ARTE, AGÊNCIA E EFEITOS DE PODER EM TIMOR-LESTE: PROVOCAÇÕES
Kelly Cristiane da Silva
Lúcio Sousa
Este artigo é a versão em língua portuguesa do editorial ―Art, agency and power effects in East
Timor: provocations‖ 1, que enuncia o dossiê "Art, agency and power effects in East Timor"2,
elaborado sob nossa coordenação para a revista Cadernos de Arte e Antropologia e composto por seis
artigos: Arthur,2015; Bexley,2015; Castro,2015; Simião, Rocha e Rodrigues,2015; Soares,2015;
Veiga,2015.
Esta versão, revista e com tradução própria das citações originais em língua inglesa, emerge na
sequência da sua apresentação oral no II Simpósio de Educação: Língua, Ciência e Tecnologia no
Timor Leste que decorreu em Díli, entre 14 e 16 de Abril de 2015.
Este dossiê vem à luz com o objetivo de figurar como um espaço de análise e reflexão
multidisciplinar sobre produções artísticas em e sobre Timor-Leste. Não obstante, o fato de ser concebido
por dois antropólogos impõe suas marcas. No âmbito deste ensaio e como provocação introdutória aos
leitores interessados no tema, esboçamos algumas questões teórico-metodológicas que nos parecem
necessárias, desde a antropologia, para um pensamento crítico sobre arte em e sobre Timor-Leste.
Discutimos perspectivas possíveis para a abordagem do mundo das artes em e sobre Timor-Leste,
articulando-as, na medida do possível, com os artigos que compõe esse dossiê3.
Ancorados no preceito de que a emergência de campos artísticos (BOURDIEU, 1983; 1996) é um
processo histórico complexo e de longa duração, explicitamos algumas mediações classificatórias e
institucionais que se fazem presentes em Timor-Leste, bem como em outras fronteiras sociopolíticas, para
suas gestações. Nesse sentido, indicamos como a invenção dos mundos das artes está relacionada aos
processos de invenção, transposição e subversão da modernidade. Tais processos, por sua vez, estão
umbilicalmente ligados à construção dos Estados colonial e pós-colonial. Como consequência,
destacamos a dependência do campo de produção artística de outros campos e ação social, e explicitamos
alguns episódios que marcam a genealogia colonial de produção das artes indígenas e populares no então
Timor Português. Convidamos os leitores a engajarem-se na produção de etnografias das mediações
classificatórios e institucionais implicadas na construção de campos artísticos no Timor-Leste
contemporâneo, trazendo ao texto atores que têm protagonizado tais fenômenos.
Exploramos também o potencial analítico da perspectiva agentiva, concebida por Alfred Gell (1988),
na análise do que, desde uma perspectiva interétnica, podem ser reconhecidas como manifestações
artística leste-timorenses. Nesse contexto, trazemos ao ensaio a problemática do paralelismo semântico
1
Kelly Silva e Lúcio Sousa, « Art, agency and power effects in East Timor: provocations », Cadernos de Arte e
Antropologia [Online], Vol. 4, No 1 | 2015. DOI : 10.4000/cadernosaa.829
Este ensaio é, parcialmente, um produto da linha de pesquisa intitulada Processos de invenção, transposição e subversão da
modernidade, coordenada por Kelly Silva no Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília. Agradecemos ao
CNPq por prover recursos, mediante os processos 201269/2011-2, 307043/2012-6, 401609/2010-3 e 457845/2014-7, que
permitiram a produção das informações aqui analisadas, bem como ao Instituto Nacional de Estudos sobre Administração
Institucional de Conflitos (INEAC).
2
"Arte, agência e efeitos de poder em Timor-Leste / Art, agency and power effects in East Timor", in Revista Cadernos de
Arte e Antropologia, vol.4, nº1, 2015. URL: http://cadernosaa.revues.org/821
3
Em razão de restrições de espaço, não abordamos a problemática da produção literária neste ensaio, a qual merece um
estudo à parte.
227
(FOX, 1988), característica da poética ritual na Indonésia Oriental, como caso exemplar. A centralidade
da ideia de reprodução – por oposição à invenção – como um valor estruturante de algumas produções
artísticas entre as populações locais é também aqui tangenciada. Ainda inspirados pela problemática da
agência, indicamos alguns dos modos pelos quais a construção das artes leste-timorenses esteve e está
relacionada com a emergência do mercado turístico, seja no período colonial como pós-colonial, bem
com à formação de uma narrativa nacional pela mobilização de significantes da tradição, do costume, da
kultura. A mobilização do que Veiga (2015: 85-101) denomina fragmentos da tradição, serve, a um só
tempo, à produção de novos orientalismos bem como a um projeto de identificação nacional.
Reajustando o olhar
Logo de saída, parece-nos necessário colocar em perspectiva o modo como arte tem sido concebida
no que, grosseiramente, denominamos como mundo ocidental. A compreensão de que arte é o que serve à
contemplação estética, exclusivamente, e de que ela seja produzida por especialistas, os chamados
artistas, e que constitua um domínio de ação social autônomo em relação aos demais (política, economia,
ritual, regimes de sacralidade, etc) está longe de poder ser generalizada. Constitui-se, antes, como produto
de desenvolvimentos históricos particulares, dos quais destacamos o romantismo que emergiu entre os
finais do século XVIII e XIX na Europa (MORPHY, 2005) e os projetos de purificação que tem
informado a construção da modernidade ocidental4 (LATOUR, 1994). Disso não se deve concluir,
contudo, que outros coletivos sociais não tenham necessariamente instituições ou espaços voltados à
contemplação estética. O que muitas vezes se verifica é que a apreciação e cultivo da estética aparecem
conjugados com outras ações sociais, ligadas à construção da pessoa, à comunicação com os ancestrais e
com a reprodução da vida, de modo mais geral (LAYTON, 1991; GELL, 1998; MORPHY, 2005;
LAGROU, 2009; entre outros).
Parece-nos também preciso colocar em suspensão as variáveis que têm pautado o reconhecimento de
certas expressões culturais enquanto arte no mundo ocidental, uma vez que elas não são passíveis de
aplicação transcultural, a priori. Morphy (2005: 651) identifica a existência de três grandes critérios para
o reconhecimento de certos fenômenos enquanto arte no mundo ocidental: 1) institucional; 2)
autoclassificação e; 3) atributos do objeto.
A variável institucional tem a ver com o reconhecimento de determinada expressão cultural como
arte, o qual a inscreverá em um universo de circulação e consumo particular. Em grande parte dos casos,
o reconhecimento de algo como arte no mundo ocidental tem a ver com seu potencial de comodificação e
incorporação no mercado das artes (BOURDIEU, 1996), mediante sua circulação em museus, galerias,
etc. O reconhecimento de certos fenômenos como arte é um processo social, constituído por mediações de
várias ordens. Dentre tais mediações, merece lugar de destaque as políticas de patrimonialização levadas
a cabo pelos Estados nacionais e agências de governo transnacionais contemporaneamente. Voltaremos a
essa questão mais tarde.
Autoclassificação, por sua vez, diz respeito ao sentido atribuído a determinada expressão cultural por
quem a elabora ou performa. Assim, uma das condições para que algo seja reconhecido como arte (entre
nós) é o fato de ser concebido enquanto arte pelos indivíduos ou coletivos responsáveis por sua
existência. Tal fato, contudo, quase sempre está relacionado com a construção do nome dos artistas, fato
que se dá por meio de múltiplas mediações, nas quais o antropólogo, inclusive, pode ter o seu papel.
Nesse contexto, cabe ressaltar que certos fenômenos podem não nascer enquanto arte, mas adquirir tal
4
Com base em Latour (1994), nós compreendemos a purificação como um processo e a forma de separação através da qual
a moderna episteme projeta fronteiras ontológicas e limites entre o que é considerado como diferentes esferas, seres e
experiências de que é feita a vida social, tais como a oposição entre natureza e cultura, política e conhecimento, justiça e
poder, humanos e não humanos, entre outros.
228
status ao longo de sua biografia, de sua vida social. Exemplar esse fato, são as apropriações ocidentais da
chamada arte primitiva, na qual negociantes, historiadores de arte e até antropólogos, têm tomado parte.
No que concerne aos atributos do objeto, normalmente considera-se arte os fenômenos que se
destacam por seus traços estéticos formais e seu potencial semântico (LYTON, 1991: 14). Outrora, as
habilidades técnicas altamente especializadas envolvidas na elaboração de fenômenos reconhecidos como
arte era também variável importante para o reconhecimento das mesmas enquanto tal. Naquele contexto,
a distinção entre artefato (com utilidade para além da contemplação estética) e arte ainda não era
fundamental (MORPHY, 2005: 649).
O esforço de objetivar, nos limites desde ensaio, as variáveis que, desde o ponto de vista ocidental,
operam como mediadoras no processo de construção do fenômeno artístico tem aqui uma função.
Gostaríamos de convidar o leitor a refletir em que medida tais fenômenos têm se imposto ou não em
Timor-Leste ao longo do tempo. Argumentamos que na medida em que as várias populações que
habitam as fronteiras sociopolíticas que hoje reconhecemos como Timor-Leste foram expostas a
processos de invenção e transposição da modernidade, coloniais e pós-coloniais, foram elas também
expostas a eventos que têm permitido a concepção e imaginação da arte, como um campo relativamente
autônomo de produção e representação, com efeitos dos mais variados. Os artigos que compõe esse
dossiê discutem alguns episódios relacionados a este processo. Nesse cenário, o objetivo de promover o
desenvolvimento – o que quer que venhamos a entender por isso – e a construção nacional destacam-se
como elementos desencadeadores da produção, da invenção da arte. Entre outras coisas, tais fatos
parecem indicar a dependência do campo de produção artística de outros campos de ação social. Tal
tendência está longe de ser exclusiva a Timor-Leste e vai ao encontro do que tem ocorrido em outras
fronteiras sociopolíticas.
Da abordagem semiótica à abordagem agentiva. Novas janelas de tradução e percepção para a arte
em Timor-Leste
A abordagem semiótica da arte tem sido objeto de críticas importantes na antropologia (GELL,
1998). Entre outras coisas, as ideias de que o fenômeno artístico representa ou comunica algo que está
fora dele, assim como a própria ideia de representação, são objetos de questionamento, indicando-se que
não podem ser universalizadas transculturalmente. Expressam senão uma ideologia semiótica particular 5
(KAENE, 2007). Com base em suas pesquisas entre populações da Nova Guiné, Gell (1998: 6), sugere
que abordemos a arte como entidade agentiva, portadora de intenções e causações e produtora de
resultados e transformações.
O deslocamento da atenção analítica do significado para a eficácia, nos termos de Lagrou (2009:32),
pode ser cognitivamente rentável na análise de fenômenos que reconhecemos como artísticos (como
efeito do olhar interétnico) entre as populações leste-timorenses6. Dentre eles, destacamos as narrativas
rituais e seu paralelismo semântico característico (Fox, 1988). Caracterizado como um gênero narrativo
5
Tendo por base a noção de ideologia linguística tal como formulada por Silvertien (2000) – um conjunto de crenças sobre a
linguagem articulado pelos usuários como racionalização ou justificação da linguagem em uso – a ideia de ideologia
semiótica vai além desta primeira ao colocar em pauta o fato de que é preciso observar, primeiramente, o que conta ou não
como linguagem em diferentes paisagens culturais e os efeitos significantes e agentivos atribuídos a suas diferentes
configurações. Para a região da Indonésia Oriental e baseado em sua pesquisa em Sumba, Keane (2007) disponibiliza uma
série de análises que demonstram o poder agentivo de palavras e coisas na negociação da socialidade.
6
A inexistência de uma fronteira entre artefato e arte, ou da insularização e reconhecimento de certos fenômenos que se
caracterizam por qualidades estéticas e semióticas específicas enquanto arte, em certos coletivos sociais, parece sugerir que
sua classificação enquanto tal, enquanto arte, desde o olhar do antropólogo, é fenômeno eminentemente interétnico.
Entendemos por fenômeno interétnico aquele que se origina como produto da interseção dos sistemas classificatórios da
sociedade de origem do antropólogo e dos coletivos sociais com os quais trabalham.
229
que se expressa pela mobilização de palavras ou metáforas sinônimas em estruturas de prosa ou poesia
em performances de comunicação oral, formal e canônica, ao menos parte da eficácia das falas rituais
advém de sua forma e do controle de seu conhecimento e reprodução7. Esta componente agentiva poderá
ser ainda potencializada pela dança, em que a eficácia do ato se alia à perfomance (SOUSA, 2010). Nesse
caso, sua forma expressiva, sua qualidade estética é razão essencial de sua função e eficácia. No período
colonial, o registro de tais narrativas pareceu sobretudo favorecer a dimensão estética como elemento
constitutivo de uma memória para o futuro que se recupera hoje. Entre outros, os trabalhos de Artur de Sá
(1961), José Rodrigues (1962) e de Ezequiel Pascoal (1967) são exemplares. São registros nos quais, a
mais das vezes, a dinâmica oratória escapa, quer nos processo de transcrição quanto tradução. Todavia, a
inserção etnológica de muitas destas narrativas teve cultores entre alguns trabalhos de índole etnográfica,
de que são exemplos o de Francisco de Azevedo Gomes (1972) com ―Os Fataluku‖ e Jorge Barros Duarte
(1984) em ―Timor Ritos e Mitos Ataúros‖.
À semelhança do que Lagrou (2009: 14, 23, 27) identifica entre as populações ameríndias
contemporâneas, que não reconhecem a arte ou as produções artísticas como entidades autocontidas e de
valor em si, mas como saberes legados por entidades místicas e que tem poder de ação e transformação
sobre o mundo, a oratória ritual na Indonésia Oriental não é concebida como tendo origem em si mesma e
não é autocontida. Sua eficácia deriva de sua associação à voz dos ancestrais, de sua articulação com um
regime de sacralidade responsável pela formação e reprodução do mundo (ver ensaio fotográfico de
Simião, Rocha e Almeida, 2015). Recentemente apropriada como artefacto de legitimação nacional, este
tipo de performance oral ritual tem sido, inclusive, inserida na representação da nova nação, desde as
cerimónias de 20 de maio de 2002, em Díli8.
As narrativas formais, rituais, expressas por meio do paralelismo semântico, são experimentadas
como produtoras de verdade, definindo a ordem e o sentido do mundo e assim o reproduzindo. Nesse
contexto, o monopólio de certas formas narrativas gera efeitos de poder dos mais diversos. Entre
diferentes populações, tal monopólio é concebido como produto de empreendimentos coletivos, dos quais
tomam parte vivos, mortos e ancestrais9. À diferença da valorização da criatividade e inovação que
caracterizam algumas das produções artísticas em nossa sociedade, o bom desempenho de uma narrativa
ritual reside em sua semelhança com o que é tomado como sua forma original. Reprodução e repetição e
não inovação são as variáveis que agregam valor a esta expressão artística. A esse respeito, a reflexão que
Lagrou (2009: 67) tece sobre a pragmática da conservação e da continuidade na produção artística
ameríndia provoca-nos a pensar a respeito de tendência similar das artes locais em Timor-Leste:
(...) Esta valorização de uma história da conservação e da continuidade, em contraste
com nossa valorização de uma história de ruptura e da descontinuidade com o
passado, pode ser responsável por uma correspondente valorização de uma arte não
cumulativa, uma arte da continuidade, a serviço de um determinado estilo de vida.
Daí a recorrente resposta à pergunta sobre o significado de determinado motivo ou
forma: ‗assim é nosso costume‘.
7
A título de hipótese, parece-nos que ao menos parte das narrativas da street art, tal como analisadas por Arthur (2015), tem
componentes do paralelismo semântico aqui abordado. Exemplar, nesse sentido, são as várias vezes em que o mobilizador
―Paz no dame‖ (Dame é o termo em Tétum para paz), aparece nas narrativas visuais.
8
Noutros locais de Timor Leste, nessa mesma noite, outras performances se desenrolaram. Será de questionar se os motivos
que levaram os organizadores dos eventos e os oradores rituais foram os mesmos.
9
Fox (1988) nos desafia a pensar nas correlações entre o paralelismo semântico e outros aspectos da dinâmica social local,
como o dualismo classificatório complementar e dinâmicas de organização social. À diferença do dualismo classificatório
complementar, no qual está implicada uma hierarquia de posição entre os termos, no paralelismo semântico isto está ausente
(1988: 26). A partir dessa constatação, Fox nos desafia com uma questão analítica muito interessante: ―como que pares nãohierarquizados de palavras se transformam em pares hierarquizados de termos?‖
230
Aqueles familiarizados com a pesquisa etnográfica em Timor sabem que a afirmação ‗assim é nosso
costume‘ é também bastante comum entre membros de suas populações. Em seu seminal e percursor
trabalho sobre arte timorense, Ruy Cinatti (1984: 65) afirma:
Pergunte-se a um artífice timorense a razão de determinados motivos nos entalhes das
vigas das casas de Los Palos, dos padrões mais evidentes da panaria de Ocussi (sic)
ou, etc. , nos vários sítios de Timor onde os ornamentos mais se desenvolveram. A
resposta invariável é a de que já assim faziam nossos avós, querendo isso dizer não
existir criação individual e que ele, artífice, se limita a interpretar, segundo moldes
prescritos, o pensamento imaginativo dos seus conterrâneos.
(...)
O artífice timorense é, antes de tudo, um intelectual: o modelo da criação reside na
sua mente como a palavra inteligível; os toques finais serão dados quando os vagares
permitirem, já que o artesanato ou a função artística se não distinguem de outros
afazeres colectivos, como o trabalho nas hortas, ou a construção de uma casa. (...) A
arte sem finalidade é conceito secundário, que só por influência estranha se avigorou,
funcionando então o artista como simples artífice (...).
Tais análises de Cinatti nos permitem colocar como hipótese que o exercício da agência na produção
do que, desde fora, reconhecemos enquanto arte, de modo mais geral nos contextos rurais lestetimorenses, pode ter muito mais a ver com habilidades de reprodução do que de que criação. O valor
estaria na reposição de uma forma pensada como ancestral, e não na disposição inventiva do artista.
A citação de Ruy Cinatti (1984: 65) corrobora ainda com o ponto de vista com o qual iniciamos este
ensaio. Em muitas fronteiras sociopolíticas, a arte, como contemplação estética e um campo de ação
social autônomo parece não fazer muito sentido. O ensaio fotográfico de Simião, Rocha e Almeida (2015)
também nos oferece indícios de tal fato. Nele podemos constatar como a elaboração estética aparece
associada a regimes de sacralidade específicos (lulik e católico), mas que se comunicam. Neles, a
elaboração simbólica e estética é, a um só tempo, forma e meio de prática religiosa. Com base neste
ensaio e em nossas experiências de pesquisa em diferentes contextos leste-timorenses, arriscamo-nos em
propor que, em certa medida, muitas das experiências religiosas em Timor-Leste podem ser pensadas
como contemplações e manejos estéticos, dada o caráter compulsório de sua expressão materalizada
altamente regulada em formas rituais em que palavras, relíquias, sacrifícios e dádivas têm poder de
agência , sobretudo no universo lulik. Por oposição ao domínio lulik, o cristianismo aparece como
experiência de culto mais desmaterializada, como nos ensina Kaene (2007).
Ainda sobre a questão da agência, ao menos três dos textos publicados no dossiê por nós coordenado
oferecem subsídios para percepção dos efeitos decorrentes da produção e reprodução de um campo de
artes plásticas em Díli: Arthur (2015:41-63), por exemplo, nos mostra como street art tem sido, a um só
tempo, meio de protesto e unificação política, articulando proficiência linguística intergeracional e a
expressão visual dessas reivindicações; informações e análises apresentadas por Veiga (2015) e Bexley
(2015: 29-40), por sua vez, nos permitem constatar como que os espaços de produção e formação
artística, em comunidades como a Art Moris, Gembel, são também espaços para produção de sujeitos e
subjetividades mais autônomos, por oposição a expectativas de sociabilidade mais relacionais e
hierárquicas características de suas instituições de origem (família, casa, partido político etc). FidalgoCastro (2015: 65-84) nos apresenta outra faceta da agência da arte, discutida em seu texto por meio dos
processos de apropriação estatal das casas sagradas, enquanto patrimônio, em Timor-Leste. Nesse caso, a
cultura, vertida em arte expressa na estética das casas sagradas, é alçada à condição de capital cultural e
símbolo da nação que se constrói e imagina por meio dela. Nesse último contexto, a agência da arte
residiria justamente em seu potencial de símbolo para a nação. Tal fato indica não haver necessária
exclusão entre as abordagens agentiva e simbólica da arte.
231
De artefactos à arte indigena e popular: notas genealógicas sobre a construção das artes no Timor
português
A perceção da ―beleza‖ de artefactos produzidos por populações leste-timorenses é traduzida por
alguns autores do século XIX como uma produção minimalista, de um povo de ―expressão selvagem‖,
mas com gosto, habilidoso e paciente. Afonso de Castro, ao referir-se à ―industria fabril‖, designando
aqui a produção artesanal, refere que esta está ―muita atrazada‖, tão escassas são, para o autor, as
limitadas necessidades dos timorenses. Concede todavia que, na fabricação de panos, executada por
mulheres:
(…) a belleza de alguns d`aquelles artefactos, a maneira por que as côres estão
combinadas e a sua duração, mostram-nos que os timores não são destituidos de
habilidade, e que bem dirigidos por fabricantes europeus poderiam competir com os
habitantes de Java no fabrico de certos productos. (Castro, 1867: 335).
Em 1891, Bento de França, no seu opúsculo ―Timor‖, aludindo igualmente à ―indústria fabril‖ dos
―Timores‖ afirma que:
Aquelles insulares não são desageitados; pelo contrario, teem bastante habilidade de
mãos, - mas, mercê da sua invencivel indolencia, limitam os seus artefactos aos que
lhe são estrietamente precisos.
Resumem-se estes em: grosseiros pannos de algodão, tecidos em tôscos teares de
bambú, fabricação esta que é feita por mulheres; telas de seda e algodão, prducto que
prima pela belleza dos matizes, bilhas de barro e malgas; pentes de tartaruga e pau de
bufalo; goges (especie de bornal) de todas as qualidades e feitios; canudos de bambú
com lavrados e arabescos; caixas, cestas e cigarreiras de palha, mais ou menos
grosseiras nos desenhos ornamentaes.
Em todas estas producções, muitas d`ellas tôscas, revelam os Timores, posto que sob
uma expressão selvagem, bastante gôsto, paciencia e habilidade de mãos (FRANÇA,
1891: 40).
No início do século XX estas expressões locais de produção artesanal adquirem uma nova vida
social. O Album Álvaro Fontoura, atribuido ao Governador com o mesmo nome, apresenta uma visão
fotográfica do Timor Português dos finais dos anos trinta. Entre a enumeração encomiástica dos povos e
ação colonizadora, encontra-se um item dedicado à ―arte indigena‖, ilustrada por imagens de fabrico de
artesanato e sua exposição, na feira dedicada a comemorar os 10 anos da ―Revolução Nacional‖.
Ourivesaria, tecelagem de panos, fabrico de joias de casca de tartaruga e caixas de bambu com tampas
antropomorficas, ilustrando indigenas e metropolitanos, parecem enraizar o que se considera ―arte‖ na
recriação de uma produção local destinada essencialmente a uma procura metropolitana que tem nas
feiras anuais da comemoração do 10 de julho, dia de Portugal, em Díli, um mostruário da produção
local10.
Uma das primeiras abordagens etnológicas da arte, embora não se afastando muito de categorizações
antecedentes, é feita em 1959 por António de Almeida (1994 [1959]), com as ―Notas sobre Artes e
10
O albúm está disponível online no endereço: http://www.ics.ul.pt/ahsocial/fontoura/album/pag_inteiras/0.htm Acesso em
03 de março de 2015.
232
Ofícios de nativos de Timor Português‖, onde o autor procura fazer uma sistematização do campo da arte
com um artigo sobre ―artes e ofícios‖ dos nativos de Timor Português, considerando nestes a confeção do
sal, a olaria, a tecelagem, a cordoaria, os entrançados, os objetos decorativos de latão, as joias, as
esculturas em chifre de búfalo e as habitações da parte oriental do território.
A transformação destes bens produzidos em artesanato com um fim estetizante tem um incentivo
pela criação de uma procura, quer de metropolitanos, quer de novos estrangeiros que afluem ao território
nos anos sessenta: os turistas. Francisco Xavier de Menezes (2006 [1968]) explica a influência de
estrangeiros no artesanato timorense, assim como a criação de uma procura interna, a ponto de a mesma
ser, segundo o autor, objeto de incentivo institucional por parte do Centro de Informação e Turismo e a
Casa de Timor.
Um reconhecimento mais amplo da arte timorense ocorre com o artigo de Luís Filipe Tomaz publica
em 1968 1975. Designado ―Arte Popular‖, é dedicado ao território, constando no volume ―Arte Popular
em Portugal, Ilhas Adjacentes e Ultramar‖. Divide a arte em ―artes decorativas‖, predominante em Timor,
e ―artes maiores‖ (arquitetura em pedra, escultura e pintura) praticamente desconhecidas. Todavia, lista e
releva arquitetura; a construção naval; a escultura; os trabalhos em tartaruga; os trabalhos em bambu; a
tecelagem; as rendas, bordados e crivo (fortemente influenciados pela ação colonizadora, nomeadamente
de missionárias); a cestaria; a olaria; a ourivesaria; a metalurgia; a marcenaria; a música e a dança. O
autor comenta que em certas regiões as autoridades administrativas procuravam desenvolver a escultura
em madeira, ―por imitação de modelos balineses‖, no que resultava ―(…) uma arte sem espontaneidade, e
que fica muito aquém da que pretende imitar‖. (TOMAZ, 2008 [1968-1975]).
O mimetismo e fabricação de artefactos com base numa procura externa é também referida por Ruy
Cinatti (1987). Como cita o autor, muita da arte que era exibida na Casa de Timor tinha uma inspiração
administrativa, com responsáveis locais a fomentarem a produção. Mas Cinatti é igualmente crítico do
esvaziamento, adulteração, a que a arte timorense se vê votada nesse processo, que considera ―Votado à
destruição dos valores culturais timorenses‖ (1987: 16), passível de extinguir padrões estilísticos, motivo e
técnicas. O seu livro ―Motivos artísticos timorenses‖ (1987) tem o propósito de fixar esses motivos e
criar um testemunho que permitisse fixar esse património e servir de orientação aos ―futuros artífices‖, os
jovens timorenses. Parece-nos também que o jornal A voz de Timor teve um papel importante no
incentivo e concepção de campos de produção artísticas em e sobre Timor-Leste. Tal fato se dava pela
publicação de poesias, contos, bem como do que eram denominadas ―curiosidades locais‖. Nesse sentido,
o fac-símile abaixo [Figura 1] é um testemunho histórico importante. Entre outros, os trabalhos de João
Soariano, que foi aluno de desenho de Ruy Cinatti, ganham destaque (cf. VEIGA, 2015).
233
Figura 1 João Soriano e Celestino Encarnação. Dois artistas Timorenses. 1973. In Jornal A Voz de Timor. 29 junho.
Um traço comum parece nivelar através dos tempos a perceção da ―arte‖ timorense: a sua relação
estreita com os ofícios e o artesanato, o modo de vida dos nativos. Todavia, é notório que se processa
uma apropriação desses artefactos, eleitos expressões indígenas de arte, ou de arte popular, para um
público metropolitano e turístico, com o incentivo de produção massificada, ―imitada‖, algumas vezes,
de outros modelos por força de autoridades administrativas. Todavia, essa arte nativa, património das
casas sagradas ou esculturas votivas, ganhou um apreço nos mercados exógenos, sendo objeto de
demanda, legal ou ilegal a mais das vezes, como parece transcender das preocupações de Ruy Cinatti em
carta confidencial de 1973, manifestando as suas preocupações com a usurpação desses bens e o risco de
234
deixar em Timor só gente ―deserdada‖.11 O mesmo fato ganhou as páginas do jornal A voz de Timor em
artigo publicado por Ramos Horta em 30 de novembro de 1973, intitulado ―Crime de lesa-arte. A fuga de
valores artísticos e históricos de Timor‖ [Figuras 2 e 3].
Figura 2: Horta, Ramos. 1973. Crime de Lesa-Arte. A fuga de valores artísticos e históricos de Timor. In Jornal A
Voz de Timor, 30 de novembro, p.1.
11
Espólio de Ruy Cinatti, Biblioteca da Universidade Católica em Lisboa. Arquivador Terminus Timor`s D XI: Informação
confidencial – Património Cultural: histórico, artístico e etnográfico timorense. 3.10.1973 . 5 fls.
235
Figura 3: Horta, Ramos. 1973. Crime de Lesa-Arte. A fuga de valores artísticos e históricos de Timor. In Jornal A
Voz de Timor, 30 de novembro, p.5.
O periodo de ocupação indonésia parece confirmar o temor de Cinatti. Relatos de ―peças‖
indigenas levadas para venda em Bali aparecem aqui e ali como testemunhos desse período de desordem.
Ao mesmo tempo, com a ocupação a sedimentar-se, surge a necessidade de legitimar a integração e, entre
esses atos, as manifestações artistícas timorenses são convocadas para atos públicos de reconhecimento.
Veiga (2015) indica como, nesta altura, se sedimentada também a produção de arte timorense nas prisões
e na diáspora. Durante a ocupação, um museu surge em Díli para privilegiar a ―arte‖ indígena,
etnográfica, e dele pouco ficará no advento de setembro de 1999. Contemporamente, o edifício que
abrigava o museu passou a ser a sede da escola Art Moris.
236
Da nacionalização das artes à produção de novos orientalismos 12
A apropriação de determinadas expressões culturais enquanto artes nacionais são típicas dos
processos de formação da nação, o qual, em certa medida, é sempre relacional porque leva em
consideração expectativas de quem está de fora e dentro do espaço nacional.
A busca pelo retorno a uma origem imaginada que figure como essência de uma identidade nacional
se faz presente nas políticas culturais governamentais nacionais e internacionais voltadas à reconstrução
das casas sagradas (uma lulik, em Tétum) em Timor-Leste. De modo similar ao que Acciaioli (1985)
identificou na indonésia dos anos 1980, Fidalgo-Castro (2015) indica como em tais políticas está
implicada uma estetização da cultura. Ademais, o autor analisa as tensões e conflitos que podem ser
desencadeadas por tais políticas, dados os efeitos de poder produzidos por elas em cenários locais e
nacionais.
O financiamento do Estado a street art em Timor –Leste pode também ser refletida à luz da
problemática da construção nacional. À diferença do que ocorre em outros países, Arthur (2015) indica a
dependência da street art em Timor do financiamento do Estado. Tal fato, entre outras coisas, faz com
que a Street Art seja utilizada como um instrumento de pacificação, veiculando mensagens de unidade em
contextos de conflito ou pós-conflito.
A relacionalidade e a constrastividade características das dinâmicas de subjetivação individuais e
coletivas é também tema dos artigos de Veiga (2015) e Soares (2015: 17-27). No caso das artes plásticas,
Veiga discute os modos pelos quais ―fragmentos da tradição‖ têm sido mobilizados nos repertórios
estéticos daqueles que compõe o Movimento Kultura. Veiga explora como a mobilização de ―fragmentos
da tradição‖ por parte dos artistas de tal movimento responde a uma dupla demanda. Por um lado, é uma
resposta às expectativas estéticas do mercado que consome as obras que produzem. Tal mercado é
composto, sobretudo, por estrangeiros, que buscam adquirir obras que tragam símbolos que consideram
como tipicamente leste-timorenses, tais como o tais (ikat), o belak (disco de ouro), o kaiobau (peça
ornamental de metal utilizada na testa que faz referência a chifres de búfalos) etc. Assim, pode-se dizer
que o movimento kultura, é refém, em alguma medida, de um certo orientalismo, na medida em que é
esse orientalismo que alimenta as demandas de consumo daqueles que podem adquirir obras de arte
timorenses. De outro lado, os artistas dão sentido à mobilização do que chamam de tradição em suas
obras como meio de divulgar a identidade timorense. Seguindo tendência similar àquela que Leach
(2012) identifica entre os estudantes universitários em Díli, os artistas do movimento kultura afirmam que
ser timorense está estritamente ligado ao vínculo, conhecimento e respeito à tradição. Maria Madeira,
integrante do movimento kultura e uma das artistas plásticas leste-timorense de maior expressão nacional
e internacional, agrega outras racionalidades à mobilização de fragmentos da tradição em suas obras: ela
o faz com o objetivo de conhecer melhor suas próprias origens – Maria Madeira cresceu e foi treinada na
Austrália – e de empoderar as mulheres, que são detentoras de alguns dos saberes relacionados a essas
práticas. No artigo de Arthur constatamos também como a palavra kultura é mobilizada para gerar
efeitos de pacificação. De todo modo, um dos aspectos mais relevantes do movimento kultura, tal como
tratado por Veiga, é o seu potencial de produzir narrativas orientalistas, dada a proeminência da audiência
das artes na definição de seu perfil.
A leitura aqui proposta do artigo de Veiga é, em grande parte, inspirada pelo profundo e provocativo
texto de Antony Soares (2015). Com base em uma leitura comparativa da obra colonial de Paulo Braga e
da crítica produzida em torno da obra de Luis Cardoso, Soares demonstra como o orientalismo nelas se
faz presente. Propõe então que certas narrativas literárias de encantamento e desencantamento, coloniais
e pós-coloniais sobre Timor-Leste são expressões de uma projeção narcísica em que o território e suas
12
Seguimos aqui a provocativa ideia de Said (1996), da invenção de um Oriente plasmado pelos motivos e interesses do
Ocidente.
237
populações aparecem como realizações dos desejos ou frustrações daqueles que produzem e consomem
tais narrativas. Assim, nas narrativas de Paulo Braga ou em parte das interpretações às obras de Luis
Cardoso, os leste-timorenses (ou os lusófonos) são transfigurados em ícones de resistência à dominância
ocidental anglófona que na metrópole seria impossível fazer. Em tais narrativas, sugere Soares, as
genealogias passadas e presentes dos interesses e explorações capitalistas são silenciadas, em nome de
uma projeção narcísica. Permitam-nos retomar nesta introdução uma parte de seu texto:
O que eu gostaria de sugerir, em forma de conclusão, é que existe o risco que
interpretações críticas da literatura contemporânea timorense poderão enraizar noções
―exoticizadas‖ de Timor-Leste que fazem parte do que Alós designa o ‗imaginário
pós-colonial lusófono‘ (141). Este ―imaginário lusofono pós-colonial‖ partirá em
viagem para um Timor-Leste que é uma ficção para fazer combate às forças
hegemônicas que vêm de outros horizontes, descobrindo uma diferença lusófona –
uma excecionalidade‖– que levanta como uma bandeira desafiando um ―Ocidente‖
talvez caracterizado injustamente como essencialmente anglófono, e cujos precisos
limites são raramente definidos. Neste processo, os leitores (portugueses?)
no
―Ocidente‖ viram as páginas de um romance timorense (angolano, moçabicano) e
ficam consolados perante evidência de algo que se assemelha a uma identidade póslusotropical que aponta para a sobrevivência de um modo de estar no mundo
aparentemente ameaçado (Soares, 2015: 25. Tradução livre do original em língua
portuguesa).
Além do que já foi dito acima, parece-nos interessante perguntar em que medida expectativas
orientalistas não vêm se impondo na produção artística de e sobre Timor-Leste e os modos como ela
responde a contingências históricas e sociais que tem marcado as trajetórias das elites – nacionais e
transnacionais – que as produzem e as consomem.
Por uma etnografia das mediações na construção dos mundos das artes em Timor-Leste
Na esteira do que, desde há muito, a antropologia e sociologia da arte têm indicado, afirmamos acima
que o reconhecimento de certos fenômenos como arte é um processo social, constituído por mediações de
várias ordens, que passam pela formação do gosto, diálogo com um mercado consumidor, negociação de
linguagens artísticas, mediações institucionais etc. No âmbito desta seção gostaríamos de indicar alguns
dos atores institucionais e dos fenômenos que parecem ter lugar importante nos processos
contemporâneos de construção dos mundos das artes em Timor-Leste, os quais merecem atenção analítica
em pesquisas sobre o tema.
Assim como aconteceu no período colonial, o Estado é um ator fundamental nas dinâmicas de
negociação e conflito relacionadas à emergência e consolidação dos mundos das artes em Timor-Leste.
Sendo o principal investidor no país, os modos pelos quais recursos humanos, financeiros e tecnológicos
são investidos nos campos da cultura e da arte terão papel essencial na conformação de campos artísticos.
Exemplares destas iniciativas são aquelas realizadas pela Secretaria de Estado da Arte e Cultura, abrigada
no Ministério do Turismo, tais como a atribuição de bolsas de estudo, políticas de reconhecimento,
recuperação e patrimonialização de bens culturais (materiais e imateriais), promoção de exposições,
criação de museus e da Academia Nacional de Arte e Indústrias Culturais Criativas, entre outras13.
A transferência, em 2012, da hoje Secretaria de Estado da Arte e Cultura do Ministério da Educação
para o Ministério do Turismo é um índice do papel que o turismo tem e poderá vir a ter na consolidação
13
Para uma visão das práticas passadas e presentes da secretaria de arte e cultura, consultar: http://www.cultura.gov.tl/
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de campos artísticos em Timor-Leste, em uma tendência global que se reproduz em diferentes lugares 14.
Morphy (2008: 677) explicita de forma muito clara algumas das implicações das relações entre turismo e
arte:
Através do turismo, filmes, exposições, festivais culturais e a venda de produtos
artesanais, a arte tem vindo a ser inserida cada vez mais no espaço entre as
populações indígenas e o mundo desenvolvido. Esta providencia uma arena de
interação e um valor de troca, um meio de afirmar a identidade cultural, e,
crescentemente, um contexto de ação política através da legislação do copyright e da
herança cultural.
Nesse contexto, é preciso lembrar que o Estado, em Timor-Leste e alhures, não atua de forma isolada
nem plenamente autônoma. De certa perspectiva, o Estado nacional leste-timorense opera como
mediador na implementação de políticas culturais que são negociadas transnacionalmente por entidades
como a UNESCO, por exemplo. De outra perspectiva, na ausência de quadros qualificados em número
suficiente, o governo das artes e da cultura em Timor-Leste se faz também com a opoio de organizações
da sociedade civil, locais e transnacionais. A esse respeito, merece destaque a importante contribuição do
projeto Tatoli ba Kultura (Caminho para a Cultura), que tem registrado e na medida do possível,
inventariado, bens e expressões culturais em Timor-Leste, seja com o objetivo de preservá-los, seja o de
promovê-los no âmbito da Academia Nacional de Artes e Indústrias Culturais Criativas. De outro modo,
o projeto, escola e museu Art Moris têm sido também seminais na reconstrução e consolidação de campos
artísticos no país, tendo deles derivados outros coletivos artísticos, como o Gembel retratado neste dossiê
pelo artigo de Angie Bexley. Iniciativas como os festivais Ramelau, Arte Publiku, entre outros, têm sido
relevantes na construção social dos campos artísticos.15 Nesse contexto, é importante ressaltar que
grande parte desses empreendimentos são financiados com recursos da cooperação internacional para o
desenvolvimento que, como em outros campos de ação social no país, continua a ter papel de destaque
nos processos de transposição, invenção e subversão da modernidade em Timor-Leste (SILVA, 2012).
Vale também ressaltar a importância de instituições que têm financiado ou abrigado a produção de
obras artísticas sobre Timor-Leste, embora fora de seu território nacional, como o Espaço e Biblioteca
Por Timor, mantida pela Câmara Municipal de Lisboa, onde está sediado. A mobilização da cultura ou do
que era considerado arte timorense foi uma tática importante nos movimentos de resistência à ocupação
indonésia, e era realizada sobretudo pelos diferentes grupos de leste-timorenses em exílio ou diáspora em
Portugal, Macau e Austrália. Apresentação de coreografias de tebedai, de cantos tradicionais, de pinturas
retratando as condições locais de reprodução social foram canais pelos quais se procurava mobilizar a
opinião e apoio público internacional para a restauração da independência do país. Naqueles contextos,
sua arte e cultura eram apresentadas como violadas pela ocupação militar indonésia (VIEGAS, 1998;
MIRANDA, 2003 e TIQUE, 2013). A trajetória de Maria Madeira, discutida por Leonor Veiga (2015), é
exemplar nesse sentido. Ao seu lado, outros artistas produzindo em condição de diáspora poderiam
também ser citados, tais como Leopoldino Lobato Soriano, Sebastião Silva, Tchum Nhu Lien, Fátima
Guterrez, Abel Júpter T. Freitas da Silva, entre outros.
Análises a respeito dos saberes, significados e efeitos implicados na fabricação do tais, (ikat), assim
como da olaria, da música e da dança entre as populações leste-timorenses parecem-nos extremamente
promissoras para a expansão de uma antropologia da arte em e sobre Timor. Iniciativas nesse sentido já
foram desencadeadas, das quais destacamos os trabalhos de Dunlop (2012), Yampolsky (2014) e
Galipaud and Assis (2014).
14
Para uma análise sobre as formas pelas quais a cultura tem sido manejada para fins de promoção do turismo em TimorLeste nos períodos coloniais e pós-coloniais, ver Oliveira (2013).
15
Para informações sobre o Festival Arte Públiku, consultar: http://dilifestival.com/about/
239
Terminamos devolvendo aos envolvidos neste trabalho os agradecimentos devidos. A proposta deste
dossiê, a sua temática inovadora, teve receção por parte de autores vários que representam igualmente a
panoplia cosmopolita que, de uma forma ou outra, se acerca de Timor Leste. Agradecemos a estes, assim
como aos que, por várias razões, não foi possível incluir nesta proposta.
Uma palavra de apreço para todos os pareceristas pelo trabalho dedicado à revisão dos artigos
propostos e as excelentes sugestões dadas. Por fim, uma palavra aos editores, pela coragem de erigirem
este tema como predicado desta revista e por todo o trabalho envolvido neste processo.
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