Hippolyte Brice Sogbossi
RESUMO
Várias são as posturas adotadas na apreciação da relação entre adepto e divindades nas religiões em geral e particularmente nas chamadas de afro-brasileiras.
No caso do candomblé, a dita relação envolve determinados fatores ligados à vida
existencial do próprio adepto, às relações
sociais e também às de gênero dentro da
sociedade. O presente trabalho procura
examinar diferentes teorias que tratam da
relação de gênero, particularmente as
identidades sexuais dentro do candomblé,
e a questão do transe. Outro objetivo almejado é discutir e enriquecer, junto com
a comunidade acadêmica internacional, a
questão das identidades sexuais em religiões como o vodum haitiano e a santeria
cubana, dois prismas críticos dos estudos
sobre religiões deste lado do Atlântico; ou
simplesmente dialogar com o vodum beninense sobre a questão. A pesquisa iniciada
há algum tempo, procura discutir a questão a partir de autores como Ruth Landes,
Roberto Motta, Patrícia Birman, Erwan
Dianteil, Alfred Métraux, Vivaldo da Costa Lima, Reginaldo Prandi e outros trabalhos antropológicos referentes a estudos
sobre determinadas regiões do mundo,
particularmente os de Roberte Hamayon,
Saladin d´Anglure, Brac de la Perrière e
Bogoraz.
ABSTRACT
Various are the attitudes adopted in the appreciation of the relation between adepts
and deities in religions in general, and particularly in the so-called afro-brazilian religions. In the case of Candomblé, the relation involves a series of elements closed to
existential life of the adept, the social relations and also those of gender in society.
This article tries to examine different theories that study the relation of gender, particularly sexual identities inside of candomblé, and the question of transe. Other
prupose is to discuss and enrich, with the
international academic staff, the question
of sexual identities in religions such as
haytian vodun and Cuban santeria, two
critical prisms of the studies on religions
from this side of the Atlantic sea; or simply
to dialogue with Benin vodun on the topic.
The research is been carried some time ago
and tries to discuss the question from authors such as Ruth Landes, Roberto Motta,
Patrícia Birman, Erwan Dianteil, Alfred
Métraux, Vivaldo da Costa Lima, Reginaldo
Prandi and other
anthropological works that referred to
studies on other sides of the world, particularly those of Roberte Hamayon, Saladin
d´Anglure, Brac de la Perrière and Bogoraz.
PALAVRAS-CHAVE
Gênero. Candomblé. Possessão.
KEYWORDS
Gender. Possession. Candomblé.
dossiê
VIDA EXISTENCIAL E IDENTIDADE NO CANDOMBLÉ:
UMA APROXIMAÇÃO
77
1 Introdução
A transdisciplinaridade na questão das
identidades no âmbito das religiões de origem africana nas Américas acompanha a
necessidade de diálogo entre várias áreas
das Ciências Humanas, Sociais Aplicadas e
das Letras e Artes. Ao mesmo tempo as ditas áreas dialogam com áreas que, aparentemente, eram independentes como a biologia
e a medicina. Os anos 60 do século passado
foram decisivos neste tipo de aproximação,
de tal maneira que desde então foram se especificando as áreas de abrangência de cada ciência. A lingüística, por exemplo, dialoga com a etnologia, a sociologia, a filosofia e a psicologia. A antropologia, com a sociologia, a biologia, a lingüística, a filosofia
e a medicina. Na literatura antropológica no
Brasil pode se afirmar que ao longo das últimas décadas, foi crescendo o interesse de
abordar temas como o racismo, as políticas
públicas de luta contra o racismo, o tema do
etnodesenvolvimento indígena, a imigração, a homossexualidade e as religiões de
origem africana chamadas também de afro-brasileiras. O que faz com que diversos dimínios do conhecimento se envolvam. Na
antropologia, e no tocante ao tema objeto
do presente artigo, foi a partir dos estudos
de Ruth Landes que começaram de maneira decisiva os estudos sobre o gênero nos
cultos de transe e possessão afro-brasileiros,
pois, por muito tempo, a questão do gênero
nos ditos cultos, como se observa ainda hoje, é muito pouco tratada, ou simplesmente
vista como não importante. No campo dos
estudos de gênero, uma quantidade importante de trabalhos
[...] se fundamenta sobre a teoria culturalista, proposta nos anos 30 do século XX pela antropologia norte-americana, particularmente nos
trabalhos de Margaret Mead, e retomada tanto
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por diferentes correntes psicanalistas de orientação freudiana, quanto pelo construtivismo das
historiadoras sociais Michelle Perrot e Joan Scott
e dos pensadores Norbert Elias, Michel Foucault,
Roland Barthes e Michel de Certeau, precursores,
de alguma forma, de posturas pós-estruturalistas
(PEDRO; GROSSI: 1998, p. 12).
No Brasil, porém, a obra de Nina Rodrigues, mais especificamente o seu livro clássico “O Animismo Fetichista dos Negros
Baianos” teve uma grande influência sobre
as idéias de Landes.
Lima (2003, p. 174) observa que uma
forma de relação muito freqüente nos candomblés é a relação incestuosa homossexual, e que fora da análise polêmica de Landes, nada de sistemático foi escrito a propósito. Maria Lina Leão Teixeira, além de Patrícia Birman (1995, p. 3, passim), ocupou-se também do tema das identidades sexuais na religião de origem africana. Leão Teixeira (1987, p. 33) resume o problema em
dois aspectos: primeiro, que os templos de
candomblé são vistos por pesquisadores,
homens de letras e público em geral como
espaços essencialmente femininos e o prestígio obtido por algumas sacerdotisas reforçou a concepção do templo como a “cidade
das mulheres”. Segundo, que paralelamente,
um outro aspecto foi disseminado a partir
das crônicas de João do Rio: os templos são
antros de libidinagem, de perdição, de homossexualismo, etc.
Se o objetivo de Leão Teixeira (1987, p.
34) foi de repensar o candomblé como território masculino, focalizando o estreito relacionamento colocado anteriormente entre
identidades sexuais e divisão de trabalho/poder, o de Patrícia Birman (1995, p. 7) foi de
cruzar “identidades religiosas com identidades de gênero e modalidades de possessão. O
livro parece ser uma resposta às recomenda-
R. Pós Ci. Soc. v.8, n.16, jul./dez. 2011
ções de Vivaldo da Costa Lima (2003, p. 174),
que já dizia que o homossexualismo no candomblé tinha sido episodicamente referido,
mas que com exceção da discutível análise de Landes, nada de sistemático se escreveu a respeito. No presente artigo, todo o debate se faz em torno de dois trabalhos principais: o de Erwan Dianteill, antropólogo e sociólogo francês, e o de Roberte Hamayon sobre o sentido da “aliança” religiosa. A revista Anthropologie et Sociétés, que contém um
artigo de Hamayon (1998, p. 25), foi a inspiração principal do presente trabalho. O volume 22, número 2, do ano de 1998, intitulado
Médiations chamaniques. Sexe et Genre sob a
direção de Bernard Saladin d´Anglure et Jean
Jacques Chalifoux reúne, além do trabalho de
Hamayon, vários outros, não menos importantes, como o de Laurell Kendall, sobre a sexualidade ambígua, a repressão sexual, a associação de possessão e da experiência sexual e a linguagem do corpo como desafios para
a pesquisa etnográfica; outro trabalho de importância é o de Bénédicte Brac de la Perrière (1998, p. 169), sobre as implicações do casamento místico com o espírito no culto de
possessão na Birmânia, atual Myanmar. Hamayon dialoga em boa parte com esta e com
Saladin d´Anglure.
É importante saber, no caso do Brasil,
que, além da diversidade de referências teóricas culturalistas, destacamos o debate feito em torno de dois outros paradigmas, o estruturalista e o pós-estruturalista. No entanto, segundo Pedro e Grossi (1998, p.13), apesar das divergências em torno da forma de se
pensar o gênero, há alguns pontos importan-
tes de convergência entre as teorias culturalistas, estruturalistas e pós-estruturalistas. Todas se sustentam numa postura relativista e
concordam que o sujeito é fruto de determinações culturais e históricas, rompendo, portanto, com a perspectiva essencialista, que
reifica homens e mulheres em identidades fixas determinadas pela natureza.
2 A aliança religiosa
O antropólogo francês Erwan Dianteill
(1997, p. 6) estuda, num artigo polêmico e
denso, a relação existente entre o santero1 e
o orixá em Cuba. Observa três tipos de respostas a partir de trabalhos sobre a África
e o Brasil2. O primeiro tipo de relação é, segundo uma grande maioria de pesquisadores, a de identificação. Consiste em que antes da iniciação, alguns traços de caracteres de um indivíduo revelam uma identidade profunda com uma divindade yoruba ou outra – (grifo nosso). Vários são os trabalhos que no Brasil reafirmam este critério3. Na lógica da identificação, cabe perceber a relação como de “possibilidade de ser
o outro” (GIBBAL apud DIANTEILL, 1997,
p. 6.), isto é, o alter ego do adepto na possessão ritual. A família-de-santo considera o (a) fundador(a) do terreiro como pai ou
mãe, e, ao mesmo tempo, este ou esta ama
os seus filhos, como Deus ama todos os seres humanos. Ao mesmo tempo, é, segundo afirma Dianteill (1997, p.12), uma questão de aparente pertença a dois graus distintos de parentesco, porque os orixás do
noviço parecem “nascer” depois dos da ma-
1. Equivalente de pai-de-santo.
2. Cita entre outros, os trabalhos de Bastide, Boyer-Araujo, Elbein dos Santos, Fry, Giobellina Brumana,
Landes, Verger e Motta.
3. À parte os mencionados estão os de Costa Lima, Reginaldo Prandi, Augras, Patrícia Birman e Leão
Teixeira.
Vida existencial e identidade no Candomblé
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drinha, chamada mãe-de-santo no Brasil4.
O ponto de vista do antropólogo francês é
que os orixás não são entidades engendradas, são simplesmente idênticos a si mesmos, não importa a geração humana - madrinha ou filiada-. A relação de descendência não existiria, então, entre os orixás do
iniciado e os da mãe ou pai-de-santo. Eu diria mais: ambos são co-esposas de um mesmo vodun ou de voduns diferentes. Há hierarquia entre mãe-de-santo e filho-de-santo. Este fica subordinado para sempre à primeira. A aliança com os deuses é simbolicamente mais importante que a descendência, isto é, uma relação de casamento místico é mais importante do que uma de filiação. Uma denominação corrente no vodun
beninense é chamar a divindade padroeira
justamente de asuche, ‘o meu marido’. Mas
dizer que o nascimento de um novo iniciado é o produto da união do iniciante e de
seu orixá principal parece não corresponder à realidade e isso será explicitado nas linhas a seguir. As três valências da relação
espiritual são mencionadas corretamente.
A base não se sustenta mais quando o autor separa as valências “identificação” e “filiação” de um lado como referentes ao momento em que o santero (cubano) é iniciado,
e, de outro lado, a valência “aliança” aplicada ao mesmo santero que agora é iniciante. Em outras palavras, o santero cubano se
identifica com a divindade, é filho da divindade, e a sua união com a divindade do iniciado é que contribui para o nascimento do
filho, chamado de ahijado (afilhado). É que
se trata de duas uniões diferentes com diferentes divindades ou, talvez, com a mesma
em épocas diferentes. E mais: Dianteill che-
ga a afirmar que um homem heterossexual será provavelmente filho de santo e não
terá jamais prestígio como santero. A relação com a divindade é assexuada, e não temos que ver se o orixá é de natureza viril, se
é possível uma união entre o homem santero e uma divindade, e outros tipos de suposições e conjeturas, observados por Dianteill
na sua análise.
A separação das valências propostas por
Dianteill acha-se muito artificial. Trata-se
bem mais de uma relação dialética entre as
três valências, impossibilitando uma divisão nítida entre elas. Os dois planos sugeridos são os seguintes: um plano de casamento anterior ao do iniciado, que é justamente o do iniciante, totalmente exterior e paralelo ao segundo, o plano de casamento do
iniciado. Em outras palavras, o (a) iniciante
pode ser considerado (a) mãe ou pai do iniciado, mas não no sentido de alguém que
pare, senão de alguém que oficia uma cerimônia de casamento. O padre de uma igreja é o bom exemplo disso. Dianteill (1997)
corretamente assinala que o padre da Igreja
representa também Deus, pelo fato de nós o
chamarmos todos de “meu pai”.
Roberte Hamayon (1998, p. 43) nas suas
conclusões aponta o fato de que a metáfora
conjugal faz com que Deus faça de seu povo
a sua esposa e conclua com ele uma aliança. Às vezes, podem existir ligeiras diferenças segundo a representação divina em jogo: Deus (monoteísta) ou seu “Messias” ou
profeta. Daí a idéia de que Cristo é o esposo, como acontece no discurso dos grandes
místicos, como Santa Teresa d´Ávila. Na Índia, por exemplo, segundo a autora, nos casamentos celebrados nas festas dos santos
4. Rodrigues (1977, p. 350) e Ramos (1940, p. 60) concordam, com absoluta justeza, em que a expressão
“mãe-de-santo” é a tradução literal de Voduno (de vodun ‘santo’, e no, ‘mãe’, no Dahomey (sic.)).
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sufi, no sul, tem casamento de homens em
posição de noivas de Alá. Em qualquer circunstância, também é importante saber que
as duas entidades não são iguais, e que não
têm o mesmo significado.
A adoção de uma identidade distinta tomaria a forma de interiorização de papéis
sociais e a “exteriorização de tendências escondidas” (DIANTEILL, 1997, p.6). Isto daria lugar a uma identidade valorizada - o
orixá sendo um rei – e também a um “retorno do rejeitado”, a “uma subida do duplo”
(GIBBAL, 1992 apud DIANTEILL, 1997). Em
outras palavras, o indivíduo na sociedade
recebe um estigma, é um arquétipo da sociedade. Jesús Guanche (1983, p. 372) observa,
no caso de Cuba, que a mudança de atributos e funções condicionou a criação de novas lendas em torno da origem das deidades e a noção de África tornou-se demasiado apagada para os primeiros descendentes
de africanos nascidos em Cuba. Acrescenta que os novos mitos trataram de interpretar, através da própria crença, os fenômenos com que diariamente enfrentavam-se
o escravo, o negro e o mulato livres e seus
descendentes durante a Colônia, ou o operário assalariado e o desempregado durante
a República neocolonial. Assim, argumenta, as deidades se converteram em símbolos
do cotidiano para o homem comum: Xangô foi descrito como o protótipo do proxeneta; Oxum, como a mulata prostituta; Eleggua (Legbá), o ladrão; Ogum, o delinqüente do bairro; Ossaim, o homem das plantas
e ervas. Tudo isso como reflexo da precária
existência social. Reginaldo Prandi (1991,
p. 123) concebe esta relação como parcial
e não forçosamente como de identificação.
Parcial no quadro de uma família total, como foi o caso da família colonial brasileira. Aqui já existe uma espécie de subordinação a um poder local, central, e a uma mal
chamada “grande religião” (Ver em HAMAYON, 1998, p. 40), que tenta aniquilar a
legitimidade da religião oprimida.
O segundo ponto de vista estabelece a
relação adepto-orixá sobre a base da filiação. O adepto desce da divindade que é, na
realidade, um ancestral divinizado. Erwan
Dianteill separa esta última postura da anterior, não se dando conta da sua complementação com relação à primeira, apesar
de falar de “ativação simultânea das valências”. Na verdade, o filho-de-santo entra em
transe e exibe no seu comportamento as características que tinha o orisha (sic.) ou vodun do qual herda seus genes (tese caracterológica). É o que Roberto Motta (1992, p.
49) chama de “afinidades eletivas do temperamento de cada fiel”, que estariam de
acordo com as características da divindade-mestre, quer dizer, a divindade padroeira ou dona. As afinidades eletivas são afinidades de caráter e temperamento ou entre
adeptos e divindades. Por exemplo, o comportamento ou perfil do adepto é o mesmo
da divindade padroeira.
O terceiro ponto de vista, o da maioria
dos pesquisadores, defende a tese da relação matrimonial entre o adepto e uma entidade espiritual. Dianteill (1997, p. 7) avança a hipótese (ou possibilidade) de interpretação da penetração no corpo do noviço no
momento da iniciação e da possessão ritual, como uma relação sexual onde o iniciado ocupa uma posição feminina, e o orixá,
uma masculina. Esta comparação lógica, em
algum sentido, é perigosa e torna-se pior
ainda quando o pesquisador se pergunta como se estabelece a relação no caso da iniciação no culto de um orixá do mesmo sexo
que o adepto. A relação matrimonial, ponto
de vista que eu defendo, explica-se de outra
maneira. A forma mais produtiva de buscar
a dita relação depreende-se da etimologia
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das palavras “vodunsi” ou “iyaworixá” (iyalorixá). Ambas as categorias remetem ao
conceito de ‘esposa de vodun ou de orixá’.
O conceito de esposa de vodun é incorporado já desde a iniciação e é a marca de identidade religiosa do adepto. Na interpretação
de Dianteill (1991, p. 8) a ativação simultânea das valências “filiação” e “aliança” levará a revelar o impensável: o orixá é o pai
e esposo do santero, uma forma de incesto.
Não é fato comum atribuir à relação adepto-divindade uma relação de casamento ou
aliança; os poucos pesquisadores que estudaram, pelo menos brevemente, e sem deixar de lado a relação orixá-devoto, a questão do parentesco na família-de-santo e a
sua estrutura e relações, foram Vivaldo da
Costa Lima e Klaas Woortmann.
Para resumir, em vez de distinguir três
tipos de respostas para o problema, distingo só duas, a segunda e última sendo a mais
defendida por mim, por razões etimológicas. Os dados recolhidos no campo ilustrarão com mais clareza a argumentação. Concordo em que deve se levar em conta a lógica total da relação entre homem e deus,
e não focalizar exclusivamente um de seus
componentes; mas o erro, como já adverti, é de etimologia. Não há como duvidar de
que a aliança está na base da relação. Seria,
pois, complementar falar de identificação e
filiação nesta relação. A relação de parentesco entre o adepto e o seu deus é uma relação metafórica de casamento entre os fon
e os yoruba, enquanto que no Brasil expressa uma relação mãe-filha, pai-filho e outras
variantes de descendência. Como bem afirma Woortmann (1987, p. 278), a relação entre a iyalorixá e a iyawo era, portanto, uma
relação de esposa sênior para esposa júnior,
sendo o ponto de conexão dado por um laço conjugal comum; um modelo, portanto, consistente com o sistema de parentesco poligínico tradicional5. O caso das tanyinon entre os adja-fon do atual Benin explica perfeitamente este fato, que consiste na
iniciação ou no ritual de integração da nova esposa do marido (co-esposa), pela primeira mulher (mulher mais velha) deste. É
o que está explícito em Claude Lévi-Strauss
(1982, p. 361) quando informa que algumas
sociedades são poligâmicas de fato e que
outras, porém, estabelecem acentuada diferença entre a “primeira” esposa, que é a úni-
5. Roberte Hamayon se pergunta se, levando em conta a transcendência de uma divindade abraâmica, a
aliança pode se limitar a uma relação humana, personalizada, a se traduzir ritualmente em casamento. Por
contraste, afirma ainda, a dramatização ritual do “casamento” no xamanismo e na possessão confirma a
homologia entre os humanos e os seus parceiros espirituais (sejam eles de essência animal ou humana). A
afirmação mais relevante - e decisiva nesta questão da aliança -, ao meu ver, é a de que a homologia não
exclui a hierarquização, que começa com a distância entre sexos sociais. Homologia, na linguagem de
Dianteill é a identificação. Hamayon aceita o conceito de identificação, mas a relação não se limita a este. Mais genial ainda é o critério da autora segundo o qual, se a “aliança” fosse considerada sob o ângulo
da sua orientação, o xamanismo (no sentido definido a partir das sociedades de caçadores siberianos)
acha-se sozinho e isolado, enquanto que os cultos de possessão situam-se aos lados das religiões abraâmicas (no sentido em que as alianças de possessão são mais bem individuais, ao tempo que a aliança vale globalmente para a comunidade). A posição de “mulher” adotada por uma comunidade humana, conclui, abre ao seu “marido” espiritual toda uma gama de posições hierarquicamente superiores: espírito humano divinizado, deus, ou Deus. Inspira-se de Kantorowicz, que afirma que na França medieval, o discurso jurídico faz uso da metáfora do “casamento do rei com o reino”, e que sua realeza nasce de seu casamento com o seu povo, corpo social feminizado, concepção inteiramente coerente com a doutrina do corpus mysticum da Igreja, casada com o seu sponsus divino.
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ca verdadeira, investida de todos os direitos
legados ao estado matrimonial e as demais,
que às vezes pouco mais são do que concubinas oficiais.
As tanyinon também são as que cuidam
das filhas de uma pessoa falecida quando
essas cumprem os rituais de voto de confiança. A pessoa falecida muitas vezes escolhe em vida quem vai ficar num quarto por
um determinado tempo para purgar uma
espécie de pena. Para Hamayon (1998) a
“aliança” é um dos modos convencionais de
relação que os humanos se atribuem, a título genérico, coletivo ou individual, com
as instâncias sobrenaturais - a expressão
“sobrenaturais” é cômoda segundo a autora, que entende que engloba categorias diferentes: espíritos, divindades, deuses, Deus,
e sublinha que as instâncias em questão entretêm uma relação com a natureza considerada como fonte direta, ou não, de subsistência -, pois, a mediação com as instâncias
se assegura em “aliado”. Reconhece a autora que à idéia da aliança se relacionam corolários como a eleição, o amor, a arte de
seduzir, etc., que favorecem a personalização da função, lhe atribuem um caráter carismático e podem, pois, tender a fazê-la
atingir uma virtuose.
3 A feminilização da aliança
O conceito de família-de-santo continua
vigente no momento de analisar a relação
entre divindade e adepto. Desde Herskovits e Landes sabemos que no candomblé há
uma preponderância numérica de mulheres
– aspecto “objetivo” - e sabemos também
que há uma definição ideológica dos papéis
centrais como femininos - aspecto “subjetivo” - (Woortmann, 1987, p. 259). O vodunsi
daomeano é ao mesmo tempo esposa e escrava do vodun, porque encontra-se submetido a uma série de obrigações para estar
em dia ou em bons termos com o seu marido ou patrão. Esta característica encontra-se na bibliografia sobre o tema. Nina Rodrigues (1977, p. 350) afirma que no Daomé, as sacerdotisas são as esposas do santo,
e que a “prostituição sagrada” era comum
aos jejes. Considera, como Edison Carneiro
(1981, p. 56) que na Bahia não há prostituição sagrada, como já esbocei anteriormente6. No seu capítulo sobre ritual, mais precisamente na parte que tange ao casamento
místico no vodun haitiano, Alfred Métraux
(1995, p. 188) toma a lógica dos acontecimentos ao inverso: em vez de ser primeiro
o loa (a divindade) quem escolhe o adepto,
Métraux nos dirá que o voduísta, com o desejo de se assegurar o concurso de uma divindade para satisfazer alguma ambição, ou
simplesmente de se colocar sob a proteção
especial, pode lhe propor um casamento em
boa e devida forma. E é só depois que o autor reconhece o contrário, isto é, que a divindade deseja escolher um fiel. Um fato está claro: os haitianos, como os daomeanos,
reconhecem que se trata de um casamento
místico, com atores rituais capazes de “dar
esposa” no ritual postulado; Métraux (1995)
define o casamento místico da seguinte maneira: “Quando um deus e seu cônjuge mortal pronunciam as palavras rituais e trocam
as suas alianças em símbolo da fé prometida, sabem que doravante terão um destino comum e poderão contar um com o outro. Quem diz casamento diz também obri-
6. A.B. Ellis (apud. RAMOS, 1940, p. 65) afirma que, entre os daomeanos, se trata de mulheres ou esposas
de santo destinadas à prostituição sagrada, e que, entre os brasileiros não se exige tal das filhas-de-santo.
Não parecem, ambos autores, entender que o casamento é no sentido metafórico.
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gações e responsabilidades; se o deus zela pela sua esposa, deve, em compensação,
receber presentes. Cada semana, uma noite estará reservada ao deus: a do dia consagrado a este último. Dedicá-la a um mortal equivaleria a um adultério e poderá ser
gravemente punido. Alguns fazem uma cama para o loa, onde dormem durante a noite que lhe pertence”. Já vislumbra-se a importância da proibição do incesto fundamental nas estruturas do parentesco, físico,
ou espiritual-metafísico, como é o caso das
religiões afroamericanas. O tabu do incesto já se revela no ato da iniciação. Os direitos, os domínios dos deuses devem ser respeitados. No dia ou na época das obrigações
ou das cerimônias para as divindades africanas, é vedado a qualquer adepto ou simpatizante ter relações sexuais, mas pode não
ser respeitada esta proscrição, dependendo
do grau de respeito do indivíduo em questão. Isto acarreta também conseqüências
que podem ser muito negativas para ele.
Há uma subordinação. Mas ainda persiste uma dificuldade, que Hamayon (1998, p.
25) não consegue resolver e que parece simples, do meu ponto de vista. No caso dos naq
da Birmânia, por exemplo, aponta a autora, são trinta e sete, mas os possuídos, em
número ilimitado. Hamayon (1998) duvida
se autorizar-se-ia afirmar que um naq pode
se ver atribuir uma pluralidade de “esposas”
sem impedir que cada casamento seja concebido como individual. É bem possível que
a poliginia seja também uma das formas de
organização social e de parentesco vigente
entre os birmaneses. Nesta medida, a questão encontrará a sua resposta: é possível que
os deuses birmaneses sejam também polígamos como os africanos. E que também exista a poliginia entre os birmaneses. A aliança tem caráter individual, mas não deixa de
ser também coletiva, dependendo da quanti-
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dade de pessoas dedicadas às divindades. O
ponto de referência para a aliança, melhor,
a posição de cada indivíduo nesta relação é
que determinará o caráter individual ou coletivo da aliança. No Brasil existe o que se
chama “barco”, uma promoção de iniciantes, onde a aliança é coletiva. Vale explicitar
aqui que os membros do barco são irmãos, e
que quase nunca se iniciam dois adeptos ou
mais ao mesmo tempo para uma divindade,
como acontece entre Iorubá e fon.
4 O parentesco no santo
Klaas Woortmann (1987, p. 258) observa
dois princípios básicos que presidem à organização do grupo de culto. São eles a senioridade e o sexo. Quanto ao segundo, o autor observa que discrimina entre certos papéis atribuídos predominantemente a mulheres (“mães” e “filhas de santo”) e outros
atribuídos a homens (“ogãs”), sendo que as
primeiras constituem o que se poderia chamar de núcleo do sistema de autoridade e de
papéis rituais. Assevera (Woortmann, 1987.)
que entre os yoruba, assim como em outras
culturas “yorubanizadas” da África Ocidental, posições sacerdotais eram abertas tanto
a homens como a mulheres, ainda que possivelmente também ali houvesse uma certa predominância feminina. A “tomada do
culto pelas mulheres”, provável na Bahia,
parece relevante aos seus olhos na medida
em que a organização central da casa-de-culto é conceitualizada em termos de parentesco, segundo o antropólogo.
Em Abomé, segundo o informante Salanon, existe o fato de que só as mulheres recebem em algum lugar de cultos, enquanto
que em outro, “o vodun desce tanto no homem quanto na mulher” (informação dada
em 2003 ao autor em Abomei, Benin). Já em
cidades como Dowimè e Aguna, é diferente.
R. Pós Ci. Soc. v.8, n.16, jul./dez. 2011
A tendência à modernização, ou à aceitação, encontra resistência, isto é, a sociedade é conservadora e, assim, “o vodun nunca
desce num homem... nenhum vodun nesuxwe desce em nenhum homem... os voduns
que estão nesses países, descer na cabeça de
homem, de jeito nenhum”. As razões sociológicas do fato parecem bem claras: há uma
“tolerância”, ou uma abertura maior nas cidades maiores, o que falta nas menores.
O informante Salanon explica também
algo importante sobre a razão da não possessão de um homem por um vodun. Se o
homem é possuído, haverá roubos, porque
justamente é este quem se ocupa da segurança da família, e também quem trabalha. Ocupar-se com assuntos religiosos seria uma espécie de aceitação do desemprego e, segundo a estrutura familiar dos países citados, o homem sem trabalho será tentado a roubar. Júlio Braga, (1995, p. 70) explica que entre os habitantes de Ponta de
Areia, na Bahia, é considerado chefe da casa aquele que traz o alimento básico, “aquele que bota a comida na mesa”, e que quando a mulher é responsável por este encargo, o grupo doméstico se redefine em função da inversão de papéis que disto resulta.
Voltando aos assuntos religiosos, cabe dizer que, para as mulheres, a religião é uma
espécie de função com dedicação exclusiva,
quando são eleitas pelo vodun. Têm que se
consagrar às suas divindades. Assim, é perfeitamente lógico que, no caso do candomblé baiano, Woortmann (1987, p. 258) denomine este fato como “o núcleo do siste-
ma de autoridade e de papéis rituais”. Neste sentido, tanto na Bahia (Brasil) como
no Benin, a “família-de-santo é matrifocal
(LANDES, 1967, p. 301; CARNEIRO, 1948,
p. 123; HERSKOVITS, 1957, p. 173; LIMA,
2003, p. 174). Woortmann (1987) sugere
que, na Bahia, parece ter havido uma verdadeira tomada da organização do culto pelas
mulheres. A divisão social do trabalho faz
com que determinados papéis sejam atribuídos aos homens e outros, às mulheres7. Porém, uma confluência de papéis é possível,
isto é, existem potencialidades para que o
homem entre em transe. É assim que as relações internas à sociedade primam sobre
as que existem com as instâncias naturais
(HAMAYON, 1998, p. 34). É, como haverá
de se ver, o que acontece com as relações
entre voduístas e voduns na República do
Benin, onde todos, sem distinção de gênero,
participam, em graus diversos, da freqüentação dos espíritos. A autora adota a segunda posição, decorrente da relação das sociedades para com o mundo, e sentencia: “É
diretamente nas suas relações com as instâncias sobrenaturais que a distinção sexual
é implicada, e que ela desempenha um papel intrínseco”. Justifica a autora que esta posição depreende-se da relação com o
mundo exposta anteriormente: para “tomar” no mundo da comida, é a comunidade
humana que deve se fazer “marido” das instâncias que a animam (HAMAYON, 1998).
No caso do candomblé, tanto os pais
como os filhos, apesar de passar por todos os rituais de iniciação, “são ideologi-
7. Ruth Landes (1967, p. 306) revela que idealmente a mãe é uma mulher madura, de caráter ascético, enfronhada nas tradições do cargo a que ascendeu após anos de serviço em postos inferiores da hierarquia
do culto. Nota também que a sua evolução para um tipo de matriarca é não apenas singular nos tempos
modernos, mas anacrônico no Brasil patriarcal: “contudo, as mulheres brasileiras controlam a vida das suas famílias nos limites do lar e exercem boa dose de autoridade, insuspeitada a um observador de fora; os
brasileiros detêm a autoridade principalmente nos aspectos públicos da vida” (Landes, 1967).
Vida existencial e identidade no Candomblé
85
camente representados como homossexuais” (WOORTMANN, 1987, p.261), pois segundo o autor, tornar-se “filho-de-santo”
ou eventualmente “pai-de-santo” parece
ser uma forma de legitimar culturalmente a
homossexualidade, e também ao que parece, ser membro do núcleo central de posições rituais ou da estrutura de poder implica em ser mulher, real ou simbolicamente
(LANDES, 1967, p. 301; BIRMAN, 1995, p.
137; PRANDI, 1991, p. 145). A representação ideológica de que fala o autor emana da
sua opinião de que o parentesco de santo é
mais importante do que o de sangue. Mas o
fato de os negros não conseguirem replicar
no Brasil as linhagens africanas não implica necessariamente que a recriação das ditas linhagens venha sendo uma inversão da
patrilinearidade do sistema tradicional yoruba para uma matrilinhagem na família
de santo, porque essa matrilinhagem não se
deve compreender no sentido da predominância de mulheres na família de santo, ao
contrário do que afirmou Woortmann. Este diz que, pelo menos nas casas mais ortodoxas, não se inicia plenamente a indivíduos do sexo masculino, por isso “é apenas
o lado feminino da família biológica que é
incorporada à família ‘de santo’” (WOORTMANN, 1998. p. 168). Não pode ser negado
o fato da superposição do parentesco classificatório das casas-de-culto sobre o parentesco real. Lima (2003, p. 174) fala do tabu
do incesto na família de santo e aborda alguns de seus aspectos. A interdição de relações sexuais e de casamento entre os membros do candomblé da Bahia é da maior importância. O tabu no candomblé se configura, na sua opinião, em dois tipos de evitação
sistemática e ambos se prendem à psicodinâmica do grupo: o casamento (relações de
sexo entre pessoas iniciadas no santo e que
possuem o mesmo orixá ou a mesma qua-
86
lidade de orixá) e o contato sexual entre os
filhos-de-santo do mesmo terreiro (filhos do
pai ou da mãe do terreiro ou filhos do axé).
Voltando ao fato de o gênero não coincidir com o sexo biológico, Fry (apud BIRMAN, 1995, p. 3) constata que os jovens rapazes que viram no santo adentram numa
feminilidade que lhes confere o gênero de
“adês”, no caso particular dos terreiros pesquisados por Birman. Tenho a impressão de
que os critérios emitidos por Landes subsistem ainda nesta afirmação, porque a feminilização não é automática em todo homem possuído por uma divindade. Parece
que faz parte dos códigos implícitos - e assumidos - nos próprios terreiros, o fato de
identificar qualquer jovem homem que vira
no santo como um adê. A própria Birman
(1995, p. 96) expressa a ruptura com estes
preconceitos quando afirma: “Há... identidades de gênero que não são de ‘bichas’,
apesar de serem indivíduos do sexo masculino que ‘viram no santo’, da mesma forma como não há uma exclusividade de mulheres no campo da possessão”. É uma situação parecida com o xamanismo, onde “...a
partir de alguns casos isolados de xamãs
tchuktches ou inuit (da Sibéria), travestis
e homossexuais (ou bissexuais) descritos
por Bogoraz (1904), se pretendeu fazer da
homossexualidade uma característica deste xamanismo, enquanto a grande maioria dos xamãs do nordeste siberiano é travestida (em graus diversos) e heterossexual” (SALADIN D´ANGLURE et. al, 1998, p.
68). Roberte Hamayon (1998, p.38), sobre a
feminização da aliança, observa que fatos
de travestissements rituais foram registrados em algumas sociedades xamãs. Ali, oficiantes masculinos vestem roupas propriamente femininas. Na área siberiana, acrescenta, os povos situados nas duas extremidades vestem roupas femininas para exer-
R. Pós Ci. Soc. v.8, n.16, jul./dez. 2011
cer a sua função (Bogoraz 1904-1910 para os Tchuktches; Basilov 1978, 1992 para
os povos turcos islamizados da Ásia Central
(HAMAYON, 1998)
No caso dos xamãs da área siberiana,
já aludido, eles consideram que os espíritos dos xamãs masculinos os querem mulheres, isto é, querem que sejam mulheres, e
que também adotam maneiras ou comportamentos e roupas femininas para os satisfazerem. Para Bogoraz, nesta conduta existe
uma forma de homossexualidade. No caso
do xamã uzbekistanês descrito por Basilov,
ele é um bom marido, um bom pai de família e bom muçulmano; é para fins rituais
que veste-se de mulher (HAMAYON, 1998,
p.38). É exatamente o que acontece no vodun beninense, onde a divindade possuindo um homem travestido implica, para este,
a obrigação de servir ao seu deus porque este exige que esteja nesta condição. O travestissement (ou travestilidade) já é objeto de
comentário nas lendas dos orixás e voduns.
Hamayon (1998) se pergunta se os xamãs feminizados são ritualmente investidos
pela sua comunidade ou se a sua atividade
se distingue da dos outros xamãs, homens e
mulheres. A outra pergunta é saber se, por
outro lado, há uma simetria, isto é, nestas
sociedades com homens travestidos, será
que as mulheres xamãs também usam trajes
masculinos? Hamayon (1998) já tinha mencionado o caso dos Kham-Magar, do Nepal
ocidental, descrito por A. de Sales, segundo
o qual, o xamã iniciado é uma mulher, que
veste uma calça, e se pergunta se isto quer
dizer que ela se substitui ao homem. Lembro
que é sob outro ponto de vista que Saladin
d´Anglure (1998, p. 47) tratou do travestismo no xamanismo inuit. Era possível para o
autor falar de uma “identidade social de terceiro sexo” favorável à mediação xamânica, considerando os fatos de inversão de se-
xo social encontrados na sociedade global
(SALADIN D´ANGLURE, apud HAMAYON,
1998, p. 39). A ênfase no campo social na
sua integralidade, perpassa o quadro das relações instituídas para os espíritos de que
se ocupou Hamayon. Aqui estriba uma diferenciação indivíduo-sociedade pelo fato
de que a disposição individual para a aliança cria uma espécie de identificação, tanto
do gênero quanto do sexo, ou, melhor dito, uma identidade ou igualdade de ambos.
5 Conclusão
A identificação observada na historiografia dos estudos afro-americanos - Cuba,
Haiti e Brasil - é entendida mais no sentido de duas vidas privadas - a do vodun ou
orixá, e a do adepto - separadas que se fundem em uma só, onde acaba se destacando a divina, com uma única diferença com
seu homólogo africano (no caso beninense):
que a identidade do adepto afro-americano
na vida real é dissociada, no caso de que me
ocupo. O sexo oposto assumido na possessão por uma divindade feminina, por exemplo, deixa de existir de alguma forma na
vida cotidiana, na sociedade inclusiva entre os grupos de cultos pesquisados por Birman. Georges Lapassade (1997, p. 87) admite, pelo menos, a título de hipótese, que a
homossexualidade e a bissexualidade implicam numa dissociação da identidade, porque o sujeito quer ser, ao mesmo tempo, seu
sexo e o outro; e que este desdobramento é
mais particularmente evidente e espetacular
com a travestilidade. Mostra como os cultos de possessão e o papel de médium podem constituir espécies de refúgios, locais
onde podem ser aceitos e, em alguma medida, legitimados, comportamentos que não
encontrariam a mesma tolerância na vida
social ordinária. Lapassade (apud BRAC DE
Vida existencial e identidade no Candomblé
87
LA PERRIÈRE, 1998, p. 169), diz o seguinte: “Apesar de a homossexualidade ser relativamente corrente e tolerada na Birmânia,
ela é carregada de marginalidade. Alguns
profissionais do culto a vivem como uma
conseqüência da sua mediunidade, quiçá
porque esta última lhes oferece o meio de
assumir a sua personalidade, ou porque eles
a aceitam para si de tal modo que, entrando neste meio onde é tão comum, aparece
como normal”. Neste contexto, “a homossexualidade está tão ligada à mediunidade na
mente de certos profissionais, que suas respostas se correspondem com o que se podia
esperar se as ditas respostas tivessem a ver
com a sua personalidade, como se ser médium fosse para eles a mesma coisa do que
ser invertido” (BRAC DE LA PERRIÈRE apud
LAPASSADE, 1997, p. 88). A postura a ser
adotada, a partir destas considerações é de
relativismo, já que a questão das identidades de corpo, gênero e religião não obedece
a esquemas rígidos de classificação. Cuba e
Brasil apresentam características semelhantes no que diz respeito à homossexualidade: que não devemos cair em essencialismos
acreditando que as religiões de origem africanas implicam obrigatoriamente em homossexualidade. Reconhece-se plenamente
que existe, mas não podemos afirmar que
todo praticante o é. O tema é bastante complexo e difícil, por isso não devemos generalizar. A mitologia, apesar de ser parecida,
e muitas vezes lida e interpretada de formas
diferentes é que revela mistérios. Por exemplo, o arco Iris no imaginário dos fon simboliza a riqueza e o mito do eterno retorno
com a serpente se mordendo a cauda, e inclusive o fato de ter várias cores, de nenhuma maneira remete à homossexualidade. O
fato de que Oxumaré ser seis meses homem
e seis meses mulher não quer dizer que a divindade é bissexual ou homossexual entre
88
os Nagô ou Ioruba, nem tampouco que seu
adepto o seja também. No Haiti por exemplo, são os Guede (ramificação do vodun
onde se cultuam os loa Guede da planície de
Abomei), os acusados de atitudes homossexuais nos templos do Vodun. Os quatro países nos fornecem diferentes interpretações
do fenômeno religioso a partir de diferentes
realidades sociais. As práticas e as mitologias não têm o mesmo valor simbólico.
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NOTA SOBRE O AUTOR
Hippolyte Brice Sogbossi é Doutor em Ciências
Filológicas pela Universidade de Havana, Cuba
(1996), e Doutor em Antropologia pelo Museu
Nacional, UFRJ (2004). É também Professor
Associado em Antropologia no Departamento
de Ciências Sociais da Universidade Federal de
Sergipe. Desenvolve atualmente pesquisas na
área de sociolingüística e antropologia das populações Africanas e afro-americanas, onde
têm destaque os estudos sobre parentesco,
morte, religião e etnicidade (comunidades
marginalizadas em perspectiva comparada).
Vida existencial e identidade no Candomblé
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Recebido em: 26.06.11
Aprovado em: 02.09.11
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R. Pós Ci. Soc. v.8, n.16, jul./dez. 2011