de guardar e de
fazer executar as disposições legais.
O direito concreto que possui não é mais que uma autorização que recebe do Estado
para combater pela lei nas ocasiões que lhe interessam e de entrar na liça para resistir à injustiça,
é uma autorização especial e limitada, ao passo que a do funcionário público é absoluta e geral.
O homem luta, pois, pelo direito inteiro, defendendo o seu direito pessoal no estreito
espaço em que ele se exerce.
O interesse e as demais conseqüências de sua ação se estendem pelo mesmo fato muito
além de sua personalidade.
A vantagem geral que disto resulta não somente o interesse ideal de que a autoridade e
a majestade da lei sejam protegidos, mas um benefício real, perfeitamente prático, compreendido
e apreciado por todos como que defendendo e assegurando a ordem estabelecida nas relações
sociais.
Suponhamos que o amo não repreende mais os seus criados pelo mau cumprimento de
seus deveres, que o credor não pretende molestar seus devedores, que o público não tem nas
compras e vendas uma minuciosa vigilância dos pesos e medidas, — por ventura só a autoridade
da lei será danificada?
Seria isto o mesmo que sacrificar em uma certa direção a ordem da vida civil, sendo
difícil calcular quais seriam as funestas conseqüências destes deploráveis fatos. O crédito, por
exemplo, seria lesado de um modo muito sensível...
Todos faríamos o possível por não entreter negócios com aqueles que nos obrigassem a
discutir e a lutar quando o direito é evidente; colocaríamos, sem dúvida, os nossos capitais em
outras praças e importaríamos as mercadorias de tais lugares.
Quando um tal estado de coisas existe, a sorte daqueles que têm a coragem de fazer
observar a lei é um verdadeiro martírio; o seu sentimento firme e enérgico do direito faz
justamente a sua desgraça.
Abandonados por todos os que deveriam ser seus naturais aliados, permanecem
completamente sós na presença da arbitrariedade que a apatia e a pusilanimidade dos demais
convertem na maior audácia e ousadia; e se conseguem enfim comprar, a preço de grandes
sacrifícios, a satisfação de permanecer fiéis quanto ao seu modo de agir e de pensar, não
recolhem mais que zombaria e ridículo.
Aqueles que transgridem a lei não são os que principalmente assumem a
responsabilidade em tais casos, mas sim os que não têm coragem de defendê-la.
Não acusamos a injustiça de suplantar o direito, mas este por que se deixa suplantar,
porque se chegássemos a classificar, segundo a importância, estas duas máximas: — “não
cometas uma injustiça” — e “não sofras nenhuma” — se deveria dar como primeira regra —
“não sofras injustiça alguma” — e, como segunda — “não cometas nenhuma.”
Se considerarmos o homem tal qual ele é, não há dúvida de que a certeza de encontrar
uma resistência firme e resoluta, seria melhor meio para fazer que não cometesse uma injustiça,
do que uma simples proibição, cuja força prática não é, em realidade, mais que um preceito da lei
moral.
Dir-se-á agora que vamos demasiadamente longe, pretendendo que a defesa de um
direito concreto não é somente um dever do indivíduo que é atacado para consigo mesmo, mas
também um dever para com a sociedade?
Se o que temos dito é verdade, se está estabelecido que defendendo o indivíduo o seu
direito defende a lei, e na lei a ordem estabelecida como indispensável para o bem público, —
quem ousará afirmar que ele não cumpre ao mesmo tempo um dever para com a sociedade?
Se o Estado tem o direito de chamá-lo para lutar contra o estrangeiro, e se pode obrigálo a sacrificar-se e a dar sua vida pela salvação pública, — porque não terá o mesmo direito
quando é atacado pelo inimigo interno que não ameaça menos a sua existência que os outros?
Se a covarde fuga é, no primeiro caso, uma traição à causa comum, — poder-se-á dizer
que não se dá o mesmo no segundo?
Não, não basta para que o direito e a justiça floresçam em um país, que o juiz esteja
disposto sempre a cingir sua toga, e que a polícia esteja disposta a fazer funcionar os seus
agentes; é mister ainda que cada um contribua por sua parte para essa grande obra, porque todo o
homem tem o dever de esmagar, quando chega a ocasião, essa hidra que se chama a
arbitrariedade e a ilegalidade.
Inútil é fazer notar quanto enobrece, sob este ponto de vista, a obrigação em que cada
um se acha de fazer valer o seu dever.
A teoria atual não nos fala mais que de uma atitude exclusivamente passiva em relação
à lei; e a nossa doutrina apresenta, às vezes, um estado de reciprocidade no qual o combatente
retribui à lei o serviço que dela recebe, reconhecendo-lhe assim a missão de cooperar para uma
grande obra nacional.
Demais, pouco importa que a questão apareça sob este ou outro aspecto, porque o que
existe de grande e elevado na lei moral é precisamente que ela não conta só com os serviços
daqueles que a compreendem, mas que dispõe de bastantes meios de todo o gênero para fazer
obrigar aqueles que não respeitam os seus preceitos.
Assim é que, para obrigar a homem ao matrimônio, faz agir em uns o mais nobre dos
sentimentos humanos, em outros a paixão grosseira dos sentidos põe em movimento o amor, em
um terceiro os gozos e, por fim, a avareza em outros; mas qualquer que seja o meio, todos
procuram a união conjugal.
Isto também sucede na luta pelo direito, seja o interesse ou a dor que causa a lesão
legal, ou a idéia do direito, quem impele os homens a entrar em luta, todos concorrem para
trabalhar na obra comum: — a proteção do direito contra a arbitrariedade. Atingimos o ponto
ideal da nossa luta pelo direito.
Partindo do baixo motivo do interesse, elevamos ao ponto de vista da defesa moral da
pessoa, para chegar por último a esse comum trabalho de onde deve sair a realização total da
idéia do direito.
Que alta importância assume a luta do indivíduo pelo seu direito, quando ele diz:— o
direito inteiro, que foi lesado e negado em meu direito pessoal, é que eu vou defender e
restabelecer!
Quanto está longe desta altura ideal onde a eleva tal pensamento, essa baixa região do
puro individualismo, dos interesses pessoais, dos desígnios egoístas e das paixões que um homem
pouco cultivado torna como verdadeiro domínio do direito!
Dir-se-á, talvez, que é uma idéia tão elevada que só a filosofia do direito pode penetrála; não ela é de aplicação prática, porque ninguém intenta uma ação somente pela idéia do direito.
Bastar-nos-ia, para refutar essa objeção, recordar a instituição das ações populares no
Direito romano que são uma prova evidente do contrário; mas não faríamos justiça ao nosso
povo, nem a nós mesmos, se negássemos este sentimento ideal.
Todo homem que se indigna e experimenta profunda cólera, vendo o direito oprimido
pela arbitrariedade, possui-o sem dúvida alguma.
Por mais que um motivo egoísta se misture com o sentimento penoso, que provoca
uma lesão pessoal, esta dor tem, ao contrário, sua causa única no poder da idéia moral sobre o
coração humano.
Esta energia da natureza moral, que protesta contra o atentado dirigido ao direito, é o
testemunho mais belo e o mais elevado que se pode dar ao sentimento legal; é um fenômeno
moral tão interessante e instintivo para a observação do filósofo como para a imaginação do
poeta.
Não há, que saibamos, afecção alguma que possa operar tão subitamente no homem
uma transformação tão radical, porque está provado que tem o poder de elevar as naturezas,
mesmo as mais dóceis e mais conciliáveis, a um estado de paixão que lhes é completamente
estranho, o que mostra que elas têm sido feridas na parte mais nobre do seu ser e que se lhes tem
tocado na fibra mais delicada do seu coração.
É semelhante ao fenômeno da tempestade no mundo moral. Grande e majestoso em
suas formas pela rapidez, pelo imprevisto e potência da explosão, pelo poder desta força moral
que é semelhante ao desencadeamento de todos as elementos furiosos que derrubam tudo que se
acha diante, para logo vir a calma benfeitora e produzir no indivíduo, como em todos, uma
purificação moral do ar que a alma respira.
Mas se a força limitada do indivíduo vai quebrar-se contra as instituições que
dispensam à arbitrariedade uma proteção que negam ao direito, é evidente que a tempestade
descarregará suas iras sobre o autor e, então de duas uma : — ou o sentimento legal irritado
cometerá um desses crimes de que falaremos mais adiante, ou nos oferecerá o espetáculo não
menos trágico de um homem que trazendo constantemente em seu coração o aguilhão da
injustiça, contra a qual é impotente, chegará a perder, pouco a pouco, o sentimento da vida moral
e toda crença no direito.
Não desconhecemos que esse sentimento ideal do direito que possui o homem, para
quem um ataque, ou uma lesão da idéia legal é mais sensível que um atentado contra sua pessoa,
e para o que se se sacrifica, sem interesse algum, à defesa do direito oprimido, como se se tratasse
do seu próprio, — é um privilégio de naturezas escolhidas.
O homem positivo, realista, despojado de toda a aspiração ideal, que não vê na
injustiça senão dano feito a seu próprio interesse, compreende, entretanto, perfeitamente essa
relação que estabeleci entre o direito concreto e a lei, e que pode assim resumir-se: — o meu
direito é o direito inteiro; defendendo-me, defendo todo o direito que foi lesado ao ser lesado o
meu direito.
Pode isto parecer um paradoxo, e entretanto é muito justo considerar este modo oposto
às crenças dos legistas.
A lei, segundo a idéia que dela temos, não entra absolutamente em nada na luta pelo
direito, e não se trata nesta luta da lei abstrata, mas da sua forma material, de um daguerreotipo
qualquer, na qual ela não tem feito mais que fixar-se, sem que seja possível feri-la nela própria
imediatamente.
Não desconhecemos a necessidade técnica deste modo de ver, mas ela não deve
impedir-nos de reconhecer a justeza da opinião oposta, que, colocando a lei e o direito em uma
mesma linha, vê como conseqüência de uma lesão do segundo um ataque feito à primeira.
Esta opinião, talvez, para algum espírito desprevenido seja muito mais exata que nossa
teoria jurídica.
A melhor prova do que afirmamos é a própria expressão de que se serve o alemão e
que se empregava no latim.
Entre nós — o autor chama os outros a juízo, e os romanos chamavam à acusação —
“legis actio”.
É, pois, nos dois casos a lei que está em questão, é ela que se vai discutir em um caso
particular, e este ponto de vista é da mais alta importância, especialmente para a inteligência do
processo no direito antigo dos romanos.
A luta pelo direito é, pois, ao mesmo tempo uma luta pela lei; não se trata somente de
um interesse pessoal, de um fato isolado em que ela toma corpo de daguerreotipo, como já
dissemos, no qual se fixa na passagem de um de seus luminosos raios, que se pode dividir e
quebrar sem a atingir a ela mesma; mas trata-se da lei que se tem desprezado e calcado e que
deve ser defendida sob pena de torná-la uma frase vazia de sentido.
O direito pessoal não pode ser sacrificado, sem que a lei o seja também.
Este modo de encarar, que chamaremos, em duas palavras — a solidariedade da lei e o
direito concreto, é, como já acima dissemos, a expressão real da sua relação no mais íntimo da
sua natureza e que não está tão profundamente oculta, que até o egoísta, incapaz de toda idéia
superior, talvez C’ compreenda como em nenhum outro caso, porque o seu interesse é associar o
Estado à luta.
É por este meio que ele sem saber, nem querer, contra o seu direito e contra si mesmo,
se levanta até à altura ideal de onde se sente representando a lei.
A verdade é sempre verdade, ainda que, contra ela, o indivíduo não a reconheça e não
a defenda mais que no estreito ponto de vista do seu interesse pessoal.
É o espírito de vingança e o ódio que impelem Shylock a pedir ao tribunal a
autorização de cortar a sua libra de carne nas entranhas de Antônio; mas as palavras que o poeta
põe em seus lábios são tão verdadeiras como em quaisquer outros. É a linguagem que o
sentimento do direito lesado falará sempre.
É a potência dessa persuasão inquebrantável de que o direito deve ser sempre direito.
É o entusiasmo apaixonado de um homem que tem consciência de que não luta só por
sua pessoa, mas também por uma idéia.
A libra de carne que eu reclamo, — lhe faz dizer Shakespeare: — Eu a paguei caro, ela
é minha e eu a quero.
Se vós ma recusais, onde vossa justiça?
O direito de Veneza ficará sem força alguma.
...Essa é a lei que eu represento.
...Eu me apoio sobre meu título.
O poeta, nestas quatro palavras: — “eu represento a lei” — determinou a verdadeira
relação do direito sob o ponto de vista objetivo e subjetivo, e a significação da luta pela sua
defesa melhor do que poderia fazê-lo qualquer filósofo.
Estas palavras convertem por completo a pretensão de Shylock em uma questão, cujo
objeto é o próprio direito de Veneza.
Que atitude verdadeiramente corajosa não é a deste homem em sua fraqueza quando
pronuncia estas palavras!
Não é o judeu que reclama a sua libra de carne, mas a própria lei veneziana que assoma
à barra do tribunal, porque o seu direito e o direito de Veneza são apenas um; o primeiro não
pode perecer sem perecer o segundo.
Se finalmente sucumbe sob o peso da sentença do juiz, que anula o seu direito por uma
indecorosa zombaria, se o vemos esmagado pela dor mais cruel, coberto pelo ridículo e completamente abatido, afastar-se vacilando, podemos então afirmar nesse sentimento que o direito
de Veneza está humilhado em sua pessoa, que não é o judeu Shylock que se afasta com
dificuldade, mas um homem que representa o desgraçado judeu da Idade Média, esse pária da
sociedade que em vão grita: Justiça!
Esta opressão do direito de que ele é vítima não é, contudo, o lado mais trágico nem
mais comovedor da sua sorte; o que há de mais horrível é que esse homem, que esse infeliz judeu
da Idade Média crê no direito, podendo-se dizer mesmo que como um cristão.
A sua fé é tão inquebrantável e firme como uma rocha; nada a faz abalar; o próprio juiz
a alimenta até o momento em que se resolve a catástrofe e o fulmina como um raio.
Então contempla a sua desgraça e vê que só é um mísero judeu da Idade Média a quem
se nega a justiça, iludindo-o.
Este tipo de Shylock faz-nos lembrar outro que não é menos histórico, nem menos
interessante e poético: — o de Miguel Kohlhaas que, na novela com este nome, Henrique Kleist
nos representa com tanto acerto.
Shylock retira-se completamente despedaçado pela dor; as suas forças esgotam-se e
não luta mais; sofre sem resistência os resultados do juízo.
Com Miguel Kohlhaas a coisa é, porém, outra.
Quando ele esgotou todos os meios para fazer valer o seu direito tão indignamente
desprezado, quando um ato injusto exercido pelo gabinete do príncipe lhe fechou todo o caminho
legal, e vê que até a autoridade no seu mais alto representante, o soberano, faz causa comum com
a injustiça, a dor inexprimível que causa semelhante ultraje encoleriza e insurreiciona-o.
— “Mais vale ser cão do que ser homem e ver-se calcar aos pés” — vocifera ele, e
imediatamente toma uma suprema resolução.
— “Aquele que me recusa a proteção das leis, — acrescenta ele — degrada-me entre
os selvagens do deserto e põe em minhas mãos a clava com que devo defender-me.”
Arranca a essa justiça venal a espada desonrada que ela traz e maneja-a de tal modo
que o espanto e o terror se espalham pelo país; a sua ação é tal que este estado apodrecido é
abalado até os seus fundamentos e o príncipe treme sobre seu trono.
Não é o sentimento selvagem da vingança que o anima, ele não se faz salteador e
assassino como Carlos Moon que queria — “fazer ressoar em toda a natureza o grito da
revolução, para levar ao combate contra a raça das hienas, o ar, a terra, o mar” — e que declara a
guerra a toda a humanidade porque foi violado no seu direito; não, ele age ao contrário sob a
influência desta idéia moral: — “que tem para com o mundo o dever de consagrar todas suas
forças para conseguir reparação e pôr os seus concidadãos ao abrigo de semelhantes injustiças.”
Esta é a idéia a que ele tudo sacrifica, a comodidade de sua família, a honra do seu
nome, todos os seus haveres, o seu sangue e a sua vida; não destrói por destruir; tem um fim: — o
de vingar-se do culpado e de todos que fazem causa comum com ele.
Quando vê surgir a esperança de poder obter justiça, voluntariamente depõe as suas
armas; porém, como fora escolhido para nos mostrar até que ponto a ignomínia, a ilegalidade e a
baixeza de caráter ousam descer nessa época, vê que falta a promessa que se lhe havia dado, que
se viola o salvo conduto que lhe fora entregue e termina os seus dias na praça onde eram
executados os criminosos.
E, entretanto, antes de morrer faz-se-lhe justiça e este pensamento de não ter
combatido em vão, de ter mantido a sua dignidade humana, sustentando o justo, eleva o seu
coração acima dos horrores da morte, e assim, reconciliado consigo mesmo, com o mundo e com
Deus, abandona-se resolutamente e de boa vontade ao carrasco.
Quantas reflexões não nos deve sugerir este drama legal!
Nele temos um homem honrado, escrupulosamente amigo do direito, cheio de amor
por sua família e de sentimento religioso que, de um modo impetuoso, se converte em um Átila,
espalhando o luto e a desolação em todos os povos por onde passa. Mas, de onde vem essa
transformação?
Nasce precisamente dessas qualidades em que se origina, por assim dizer, vem dessa
grandeza moral que o torna superior a todos os seus inimigos; ela vem desse alto respeito pelo
direito, da crença em sua santidade, da força de ação que possui o seu sentimento moral que é inteiramente justo e são.
Na sorte trágica deste homem, o que ha de profundamente comovedor é que as
qualidades que constituem e distinguem a nobreza da sua natureza, isto é, este sentimento ardente
e ideal do direito, esse sacrifício heróico em defesa de uma idéia, em contato com o mundo
miserável de então, onde a arrogância dos poderosos apenas era igualada pela venalidade e
covardia dos juízes, concorrem precisamente à perda dele.
Os crimes que cometeu recaem com um duplo ou tríplice peso sobre o príncipe, seus
funcionários e juízes, que o impeliram da via legal para a da ilegalidade.
Qualquer que seja a injustiça que possamos sofrer, por mais violenta que seja, não há
para o homem alguma que possa ser comparada à que pratica a autoridade estabelecida por Deus,
quando ela viola a lei.
O assassinato judiciário, como o chama perfeitamente a nossa língua alemã, é o
verdadeiro pecado mortal do direito.
Aquele que, estando encarregado da administração da justiça, se faz assassino, é como
o médico que envenena o doente, como o tutor que faz perecer seu pupilo.
O juiz que se deixava corromper era, nos primeiros tempos de Roma, punido com a
pena de morte.
Para a autoridade judiciária que tem violado o direito não há acusador mais terrível que
a figura sombria e continuamente ameaçadora do homem, que a lesão do sentimento legal tornou
criminoso; é a sua própria sombra sob traços bem sanguinolentos.
Aquele que foi vítima de uma injustiça, corrompida e parcial, acha-se violentamente
lançado fora da via legal, faz-se vingador e executor do seu direito, e não é raro que, arremessado
pelo declive, fora de seu fim direto, se torne inimigo da sociedade, salteador e homicida.
Se a sua natureza for nobre e moralizada, como a de Miguel Kohlhaas, poderá
sobrepor-se a essas tendências, mas chegará a ser criminoso e sofrerá por isso a pena
correspondente à sua falta, mártir do seu sentimento do direito.
Diz-se que o sangue dos mártires não corre em vão, e isto pode ser aqui uma grande
verdade.
É provável que o seu espectro suplicante subsista largo tempo, porque uma opressão
do direito, semelhante à de que fora vítima, permanece sobejamente impressa para ser olvidada.
Evocando esta sombra, queremos mostrar, por um exemplo frisante, até onde se pode
chegar, se o sentimento do direito for enérgico e ideal, quando a imperfeição das instituições
legais negam uma satisfação legítima.
A luta pela lei converte-se em uma luta contra ela.
O sentimento do direito abandonado pelo poder que devia protegê-lo, livre e senhor de
si mesmo, procura os meios para obter a satisfação que a imprudência, a má vontade e a
impotência recusam.
Não é somente nas naturezas isoladas, especialmente cheias de vida e inclinadas à
violência, que o sentimento nacional do direito, se me posso assim exprimir, se eleva e protesta
contra semelhantes instituições legais.
Estas acusações e estes protestos reproduzem-se, por vezes, pelo povo inteiro em
certos fatos que, segundo o seu fim ou o modo como o próprio povo ou uma classe determinada
os consideram ou aplicam, podem ser encarados como simplesmente acessórios, com que a
Nação concorre para as instituições do Estado.
Tais eram na Idade Média, entre outros, o cartel de desafio, que prova a impotência ou
a parcialidade dos tribunais correcionais de então e a fraqueza do poder público.
Em nossos dias a existência do duelo atesta-nos, sob uma forma sensível, que as penas
que o Estado aplica a um ataque à honra, não satisfazem o sentimento delicado de certas classes
da sociedade.
Isto nos dá a entender ainda a vingança do corso, e essa justiça popular aplicada na
América do Norte que se chama a lei de Lynch.
Tudo anuncia muito claramente que as instituições legais não estão em harmonia com
o sentimento legal do povo ou de uma classe e, em todos os casos, obriga o Estado a reconhecêlas como necessárias ou ao menos a suportá-las.
Quando a lei as tem proscrito, sem poder conseguir fazê-las desaparecer, podem dar
origem a um grave conflito para o indivíduo.
O corso que prefere antes obedecer a lei que recorrer a vingança, é desprezado pelos
seus; aquele que, ao contrário, acedendo à influência nacional a emprega, está sujeito a cair sob o
braço da justiça.
Assim acontece com o nosso duelo — aquele que o recusa, quando o dever o impõe, é
desprezado; aquele que o aceita recebe a punição, e, neste caso, a posição é igualmente penosa
para o indivíduo como para o juiz.
Procurar-se-ia debalde tratar de descobrir fatos semelhantes na história primitiva de
Roma, porque as instituições do Estado estavam então em harmonia completa com o sentimento
nacional.
Assim que apareceu o cristianismo, foi que os cristãos se afastaram dos tribunais
seculares para levar suas causas diante do bispo, como os judeus na Idade Média que fugiam dos
tribunais católicos, apelando para a decisão de seus Rabinos.
Nada mais temos a dizer sobre a luta do indivíduo pelo seu direito.
Estudâmo-lo na gradação dos seus motivos, considerando-o primeiramente como um
puro cálculo de interesse, elevando-nos logo desse grau a esta consideração ideal: — a
manutenção da personalidade, a defesa das condições da existência moral, para atingir enfim um
ponto de vista que é a sua maior altura e de onde uma falta pode precipitar o homem que foi
lesado no abismo da ilegalidade: — tal é a realização da idéia do direito.
O interesse desta luta, longe de reduzir-se ao direito privado ou à vida privada,
estende-se, ao contrário, muito mais além.
Uma Nação não é, em suma, mais que o conjunto de indivíduos que a compõem; ela
sente, pensa e age, como seus membros isolados sentem, pensam e agem.
Se o sentimento do direito no indivíduo está embotado, é covarde e apático quando se
trata do direito privado; se os obstáculos que opõem as leis injustas ou as más instituições não lhe
permitem mover-se e desenvolver-se livremente em toda a sua pujança, se ele é perseguido
quando deveria ser protegido e encorajado; se em sua virtude se acostuma a sofrer a injustiça, a
considerá-la como um estado de coisas que não se pode mudar; — quem poderá crer que um
homem, cujo sentimento legal está tão enfraquecido, tão apático e paralizado, possam despertar
tão subitamente, sentir tão violentamente e agir com tanta energia quando se pratica uma lesão
legal que não atinge o indivíduo, mas todo o povo, quando se trata de um atentado à sua liberdade
política, de destruir ou alterar a sua constituição ou de um ataque estrangeiro?
Como é possível, pois, que aquele que não está acostumado a defender corajosamente
o seu direito pessoal, se sinta impelido a sacrificar voluntariamente os seus haveres e a sua vida
pela salvação pública?
Como esperar do homem que, renunciando ao seu direito por inclinação aos gozos, não
viu o dano moral feito em sua pessoa e em sua honra, daquele que não conheceu até então no
direito outra medida que a de seu interesse material, tenha outro modo de julgar quando se trata
do direito e da honra nacional?
De onde surgiria espontaneamente esse sentimento legal até então desmentido?
Não, isto não pode ter lugar!
Aqueles que defendem o direito privado são os únicos que podem lutar pelo direito
público e pelo direito das gentes; eles empregarão nessa luta as qualidades já reveladas na outra e
elas decidirão a questão.
Pode-se, pois, afirmar que no direito público e no das gentes recolher-se-ão os frutos,
cuja semente foi semeada e cultivada pela Nação no direito privado.
Nas profundezas desse direito, nos menores detalhes da vida é onde se deve acumular
lentamente a força que entesoura esse capital moral que o Estado necessita para poder atingir o
seu fim.
A verdadeira escola da educação política não é para o povo o direito público, mas o
direito privado; e, se queremos saber como uma Nação defenderá em um dado caso os seus
direitos políticos e a sua posição internacional, basta saber-se como o indivíduo defende o direito
pessoal na vida privada.
Não podemos esquecer-nos do que dissemos do inglês, sempre pronto a lutar; no
dinheiro que defende este homem com tanta tenacidade, está a história do desenvolvimento
político da Inglaterra.
Pessoa alguma ousará arrancar a um povo, do qual cada membro tenha por costume
defender valentemente o seu direito, até nos menores detalhes, o bem que lhe é mais precioso.
Não foi também por acaso que o povo da antiguidade, que teve no interior o mais alto
desenvolvimento político, teve também o maior desenvolvimento de forças no exterior, por
quanto o povo romano possuía também, ao mesmo tempo, o mais aperfeiçoado direito privado.
O direito é o ideal (por mais paradoxal que isto possa parecer) não o ideal fantástico,
mas o do caráter, isto é — o do homem que se reconhece como sendo o seu próprio fim, e que
liga pouca importância a tudo que existe, quando é atacado nesse domínio íntimo e sagrado.
Demais, que importa donde vem o ataque feito contra seu direito?
Que venha de um indivíduo, do governo ou de um povo estrangeiro, é-lhe indiferente.
Não é, em verdade, a pessoa do agressor que decidirá da resistência que deve haver,
mas a energia do seu sentimento legal e a força moral que emprega para a sua conservação
pessoal.
Será, pois, uma verdade a afirmação de que a força moral de um povo determina o
grau da sua posição política quer no interior como no exterior.
O Império Chinês com o seu bambu que serve de verga para os adultos e as suas
centenas de milhões de habitantes, jamais alcançará aos olhos das Nações estrangeiras o posto
honroso que ocupa a pequena república da Suíça no concerto dos povos.
O temperamento dos suíços não é somente artístico, de poesia e ideal; é positivo e
prático como o dos romanos, mas no sentido em que tomamos esta palavra; falando-se do seu
direito, pode aplicar-se o que dissemos dos ingleses.
O homem que tem o são sentimento do direito, minará a base sobre a qual este
sentimento se apoia, se apenas se contenta e satisfaz com a sua defesa, sem contribuir para a
manutenção do direito e da ordem; porquanto ele sabe que, combatendo pelo seu direito, defende
o direito na sua totalidade; sabe
também que, defendendo o direito em geral, luta pelo seu direito pessoal. Quando este
modo de ver, quando este sentimento pela legalidade estrita reina em um lugar, em vão se tentaria
descobrir esses fenômenos aflitivos que aparecem em outros pontos tantas vezes.
É assim que o povo não tomará o partido do criminoso ou do transgressor da lei a
quem a autoridade quer perseguir, em outros termos, não verá nos poderes públicos o inimigo
nato dos povos.
Cada qual não ignora que a causa do direito é a sua própria causa e só o criminoso
simpatizará com o criminoso; o homem honrado, ao contrário, de boa vontade ajudará a polícia e
as autoridades em suas pesquisas.
Tiraremos, entretanto, a conseqüência de tudo que temos dito. Esta resume-se em uma
frase bem simples: — não existe para o Estado, que quer ser considerado forte e inquebrantável
no exterior, bem mais digno de conservação e de estima que o sentimento do direito na Nação.
É este um dos deveres mais elevados e mais importantes da pedagogia política.
O bom estado e a energia do sentimento legal do indivíduo constituem a fonte mais
fecunda do poder e a garantia mais segura da existência de um país, tanto em sua vida exterior
como na interior.
O sentimento do direito é como a raiz da árvore; se a raiz se danifica, se se alimenta
em terreno árido ou se se estende por entre rochas, a árvore será raquítica, os frutos ilusórios,
bastando uma pequena borrasca para fazê-la rolar pelo chão; mas o que se vê é apenas a copa e o
tronco, enquanto que a raiz se oculta na terra dos olhares do observador frívolo.
E aí, onde muitos políticos não acham digno descer, é que age a influência destruidora
das leis viciadas e injustas e as más instituições do direito exercem influência sobre a força moral
do povo.
Aqueles que se contentam com observar as coisas superficialmente e que não querem
ver senão a beleza da copa, não podem ter a menor idéia do veneno que sobe desde a raiz à
ramagem superior.
É por isso que o despotismo sabe bem onde deve descarregar o seu mortífero machado
para derrubar a árvore; antes de cortar a copa procura destruir a raiz, dirigindo assim certeiros
golpes contra o direito privado, desconhecendo e atropelando o direito do indivíduo, — é assim
que tem começado todo o despotismo.
E, quando se terminar esta obra, a árvore cai mirrada e sem seiva.
Eis aí porque se deve tratar sempre, nessa esfera, de opor grande resistência à injustiça.
Os romanos andavam sabiamente quando, por um atentado ao pudor e à honra de uma
mulher, acabaram de uma vez com a monarquia e mais tarde com o decenvirato.
Destruir no camponês a liberdade pessoal, esmagando-o com impostos e vexames,
colocar o habitante das cidades sob a tutela da polícia, não lhe permitindo fazer uma viagem sem
o obrigar a apresentar a cada passo o passaporte, encadear o pensamento do escritor por meio de
leis injustas, repartir os impostos arbitrariamente e obedecendo ao favoritismo e à influência, são
princípios tais que um Machiavel não poderia inventar melhores meios para matar num povo todo
o sentimento civil, toda a força moral e assegurar ao despotismo uma tranqüila conquista.
Cumpre considerar que a porta por onde entram o despotismo e a arbitrariedade serve
também para favorecer as irrupções do inimigo estrangeiro; e, em último caso, talvez
demasiadamente tarde, todos os sábios reconhecerão que o meio mais vigoroso para proteger a
nação contra a invasão estrangeira é a força moral unida ao sentimento do direito despertado no
povo.
Na época feudal, em que o camponês e o habitante das cidades eram submetidos à
arbitrariedade e ao absolutismo dos senhores, foi quando o império alemão perdeu a Alsácia e
Lorena; -como poderiam estas províncias experimentar um sentimento pelo Império se o não
tinham para si mesmas?
Somos unicamente nós os culpados; se nos aproveitamos tardiamente das lições da
história, nada tem ela que ver com que não a tivéssemos em tempo compreendido, porque ela nolas dá sempre de modo que possamos aproveitá-las.
A força de um povo corresponde à do seu sentimento do direito; é, pois, velar pela
segurança e força do Estado o cultivar o sentimento legal da Nação não só no que se refere à
escola e ensino, como também no que toca à aplicação prática da justiça em todas as situações e
momentos da vida.
Não é suficiente, portanto, ocupar-se do mecanismo exterior do direito, porque pode
estar de tal modo organizado e dirigido que impere a mais perfeita ordem e que o princípio que
consideramos como o mais elevado deva ser completamente desprezado.
A servidão, o direito de proteção que pagava o judeu e tantos outros princípios e
instituições de épocas passadas, eram, em verdade, às vezes, conformes à lei e à ordem.
Não é menos verdade, entretanto, que essas instituições estavam em profunda
contradição com as exigências de um sentimento legal, digno e elevado e que prejudicavam
talvez mesmo mais o Estado que o camponês, o habitante das cidades, o judeu sobre que recaía o
peso da injustiça.
Determinando de uma maneira clara e precisa o direito positivo, desviando de todas as
esferas do direito, não só do civil como das leis de polícia e da legislação administrativa e
financeira, tudo o que pode implicar com o sentimento do direito são e digno do homem;
proclamando a independência dos tribunais e reformando o processo, — chegar-se-á seguramente
a aumentar a força do Estado, muito melhor que votando o mais elevado dos orçamentos
militares.
Toda a disposição arbitrária ou injusta, emanada do poder público, é um atentado
contra o sentimento legal da Nação e, por conseqüência, contra a sua própria força.
É um erro contra a idéia do direito que recai sobre o Estado, que há de pagá-lo com
excesso e usura, podendo até por diversas circunstâncias chegar a custar-lhe a perda de uma
província.
E, tanto assim é, que deve estar obrigado o Estado a não colocar-se, nem por essas
razões de conveniências, ao abrigo de tais erros; porquanto cremos que, ao contrário, o mais
sagrado dever do Estado é cuidar e trabalhar para a realização desta idéia por ela mesma.
Entretanto pode haver aí uma ilusão de doutrinário e não censuraremos o homem de
Estado prático que responda a semelhante questão, encolhendo os ombros.
Por outro lado, é por isso também que temos suscitado a face prática da questão,
porque a idéia do direito e a do interesse do Estado se dão aqui as mãos.
Não há sentimento legal, por firme e são que seja, que possa resistir à prolongada
influência de um mau direito, porque se embota e se extingue devido à essência do direito, que,
como já dissemos por múltiplas vezes, consiste na ação.
A liberdade de ação é para o sentimento legal o que o ar é para a chama; se a diminuís
ou paralisais, acabareis com tal sentimento.
CAPÍTULO V
O direito alemão e a luta pelo direito
Poderíamos dar por concluída aqui a nossa tarefa, mas permita-se-nos, entretanto,
tratar de uma questão que está intimamente relacionada com a matéria de que temos falado; e esta
é a de saber em que proporção o nosso direito atual, ou melhor, o nosso atual direito romano, tal
qual está introduzido na Alemanha e do qual ousamos unicamente ocupar-nos, corresponde às
condições que temos até aqui desenvolvido.
Não vacilamos em afirmar categoricamente que não corresponde de modo algum e que
está muito longe das pretensões legítimas de um homem em que o sentimento legal está
perfeitamente são.
Não somente porque, em muitos casos que a prática oferece, não tenha encontrado
solução, mas porque reina em seu conjunto um modo de ver completamente contrário a esse
idealismo, que acima representamos, como constituindo a natureza e o bom estado do sentimento
legal.
O nosso direito civil não é o que menos reproduz essa consideração ideal que nos
mostra em uma lesão não só um ataque contra a propriedade, mas também contra a própria
pessoa.
Não tem para todas as violações do direito, salvo o ataque à honra, outra medida que a
do valor material, pelo que não é mais que a expressão de um grosseiro e puro materialismo.
Mas dir-se-á: — o que deve garantir o direito do que for violado em sua propriedade,
senão o objeto em litígio ou o seu valor?
Admitindo-se a justiça desta objeção, imperioso se tornava chegar à conclusão de que
não poderia ou não devia ser castigado o ladrão que tivesse restituído o objeto roubado.
Mas, replicar-se-á ainda, o ladrão não ataca somente a pessoa lesada, mas também as
leis do Estado, a ordem legal e a lei moral.
Queremos que se nos diga se não acontece o mesmo com o devedor que nega de má fé
o empréstimo que se lhe fez, o mandatário que abusa indignamente valendo-se da confiança em si
depositada.
É reparar-se a lesão que se fez ao nosso sentimento legal, o não conceder-nos, depois
de longo pleito, senão o que desde o princípio nos pertencia?
Mas, afora esse desejo tão motivado de se obtém satisfação, — não é irritante o
desequilíbrio natural que existe entre as partes?
O perigo que a ameaça de perder a demanda consiste para um em perder o bem que era
seu e para o outro na entrega do objeto que injustamente conservava; no caso contrário, um teria
a vantagem de nada haver perdido, e o outro de se haver enriquecido à custa do seu adversário.
Não é isto provocar a maior das falsidades e conceder um prêmio à deslealdade?
Em verdade, não fazemos senão caracterizar o nosso direito, e mais além teremos
ocasião de mencionar fatos em nosso apoio; porém crêmos que facilitará a prova, o considerar
desde já o ponto de vista sob que se encarava esta questão no direito romano.
A este respeito distinguimos três graus no seu desenvolvimento.
O sentimento do direito é no primeiro período de uma violência desmesurada, e se
posso assim exprimir-me, direi que se não conseguiu dominar: — é o antigo direito; no segundo,
reina ostentando uma grande força de moderação: — é o direito intermediário; no terceiro
enfraquece-se e estiola-se: — é o fim do império, e particularmente — o direito de Justiniano.
Em poucas palavras resumiremos o resultado das investigações que fizemos e
publicamos em outra obra, sob a forma como esta questão aparece, no primeiro grau do seu
desenvolvimento.
A irritabilidade do sentimento do direito nesta época era tal, que toda a lesão, todo o
ataque ao direito pessoal se considerava como uma injustiça subjetiva, sem se tomar em
consideração a inocência ou o grito de culpabilidade do agressor.
Assim o querelante exigia, pelo próprio fato da ofensa, daquele que era formalmente
culpado como daquele que somente o era materialmente, — uma satisfação.
Aquele que negava uma dívida provada, evidente (nexum) e o que houvesse causado
um dano em alguma coisa do seu adversário, pagava, se perdia, o duplo.
Do mesmo modo o que em ação de reivindicação retirasse os frutos como se fosse o
proprietário, se fosse condenado devia restituir o dobro e por haver perdido o litígio era ainda
obrigado a sacrificar a soma caucionada como fiança ou multa (sacramentum).
Não só o querelante como o demandista vencido estava sujeito à mesma pena, e isto
porque reclamava coisa que não lhe pertencia.
Se se excedia um pouco na avaliação da quantia que reclamava em juízo, ainda quando
fosse de dívida certa, retirava-se e anulava-se a demanda.
Para o direito novo passou alguma coisa dessas instituições e princípios do antigo, mas
tudo o que é próprio do direito intermediário tem um espírito completamente diferente que pode
ser assim caracterizado: — é a aplicação e o emprego de uma grande moderação, em todos os
casos em que se trata de lesões ao direito privado.
Distingue-se rigorosamente a injustiça objetiva da subjetiva: a primeira supõe apenas a
restituição do objeto, a segunda acarreta mais uma punição que consiste ou em multa ou em
infâmia, sendo esta aplicação proporcional das penas precisamente um dos pensamentos mais
puros do direito romano deste período.
Os romanos tinham um sentimento do direito demasiadamente justo para permitir ao
depositário que tivesse a perfídia de negar ou de deter injustamente o depósito, ao mandatário ou
ao tutor que houvesse abusado de sua posição de confiança para servir os seus interesses, ou que
abandonasse propositadamente o cumprimento de seus deveres, que pudessem salvar a sua
responsabilidade restituindo o objeto, segundo a hipótese, ou pagar os danos e prejuízos.
Exigiam ainda que o culpado fosse punido, primeiramente como satisfação pessoal, e
depois como meio de intimidação.
Entre as penas mais em uso estava a infâmia, pena gravíssima, porque acarretava não
só a perda dos direitos do cidadão, como também a morte política.
Aplicava-se principalmente quando a lesão revestia o caráter de uma deslealdade
especial. Também havia a pena pecuniária, da qual se fazia um uso muito mais freqüente.
Havia-se estabelecido um completo arsenal de tais meios de intimidação para aquele
que intentasse um processo ou uma causa injusta.
Estas penas consistiam a princípio em frações do objeto em litígio, 1/10, 1/5, 1/3, 1/2,
elevando-se logo até muitas vezes abranger o seu valor, e se perdiam, em certos casos, ao
infinito, não sendo possível formar um juízo da obstinação do adversário; isto é — o que perdia,
devia pagar tudo o que o adversário exigisse, sob juramento, como satisfação suficiente.
Havia em particular duas formas de processo: — “Os interditos proibitórios do pretor e
as ações arbitrárias” — que tinham por fim colocar o acusado na necessidade de desistir ou
aguardar até a ser reconhecido como culpado de ter violado a lei, com deliberado propósito e,
como tal, ser tratado.
Obrigavam-no, quando persistia em sua resistência, ou em seu ataque, a não limitar a
sua ação contra a pessoa do acusador, mas também a agir contra a autoridade, daí resultando que
não era do direito do demandista que se tratava, mas da própria lei, que, por seus representantes,
se achava em questão.
O fim que se propunha, aplicando tais penas, não era outro senão a que se queria
alcançar em matéria criminal: — por um lado, o fim puramente prático de colocar os interesses
da vida privada ao abrigo desses atentados não compreendidos sob o nome de crimes; por outro
lado o fim ideal de fazer solidárias a honra e a autoridade da lei, dando satisfação ao sentimento
do direito que tinha sido lesado, não só na pessoa que foi diretamente atacada, como também nas
de todos que dele tivessem conhecimento.
O dinheiro não era, pois, o fim que se tinha em vista, mas um meio para atingi-lo.
Este modo de encarar a questão, que o direito romano intermediário tinha, é, a nosso
ver, maravilhoso.
Afastando-se por igual dos dois extremos, do velho direito que colocava a injustiça
objetiva no mesmo plano que a subjetiva, e do nosso direito atual que, avançando em direção
contrária, rebaixara esta ao nível daquela, satisfazia por completo as legítimas pretensões que
pudesse ter o sentimento do direito mais justo, porque não se contentava em separar as duas
espécies de injustiças, mas sabia discernir e reproduzir, com minuciosidade e inteligência, a
forma, a maneira, a gravidade e todos os diversos aspectos da injustiça subjetiva.
Ao chegar ao terceiro período ou grau do desenvolvimento do direito romano, tal qual
foi fixado nos Institutos de Justiniano, não podemos deixar de recordar e admirar a influência e
importância do direito de sucessão na vida dos povos, como na dos indivíduos.
Qual seria, realmente, o direito nesta época se ela devesse estabelecê-lo por suas
próprias forças?
Do mesmo modo que certos herdeiros, que são incapazes de procurar-se o que lhes é
estritamente necessário, vivem à custa das riquezas acumuladas pelo testador, assim também uma
geração decrépita e débil encontra no capital intelectual acumulado pela idade vigorosa, que a
precedera, com que subsistir por largo lapso de tempo.
Não pretendemos dizer que goza tal geração, sem esforço algum, do trabalho das
outras, mas fazemos notar que está na natureza das obras, das instituições do passado, influir
durante certo tempo e fazer reinar na vida o espírito que presidira ao seu nascimento; contêm, em
uma palavra, certa força latente que o contrato e a familiaridade muda em força ativa.
É neste sentido que o direito privado da República onde se havia refletido este
sentimento enérgico e vigoroso que, para o direito, havia possuído o antigo povo de Roma, pode
servir ao Império, durante algum tempo, de fonte vivificadora; e nesse grande deserto da última
época era o único oásis por onde corria, entretanto, um regato de água fresca e cristalina.
Mas o despotismo assemelha-se a essa rajada ardente que não permite a planta alguma
desenvolver-se; e o direito privado, não podendo por si só fazer prevalecer e manter um espírito,
que por todos era desprezado, também devia ceder, do mesmo modo que todos os demais ramos
do direito, ao novo espírito do tempo.
E este espírito da nova época ostenta-se com traços verdadeiramente estranhos!
Não se revelam nele os verdadeiros sinais do despotismo, a severidade e a dureza; pelo
contrário, oferece outros caracteres que exprimem a doçura e a humanidade.
Entretanto essa própria doçura é despótica, isto é — o que ela dá a um, tira-o de outro:
-é a doçura do arbítrio e do capricho e não a da humanidade, — é a desordem da crueldade.
Não exibiremos aqui as provas sobre as quais poderíamos apoiar esta opinião; é
suficiente fazer sobressair um traço muito particular e significativo desse caráter e que encerra
um opulento manancial histórico: tal é o esforço feito para melhorar a posição do devedor à custa
do credor.
Podemos avançar esta opinião como geral.
Simpatizar com o devedor é o sinal mais patente pelo qual se pode reconhecer que uma
época está abatida; e ela entretanto chama a essa simpatia — humanidade.
Em uma idade de pleno vigor, trata-se, antes de tudo, de que seja feita justiça ao
credor.
O direito de hipoteca privilegiada que Justiniano concedeu à esposa, vem igualmente
dessa humanidade de seu coração, de que ele não podia prescindir e que o enchia às vezes de um
assombro indescritível sempre que decretava uma nova disposição; mas essa humanidade era
semelhante à de S. Chrispim furtando o couro dos ricos para fazer calçado para os pobres.
Voltemos agora ao nosso direito romano atual.
E, após tudo o que temos dito, somos obrigados a formar um juízo sem poder fundá-lo
aqui como desejaríamos, mas ao menos apresentaremos o que pensamos acerca da questão. Em
poucas palavras resumiremos o nosso pensamento dizendo que encontramos, no conjunto da
história e em toda a aplicação do direito romano moderno, uma notável preponderância, por mais
que as circunstâncias a tenham tornado até certo ponto necessária, de erudição pura sobre o
sentimento legal do nacional, e sobre a prática e a legislação que contribuem ordinariamente de
um modo exclusivo a formar e a desenvolver o direito.
É semelhante erudição, um direito estrangeiro, escrito na língua estranha, introduzido
pelos sábios, que são os únicos que podem perfeitamente compreendê-lo, e exposto sempre à
influência contrária dos dois interesses opostos que lutam freqüentemente: o interesse da ciência
pura e simplesmente histórica, e o da aplicação prática, junto ao desenvolvimento do direito.
A prática, por outro lado, não tem força suficiente para dominar completamente o
espírito do assunto; ela está, portanto, condenada a uma dependência perpétua, a uma eterna
tutela da teoria, dai se originando o fato de vencer o particularismo tanto na legislação como na
administração da justiça, tornando débeis os ensaios que se faziam para se chegar à centralização.
Deveríamos admirar-nos de que semelhante direito estivesse em profundo desacordo
com o sentimento da Nação e que o direito não estivesse mais ao alcance do povo nem o povo ao
alcance do direito?
Detestamos as instituições e os princípios que os habitantes de Roma explicavam
perfeitamente, porque não têm eles entre nós a mesma razão de ser, e jamais haverá no mundo
um modo de distribuir justiça que tenha mais poder do que este, para diminuir no povo toda a
confiança no direito e toda a crença em sua existência.
Com efeito, que deve pensar o homem do povo cujo juízo é simples e reto, se o juiz
diante do qual se apresenta com um título, provando que seu adversário reconhece dever-lhe cem
talheres, declara que o signatário não está obrigado, porque nisso há uma cautio indiscreta?
Que pode ainda pensar, quando um título no qual se estabelece textualmente que a
dívida teve por origem um empréstimo anterior, não possui força probante senão depois de dois
anos?
Não terminaríamos, se quiséssemos citar fatos isolados.
Preferimos concretizar, assinalando o que não podemos chamar de outro modo senão
desvarios da nossa jurisprudência no direito civil, tão fundamentais que são um verdadeiro
manancial de injustiças.
O primeiro consiste em que a nossa moderna jurisprudência jamais admitiu o
pensamento tão simples que temos desenvolvido e que se resume dizendo: — não se trata em
uma lesão do direito de um valor material, mas de uma satisfação ao sentimento legal do que foi
lesado.
O nosso direito não conhece outra medida que a do materialismo mais baixo e
grosseiro, não encara a questão senão no ponto de vista do interesse pecuniário.
Lembramo-nos de ter ouvido falar de um juiz que, para desembaraçar-se das chicanas
do juízo sobre coisa de pouca importância, ofereceu-se para pagar do seu bolso ao demandista a
importância do litígio e se irritara bastante quando não fora aceita a sua proposta.
Este sábio magistrado não podia compreender como o litigante não tinha em vista uma
quantia em dinheiro, mas o seu direito.
Entretanto ele não era, em realidade, muito culpado, porque poderia lançar sobre a
ciência a censura que se lhe houvesse dirigido.
A condenação pecuniária, que foi para o magistrado romano o meio mais poderoso de
administrar justiça ao sentimento ideal que havia sido lesado, sob a influência da nossa teoria das
provas, tornou-se um dos expedientes e recursos mais tristes de que a autoridade tem podido
servir-se para tentar e prevenir a injustiça.
Exige-se que o acusador prove até ao último cêntimo o interesse pecuniário que o
processo tem para si.
Julguem, pois, no que se converte a prática do direito quando um interesse desta
natureza não está em jogo.
Um locador recusa a um locatário a entrada de um jardim que este reservou por
contrato para seu gozo; perguntamos agora: — como conseguirá dizer o primeiro o valor em
dinheiro de algumas haras passadas pelo segundo tomando fresco dentro desse jardim?
Um proprietário arrenda a uma autra pessoa um alojamento que já havia alugado, mas
que não havia sido ainda ocupado, e o primeiro arrendatário deve-se contentar durante seis meses
com um aposento miserável, antes de achar outro conveniente; que se avalie esse dano em
dinheiro, ou melhor, que se atenda à indenização que o tribunal concede.
Em França seriam exigidos mil francos; na Alemanha, absolutamente nada, porque o
juiz alemão responderá que os incômodos, por mais graves que sejam, não podem ser apreciados
em monetário.
Suponhamos ainda um professor que está empregado em um colégio particular, porém
que encontra mais tarde melhor colocação, quebra o contrato, sem que se lhe possa achar de
momento um sucessor; — como se poderá avaliar em dinheiro o dano causado aos discípulos, por
haverem sido privados durante algumas semanas, ou mesmo meses, das lições de francês ou de
desenho?
E ainda mais: — como se compensaria a perda material que o diretor do
estabelecimento sofrera?
Suponhamos enfim um cozinheiro que deixa sem razão o seu serviço e que pela
impossibilidade de o substituir põe seus patrões em grandes dificuldades; como avaliar este
prejuízo em dinheiro?
O nosso direito não concede em todos estes casos proteção alguma, porque o que ele
dá tem tanto valor como uma noz para quem já não tem dentes.
Este é, pois, o reinado da ilegalidade; e, o que há em todo ele de mais penoso é
vexatório não é a imperfeição em que se encontra, mas o sentimento amargo de que o bom direito
pode ser calcado aos pés sem que haja meios de remediá-lo.
Não se deve acusar desta falta de coação o direito romano, porque, por mais que tenha
reconhecido, como constante princípio, que o juízo definitivo contivesse somente uma pena
pecuniária, tem sabido aplicá-la de modo que satisfaça muito especialmente não só os interesses
materiais, como também todos os mais interesses legítimos.
A condenação a pagar uma importância em dinheiro era o meio coercitivo que o juiz
empregava nos negócios civis para assegurar a execução de suas prescrições.
O réu que recusava fazer o que o juiz lhe impunha, não se libertava satisfazendo o
valor pecuniário da obrigação a que estava sujeito, mas essa obrigação convertia-se para ele em
uma pena, e é precisamente este resultado do processo o que assegurava àquele que tinha sido
lesado uma satisfação, a qual ele estimava muito mais que a soma em dinheiro.
O nosso direito jamais concede esta satisfação e não a compreende, porque não vê
além do interesse material.
Na prática também existem as penas que em Roma se aplicavam em matéria de direito
privado, originando-se isto da insensibilidade da nossa legislação atual pelo interesse ideal que é
atingido em uma lesão do direito.
Hoje a infâmia já não está ligada à infidelidade do mandatário ou do depositário. O
maior tratante vive em nossos dias completamente livre e impune, com tanto que seja bastante
sagaz para evitar tudo o que poderia fazê-lo cair sobre a sanção do código criminal.
Verdade é que, em compensação, encontra-se ainda nos nossos livros de direito que a
mentira frívola pode ser castigada, mas isto na prática é raramente aplicado.
O que é isto, em uma palavra, senão que a injustiça subjetiva está colocada entre nós
no mesmo nível da injustiça objetiva?
O nosso direito não estabelece diferença alguma entre o devedor que nega de má fé
uma dívida e o herdeiro que de boa fé a nega, entre o mandatário que nos enganou e o que faltou
não voluntariamente, enfim, entre a lesão premeditada do meu direito e a ignorância ou
incapacidade. O processo move-se sempre na esfera do interesse material.
Os nossos legistas atuais acham-se tão longe de crer que a balança de Themis deve, no
direito privado como no direito penal, pesar a injustiça e não somente o interesse pecuniário, que
fazendo esta advertência devemos contar com a objeção daqueles que afirmam que está aí
precisamente a diferença que existe entre o direito penal e o direito privado.
Desgraçadamente será isto uma verdade para o direito atual. Mas será também uma
verdade para o direito em si? — é o que negamos.
Antes de tudo, seria preciso provar que há uma parte do direito na qual a idéia da
justiça não deve realizar-se em toda a sua extensão; ora, quem diz justiça, diz realização da idéia
de culpabilidade.
O segundo desses erros, verdadeiramente funestos em nossa moderna jurisprudência,
consiste na teoria da prova que ela tem estabelecido.
Estamos inclinados a crer que não foi descoberta senão para aniquilar o direito. Se
todos os devedores do mundo se tivessem conjurado para eliminar e frustrar o direito dos
credores, não haveriam deparado melhor meio que esse sistema de provas; debalde se procuraria
uma matemática que oferecesse outra mais exata.
É especialmente nas demandas de perdas e danos que se chega ao supremo grau do
incompreensível.
Recentemente tem-se pintado em alguns escritos e de um modo tão surpreendente a
desordem odiosa, que para empregar a expressão de um legista romano diremos, — “reina aqui
no direito, sob o nome de direito,” — e o contraste que oferece o modo inteligente de obrar dos
tribunais franceses, que não temos necessidade de acrescentar uma palavra; entretanto, não
podemos deixar de exclamar: — desgraça para a acusador e coragem no acusado!
Resumindo, pode afirmar-se que esta exclamação é a palavra de ordem da nossa
jurisprudência teórica e prática.
Tem-se avançado muito neste caminho que iniciara Justiniano.
Não é o credor, mas o devedor quem excita a sua simpatia e prefere sacrificar o direito
de cem credores a expor-se a tratar com demasiada severidade um devedor.
Quem não for versado no direito, apenas poderá crer que tenha sido possível todavia
aumentar esta parcial ilegalidade que nos oferece a falsa teoria dos legistas, que se ocupam do
direito civil e do processo.
Entretanto os criminalistas anteriores são os que se têm extraviado até o ponto de
cometer o que se pode chamar um atentado contra a idéia do direito, e a culpa mais grosseira de
que a ciência se tem tornado capaz contra o sentimento legal.
Queremos falar desta vergonhosa paralisação do direito de defesa legítima, desse
direito primordial do homem que é, como disse Cícero, uma lei que a própria natureza lhe impôs
e que os legisladores romanos julgavam não poder ser desconhecida por legislação alguma (Vim
vi repellere omnes leges omniaque jura permittunt).
Como poderiam nos últimos séculos e em nossos dias os jurisconsultos persuadir-se do
contrário!
Verdade é que os novos sábios reconhecem esse direito em princípio, mas cheios dessa
simpatia pelo criminoso que os legistas do direito civil e do processo tinham pelo devedor,
procuram limitá-lo e enfraquecê-lo na prática e de tal arte que o criminoso é, na maior parte dos
casos, protegido com detrimento do atacado que fica sem defesa.
Em que abismo profundo não vai perder-se o sentimento da personalidade, quando se
desce na literatura a esta doutrina! Que esquecimento da dignidade humana!
Que desprezo, que perturbação do sentimento simples e justo do direito!
O homem que é ameaçado em sua pessoa ou em sua honra deve, pois, retirar-se e
fugir; o direito deve dar lugar a injustiça; esses sábios só estão em desacordo quanto à questão de
saber -se os militares, os nobres e outras pessoas de alta condição devem também retirar-se e
fugir.
Um pobre soldado que para obedecer a esta ordem se havia retirado duas vezes, mas
que, perseguido pelo seu adversário, havia feito resistência e o havia morto, — “era, para dar-lhe
uma lição eficaz e para oferecer aos outros um salutar exemplo” — simplesmente condenado à
morte.
Concede-se, entretanto, às pessoas de uma posição elevada ou de alto nascimento, o
direito que se dava aos militares de empregar para sua defesa uma resistência legítima; mas,
acrescenta um destes autores, não deveriam chegar até o ponto de matar o seu adversário, se
apenas se tratasse de uma injúria verbal.
A outras pessoas, como aos funcionários do Estado e da justiça civil, contenta-se
apenas em dizer-lhes: — “que não são, apesar de tudo, e a despeito das suas pretensões, mais que
os homens da lei, não tendo outro direito que as leis comuns do país.”
Ainda consideram pior os comerciantes.
“Os comerciantes, dizem, os mais ricos, não fazem exceção à regra, a sua honra
consiste no seu crédito; podem, pois, perfeitamente, sem perder a sua honra ou a sua reputação,
sofrer que se lhes dirija algumas injúrias, e, se pertencem à última classe, que se lhes aplique
uma bofetada...”
Se o transgressor da lei for um camponês ou um judeu, deve-se-lhes impor a pena que
existe contra os que recorrem à defesa pessoal, contanto que os outros devam ser castigados do
modo “mais ligeiro que possível for.”
O modo que se considera adequado para excluir o direito de defesa, quando se trata de
uma questão de propriedade, é ainda mais edificante.
A perda da propriedade, dizem uns, é exatamente como a da honra, — uma perda
reparável, ora pela reivindicação, ora pela ação — injuriarum.
Mas, se o ladrão fugiu e é tão conhecido como o seu domicílio? — Que importa,
respondem os sábios, se há sempre a reivindicação e é somente devido a circunstâncias “fortuitas
e inteiramente independentes da natureza do direito de propriedade que a acusação não chega
sempre até o fim que se propõe.”
O homem que deve entregar sem resistência toda a sua fortuna, que leva em papel,
pode, pois, consolar-se; tem sempre a propriedade e o direito de reivindicação;
o ladrão não goza senão da posse real!
Outros permitem, quando se trata de uma soma considerável, empregar a força, mas
somente como coisa extrema e não dizem que o atacado deve também neste caso, apesar de sua
dor vivíssima, calcular escrupulosamente a força que deve empregar para repelir a agressão.
Se inutilmente chegasse a quebrar o crânio ao seu adversário, enquanto, se houvesse
estudado a dureza do osso, teria aplicado ao ladrão um golpe menos violento, mas suficiente para
atemorizá-lo, seria responsável por isso.
Se um homem, ao contrário, não está exposto a perder senão objetos de pequeno valor,
um relógio de ouro, por exemplo, ou uma bolsa que só contém alguns tálers, deve de todo absterse de fazer o menor dano ao que o ataca.
Com efeito, o que é um relógio em comparação ao corpo, à vida e os membros
sagrados de um homem?
Um é um bem que se pode facilmente substituir; do outro é inteiramente irreparável a
sua perda.
Verdade essa que ninguém negará, entretanto esquecem-se de que o relógio é meu e
que os membros pertencem ao ladrão. Estes bens têm, sem dúvida, para ele um valor inestimável,
mas para mim absolutamente nenhum, restando-me sempre o direito de pedir que me restituam o
meu relógio.
Eis aqui vários desvarios e extravagâncias da ciência!
Que profunda humilhação não devemos sentir vendo que esse sentimento simples, tão
conforme e justo com o verdadeiro sentimento do direito, que vê em todo ataque (não fosse o seu
objeto mais que um relógio) um atentado a todo o direito da personalidade e a própria
personalidade, tenha desaparecido de tal modo da ciência que pôde consentir o sacrifício do
direito, levantando a injustiça à altura de um dever!
Admirar-nos-á que a covardia e o sofrimento da injustiça fossem o caráter da nossa
história nacional, em uma época em que a ciência ousava emitir semelhantes doutrinas?
Rejubilemos por viver em uma época bem diferente.
Tais teorias são hoje impossíveis; não podem medrar mais, senão nos charcos em que
se arrasta uma Nação que esteja igualmente apodrecida, quer sob o ponto de vista político, quer
sob o ponto de vista do direito.
Esta doutrina da covardia, da obrigação de sacrificar o ouro que se nos quer arrancar, é
o ponto da ciência mais oposto à teoria que temos defendido e que faz, ao contrário, da ardente
luta pelo direito, um estrito dever.
Um filósofo de nossos dias, Herbart, emitiu acerca da base do direito uma opinião que
não é tão falsa, mas que se encontra bem longe dessa altura ideal a que se eleva o homem, cujo
sentimento do direito é completamente são.
Herbart descobre o fundamento do direito nesta causa estética: — o desprazer da luta.
Temos demonstrado aqui quanto é insustentável esta tese, e felicitarmos por nos
podermos referir aos escritos de um dos nossos mais apreciados amigos. Mas, se nos fosse dado
apreciar o direito sobre este ponto de vista, não sabemos na verdade se em vez de fazer consistir o
que o direito nos oferece de estético na exclusão da luta o colocaríamos precisamente em sua
existência.
Tenhamos a coragem de emitir uma opinião completamente oposta aos princípios
desse filósofo, reconhecendo-nos francamente culpado de amar a luta.
Certamente que não admitimos uma luta sem motivo, mas sim esse nobre combate no
qual o indivíduo se sacrifica, com todas as suas forças, pela defesa do seu direito ou da Nação.
Aqueles que criticam neste sentido o amor à luta, têm que romper com toda a nossa
nobre literatura e toda a história das artes, desde a Ilíada de Homero e as famosas esculturas dos
Gregos até os nossos dias.
Não haverá talvez matéria que tenha atraído mais a literatura e as belas artes de que a
luta e a guerra; não será preciso investigar agora onde o sentimento estético está mais satisfeito,
vendo esse desenvolvimento supremo da humana potência que a escultura e a poesia têm
glorificado numa e noutra.
Nem sempre é a estética, mas a moral que nos deve dizer o que seja a natureza do
direito; e longe de repelir a luta pelo direito, a moral proclama-a como um dever.
Este elemento de luta e de combate que Herbart quer eliminar da sua idéia, é, pois,
uma parte integrante e inseparável da sua natureza.
A luta é o trabalho eterno do direito.
Se é uma verdade dizer: — Comerás o teu pão com o suor da tua fronte, — não o é
menos acrescentar também: — É somente lutando que obterás o teu direito.
Desde o momento em que o direito não está disposto a lutar sacrifica-se, e assim
podemos aplicar-lhe a sentença do poeta: É a última palavra da sabedoria
Que só merece a liberdade e vida Aquele que cada dia sabe ganhá-las.
FIM
NOTAS
[1]
São notáveis, neste assunto, as observações que o nosso autor aponta em seu
Espírito do Direito Romano, t. III, § 42 e t. IV, § 69. Ali se explica a deficiência com que aqueles
que, sendo filósofos e não jurisconsultos, tratam dos problemas jurídicos, a razão de suas
abstrações nos princípios e pobreza de seus detalhes quando chegam à parte especial das
diferentes instituições jurídicas. O próprio Kant, sem exceção, abraça com ardente fé, neste
ponto, as pegadas do Direito romano, e todo o seu trabalho, acrescenta Ihering, se reduz a invocar
as razões filosóficas para explicar em princípio as instituições do Direito, relações e
classificações que assim foram tidas por motivos históricos.
Em relação ao vicioso estudo da filosofia do direito, partindo de princípios metafísicos
já conhecidos, fora da filosofia do próprio direito, eram luminosas as explicações do ilustre Giner
de los Rios na sua cadeira da Central.
Atualmente o governo espanhol sancionou o tradicional erro que tornou impossível
uma filosofia do direito digna de um jurisconsulto, decretando que para cursar esse programa
necessita-se ter sido aprovado nos cursos de Metafísica na faculdade de Filosofia e Letras.
[2]
Todos o são. A finalidade jurídica nega-se para os demais, segundo a natureza. O
próprio Ihering restringe o direito ao que existe entre os homens, mas como este assunto, pela sua
importância, é indiferente na questão presente, deixo de defendê-lo agora.
[3]
O Direito antigo, cap. III.
[4] No referido livro de Sumner Maine se demonstra que, por meio do que se chama —
“ficção do direito” — também a jurisprudência inglesa se vê obrigada a uma atividade jurídica
que debalde pretende ocultar suas positivas reformas. Vide cap. II.
[5]
Não se tem atualmente por exata a característica que se dava para distinguir os
sabinianos dos proculeianos. Em ambos os lados houve espíritos reformistas, sendo o direito
pretório em rigor obra dos jurisconsultos.
Sobre o assunto, vide Mayas, Curso de Direito Romano, 4a ed., t. I. — Introdução
histórica.
Estranhará aquele que se deixar levar por lugares comuns, aceitos sem reflexão, que se
atribua ao jurisconsulto romano o caráter de reformista. Entretanto toda a história do estrito
direito e sua transformação demonstram o que acabo de afirmar.
O romano era sabiamente reformista.
[6]
Sumner Maine, ob. cit., cap. I.
[7]
Deve-se recordar que no conceito explicado, o direito é aqui o preceito do próprio
[8]
Esp. del Dir. Rom., t. II, § 26 e t. xv, § 60.
direito.
[9]
Diz-se que um rei constitucional pode pouco; o fato de ser incompátível com uma
democracia real demonstra o contrário. A iniciativa que tem na escolha de ministros
responsáveis, é um poder muito lato, manejado por hábil mão e vontade poderosa; — a
inviolabilidade é a sanção desse poder de iniciativa.
[10]
Obr. cit., t. II, § 27.
[11]
Pois há muito mais direito político do que aquele que assim é considerado e
julgado como tal.
[12]
Obra cit., loc. cit. em uma nota.
[13] Sirva um exemplo vulgar, quase cômico, e não obstante de grande ensinamento.
Não só quando o governo se encarrega de nomear alcaides para os povos, mas quando
estes os elegem, acontece recair o cargo em pessoas que o devem a uma influência estranha aos
interesses jurídicos de que se trata. Os abusos da autoridade logo se ostentam; ninguém se
escandaliza e nem se lembra que a eleição não fora realizada com a previsão necessária para
evitar estes abusos. E, não obstante, um alcaide pode ser um tirano; medidas draconianas de que
não se tem memória nos anais do império as repetem todavia muitos senhores alcaides.
[14]
Observemos o que somente sucede com o nosso célebre projeto do Código Civil.
Há uma comissão de muitos poucos senhores advogados, todos residentes em Madri, ou quase
todos, para não afirmar o que não sei ao certo, a qual apresentará em algum dia um projeto de
legislação geral em matéria de direito civil, conforme um sistema preferido por esses poucos
senhores de Madri. As Cortes discutirão esse projeto, como se discutem os orçamentos, a lei
hipotecária, até o Código Penal, e mesmo a Constituição de 1878, isto é — sem discussão;
aprovar-se-á o projeto com umas pequenas modificações, oriundas de lutas de interesses, e por
fim a Espanha terá seu Código de Napoleão correspondente.
Ninguém se queixará, nem mesmo os advogados mais liberais. Esta é a vocação pelo
direito em nossa época.
[15]
Vejam-se, entre muitos outros autores, Foustel de Coulange, — La cité antique;
Pepere, Storia del diritto; Azcarate: Historia del derecho de propriedad.
[16]
Espírito do Dirt. Romano, t. I, § 24
[17]
Tradução espanhola da obra de Proudhon sobre o Princípio federativo, notas.
[18]
Certo jovem escritor espanhol segue este desastroso caminho de ver antinomias,
onde se depara apenas com união; o que é preciso é dar autoridade à liberdade.
[19]
Estas outras pessoas do direito são tão reais como o indivíduo e tão necessárias
como ele e não está menos realmente com elas do que consigo mesmo. Sempre se ouve dizer que
o estado dessas outras pessoas é o que domina. Mas quantas vezes o indivíduo está tão fora de si
que não age, como próprio dono de suas ações sobre as relações jurídicas!
Enquanto o número e os limites materiais dessas pessoas superiores do direito
dependem da variável determinação histórica.
O município, com este ou outro nome, se determina com mais constante igualdade, por
fáceis razões de compreensão.
[20] Este predomínio da autonomia nacional supõe, entretanto, que no poder da Nação
intervém o legítimo poder do Estado; no caso contrário, existe a absorção, a centralização, mas
não é a autonomia nacional.
[21]
Entre outros. É o que muitos não compreendem.
[22]
Como se vê, no que expus, não pode haver alusão à Espanha; aqui a soberania
nacional nem sequer tem voto.
[23]
Não se cuida de defender a teoria mais sentimental que outra coisa, da variedade
pitoresca, estética dos — direitos naturais; quando esta variedade for natural produto da história,
respeita-se; mas não se tem que procurá-la, contrariando, por vontade de artista, a tendência do
direito a ser semelhante em todos os países civilizados.
O que se sustenta é que esse direito, semelhante ou diferente, deva ser obra própria de
cada povo e criado ao lado de sua própria história. Roma fez todo direito para si, nasceu todo ele
da medula de sua vida e de sua energia e reflexiva vontade e consciência; e, não obstante, o
direito romano chegou a ser o direito comum, quase o único, por muito tempo, na Europa.
[24]
Encantadoras passagens de profunda verdade Se lêem na obra do ilustre Pi y
Margal, Las Nacionalidades, sobre este assunto.
É sobre tudo recomendável toda aquela em que se fala do sentimento e faz ver o amor
singular que se professa à pátria real, ao povo, amor que é ideal e material, que não necessita
esforços de abstração para sua existência.
Neste livro notável se indicam vários dos fundamentos reais do direito que existem
como argumentos em prol do sistema autonômico.
[25] Nestas censuras, leais, francas do oportunismo, não aludo a pessoas determinadas,
nem mesmo cuido de molestar a quem por professar sinceramente tais doutrinas merece maior
respeito.
[26]
Em a novela de Henrique Kleist, intitulada Miguel Kolhaas e da qual falaremos
mais adiante, o autor faz o seu herói dizer: — mais vale ser um cão que um homem e ser calcado
aos pés.
[27]
Não nos alongaremos aqui acerca da utilidade da primeira parte desta idéia, mas
permitimo-nos ao menos fazer algumas ligeiras reflexões.
A indignação que as diversas classes manifestam quando são atacadas em um dos
direitos que formam a base da sua existência, reproduz-se também nos Estados quando se atacam
as instituições que representam, o princípio especial que as faz viver; o termômetro da sua
irritabilidade, e, por conseguinte, a medida do apreço que dão às instituições — é o Código Penal.
O contraste manifesto que existe sobre este ponto entre as diversas legislações explicase em sua grande parte pela consideração diferente que há entre as condições da existência de
cada povo.
Todo o Estado punirá com a máxima severidade os ataques dirigidos ao seu princípio
vital, enquanto não aplicará geralmente mais que o mínimo da pena nos outros casos.
Com pena de morte pune um Estado teocrático o blasfemo, o idólatra, ainda que se
contente talvez com aplicar a pena de roubo àquele que tiver arrancado os marcos que servem de
limite entre as propriedades, enquanto um Estado agrícola fará o contrário.
A legislação de um país mercantil reservará as maiores penalidades ao moedeiro falso
e ao falsário em geral; um país militar à insubordinação e à deserção.
Um governo absoluto punirá o crime de lesa-majestade; um republicano toda a
tentativa de restabelecer o poder real; e todos os Estados mostrarão assim um rigor que
comparado com o usado nos demais casos produzirá um estranho contraste.
Em uma palavra, quando os povos são atacados em uma das condições especiais de sua
existência, o sentimento legal revela-se com mais violência.
Sabemos que estas são as considerações que Montesquieu teve o mérito imortal de ser
o primeiro a desenvolver em seu Espírito das Leis.
[28] As nossas pequenas cidades da Alemanha, que são a sede de uma Universidade e
que os estudantes fazem viver, por assim dizer, oferecem uma interessante prova, o modo como
estes gastam e empregam o dinheiro comunica-se à população.
[29]
Vide meu Espírito do Direito Romano, III § 60.
[30] Faremos notar, para aqueles dos nossos leitores que não estudaram o Direito, que
as ações populares ofereciam a quem queria a ocasião de se fazer representante da lei, e perseguir
o culpado que a violasse.
Estas ações não se limitavam aos casos em que se tratasse do interesse público, mas
também se podiam usar todas as vezes que um indivíduo, contra o qual se havia cometido uma
injustiça, não fosse capaz de defender-se por si só; assim, por exemplo, no caso em que se
houvesse lesado um menor em uma venda ou em que um tutor fosse infiel a seu pupilo, e outros
que se podem ver em o meu Espírito do Direito Romano, tomo 2º, 2a. ed., pag. III
Estas ações, como se vê, são um vestígio desse sentimento ideal, que defende o direito
pelo próprio direito, sem encarar o interesse pessoal.
Algumas vezes apresenta-se como móvel ordinário a avareza, fazendo esperar o
acusador a multa que se impunha ao acusado, sendo isto o que dava vida a essa ocupação
mercantil dos denunciadores, que aguardam a recompensa pela denúncia que fazem; mas se
afirmarmos que as acusações dessa segunda categoria desapareceram, em boa hora, no Direito
romano, e que a primeira quase não existe no Direito atual na maior parte dos povos, o leitor
saberá tirar a conclusão disto.
[31] O interesse. perfeitamente trágico que nos oferece Shylock está para nós em que se
lhe não faz justiça, e esta é sem dúvida a conclusão que mais sobressai para o legista.
Pode o poeta evidentemente fazer uma jurisprudência a seu gosto, e não temos que
lamentar que Shakespeare tenha falado de tal modo ou antes — que ele nada haja mudado na
velha fábula.
O legista que estuda a questão estará obrigado a dizer que o título era sem valor,
porque continha alguma cláusula imoral e que o juiz, apoiado nesta única razão, teria podido
negar o pedido pelo querelante.
Se não o fazia, se o — “sábio Daniel” a deixava valer mesmo, era empregar um
subterfúgio, uma miserável astúcia, um embuste indigno, autorizar um homem a cortar uma libra
de carne, proibindo-se-lhe terminantemente de fazer correr o sangue necessário em tal operação.
Um juiz poderia conceder também ao proprietário de uma servidão o direito de
passagem, proibindo-lhe deixar vestígios, porque não fora isto estipulado na concessão.
Acreditar-se-ia talvez que a história de Shylock se passou nos tempos primitivos de
Roma, quando os autores das Doze Tábuas julgaram necessário fazer especial menção de que o
credor a quem se entregava o corpo do devedor (in partes secare), podia dividi-lo em pedaços do
tamanho que bem lhe aprouvesse (Si plus minusve secuerint sine fraude esto!)
[A passagem mencionada por Ihering é de "O Mercador de Veneza" — edição em
português da Ridendo Castigat Mores disponível na eBooksBrasil.com — NE]
[32]
Assim me exprimia em minha obra intitulada -“Ueber das Schuldmoment im
römischen Privatrecht” — (Sobre o momento da culpa no direito privado dos Romanos) Giessen,
em 1867, pag. 61
Formei a opinião que hoje emito, depois de longos estudos sobre o assunto.
[33]
Encontra-se nas actiones vindictam spirantes uma prova muito particular do que
acabamos de dizer; elas fazem sobressair esse ponto de vista ideal e mostram do modo mais
frisante que não tem por objeto alcançar uma soma de dinheiro ou a restituição de uma coisa, mas
a reparação de um atentado feito ao sentimento do direito e da personalidade — (magis vindictae
quam pecunia habet rationem).
É por isso que não passavam aos herdeiros e nem podia ser cedido o seu uso a terceiras
pessoas.
Os credores não podiam intentá-las em caso de cessão de bens; extinguiam-se, passado
certo lapso de tempo relativamente curto, e não tinham lugar se o lesado não demonstrasse o seu
ressentimento — “ad aninum suum non revocaverit— DE INJURIIS, 47, 10.
[34] Nesta época os caracteres estavam tão debilitados que não podiam suportar a justa
severidade do antigo direito.
Assim, por exemplo, suprimiram-se essas penas tão rigorosas que no antigo processo
haviam sido aplicadas.
[35]
É fácil achar numerosas provas nas disposições de Justiniano.
Por um lado, concede aos fiadores o benefício de discussão, por outro, aos codevedores o de divisão.
Fixa para a venda do penhor o irrisório prazo de dois anos; depois que a propriedade
foi adjudicada, concede todavia ao devedor dois anos, como prazo para remi-la; e, passado esse
tempo, reconhece-lhe melhor direito que ao credor que vendera o objeto penhorado.
Ainda pode acrescentar-se: a extensão do direito de compensação àqueles que não
eram cidadãos; a datio in solutum, a desmedida extensão da defesa usurae supra alterum tantum;
a limitação do prêmio de seguro no foenus nauticum restringindo-o a 12 por cento; a posição
excepcional e suficiente que dão ao herdeiro, deixando-lhe o benefício de inventário, etc., etc.
Justiniano tornou possível a obtenção dum lapso de tempo para pagamento quando
nisso concordassem a maior parte dos credores, não passando de uma imitação das moratórias de
Constantino.
A seus predecessores deve-se também a ação non numeratae pecuniae, a cautio
indiscreta e a Lei Anastasiana, bem como a glória de ter sido o primeiro em reconhecer, desde o
trono, a fealdade do castigo corporal, e de o haver abolido em nome da humanidade pertence a
Napoleão III. Este soberano não se vexava mais por ter feito funcionar a guilhotina em Caiena do
que se incomodavam os últimos imperadores romanos em fazer de inocentes crianças criminosos
de lesa-majestade, uma espécie que eles mesmos caracterizavam, dizendo — Ut his perpetua
ejestate sordentibus sit et mors solatium et vita supplicium, — (L. 5, Cod. ad. leg. Jul. maj. q. 8),
mas a humanidade para com o devedor não sobressaía mais por esse modo; — que importa o
mais! Realmente, não há melhor modo de se acomodar com a humanidade que enriquecer-se à
custa alheia!
[36]
Podem apresentar-se como provas desta opinião que se afasta da doutrina
geralmente admitida: L. 7, de ansa (33.I); L. 9 § 3o; L. II § I, de servo corr. (II.3); L. 16 §I, quod
vi (43, 24); L. 6 § I; L. 7, de serv. exp. (18, 7); L. I § 2, de tut. rat. (27, 3); L. 54 pre, Mand. (17,
I); L. 71, i. f. de evict. (21, 2); L. 44 de man. (40, 4). É a aplicação das penas pecuniárias com que
tanto se distinguem os tribunais franceses atualmente.
[37] Paulo, na L. 91, § 3o de v. o. (41.1)... in quo genere plerumque sub autoritate juris
scientiae perniciose erratur; mas o jurisconsulto neste caso considera outro erro diferente.
[38]
Toda esta doutrina se encontra exposta na obra de K. Levita — Das Recht der
Nothwehr, — Giersen, 1866, p. 158, etc.
[39]
Jules Glaser — Gesammte Kleinere Schriften über Strafrecht, Civil und Straf
-process — Viena, 1868. Glaser é atualmente ministro de Justiça na Áustria.
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Marcos Paulo R. Bassalo
Março 2009