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Termos fronteiriços no domínio gênero e sexualidade na Organização do Conhecimento

2022, Teorias Críticas em Organização do Conhecimento

Capítulo de livro sobre termos fronteiriços do domínio gênero e sexualidade na Organização do Conhecimento

Teorias Críticas em Organização do Conhecimento © 2021 Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT) Esta publicação está disponível em acesso livre ao abrigo da licença Attribution-ShareAlike 3.0 IGO (CC-BY-SA 3.0 IGO) (http://creativecommons.org/licenses/by-sa/3.0/igo/). Ao utilizar o conteúdo da presente publicação, os usuários aceitam os termos de uso do Repositório UNESCO de acesso livre (www.unesco.org/open-access/terms-use-ccbysa-port). Esta publicação tem a cooperação da UNESCO no âmbito do projeto “Ampliação e Modernização das Ações do IBICT relacionadas às Atividades de Coleta, Armazenamento, Sistematização, Análise, Disseminação e Preservação de Dados e Informações Relativos à Ciência, Tecnologia e Inovação” (Prodoc 914BRZ2005). As indicações de nomes e a apresentação do material ao longo deste livro não implicam a manifestação de qualquer opinião por parte da UNESCO a respeito da condição jurídica de qualquer país, território, cidade, região ou de suas autoridades, tampouco da delimitação de suas fronteiras ou limites. As ideias e opiniões expressas nesta publicação são as dos autores e não refletem obrigatoriamente as da UNESCO nem comprometem a Organização. COLEÇÃO PPGCI 50 ANOS Conselho Executivo › Gustavo Saldanha (Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia – IBICT; Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – Unirio) › Paulo César Castro (Escola de Comunicação – ECO/UFRJ) Conselho científico DA COLEÇÃO › Cecília Leite (Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia - IBICT) › Miguel Ángel Rendón Rojas (Universidad Nacional Autónoma de México - UNAM) › Muniz Sodré (Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ) › Ivana Bentes (Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ) › Naira Christofoletti Silveira (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – Unirio) › Rafael Capurro (Unesco) COMITÊ Científico DO LIVRO › Catalina Naumis Peña (UNAM / México) › Marianna Zattar Barra Ribeiro (UFRJ) › Giovana Deliberali Maimone (USP) › Suellen Oliveira Milani (UFF) PARECERISTAS AD HOC DOS CAPÍTULOS › Adriana Suárez Sánchez (UNAM - México) › Andre Vieira de Freitas Araujo (UFRJ) › Gabrielle Francinne de S. C. Tanus (UFRN) › Jenny Teresita Guerra González (UNAM México) › Linair Maria Campos (UFF) › Maria Luiza de Almeida Campos (UFF) › Rafael Aparecido Moron Semidão (UNESP) › Robson Santos Costa (UFRJ) › Vânia Mara Alves Lima (USP) › Alessandra Rodrigues da Silva (Embrapa) ›Cibele Araújo Camargo Marques dos Santos (USP) › Hugo A. Figueroa (UNAM - México) › Jonathan Hernández Pérez (UNAM - México) › Luciana de Souza Gracioso (UFSCar) › Marivalde Moacir Francelin (USP) › Roberta Cristina Dal'Evedove Tartarotti (UNICAMP) › Vânia Lisboa da Silveira Guedes (UFRJ) Teorias Críticas em Organização do Conhecimento Gustavo Saldanha Tatiana de Almeida Naira Silveira organizadores Rio de Janeiro 2022 Capa: Fernanda Estevam Ilustração: GK Vector (br.freepik.com) Projeto Gráfico: Paulo César Castro Normalização e catalogação: Selo Nyota Diagramação: Fernanda Estevam Essa obra tem o financiamento do Conselho Nacional para o Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), da Fundação Carlos Chagas de Apoio à Pesquisa Científica do Estado do Rio de Janeiro (Faperj) e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES). T314 Teorias Críticas em Organização do Conhecimento / Gustavo Silva Saldanha, Tatiana de Almeida, Naira Silveira, organizadores. – Rio de Janeiro: IBICT, 2022. 194p. – (Coleção PPGCI 50 anos) Inclui Bibliografia. Disponível em: https://ridi.ibict.br/ ISBN 978-65-89167-55-6 (digital) 1. Ciência da Informação. 2. Organização do Conhecimento. 3. Teoria Crítica. I. Saldanha, Gustavo Silva, org. II. Almeida, Tatiana de, org. III. Silveira, Naira Christofoletti, org. CDD 020 Ficha Catalográfica: Priscila Fevrier – CRB 7-6678 Projeto editorial em colaboração com o Programa de Educação Tutorial (PET) da Escola de Comunicação (ECO-UFRJ): Paulo César Castro (tutor) / aluno(a)s: Carolina Torres, Dandara Campello, João Maurício Maturana, Juliana Sorrenti, Kethury Santos, Lianne Henriques, Mariana da Paz, Moniqui Frazão, Robertha Braga, Sabrina Oliveira e Sara Maluf. Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação (PPGCI), desenvolvido pelo Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia, do Ministério da Ciência e Tecnologia e Inovação (IBICT/MCTI) em convênio com a Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO/UFRJ). Rua Lauro Muller, 455 - 4° andar Botafogo - Rio de Janeiro - RJ http://www.ppgci.ufrj.br A pesquisa que resulta nesta publicação obteve o fomento de CNPq FAPERJ Capes & com o apoio de UNESCO IBICT CENACIN UNIRIO UFRJ A todas as pessoas dedicadas ao pensamento crítico em Organização do Conhecimento que acreditam em sua práxis revolucionária. It boils down to “question everything.” Questioning and critiquing are not the same as rejecting and criticizing. Given the power of classification and other instruments of knowledge organization (KO), I believe that researchers have a responsibility to reveal what is behind/beneath our practices. (OLSON, 2018, p. 491). OLSON, Hope. Entrevista à Hope Olson. Liinc em Revista, Rio de Janeiro, v.14, n.2, p. 491-494, nov. 2018. Sumário 13 Apresentação Tatiana de Almeida, Naira Silveira, Gustavo Saldanha 15 Prefácio Profa. Dra. Catalina Naumis Peña 21 Da Teoria Crítica às Teorias Críticas: o percurso das reivindicações aplicadas na Organização do Conhecimento Daniel Martínez-Ávila e Mariana Rodrigues Gomes de Mello 35 A bibliografia e a literatura de povos e comunidades tradicionais no Brasil Elisa Campos Machado, Gustavo Saldanha 55 Termos fronteiriços no domínio gênero e sexualidade na Organização do Conhecimento Fabio Assis Pinho 73 Dorothy Porter Wesley e a organização do conhecimento: um olhar a partir da Teoria Crítica Racial Duboisiana Franciéle Carneiro Garcês da Silva 91 Teorias críticas utilizadas por autores latino-americanos em organização do conhecimento Dirnele Carneiro Garcez e Rodrigo de Sales 109 Teoria crítica da colonialidade na Organização do Conhecimento Graziela dos Santos Lima 133 Ranganathan no país dos brinquedos ‘:’ colon, uma classificação, uma filosofia, um brinquedo Vinícios Souza de Menezes 167 Organização do conhecimento em Humanidades Digitais: breves reflexões Jacqueline Aparecida de Souza 181 Caricatura, cartoon e charge Thulio Pereira Dias Gomes Apresentação Tatiana de Almeida, Naira Silveira, Gustavo Saldanha Rio de Janeiro, Verão, 2021. ste livro compõe a coleção PPGCI50 anos – UNESCO, IBICT, UFRJ, Nyota. A coleção responde pela produção bibliográfica de um catálogo de obras referentes ao cinquentenário do primeiro programa de pós-graduação stricto sensu em Ciência da Informação da América Latina e Caribe (1970-2020). O jubileu é fruto de uma travessia de reconhecimento internacional de ensino e pesquisa no campo biblioteconômico-informacional, com a formação de centenas de pesquisadores e produção de milhares de produções científicas no percurso, a partir do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia e sua pós-graduação, em atual acordo de cooperação com a Universidade Federal do Rio de Janeiro, grande parceira acadêmico-científica dessa longa e rigorosa viagem ao conhecimento. O PPGCI IBICT UFRJ celebra, pois, seu meio século de vanguarda, pesquisa e inovação com uma coleção que reflete a dinâmica de sua produção científica para sociedade. A obra intitulada “Teorias Críticas em Organização do Conhecimento”, organizada por Gustavo Saldanha (IBICT - UNIRIO), Tatiana de Almeida (UNIRIO) e Naira Silveira (UNIRIO), reúne pesquisas recentes desdobradas de pós-doutoramento, de teses e de dissertações com cenários, métodos e teorias contemporâneos dedicados aos estudos socioculturais do domínio. A crítica, em seus mais diferentes modos de afirmação conceitual, teórica e metodológica é aqui explicitada. A obra reúne pesquisadores dedicados à luta social através das ferramentas científicas da organização do conhecimento, integrando outras frentes nacionais e internacionais de construção de uma via crítica para as práticas de produção, uso e disseminação da informação. O quadro geral dos capítulos, deste modo, lança aos olhos das leituras ávidas por outros mundos possíveis os exercícios de representação do conhecimento como práxis: caminho de intervenção e mudança social. Distintas teorias críticas são revisitadas ao longo da pesquisa, iluminando circuitos reflexivos como gênero e povos e comunidades tradicionais, movimento antirracista, Biblioteconomia negra e a produção latino-americana nas abordagens críticas, decolonialidade, imagem, humanidades digitais e outras grandes esferas E Apresentação emergentes das lentes para um pensamento libertador em e pela organização do conhecimento. Como parte de uma longa história de resistência e de resiliência, essa obra precisa deixar o seu respeito a diferentes corpos. Nosso agradecimento especial à Profa. Dra. Catalina Naumis Peña, da Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM), prefaciadora dessa obra e integrante do comitê científico, quem prontamente atendeu ao nosso chamado, redesenhando o contínuo e frutífero diálogo Brasil – México no solo bravio da América Latina. Nosso agradecimento enorme às pesquisadoras do comitê científico, Giovana Deliberali Maimone (USP), Marianna Barra Ribeiro Zattar (UFRJ), Suellen Oliveira Milani (UFF), quem, junto de Catalina Naumis Peña (UNAM), bem como a suas instituições públicas, que permitiram o desenvolvimento da concepção e da realização do projeto. Nosso muito obrigado a cada parecerista ad hoc que doou seu conhecimento para a análise rigorosa das propostas. Por fim, e sempre, nosso agradecimento plural a todas as pessoas dedicadas ao pensamento crítico em organização do conhecimento que acreditam em sua práxis revolucionária. 14 Prefácio Profa. Dra. Catalina Naumis Peña1 sta obra es el resultado de la interacción, comunicación y colaboración entre profesionales de las Ciencias de la Información festejando los 50 años de los estudios de posgrado en Brasil. En esta ocasión se celebra a través de la presentación de trabajos sobre la confluencia entre teoría crítica y organización del conocimiento con la idea de contribuir a una vida mejor, desde la construcción de una interacción social con los contenidos generados por la humanidad. En los trabajos que se presentan el objetivo son los seres humanos entendidos como productores de nuevas formas de convivencia social. La organización del conocimiento permeada durante muchos años por el positivismo rescata ahora su vocación social al buscar un conocimiento mediado por la experiencia y las necesidades de los usuarios de la información. Se trata de buscar una ciencia comprometida con el proceso cambiante de la vida social. Este prefacio que se presenta aquí muestra la interacción que refleja esta obra en la que han participado expertos no sólo de Brasil, sino de varios países. Además, en la evaluación de los capítulos que conforman este libro entre otros, participaron investigadores del Instituto de Investigaciones Bibliotecológicas y de la Información y profesores del Posgrado en Bibliotecología y Estudios de la Información de la Facultad de Filosofía y Letras de la Universidad Nacional Autónoma de México. Los capítulos revisados por expertos en las diversas temáticas tratadas avalan la calidad de los trabajos que se presentan en este libro. En el contexto actual la sociedad necesita una ciencia íntimamente relacionada con las necesidades y aspiraciones del conjunto social al que se sirve. Desde las Ciencias de la Información y más específicamente desde el análisis y representación de los contenidos documentales englobados en la Organización del Conocimiento (OC), los estudios hasta la segunda mitad del siglo pasado se centraron en sistemas clasificatorios e indizaciones más bien universales, preconcebidas y E 1 Instituto de Investigaciones Bibliotecológicas y de la Información (IIBI). Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM). Prefácio dependientes de las jerarquizaciones generalizadas que no siempre responden a las necesidades particulares de la comunicación entre usuarios y generadores de información y conocimiento. La Organización del Conocimiento (OC) es una disciplina que tiene como objeto los procesos aplicados sobre el conocimiento documentado mediante el empleo de técnicas, normas, estándares, tecnologías y otros medios, a fin de optimizar la recuperación de los contenidos tratados para ser apropiados por quienes quieran conocerlos. Es decir, en la OC se busca vincular, sistematizar y organizar la información documental a través de diferentes métodos como jerarquizando, asociando o relacionando a través de los temas tratados en ellos o de los datos por los cuales pueden ser recuperados posteriormente. Como en todas las disciplinas de orden social existen diferentes enfoques teóricos que prevalecen a lo largo de su existencia que están relacionados con diferentes criterios acerca de la visión de los fenómenos de manera distinta. Una de las perspectivas teóricas para observar las OC es la Teoría Crítica. La Teoría Crítica se opone radicalmente a la idea de teoría pura, que supone una separación entre el sujeto que contempla y la verdad contemplada, e insiste en un conocimiento que está mediado por la experiencia, tanto por las praxis concretas de una época, como por los intereses teóricos y extra teóricos que se mueven al interior de estas. Lo cual significa que las organizaciones conceptuales, o sistematizaciones del conocimiento, en otras palabras, las ciencias, se han constituido y se constituyen con relación al proceso cambiante de la vida social. El adjetivo que complementa la teoría explica a grandes rasgos una visión, de hecho, el adjetivo de “crítica” indica con claridad que tiene una posición de impugnación sobre una teoría precedente. Dicho de otra manera, las praxis y los intereses teóricos y extra teóricos que se dan en determinado momento histórico, revisten un valor teórico-cognitivo. Pues, son el punto de vista a partir del cual se organiza el conocimiento científico y los objetos de dicho conocimiento y lo que es más importante se busca relacionar las sistematizaciones cognoscitivas de una manera diferente a la anterior como en este caso, con la influencia del positivismo presente y fuerte hasta la primera mitad del siglo XX. En el caso de la OC existe una tendencia hacia sistemas cuya articulación asociativa es muy fuerte. Ello es propio de las teorías reforzadas a fines del siglo pasado de que el lenguaje humano es recursivo y funciona por asociación. Surge así una aversión a los sistemas teóricos cerrados, y un gran interés por el contexto social, sobre el cual se buscaba influir directamente a través de la filosofía. A partir del método dialéctico instrumentado por Hegel, los estudiosos de la filosofía se preocuparon y trataron, como sus predecesores, de orientarlo en una 16 Profa. Dra. Catalina Naumis Peña dirección materialista. Estaban particularmente interesados en explorar las posibilidades de transformar el orden social por medio de una praxis humana tradicional. Como respuesta Habermas se dedica a superar las contradicciones entre los métodos materialistas y transcendentales en torno a una nueva teoría crítica de la sociedad, a retomar la teoría social marxista contemplando las posturas individualistas propias del racionalismo crítico, en torno al análisis de las relaciones entre los fenómenos socio-estructurales culturales con los psicológicos y de la estructura económica de la sociedad moderna. (Martínez 2019, 299) (Martínez, 2019)2 El rol social que desempeña la profesión que ostenta como actividad la de organizadores de información supone reconocer no sólo lo que hay en la información generada en la actividad investigadora o tecnológica, sino que es obligación registrar las modificaciones que se van produciendo, pero sobre todo la influencia que puede ejercer sobre los usuarios estos conocimientos que se le transmiten. Las Bibliotecas, los Archivos, los Centros de Documentación, los sistemas de información en línea, no son lugares de adorno, son espacios que ostentan una intención comunicativa y formativa, con una organización de sentido de la información que contienen para fortalecer los vínculos de los lectores con las necesidades de información. Son espacios para comprender y apropiarse de las experiencias que transmiten los conocimientos resignificados por los profesionales de la información. En la actualidad las Tecnologías de la Información y la Comunicación (TIC) han supuesto una ayuda fundamental en los mecanismos de organizar la información y hacerla accesible al medio social, sin embargo, deben ser aprovechadas para resolver los grandes retos que emergen de esa vida social. Uno de ellos es mantener la supervivencia de la cultura y los valores engendrados a lo largo de la historia para mejorar las condiciones de vida de los pueblos como se propugna con las teorías vigentes. Los países miembros de la ONU se comprometieron en septiembre de 2015 a trabajar a favor de la atención del planeta, la prosperidad, la paz, las personas y el fortalecimiento de las alianzas. Con el título “Transformar Nuestro Mundo: la Agenda 2030 para el Desarrollo Sostenible” se trabajó en torno a un documento oficial que detalla los diecisiete objetivos para lograrlo. Estos Objetivos del Desarrollo Sostenible (ODS), luego se desgranan en sesenta y nueve metas y doscientos treinta y dos indicadores y que una vez revisados muestran la necesidad de información de calidad y servicios que la hagan accesible. 2 Martínez, D. (2019). La teoría crítica de Jürgen Habermas y la interpretación poskantiana de Hegel. Revista de Humanidades, 39, 299-324. Obtenido de https://www.redalyc.org/jatsRepo/3212/321260114012/html/index.html 17 Prefácio Ninguna persona o sector por si solo tiene el conocimiento necesario para consolidar el desarrollo sostenible en nuestra sociedad. Uno de los grandes desafíos de las Ciencias de la Información es penetrar y apropiarse de los procesos sociales para transmitir conocimiento de todas y cada una de las comunidades sociales. En la medida que los ciudadanos obtengan nuevas oportunidades de aprender y conocer los problemas que los aquejan su capacidad vital de respuesta se verá incrementada. De ahí la importancia de plantear la búsqueda continua e incesante de axiomas, principios y reglas, de las que se puedan extraer algunas certezas provisorias, pero que reflejan la búsqueda de mejores sistemas de información, más inclusivos, que abarquen y resuelvan la transferencia de conocimiento que requieren los diversos grupos sociales. Los enfoques teóricos e históricos están relacionados con diferentes perspectivas de conocimiento, de cognición, de lenguaje y de organización social para responder de manera diversa a la OC. Los trabajos que se presentan en esta obra reflejan muy bien la preocupación y respuesta de las Ciencias de la Información por la representación de los problemas sociales en los sistemas de información. En este sentido en uno de los estudios realizados se discute la influencia del pensamiento colonial y sus impactos en la representación de obras de autoría colectiva indígena en los sistemas de organización del conocimiento (SOC), con la firme intención de rescatar la corriente que revalora la obra de un sector que existe y no debe ser olvidado. En otro de los capítulos se analiza la propuesta de la Teoría Crítica que surge en el contexto de la Escuela de Frankfurt y evoluciona hacia el desarrollo de múltiples Teorías Críticas derivadas del Posestructuralismo y las implicaciones ideológicas y científicas que presentan. El autor explica como la Teoría Crítica aplicada a la Organización del Conocimiento ha dado lugar a uno de los principales espacios de discusión académica para reclamar una representación respetuosa ante los grupos y sujetos que reivindican las visiones de grupos y sujetos marginados. En esta obra se resaltan también las teorías críticas desarrolladas por investigadores e investigadoras latinoamericanos en el campo de la Organización del Conocimiento (OC). La justificación se basa en visiones epistemológicas poscoloniales y decoloniales en el contexto latinoamericano. Un estudio terminológico aborda el lenguaje utilizado en la Organización del Conocimiento para indizar contenidos sobre género y sexualidad. Es un compromiso social poner a disposición aspectos de género y sexualidad sin censura o discriminación para lo cual se hace una propuesta terminológica integral. El racismo permeado a los Sistemas de Organización del Conocimiento obliga a enaltecer el aporte teórico-crítico de los bibliotecarios negros y bibliotecarias 18 Profa. Dra. Catalina Naumis Peña negras en la construcción de la Organización del Conocimiento dándoles mayor visibilidad al conjunto afroamericano que colaboró e hizo historia en el campo. La necesidad de actualizar el campo de la Organización del Conocimiento con una visión que refleje una posición universalista y de crítica poscolonial es otra de las aportaciones que se hace en uno de los capítulos presentados. El análisis de dominio es considerado en la actualidad una metodología de trabajo muy importante en las Ciencias de la Información. Por ello, a través de su utilización se trata de consolidar el núcleo epistemológico de la Organización del Conocimiento insertando en él las dimensiones ontológicas, epistemológicas y culturales del campo. La amplitud de los temas en los que se incluyen componentes relacionados con la etnia, la raza, el género, el feminismo, la sexualidad, el movimiento LGBT, la religión y muchos otros problemas que la sociedad contemporánea ha abordado desde un punto de vista científico influye en la Organización del Conocimiento (OC) que los representa en los sistemas de información y exige una revisión que en esta obra se analiza desde los trabajos de obtención de grado en el Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação, los estudios presentados en el ISKO Brasil y en los Encontros Nacionales de Pesquisa em Ciência da Informação. Un enfoque teórico de las SOC aborda el alcance, la legitimidad, el potencial y la apertura de sistemas para representar pluriepistemologías, visiones del mundo, conocimientos y acciones hegemónicas desde el punto de vista de expertos. El enfoque sobre la producción artística de internos psiquiátricos realizado por Osorio y Nise produjo una teoría y una clasificación de esta producción relacionándolo con el tratamiento de los enfermos que ayuda a construir una sistematización de la información generada para aprovechar los conocimientos emanados del arte producido por los enfermos, en la aplicación de los tratamientos psiquiátricos. La combinación del conocimiento sobre la organización de la información, los estudios de la incidencia en las redes sociales y los estudios de género especialmente relacionados con la violencia contra las población LGBTQIA son fundamentales para que las Ciencias de la Información como ciencia social aplicada presten atención a los fenómenos naturalmente digitales como la difusión de información en las redes y el aprovechamiento de las folksonomías en ellos. Los géneros discursivos como la caricatura en la comunicación informal son fenómenos que bien aprovechados son de un uso comunicativo positivo en aspectos como los educativos. Se estudia la clasificación de las diversas formas de la caricatura que son consideradas un retos para clasificar de forma unívoca. Con ello el estudio pretende revisar los esfuerzos para clasificar los géneros híbridos en el dominio de la organización del conocimiento. 19 Prefácio Shiyali Ramamrita Ranganathan explica el autor de este trabajo hace de los dos puntos la energía clasificatoria de su forma de vida gramatical y la fórmula “energía ‘: ’(dos puntos)”, la ecuación de su pensamiento. La propuesta clasificatoria de Ranganathan está marcada por una relación facetada (a diferencia de las clasificaciones jerárquicas) con la representación de los contenidos informativos a través de una notación mixta de números, signos y letras para mayor flexibilidad en la clasificación del conocimiento. Se destaca el uso de los dos puntos como estrategia para plantear la relación entre la “Colon Classification” y los juegos, especialmente de ensamblaje. Esos dos puntos son precisamente los que permiten una relación semántica entre elementos compositivos que responden a la unión de piezas que generan sentido. La transdisciplinariedad de la Organización del Conocimiento contribuye teórica y metodológicamente al uso de tecnologías computacionales para diferentes propósitos, en el desarrollo de productos y servicios requeridos por la sociedad de la información. El autor de este trabajo analiza el concepto de Humanidades Digitales y su consolidación como campo de estudio. A cuya construcción contribuye la Organización del Conocimiento a través de modelos de representación, terminología y semántica. Como se puede observar se abarcan muchos aspectos que son propios de comunidades particulares en los tiempos que corren y se exponen diversas respuestas desde las Ciencias de la Información para ofrecer información organizada al medio social. Se aprovecha la ocasión para felicitar a los organizadores de esta actividad, a los autores y a los árbitros que otorgaron rigor a los trabajos presentados aquí. 20 Da Teoria Crítica às Teorias Críticas: o percurso das reivindicações aplicadas na Organização do Conhecimento Daniel Martínez-Ávila1 e Mariana Rodrigues Gomes de Mello2 1 Introdução Ao falarmos de uma sociedade plural e inclusiva, logo associamos a ideia de respeito às multiplicidades de visões e aos direitos dos sujeitos e grupos mais diversos. A Teoria Crítica aplicada na Organização do Conhecimento tem dado ensejo a um dos principais espaços de discussão acadêmica para reivindicar uma representação respeitosa perante estes grupos e sujeitos. Não entanto, nos dias hodiernos há diversas linhas e roupagens assumidas pela Teoria Crítica, o que dificulta uma conceituação única e a torna plural. Todavia, o termo foi cunhado, originalmente, por Max Horkheimer que o utilizou pela primeira vez em 1937 no artigo intitulado ‘Teoria Tradicional e Teoria Crítica’. Na ocasião, ele a concebeu como a Teoria Crítica da sociedade que visa compreender os homens como produtores de todas as suas formas históricas de vida, tendo em vista que “[...] o que é dado não depende apenas da natureza, mas também do poder do homem sobre ela. Os objetos e a espécie de percepção, a formulação de questões e o sentido da resposta dão provas da atividade humana e do grau do seu poder” (HORKHEIMER, 1989, p.163). No presente trabalho, por meio de uma abordagem teórico-crítica e histórica, objetivamos revisar o percurso da Teoria Crítica que advém do contexto da Escola de Frankfurt ao desenvolvimento de múltiplas Teorias Críticas decorrentes do pós-estruturalismo e as implicações ideológicas e científicas que apresentam. Defendemos que, após a queda do Muro de Berlin, existem circunstâncias políticas e históricas que justificam uma consideração dialética das Teorias Críticas Pós-Estruturalistas com os princípios da Teoria Crítica original. 1 Doutor em Documentação, Universidad de León, [email protected] 2 Graduada em Direito e Filosofia, especialista em Direito Público, mestre e doutoranda em Ciência da Informação (UNESP), [email protected] Da Teoria Crítica às Teorias Críticas 2 A Escola de Frankfurt A Escola de Frankfurt é um movimento científico, político e social de pesquisadores, associada ao Instituto de Pesquisa Social da Universidade (Institut für Sozialforschung), fundado em 1923 e vinculado à Universidade de Frankfurt na Alemanha. Theodor Adorno, Walter Benjamin, Erich Fromm, Leo Lowenthal, Herbert Marcuse, Friedrich Pollock, Wilhelm Reich e, principalmente, Max Horkheimer foram os expoentes da primeira geração da Escola de Frankfurt. Posteriormente, configurando na segunda geração, também faria parte deste movimento, Jürgen Habermas, aluno de Adorno e Horkheimer, que embora tenha se afastado significativamente de certas posições dos fundadores, ainda nos dias hodiernos, é considerado o maior representante da segunda geração do grupo. Vale ressaltar, que a origem judaica da maioria dos integrantes da equipe, aliado aos estudos marxista, fez com que grande parte deles se exilassem nos EUA, em decorrência das perseguições nazistas na Segunda Guerra Mundial. Fato que propiciou que o Instituto de Pesquisa Social fosse transferido novamente à Frankfurt somente em 1954 (CONTRIM; FERNANDES, 2013). A primeira linhagem de frankfurtianos sofreu influência teórico-marxista, bem como de aspectos do pensamento de Kant, Nietzsche, Freud, Weber, Heidegger, entre outros. Embora os diferentes autores tenham apresentado um amplo abanico de interesses acadêmicos, contemplaram em comum um pensamento e análise neomarxista em questões, como as origens histórico-sociais do capitalismo e a natureza do trabalho em um sistema capitalista - o denominado como materialismo histórico - apesar de Marx nunca ter empregado essa expressão – além das características e funcionamento do Estado moderno, os processos de hegemonia e dominação cultural, a exclusão e a ideologia, visões alternativas da existência, a natureza da realidade e os processos psicossociais do dia a dia (LECKIE; BUSCHMAN, 2010). Estes autores também apresentaram um foco comum na teoria social contemporânea, incluindo o positivismo lógico, o pragmatismo, e a natureza da dialética. Os pensadores, fundadores da Escola de Frankfurt, como Horkheimer, Adorno e Marcuse tentaram reconstruir a lógica e o método do marxismo num esforço de manter sua relevância ante o capitalismo do século XX. Na linha do autor marxista húngaro György Lukács (1971) tentaram vincular a análise econômica à análise cultural e ideológica para explicar as razões pelas quais a revolução socialista augurada por Marx não tinha acontecido (AGGER, 1991). Para os pensadores da Escola de Frankfurt, a surpreendente sobrevivência do capitalismo pode ser explicada nos termos das ideologias dominantes, nos quais o positivismo seria a forma mais contundente da expressão capitalista de dominação, no sentido de que as pessoas são ensinadas a aceitar o mundo “como ele é”, perpetuando-o sem reflexão crítica. Se- 22 Daniel Martínez-Ávila e Mariana Rodrigues Gomes de Mello gundo os teóricos da Escola de Frankfurt, o positivismo não é apenas uma filosofia da ciência equivocada, mas também uma teoria política errônea, já que reproduz o status quo, incentivando a conformidade com supostas leis socioeconômicas. Teóricos críticos tentam desenvolver um modo de consciência e cognição que rompa a identidade da realidade e da racionalidade, vendo os fatos sociais não como restrições inevitáveis à liberdade humana, tal como em Durkheim (1950), mas como partes da história que podem ser alteradas (AGGER, 1991). As primeiras reflexões da Teoria Crítica acerca do positivismo se deram em oposição à teoria clássica de matriz cartesiana. A teoria clássica de natureza cartesiana, racionalista, dogmática, reducionista, mecanicista, com a pretensão de impor um olhar acrítico e distante do pesquisador ao objeto, tomou novas roupagens com o Iluminismo, e posteriormente, com o positivismo, atingiu seu ápice, no início do século XX, tomando uma proporção maior do que a idealizada pelo próprio Descartes. Era preciso uma teoria reativa, mais altruísta, que retomasse a ideia da humanidade enquanto o fim maior da ciência. É neste cenário que se compõe a Teoria Crítica. Assim, por meio da crítica ao caminho que a ciência foi seguindo, os frankfurtianos, opõem-se à filosofia iluminista do século XVIII, isto é, ao legado da ilustração e, por extensão, à contemporânea sociedade tecnológica liberal. A razão, a partir do Século XVIII, vai se reduzindo ao domínio instrumental, tecnocrata, ela não se dissocia apenas da religião, dos dogmas medievais, mas também da ética, da ideia de finalismo, que se traduz na visão de bem comum. Nesta perspectiva, expõe Horkheimer (2013, p.28), “os filósofos do Iluminismo atacaram a religião em nome da razão; e ao final o que eles mataram não foi a Igreja, mas a metafísica e o próprio conceito de razão objetiva, a fonte de poder de todos os seus esforços”. E Horkheimer completa: “[...] o núcleo oficial do liberalismo é o imperialismo intelectual do interesse pessoal”. A filosofia iluminista, consagrou a razão como uma força histórica que ensejaria à emancipação da humanidade de suas amarras, construindo um mundo auspicioso e feliz. A princípio, realmente, Adorno e Horkheimer (1985) destacaram que a razão iluminista, possuía um ideal emancipatório, extremamente otimista, com possibilidades infinitas de conhecimento. Entretanto, esse movimento foi paulatinamente ofuscado pela técnica, à medida que a burguesia foi impondo seu projeto ideológico de dominação. Desse modo, segundo Adorno e Horkheimer, “o preço das grandes invenções é a ruína progressiva da cultura teórica” (1985, p.11). Sob este ponto de vista, passamos a ser reféns do próprio progresso e da racionalidade técnica. O conhecimento científico, que substituiria o filosófico, idealizado como facilitador da vida humana, perde consideravelmente o potencial libertário. O racionalismo iluminista que pretendia ser tão esclarecedor e emancipatório, na 23 Da Teoria Crítica às Teorias Críticas realidade não era, pois nele se escondia uma nova ideologia. O Iluminismo acaba denunciando o próprio esclarecimento como mitológico e ideológico, à medida que a razão, tentando combater o pensamento mítico, assume traços do próprio mito e, então, não tem a capacidade de identificar a própria irracionalidade que dela emana. Posto isto, Horkheimer, primeiramente sozinho, na obra ‘Eclipse da Razão’ (2013), e posteriormente, em conjunto com Adorno na ‘Dialética do Esclarecimento’ (1985) vai distinguido a razão subjetiva ou técnica da razão objetiva ou emancipatória. A razão subjetiva é subordinada à técnica, fruto de um pensamento instintivo, não reflexivo, de autopreservação que destaca os meios para se conseguir algo. Um fim exclusivamente utilitarista, que não visa o bem comum, mas somente os ganhos particulares. O outro nos serve enquanto nos é útil. Neste sentido, “a técnica é a essência desse saber, que não visa conceitos e imagens, nem o prazer do discernimento, mas o método, a utilização do trabalho de outros, o capital” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p.18). Sob esse prisma, a ausência de autonomia, reflexão crítica e pensamento criativo nos leva à razão instrumental. “É como se o próprio pensamento tivesse reduzido ao nível do processo industrial, submetido ao programa estrito, em suma, tivesse se tornado uma parte e uma parcela da produção” (HORKHEIMER, 2013, p.31). Ao considerarmos a técnica como um fim em si mesma, até as relações humanas se tornam produtos, fruto da coisificação da consciência. A sensibilidade se esvai, o subjetivismo vem à tona e vamos tratando a nós mesmos e aos outros como coisas. A coisificação do espirito faz com que neguemos nosso íntimo, a possibilidade de oferecer amor e de seremos amados. Os preconceitos são relacionados ao autoritarismo de um sujeito experimental, repertório da consciência coisificada. “A capacidade de amar, que de alguma maneira sobrevive, eles precisam aplicá-las aos meios” (ADORNO,2011, p.133). No entanto, a razão objetiva, também conhecida como emancipatória, está intimamente aliada à ideia de finalismo, isto é, uma concepção axiológica, com escopo no bem comum, haja vista que ultrapassa os ganhos pessoais e a lógica capitalista. Desse modo, a ciência, a economia, a política não podem estar à mercê de uma oligarquia mercadológica. Para a Escola de Frankfurt, a verdadeira racionalidade se expressa pela capacidade crítica de análise e não pelo domínio da técnica. A simples repetição de conceitos e compreensão da técnica, de modo heterônomo e acrítico, não reluz à verdadeira racionalidade. Contudo, não foi somente a ciência que primou pela razão técnica. A política também, pois originalmente, sua constituição resultou da consolidação de princípios fundamentados na razão objetiva, como “[...] a ideia de justiça, igualdade, felicidade, democracia [...]”. “Posteriormente, o 24 Daniel Martínez-Ávila e Mariana Rodrigues Gomes de Mello particular tomou lugar do universal” (HORKHEIMER, 2013, p.29). Este prisma ofereceu os meios necessários ao domínio político que no sistema liberal se inclina ao fascismo, visto que “[...] a ideia da comunidade nacional (“Volksgemeinschaft”), primeira erguida como um ídolo, pode subsequentemente ser mantida apenas pelo terror” (HORKHEIMER, 2013, p.29). Tendo em vista toda a dimensão que a razão técnica vai assumindo, no capítulo ‘Educação após Auschwitz’ da obra ‘Educação e Emancipação’ (2011), Adorno, visando exemplificar as consequências do primado da técnica e ausência de finalismo em nossas ações, expõe que quando os meios sobrepõem aos fins, é legítimo construirmos uma estrada de ferro em direção à Auschwitz, somente verificando sua utilidade, isto é, se é o meio mais eficaz, a fim de transportar seres humanos ao campo de concentração. O escopo último, mediato, ou seja, no que implicará este ato, não é relevante, desde que a técnica empregada seja a mais eficiente para alcançar o objetivo imediato. Com o decurso do tempo, inúmeras novas demandas sociais foram surgindo no mundo todo, organizadas por movimentos das minorias marginalizadas. Após a Segunda Guerra Mundial, ante as implicâncias aterrorizantes dos atos nazistas, foi necessário pensar numa ordem legal que pudesse conferir o mínimo de respaldo à dignidade humana. Assim, é proclamada a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em dezembro de 1948, pela Organização das Nações Unidas. O documento serviu como base pra outros tratados e convenções que tinham como fim a garantia dos direitos fundamentais às pessoas. Neste cenário, o marxismo não ortodoxo da primeira geração dos frankfurtianos continuava muito importante como fonte reacionária e fundamento às outras gerações da Escola de Frankfurt, porém, já não conseguia abranger todos os movimentos que visavam romper as estruturas de opressão preestabelecidas. Segundo visões mais contemporâneas da Escola de Frankfurt, inclusive o marxismo tem-se tornado positivista, por exemplo, ao retratar a queda do capitalismo como inevitável, de acordo com o que Marx chamou de “leis do movimento” econômico (AGGER, 1991). Por isso, a Escola de Frankfurt, nas gerações posteriores, vem se posicionando contrária a todos os tipos de positivismo, inclusive o marxista. Nesse sentido, Habermas (1971) discorda de Horkheimer, Adorno e Marcuse que compreendiam que Marx era um grande oponente do positivismo. Habermas compreende que é necessário reconstruir o materialismo histórico de Marx, dando mais credibilidade à diferença categórica entre o conhecimento obtido pela autorreflexão e o conhecimento auferido pela análise e técnica causais. Na visão de Habermas, a crítica radical ao conceito de razão da primeira geração dos frankfurtianos, bem como a exaltação do materialismo histórico levaria ao irracionalismo. Especialmente Adorno e Horkheimer entendiam que a razão 25 Da Teoria Crítica às Teorias Críticas emancipatória não seria possível ante o desenvolvimento do capitalismo que ofuscaria a consciência do proletário. Na acepção de Habermas, este posicionamento é perigoso, visto que o projeto da modernidade ainda está em curso, não se findou. Assim, ele defende que ainda há a possibilidade da racionalização do mundo, pela via emancipatória. Habermas argumenta que para a retomada do projeto emancipatório é necessário o rompimento com a Teoria Marxista em alguns pontos fundamentais [...] “por exemplo, a centralidade do trabalho e a identificação do proletário como agente da transformação social” (CONTRIM; FERNANDES, 2013, p.316). Para tanto, esse pensador elabora uma nova visão de razão, mais dialógica, fruto da intersubjetividade do debate democrático. Razão que emana do que Habermas concebe como ação comunicativa. 3 Pós-modernismo e Pós-estruturalismo Partimos da concepção de que a Teoria Crítica é uma expressão ampla que denomina e agrega todas as teorias que se pautam na negação da ordem preestabelecida pelo positivismo na busca de uma sociedade mais altruísta e justa, podendo-se falar de teorias críticas, enquanto um conceito plural. A princípio, como já colocamos, os esforços da primeira geração dos frankfurtianos estiveram mais voltados às relações de dominação entre as classes sociais, em decorrência das relações econômicas estabelecidas pelo capitalismo, por entenderem que resolvendo o problema da divisão de classes sociais, a sociedade seria mais justa e igualitária. No entanto, “[...] as Teorias Pós-Críticas não limitam a análise do poder ao campo das relações econômicas do capitalismo. Com as teorias pós-críticas, o mapa do poder é ampliado para incluir os processos de dominação centrados na raça, etnia, no gênero e na sexualidade” (SILVA, 2005, p.149). Questões mais focadas no individuo e nos diferentes grupos tradicionalmente marginalizados por sistemas totalitários, estigmatizados pelos detentores do poder como “o outro”, foram desenvolvidas nas décadas seguintes. Pouco depois do grande movimento instaurado pela Escola de Frankfurt, surgiu outro de matriz francesa, constituído por acadêmicos, que inclui a Roland Barthes, Jean Baudrillard, Andre Gorz, Henry Lefebvre e Alain Touraine, que também se basearam no marxismo e expandiram a crítica da economia política à uma mais ampla da sociedade e da cultura como um todo (DANT, 2003). Deste movimento derivaram outros de filósofos franceses, comumente considerados da Escola Estruturalistas e Pós-Estruturalistas, como Pierre Bourdieu, Jacques Derrida, Michel Foucault, Jacques Lacan e Jean-François Lyotard. Se afastando dos princípios de Marx e de Engels da Escola de Frankfurt, trataram de uma gama de questões e contradições que contemplou desde a hegemonia de vários sistemas socioeconômicos 26 Daniel Martínez-Ávila e Mariana Rodrigues Gomes de Mello até as formas não examinadas de dominação e regulação social, incidindo as forças de marginalização e as restrições de um currículo pedagógico baseados em um cânone privilegiado da literatura (LECKIE; BUSCHMAN, 2010). Nos estudos desses autores, o pluralismo é um valor principal, desmantelando processos e hierarquias de poder que selecionam e classificam pessoas criando assim o “outro” - por exemplo negros, mulheres e homossexuais. Segundo McCarthy e Apple (1988), esses teóricos críticos chamaram a atenção para a inadequação dos relatos reducionistas de classe da sociedade humana e a marginalização de mulheres, entre outras minorias, de maneiras que outras formas de análise crítica não foram capazes de contemplar. O fulcro no pós-estruturalismo apresenta novas perspectivas na elaboração de Teorias Críticas que repensem a realidade nas quais estão inseridas. Conceituar o pós-estruturalismo não é uma tarefa simples, pois ele engloba vários aspectos e nem sempre está bem distinto de outros movimentos, como o pós-modernismo. Enquanto o pós-modernismo está mais ligado aos movimentos artísticos, literários e arquitetônicos, entre outros; o pós-estruturalismo surge como um modo de repensar as teorias estruturalistas, instaurando a desconstrução de alguns conceitos e estruturas considerados como verdades universais por elas. Tanto os autores pós-estruturalistas como os pós-modernistas têm em comum a rejeição das definições e categorias positivistas. Muitos dos filósofos, mencionados anteriormente, não se identificam com o pós-estruturalismo, mesmo que sejam comumente considerados pós-estruturalistas, como, notadamente, Derrida. Outros autores, como Foucault, Barthes ou Lyotard podem ser considerados tanto pós-estruturalistas como pós-modernistas. O pós-estruturalismo de Derrida, bem como o das feministas francesas, entre outros, incidem numa teoria do conhecimento e da linguagem; enquanto o pós-modernismo contemplado por Foucault, Barthes, Lyotard e Baudrillard relata uma teoria da sociedade, da cultura e da história (AGGER, 1991). Sob alguns pontos de vista, o pós-modernismo tem sido caraterizado como fundamentalmente conservador - chamado de “a lógica cultural do capitalismo tardio” (JAMESON, 1984). Já Habermas (1981, 1987) argumenta que o pós-modernismo é neoconservador. Agger (1990, 1991) distingue entre versões apologéticas e críticas do pós-modernismo, incluindo uma visão politizada. Outros autores, como Kroker & Cook (1986) despolitizam o pós-modernismo, vendo-o simplesmente como um movimento cultural, ou “cena”. Destes pensadores, Jean-François Lyotard (1984), foi quem mais assumiu sua “condição pós-moderna”. Lyotard rejeita as perspectivas totalizadoras da história e da sociedade, o que ele chama de grandes narrativas que tentam explicar o mundo em termos de inter-relações padronizadas, como o marxismo. O pós-modernismo de Lyotard é uma rejeição explícita do que ele chama de tendências totalizantes e do radicalismo político do marxismo. Para 27 Da Teoria Crítica às Teorias Críticas Lyotard, entre outros pós-modernistas, não é possível contar grandes narrativas históricas, como fazem os marxistas - a quem acusa de ter motivos de autoengrandecimento - mas apenas pequenas histórias de “posições de sujeito”, heterogêneas, de indivíduos e grupos sociais plurais (AGGER, 1991). No entendimento de Agger (1981), o pós-modernismo é pluralista e antirreducionista, o que inclui políticas mais liberais. Uma teoria social pós-moderna examinaria o mundo social a partir de múltiplas perspectivas de classe, raça, gênero, rejeitando as reivindicações totalizadoras e universais das chamadas grandes narrativas que tentam identificar princípios estruturais para explicarem todo tipo de fenômeno social díspar - por exemplo a teoria de Marx da lógica do capital (AGGER, 1991). Tal como o pós-estruturalismo e a Teoria Crítica, o pós-modernismo rejeita a possibilidade de uma representação livre de pressupostos, argumentando que todo conhecimento é contextualizado por sua natureza histórica e cultural. Logo, não seria possível desenvolver uma ciência social universal devido as diversas posições dos sujeitos e seus particulares modos de conhecimento. Esse aspecto lembra muito o da Fenomenologia Social e da Etnometodologia, as quais também enfatizam a irredutibilidade da experiência e rejeitam a análise socioestrutural, já que coincidem em ter como fundamentos as filosofias de Nietzsche e Heidegger (AGGER, 1991). Estas escolas de conhecimento e seus respectivos pensadores rejeitam os investimentos iluministas e positivistas na criação de um conhecimento universal, expressando a ciência como uma voz universal e singular. Por outro lado, na concepção de Lopes (2013, p.13), o pós-estruturalismo, em linhas gerais, visa a crítica ao “cientificismo das ciências humanas com base na linguística, à pretensão do estruturalismo de construir fundamentos epistemológicos e identificar estruturas universais comuns a todas as culturas e à mente humana em geral [...]”. Além disso, “busca por salientar a pluralidade dos jogos de linguagem que tornam provisório o processo de significação, sem fechamento final, terreno de diferenças sempre passíveis de produzirem novos sentidos”. Desse modo, a ideia de estrutura é substituída pela de discurso, pois na compreensão pós-estruturalista não existem estruturas fixas e nem universais, tal como apresenta o estruturalismo, que fechem de maneira definitiva a significação, mas somente estruturações e reestruturações discursivas (LOPES, 2013). Vale ressaltar que o pós-estruturalismo pode auxiliar aos leitores e autores de trabalhos científicos a reconhecerem seus próprios envolvimentos e investimentos literários no texto científico (AGGER, 1991). Segundo este autor, todo recurso retórico do texto, mesmo aparentemente insignificante, contribui para o seu significado geral: a organização das notas de rodapé, o título do artigo, a descrição do problema, a legitimação do tema de pesquisa, o uso de métodos quantitativos na apresen- 28 Daniel Martínez-Ávila e Mariana Rodrigues Gomes de Mello tação dos resultados, etc. Tudo isso afeta seu sentido geral. O pós-estruturalismo põe em questão uma variedade de normas literárias da ciência empírica, sugerindo que passemos a ler a ciência não como um espelho do mundo, mas como uma forte intervenção literária e imaginativa. Um outro ponto a ser mencionado, é que o pós-estruturalismo busca em Foucault a concepção da microesfera do poder, por meio da investigação das estruturas do saber-poder. Segundo Foucault (2014), o poder não está presente apenas nas grandes esferas, como no Estado. Está em todas as instituições e nas relações intersubjetivas. Todavia, não é em si apenas negativo, sinônimo de dominação, haja vista que tem um aspecto positivo quando consegue criar novos saberes, que podem oprimir, mas também libertar. Portanto, o pós-estruturalismo apresenta elementos interdisciplinares, configurando-se por meio de diferentes correntes. Ao nos deparamos com a visão pós-estruturalista, detectamos que além do combate à dominação, inerente ao conceito de classe social, há a preocupação com o exercício do poder hegemônico de grupos que subordinam outros, tais como homens e mulheres; brancos e negros; heterossexuais e homossexuais. O que implica na necessidade da desconstrução do modelo construído historicamente, incorporado, sem reflexão, e, portanto, aceito como verídico. Além do aspecto discursivo, o pós-estruturalismo abrange na atualidade também os estudos desenvolvidos pela Teoria Queer, Epistemologias Feministas, Teoria Crítica Racial e Teoria Pós-Colonial que questionam a ordem política e cultural hegemônica, buscando uma maior igualdade e rompimento do entendimento da heterossexualidade, masculinidade e branquitude enquanto norma. Todos estes movimentos têm sido aplicados à Organização do Conhecimento (MARTÍNEZ-ÁVILA et al., 2016) e são normalmente ligados às organizações e às reivindicações da esquerda. O objetivo dessas Teorias Críticas não se limita à compreensão da situação social, pois também almeja compreender a forma como a sociedade se organizou historicamente, com suas estruturas hierárquicas e hegemônicas, a fim de transformar sua organização. Aspectos, como conceitos e classificações que se ligam às formas de subordinação ideologicamente construídas, sem o comprometimento com a igualdade racial e de gênero, precisam ser revistos e organizados de uma nova forma, a fim de construir novos conhecimentos mais éticos e libertários. 4 Teorias Críticas e Organizaçao do Conhecimento na atualidade Partimos da concepção de que a Teoria Crítica é uma expressão ampla que denomina e agrega na atualidade todas as teorias que se pautam na negação da ordem preestabelecida pelo positivismo. O contexto político e histórico do século XX, principalmente do final da Segunda Guerra Mundial, à queda do Muro de Berlin, 29 Da Teoria Crítica às Teorias Críticas fez com que os intelectuais, destacando-se os europeus, questionassem o contexto onde estavam inseridos, sem imaginar o terrorismo neoliberal que viria posteriormente. Do mesmo modo que a rebelião geracional faz com que os filhos discordem das ideias dos pais; os filhos acadêmicos de Sartre, Lacan, Barthes e Althusser também questionaram os fundamentos marxistas de seus “pais intelectuais”. Inclusive, a Agência Americana de Espionagem, a CIA, divulgou um estudo (1985) sobre a posição dos intelectuais franceses, destacando suas decepções com o socialismo, o espírito antimarxista e antissoviético exteriorizado mediante argumentos pela liberdade. Outros autores, como Peter Berger, receberam propinas da indústria capitalista do cigarro para caracterizar (TOLLISON, 1985) as campanhas dos governos contra o cigarro como invasões do espaço privado pelo público. Enquanto o debate intelectual tinha focado nos anos anteriores às questões da esquerda versus direita, no pós-modernismo o foco das discussões primou as questões de liberdade versus totalitarismo e privado versus público. Contudo, esta situação tem mudado nos últimos anos. Com a queda do Muro de Berlin e a perda da única esperança de uma alternativa real ao capitalismo, os diversos grupos sociais começaram a sofrer as consequências dos radicalismos neoliberais. As potências capitalistas não precisaram fazer concessões e nem se moldarem, a fim de minimizarem crises, sofrimento e conflitos. As políticas e manobras da extrema direita afetaram de forma maciça, especialmente aos grupos marginalizados e o discurso antitotalitário por ela proclamado se tornou demagógico. Se assim é, nos dias hodiernos, já não há justificativas plausíveis para não associarmos as reivindicações da Teoria Crítica aos movimentos de esquerda, uma vez foi demonstrado que o capitalismo é um sistema falho que tem provocado miséria, fome e milhões de mortos no mundo. O objetivo emancipatório tem que ser global, focado em educação e cientificidade. O discurso da direita tem se mostrado fundamentalista e distante do cientificismo. Em outras palavras, a história tem demonstrado nos últimos anos que as estratégias desconstrucionistas da Teoria Crítica têm sido muito mais efetivas às liberdades individuais quando são aplicadas para expor uma realidade construída pela classe dominante, já que a narrativa hegemônica na atualidade resultou ser a realidade do capitalismo - baseada na retórica dos vencedores e na dissolução da URSS. Nem seu imperialismo e nem sua discriminação são sustentados por argumentos científicos – por exemplo, atualmente, um racista não se apoiaria em alegações científicas, como o darwinismo, ou a frenologia para justificar sua alegada supremacia, mas se ampararia muito no seu privilégio de classe e/ou em algum dogma religioso. Ocorre que os movimentos de esquerda, com o decurso do tempo, se tornaram mais centralizados, com poucas manifestações radicais, aceitando aspectos da economia de mercado, sem perder o foco no cará- 30 Daniel Martínez-Ávila e Mariana Rodrigues Gomes de Mello ter social do Estado. Já os de direita assumiram a forma mais nociva e extrema, a partir da década de 1970, como neoliberalismo. Entendemos que os radicalismos originam sistemas totalitários, opressores, e por si só, antidemocráticos, sejam de direita ou de esquerda. O positivismo, com seu absolutismo terminológico, não se alia aos sistemas libertários e altruístas, visto que não é dialógico e nem complexo. Seria ilógico pensarmos num positivismo crítico. No que tange aos sistemas de Organização do Conhecimento, podemos dizer que são instrumentos retóricos que refletem estes conflitos de forma totalmente arbitrária. Desde o começo da história das bibliotecas a Organização do Conhecimento tem sido utilizada como método para justificar uma dominação - por exemplo, a Biblioteca de Alexandria estava mais interessada na ostentação de poder do que em uma organização realista do conhecimento (FULLER, GORMAN, 1987, FULLER, 1987). Os sistemas de Organização do Conhecimento são sistemas lineares que constroem representações teleológicas de diferentes grupos e conceitos em função de uma priorização e arranjos de facetas. Do mesmo modo que inexiste igualdade na expressão “meninos e meninas”, já que há uma enunciação verbal que obrigue a priorizar um grupo, nos sistemas de organização do conhecimento existe uma priorização de determinados grupos e visões que são colocados como hierarquicamente superiores. Resultando, então, uma representação privilegiada no sistema de recuperação, ou no arranjo físico da unidade de informação. Estas facetas privilegiadas refletem os grupos dominantes considerados normais ou padrões: brancos, etnicamente europeus, protestantes, heterossexuais, sem deficiências físicas, homens e burgueses. Porém, enquanto empresas e interesses econômicos tiverem se envolvendo com a Ciência da Informação e, consequentemente, tendo representatividade no desenvolvimento de sistemas da Organização do Conhecimento - tanto em um sentido estrito bibliotecário, por exemplo a Online Computer Library Center e a Classificação Decimal de Dewey, como lato, no caso do Google, dos algoritmos de relevância e do posicionamento de sistema de busca – as especificidades de classe e as implicações para a representação de diferentes grupos fazem com que as Teorias Críticas estejam mais próximas, como jamais estiveram, da Teoria Crítica da primeira geração em muitos aspetos. Dito isso, na contemporaneidade, o quantitativo continua configurando como ideologia dominante na ciência e os sistemas de organização do conhecimento ainda se mostram suscetíveis na reflexão dos preconceitos de uma maioria privilegiada em varias vertentes, o que se reflete nos ambientes digitais. As lutas das mulheres negras, dos transexuais, dos pobres, entre outros grupos tradicionalmente marginalizados, têm se demonstrado mais relevantes como nunca foram historicamente. Para promover a justiça social, estes movimentos sociais precisam de teo- 31 Da Teoria Crítica às Teorias Críticas rias que apoiem tanto suas reivindicações como suas representações na época dos algoritmos e do big data. Neste sentido, reivindicar a relevância da Organização do Conhecimento aos grupos sociais implica no reconhecimento da Teoria Crítica. Referências ADORNO, T. W; HORKHEIMER, M. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. ADORNO, T. W. Educação e emancipação. 2.ed. 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Igualmente, desde seu processo de formação histórica em cada contexto social de apropriação e de sobredeterminação da palavra escrita para vida pública e privada (da educação ao direito, da medicina à literatura), a bibliografia se desenvolveu como força constituída e constituinte dos regimes políticos. Seja nas ditaduras, seja nos movimentos de revolução social, seja nos projetos democráticos, o papel ocupado pela palavra escrita estabelece um lugar privilegiado da bibliografia como parte do motor da história da opressão, bem como ferramenta para potencial horizonte de emancipação. As listas bibliográficas co-constituintes da Modernidade são um testemunho da luta social marcada pelo massacre e pelo silenciamento de povos e suas pluralidades culturais. O choque civilizatório em sua marcha opõe, nas escadarias das listagens bibliográfica, formas de resistência por visibilidade e dignidade e a avalanche de apagamentos simbólicos repercutidos nas (ausentes) políticas verdadeiramente públicas da Modernidade tardia. 1 Doutora em Ciência da Informação Ciência da Informação pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (USP). 2 Doutor em Ciência da Informação – PPGCI IBICT UFRJ; pesquisador titular (IBICT); professor adjunto (UNIRIO); bolsista de produtividade CNPq 2; bolsista jovem cientista do estado Faperj). A bibliografia e a literatura de povos e comunidades tradicionais no Brasil No Brasil, ao longo dos tempos, a pratica da produção de bibliografias perdeu espaço para os estudos teóricos sobre o tema, representando um descompasso entre desenvolvimento de um projeto de nação e metarrepresentação, pela via da produção bibliográfica, dos saberes e dos fazeres da pluralidade da sociedade brasileira. As instituições que investiam na produção de bibliografias tiveram seus recursos reduzidos, dificultando a coleta, sistematização e análise dos dados de maneira regular, o que inviabiliza a sua publicação, a exemplo da Seção de Bibliografia e Documentação da Biblioteca Infantojuvenil Monteiro Lobato da cidade de São Paulo, que publicava desde 1953 a ‘Bibliografia brasileira de literatura infanto-juvenil’ e teve seu último número publicado no ano de 2006, ou tiveram suas diretrizes alteradas, como foi o caso do Instituto Brasileiro de Brasileiro de Bibliografia e Documentação (IBBD), instituição fundada no ano de 1954, que em 1976 se transformou no Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT). Neste caso, ou seja, no âmbito da fundação do IBBD, uma casa com missão bibliográfica por objeto é fundada na metade do século XX e nos permite fotografar com acuidade o dilema da bibliografia no cenário brasileiro nesses cem anos. Vê-se a partir dali, anos 1950, a separação entre um projeto bibliográfico nacional orientado para o plano da sociedade e da cultura, já não democraticamente representado pela Biblioteca Nacional (cenário que se tornará cada vez pior a cada década da segunda metade do Novecentos, vivendo dos despojos do grande projeto bibliográfico com sementes na Semana de Arte Moderna de 1922), e o princípio de um modelo desenvolvimentista bibliográfico com foco na metarrepresentação da produção científico-tecnológica do país. O indicador de desequilíbrio entre o investimento discriminado entre sociedade-cultura, de um lado, e ciência-tecnologia, de outro, assim como a criação da falsa dicotomia entre essas estruturas de uma só condição social, demonstram a miséria da bibliografia em seu potencial papel de mudança social no Brasil. Ao contrário do desenvolvimento paralelo de um projeto de ensino e pesquisa bibliográfico na pós-graduação, lato e stricto sensu, entre Biblioteca Nacional e IBBD, com foco nas mais amplas perspectivas dos problemas nacionais e, centralmente, lacunas de uma democratização pela via das teorias, métodos e técnicas bibliográficas, funda-se um modelo positivista de bibliografia no país, estruturado no bibliometria bibliometria-fontes científicas. O resultado é: a) o isolamento da ciência perante a sociedade como forma do fazer bibliográfico; b) o silenciamento da produção bibliográfica sociocultural no Brasil, minando as linhas de desenvolvimento de uma teoria crítica brasileira da bibliografia; c) ausência de metarrepresentação bibliográfica das instituições voltadas para preservação e representação da cultura 36 Elisa Campos Machado, Gustavo Saldanha do país, como bibliotecas, como método e indicar para a formação de coleções que manifestem a construção e reconstrução da sociedade brasileira. Nesse cenário, as bibliotecas públicas que dependem de instrumentos para apoiar o processo de tomada de decisão na formação e desenvolvimento de coleções e que tinham as bibliografias temáticas como uma de suas fontes de referência, ficaram apenas com o catálogo bibliográfico da Biblioteca Nacional, instituição responsável pelo depósito legal no Brasil, e com os catálogos de editoras comerciais, como principais fontes de informação para a seleção e aquisição de livros – sem investimento em ensino e pesquisa voltados para os dilemas bibliográficos, como a própria ausência de desenvolvimento de novos métodos para o problema da bibliografia na instituição. Aprofundando um pouco mais essa questão, é importante lembrar que quando pensamos em formação de coleções em bibliotecas públicas é necessário levar em consideração a diversidade cultural que marca a sociedade brasileira e, dentre essas marcas, não podemos deixar de contemplar aquelas que envolvem a cultura dos povos e comunidades tradicionais. Vale registrar que aproximadamente 5 milhões, dos mais de 210 milhões de habitantes no Brasil, integram os povos e comunidades tradicionais, representando uma parcela significativa da nossa população. Suas memórias, histórias, costumes e tradições formam a cultura brasileira e são, ou deveriam ser representadas na literatura, na ciência, na tecnologia entre outros campos de conhecimento. No entanto, esses registros quando existentes são pouco conhecidos, valorizados e difundidos na sociedade que privilegia a cultura de massa dentro de uma produção editorial comercial, bem como o foco isolado do projeto desenvolvimentista científico-tecnológico que marca o modelo bibliográfico nacional a partir dos anos 1950. Como resultado temos, por um lado, um mercado editorial pouco preocupado com a bibliodiversidade e, por outro lado, bibliotecas públicas – incluindo as bibliotecas escolares e universitárias na federação - carentes de coleções que representem a cultura de seus territórios, do seu povo e consequentemente do seu país, ou seja, a invisibilidade da produção cultural dos povos e comunidades tradicionais no Brasil é refletida nos seus acervos. A preocupação com a ausência de coleções nessa temática e as dificuldades no acesso e aquisição desse tipo de material foram apontadas no projeto capitaneado pelo Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas (SNBP)3, órgão do governo federal, à época subordinado ao Ministério da Cultura (MinC), intitulado “Pontos de Leitura Ancestralidade Africana no Brasil”4. 3 Endereço eletrônico: http://snbp.cultura.gov.br 4 Endereço eletrônico: http://ancestralidadeafricana.org.br/ 37 A bibliografia e a literatura de povos e comunidades tradicionais no Brasil Diante da complexidade que envolve a produção, organização, tratamento e difusão da literatura, entendida como uma manifestação artística, em seus diferentes gêneros, acerca da temática dos povos e comunidades tradicionais no país, surgem as seguintes questões: a) O conjunto de publicações na temática literatura brasileira expressa os saberes e a cultura desses grupos? b) Quais são as referências literárias na atualidade nesse campo? c) Estas questões estão no cerne da Organização do Conhecimento e, mais especificamente, as respostas envolvem a ideia do controle bibliográfico, apoiada pela noção de preservação da memória e patrimônio cultural. Dentro desse contexto, este estudo se configurou na aplicação pratica da organização, representação e recuperação da informação e do conhecimento de um determinado conjunto de documentos, que compõem os acervos de bibliotecas públicas – as coleções literárias que abordam a temática dos povos e comunidades tradicionais no Brasil. O objetivo principal foi organizar um instrumento como fontes de informação de literatura de e sobre povos e comunidades tradicionais no Brasil, de maneira a ampliar e consolidar a compreensão acerca das questões que envolvem a constituição de coleções que representem a identidade local, em bibliotecas públicas e comunitárias brasileiras. Ao propor a construção de um repertório bibliográfico dessa natureza a pesquisa se aproxima dos guias de literatura conforme explicita Caldeira (2000), os quais tem por características: - dedicar-se a uma área do conhecimento; ser enumerativo já que arrolam uma série de referências bibliográficas; e, se constituir numa obra de referência. Cabe ainda registrar que a presente pesquisa integra os estudos que vem sendo realizados pelo Grupo de Pesquisa “Bibliotecas públicas no Brasil: reflexão e prática”5, sediado na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO); está alinhada a pesquisa “Organização dos saberes no domínio dos povos e comunidades tradicionais do Brasil: linguagens, tecnologias, instituições informacionais e integração pragmática de dados”, proposta pelo IBICT e aprovada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq); e, é apresentada dentro da linha 1 - Comunicação, Organização e Gestão da Informação e do Conhecimento -, do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia – IBICT associado a Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ/Escola de Comunicação – ECO. 5 Endereço eletrônico: http://culturadigital.br/gpbp/sobre-o-grupo/ 38 Elisa Campos Machado, Gustavo Saldanha 2 A literatura de e sobre povos e comunidades tradicionais no Brasil O recorte temático desse estudo envolve a literatura, entendida no seu stricto sensu, nos gêneros lírico, narrativo e dramático. Antônio Cândido (2004, p. 16) chama de literatura: todas as criações de toque poético, ficcional ou dramático em todos os níveis de uma sociedade, em todos os tipos de cultura, desde o que chamamos folclore, lenda, chiste, até as formas mais complexas e difíceis da produção escrita das grandes civilizações. Especificadamente trataremos da literatura brasileira que aborda temas a respeito dos povos e comunidades tradicionais no Brasil de autoria de integrantes desses coletivos ou não. Cabe ressaltar que o reconhecimento dos povos e comunidades tradicionais no Brasil se deu há bem pouco tempo, no ano de 2007, por meio do Decreto 6.040, que instituiu a “Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais”. Com exceção das políticas indigenistas, até a publicação desse decreto as políticas mais próximas desses grupos eram as ambientais, que relacionavam o meio ambiente aos recursos naturais, mas que deixavam de lado os indivíduos diretamente ligados com a terra, a exemplo das comunidades ribeirinhas, caiçaras, quilombolas e até mesmo indígenas. Por meio desse decreto se definiu quem são os grupos que fazem parte dos povos e comunidades tradicionais no Brasil, ou seja, grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos por tradição (BRASIL, 2007, p. 1). Com uma política nacional formalizada foram reconhecidos como grupos que fazem parte dos povos e comunidades tradicionais as Andirobeiras, os Apanhadores de flores sempre-vivas, Babaçueiros, Beiradeiros, Caatingueiros, Caboclos, Caiçaras, Campeiros, Camponeses, Canoeiros, Castanheiras, Catadores de caranguejo, Catadores de mangaba, Chapadeiros, Giganos, Cipozeiros, Faiscadores, Faxinaleses do Paraná e região, Fundo de fecho de pastos da Bahia, Geraizeiros, Ilhéus, Indígenas, Isqueiros, Jangadeiros, Marisqueiros, Morroquianos, Pantanei- 39 A bibliografia e a literatura de povos e comunidades tradicionais no Brasil ros, Pastoreiros, Pequizeiros, Pescadores artesanais, Piaçaveiros, Pomeranos, Povos de terreiros, Praieiros, Quebradeiras de coco de babaçu, Quilombolas, Remeiros, Retireiros, Ribeirinhas, Seringueiros, Sertanejos, Vaqueiros, Vajeiros, Vazanteiros e Veredeiros. Cada qual em seu território, de norte a sul, leste e oeste do país, produzindo seu sustento e passando de geração para geração suas culturas e tradições. Perceba-se que, dada a experiência histórica e extensão continental do país, essas identidades apontadas não representam a pluralidade da realidade social brasileira. São parte – potencialmente pequena – de uma vastidão de saberes, de fazeres, de viveres ramificados no território do Brasil, seja no meio urbano, seja no meio rural, seja na vasta fronteira do país. Dentre os povos e comunidades tradicionais, são os povos indígenas e sertanejos que estão mais presentes nos registros da história da literatura brasileira. O indígena6 aparece deste o período chamado Quinhentimos, no século XVI, marcado pela produção literária informativa sobre o Brasil. Destaca-se nesse período José de Anchieta que produziu “obras especificamente literárias, em quatro línguas, algumas vezes misturadas: português, espanhol, latim e tupi” (CANDIDO, 1999, p. 17). No entanto, esse acolhimento e respeito a expressão linguística indígena, mais aberta aos grupos dominados, não foi aprovada no Brasil Colônia já que a ordem era que a literatura culta registrada nos escritos da época deveria ser na língua portuguesa. A produção literária do século XVI e XVII está localizada na Bahia e é marcada por produções individuais, com uma função social, que pode ser classificada em literatura religiosa, oficial e comemorativa, apresentada na forma de sermões, odes, sonetos, discursos e descrições. É no século XVIII que surgem as Academias de Letras e que começa a se formar o sentimento de uma atividade literária comum no país (CANDIDO, 1999). É também no século XVIII que surgem as primeiras obras que discutem o conflito entre colonizadores e indígenas, “Caramurú” (1781) de José de Santa Rita Durão e “Uraguaia” (1769) de José Basílio da Gama. Essas obras são consideradas a marca inicial da corrente indianista romântica na história da literatura brasileira. A segunda metade do século XVIII e começo do século XIX foi marcada por uma literatura que tinham como conteúdo os temas indígenas e religiosos, cum- 6 “O termo usado no século XV era índio, no entanto, optamos por adotar o termo indígena no lugar de índio neste trabalho. Isso se deve ao fato desse termo ter sofrido uma mudança de conotação ao longo dos tempos. Conforme explica Munduruku (2015) em entrevista a Radio EBC. O termo índio na atualidade carrega uma conotação ideológica preconceituosa e omite a diversidade característica dos povos indígenas.” 40 Elisa Campos Machado, Gustavo Saldanha prindo assim a missão de transformar o indígena num símbolo nacional dentro de um cenário tropical e exótico. José de Alencar, se destaca na corrente indianista com as obras “Iracema” e “O Guarani”. É a dimensão nacionalista dentro do Romantismo na literatura brasileira que buscava sua independência da literatura culta europeia. Segundo Candido (1999, p. 42) a corrente indianista: Serviu inclusive para mascarar (como disse Roger Bastide) a herança africana, considerada então menos digna, porque o negro ainda era escravo e não fora idealizado pelas literaturas da Europa, que, ao contrário, fizeram do indígena um personagem cheio de encanto e nobreza, como se deu na obra de Chateaubriand e, na América do Norte, na de Fenimore Cooper. Somente no final do século XIX, dentro do cenário abolicionista que se instaurava no país, que surgiu a poesia em solidariedade aos escravos que teve seu grande representante o poeta Castro Alves e os romances que enfocam as causas populares ligadas aos povos negros, como é o caso da obra “A escrava Isaura”, de Bernardo Guimarães. Casos como do romance “Úrsula”, de Maria Firmina dos Reis, mulher negra e maranhense, publicado no ano de 1859, antes mesmo de “Navio Negreiro” publicado em 1880, entraram para o rol das obras esquecidas na história da literatura brasileira. Nesse mesmo período, começou a crescer a importância da vida no campo no texto literário marcando o início da corrente Regionalista7, que é caracterizada pela descrição de lugares e costumes do interior do país em oposição a cidade. Essa corrente literária abriu espaço para a presença das comunidades sertanejas na literatura brasileira, como pode ser verificado nas obras de Bernardo Guimarães, Franklin da Távora, Simões Lopes Neto e posteriormente de Euclides da Cunha, Guimarães Rosa entre outros. O caipira, também considerado dentro dos grupos de comunidades tradicionais está fortemente presente na literatura dessa época, especialmente em Monteiro Lobato. Apesar de termos obras na corrente Regionalista que respeitam e valorizam a identidade do povo sertanejo, a exemplo das obras memoráveis de Guimarães Rosa, grande parte da produção literária dessa corrente é marcada pela 7 O termo regionalismo foi usado inicialmente para caracterizar a literatura produzida fora do Rio de Janeiro, nas províncias. Somente nos anos de 1920, a noção de regionalismo entraria definitivamente para o pensamento crítico e histórico e também como tomada de consciência do particular e da reivindicação da especificidade literária e cultural (GIL, 2019, 61). 41 A bibliografia e a literatura de povos e comunidades tradicionais no Brasil superficialidade e se “baseava no interesse elitista pelo homem do campo, visto à maneira de um objeto pitoresco e caricatural, podendo nos cultores menores chegar a uma vulgaridade folclórica ao mesmo tempo tola e degradante (CANDIDO, 1999, p. 66). Na história da literatura brasileira são os modernistas, a partir do século XX, que tentam implementar um novo olhar sobre o Brasil e o seu povo. É entendido como o momento em que a literatura brasileira atinge a sua maturidade. Vale apontar alguns destaques para a relação da literatura nessa nova fase com os povos e comunidades hoje reconhecidas tradicionais em “Macunaíma” de Mario de Andrade (1928), que une o indígena, o negro e o branco e é considerado uma obra-prima na história da literatura brasileira; “Cobra Norato” (1931) que tem por tema os povos da floresta e “Urucungo” (1933), considerada a mais representativa obra da geração vanguardista sob a influência da estética negra, ambas de Raul Bopp; “Grande sertão: veredas” (1956) de Guimarães Rosa obra prima da literatura brasileira assim considerada por transcender os limites da proza regionalista; e “Maíra” (1976) romance do antropólogo Darcy Ribeiro que retoma a temática indígena. Na busca de indícios da presença dos povos e comunidades tradicionais na história crítica da literatura brasileira foi possível reconhecer o indígena, o negro, o sertanejo, o caipira e o ribeirinha. No entanto, nem sempre essas mesmas representações são reconhecidas por seus coletivos, já que na maioria das vezes foram estereotipadas e tratadas como uma coisa, ou objeto e não como sujeitos de sua própria história. O caso dos negros na literatura é representativo e Proença Filho (2004) apresenta um minucioso estudo sobre o assunto no artigo A trajetória do negro na literatura brasileira. O negro tem os olhos azuis em “O mulato” de Aluízio de Azevedo, o escravo é vítima em “Navio negreiro” de Castro Alves e nobre em “A escrava Isaura” de Bernardo Guimarães, esses são só alguns dos exemplos que poderem ser mencionados. Além disso, O problema da representatividade não se resume, é claro, à honestidade na busca pelo olhar do outro ou ao respeito por suas peculiaridades. Está em questão a diversidade de percepções do mundo, que depende do acesso à voz e não é suprida pela boa vontade daqueles que monopolizam os lugares de fala (DALCASTAGNÈ, 2007, p. 20). Apesar da literatura ser um espaço privilegiado para a diversidade de vozes e para a manifestação do reconhecimento das múltiplas expressões culturais de 42 Elisa Campos Machado, Gustavo Saldanha grupos considerados subalternos, é igualmente depósito da opressão, do racismo e da violência contra povos e comunidades tradicionais. Neste sentido, condição da representação do indígena e do negro só se altera efetivamente na literatura brasileira, a partir do momento em que estes assumem a autoria de suas obras, e passam de objetos a sujeitos de sua história, o que acontece muito recentemente, na chamada literatura contemporânea8, final do século XX em diante. A presença desses autores ainda é pequena como aponta pesquisas do Grupo de estudos em literatura contemporânea da Universidade de Brasília (UnB): O perfil do romancista brasileiro publicado por grandes editoras se manteve o mesmo por pelo menos 43 anos. Ele é homem, branco, de classe média, nascido no eixo Rio-São Paulo. Seus narradores, protagonistas e coadjuvantes são em sua maioria homens, também brancos, de classe média, heterossexuais e moradores de grandes cidades (MASSUELA, 2018) Já o sertanejo, dentre os povos e comunidades tradicionais, talvez seja o coletivo mais bem representado na literatura. Isso pode ter ocorrido pelo fato do número significativo de autores nordestinos que estavam mais próximos da realidade do seu povo. Nesse sentido vale ler esse trecho de entrevista de Guimarães Rosa: Nós, os homens do sertão, somos fabulistas por natureza. Está no nosso sangue narrar estórias; já no berço recebemos esse dom para toda a vida. Desde pequenos, estamos constantemente escutando as narrativas multicoloridas dos velhos, os contos e lendas, e também nos criamos em um mundo que às vezes pode se assemelhar a uma lenda cruel. Deste modo a gente se habitua, e narra estórias que corre por nossas veias e penetra em nosso corpo, em nossa alma, porque o sertão é a alma de seus homens [...] Eu trazia sempre os ouvidos atentos, escutava todo o que podia e comecei a transformar em lenda o ambiente que me rodeava, porque este, em sua essência, era e continua sendo uma lenda (LORENZ, 1991, p. 64). Os vaqueiros, os caatingueiros, remeiros, entre outros representantes dos povos sertanejos tem a seu favor a cultura da literatura do cordel, que se apresenta 8 Para alguns críticos a literatura contemporânea é marcada a partir dos anos de 1960 e para outros a partir dos anos de 1980, mas sem dúvida podemos dizer que foi a partir da metade do século XX que ela se estabelece. 43 A bibliografia e a literatura de povos e comunidades tradicionais no Brasil na forma de poesia popular, produzida por autores locais e reconhecida, em 2018, como patrimônio cultural imaterial brasileiro. No Brasil, no campo dos estudos literários contemporâneos, o debate e a preocupação com o espaço e a representação de grupos marginalizados tem se ampliado, reconhecendo a necessidade de legitimar os diferentes grupos sociais que são menosprezados dentro da cultura dominante no fazer literário. A representação na literatura tem também a sua importância política, pois através dela um determinado grupo pode ter sua cultura valorizada ou apagada. Nesse cenário onde está o direito a literatura dos povos e comunidades tradicionais no Brasil? O direito a literatura, tão defendido por Antônio Candido (2004) é explicitada na Lei 13.696, de 12 de julho de 2018, que institui a “Política Nacional de Leitura e Escrita”, e se relaciona as questões que envolvem a igualdade, a identidade, dignidade e o respeito a diversidade dentro do contexto da formação cidadã de um povo e de uma nação. No caso da produção literária de e sobre os povos e comunidades tradicionais no Brasil esse direito está previsto no inciso XIV do 1º. Artigo, do Decreto 6040, que aborda as questões relativas a preservação dos direitos culturais, a memória cultural e a identidade racial e étnica. Do ponto de vista bibliográfico, esse direito integra a metarrepresentação da pluralidade cultural do país, seus povos, seus saberes, seus fazeres, seus viveres, através dos sistemas instituídos pela bibliografia. Trata-se, no plano da política, de perceber como a experiência social e científica da bibliografia está presente nas mais diferentes formas do agir na cidade na Modernidade. A isso chamamos o horizonte da democracia documentária, a procura por uma construção da bibliografia como forma política por fundamento. Os direitos sociais e culturais, os direitos à saúde e à educação, passam, nesse construto conceitual, por uma necessária formação bibliográfica do país em seu amplo sentido – formação como processo educativo, como criação de serviços e produtos, como manifestação de mecanismos de mudança social. Sendo um direito é imperativo que a produção literária sobre e dos povos e comunidades tradicionais seja conhecida e difundida e a Biblioteconomia e a Ciência da Informação podem colaborar não só participando dos debates e reflexões acerca dessa temática, mas também na produção de métodos e instrumentos que organizem a produção literária de e sobre esses grupos. 3 A formação e desenvolvimento de coleções identitárias Dentre as formas de colaboração para que os direitos culturais dos povos e comunidades tradicionais no Brasil sejam reconhecidos, valorizados e difundidos, podemos considerar a formação e desenvolvimento de coleções em bibliotecas. Para isso é necessário identificar, selecionar, adquirir e tratar obras que tenham os 44 Elisa Campos Machado, Gustavo Saldanha povos e comunidades tradicionais como conteúdo temático. Cabe registrar que a produção cultural de um povo ou comunidade tem uma abrangência documentaria que vai além da produção literária e do formato de livro, no entanto, esse foi o recorte temático e a opção metodológica adotada neste estudo; - trabalhar com documentos no formato de livro e de manuscrito9 que tenham por assunto a literatura brasileira de e sobre os povos e comunidades tradicionais. No entanto, a complexidade que envolve a produção, difusão, circulação e recuperação de obras de literatura dessa natureza interfere substancialmente no desenvolvimento de coleções em bibliotecas, como apontado por Cidinha da Silva (2014) na obra “Africanidades e relações raciais: insumos para políticas públicas na área do livro, leitura, literatura e bibliotecas no Brasil”, bem como, na investigação de Graciele Ferreira (2017) intitulada “A biblioteca pública e a promoção da cultura e identidade de remanescentes Quilombolas: o projeto Pontos de Leitura Ancestralidade Africana no Brasil”. Essas são apenas duas fontes, entre outras, que evidenciam a carência de políticas públicas estruturantes que contribuam para superar os desafios da ausência de coleções bibliográficas nos acervos das bibliotecas brasileiras com registro da memória e dos saberes de grupos sociais menos favorecidos na sociedade brasileira atual. Entende-se que entre as diferentes instituições de cultura e memória são as bibliotecas públicas e comunitárias, associadas a noção da promoção da cultura que devem formar, manter e disponibilizar acervos que representem a cultura local. Silveira e Reis (2011, p. 47) defendem que as bibliotecas públicas são “lugares de memória”, justamente porque suas funções sociais estão respaldas por ações que objetivam preservar e disseminar os saberes concebidos pelo fazer racional humano. Além disso, as diretrizes do SNBP para a formação e desenvolvimento de acervos em bibliotecas públicas prevê: • Qualidade: dotar o acervo das contribuições mais significativas nas diversas áreas do conhecimento e do pensamento, bem como dos autores mais representativos no campo das ideias e da literatura local, nacional e estrangeira; • Literatura: romances, poesias, contos, crônicas e outros gêneros literários; é importante contemplar a produção literária local, estadual e/ou regional; • Histórico-documental: materiais relativos à memória sociocultural e histórico-documental local; • Pluralidade: respeitar a bibliodiversidade, a variedade e a multiplicidade das fontes de informação, não devendo a instituição impor quaisquer restrições 9 Manuscrito referem-se a documentos não publicados 45 A bibliografia e a literatura de povos e comunidades tradicionais no Brasil de natureza ideológica, filosófica ou religiosa, nem adotar um discurso único, para a formação do acervo” (SISTEMA NACIONAL DE BIBLIOTECAS PÚBLICAS, 2013?, não paginado). Para que uma biblioteca pública cumpra suas funções é preciso que seu acervo reflita as necessidades e desejos de leitura de sua comunidade (IFLA; UNESCO, 1994). No entanto, como alertam Tanus e Cardoso (2018), no Brasil, essa mesma biblioteca pública, entendida como uma instituição social, carrega marcas das classes dominantes e, em especial, no que se refere a realidade de suas coleções são formadas por obras literárias, predominantemente, de autoria masculina, branca, com forte presença da literatura estrangeira. A tarefa do bibliotecário/a que está a frente da formação e desenvolvimento de coleções em bibliotecas públicas é buscar informação para proceder a seleção das obras que deverão constituir as coleções específicas em suas bibliotecas, nesse ponto é preciso retomar as questões iniciais dessa pesquisa: - Qual literatura publicada no país expressa os saberes e a cultura desses grupos na atualidade? Quais são as referências literárias nesse campo? São poucas as fontes de informação que podem responder essas questões, a exemplo da “Bibliografia brasileira de publicações indígenas”, organizado por Aline Franca, Daniel Munduruku e Thulio Gomes, de 2019 que busca inventariar toda a produção literária e não literária dos povos indígenas, ou ainda o “Repertório bibliográfico sobre a condição do negro no Brasil”, organizado pela Câmara dos Deputados, publicado no ano de 2018, que abrange as comunidades quilombolas já que seu recorte é a população negra no país. Além disso, algumas instituições que se dedicam a determinados povos são também importantes fontes, a exemplo do Museu do Índio que disponibiliza um catálogo bibliográfico online. Os catálogos bibliográficos poderiam contribuir para responder com maior precisão essas questões, no entanto, da representação temática adotada nas bibliotecas brasileiras não chega a tal especificidade. Aqueles catálogos que estão disponíveis online não possibilitam a recuperação por assuntos específicos como por exemplo literatura brasileira e comunidades tradicionais, ou ainda, bibliotecas que possuem tais coleções não disponibilizam catálogos bibliográficos online, como é o caso da Biblioteca da Floresta do Acre que possui uma coleção riquíssima, de e sobre os povos da floresta, que só pode ser consultada presencialmente. É dentro desse contexto que a bibliografia de literatura na temática dos povos e comunidades tradicionais brasileira foi apontada nesse estudo como um instrumento capaz de dar visibilidade para conteúdos específicos que não encontram lugar e voz na sociedade. 46 Elisa Campos Machado, Gustavo Saldanha 4 Os desafios metodológicos para o trabalho bibliográfico Os estudos sobre bibliografias partem de Gesner e da Bibliotheca Universallis, passando pelo Repertoire Bibliographique Universel, de Paul Otlet e La Fontaine, conforme registram vários autores (PINHEIRO, 2015; SALDANHA, 2015; CRIPA, 2019). Dentro desse contexto histórico, Saldanha (2015, p. 147), destaca os estudos a obra Dictionnaire Raisonné, de Gabriel Peignot, publicada em 1802 e “compreendida como um dos pioneiros discursos epistêmicos gerais de tentativa de afirmação de um campo científico orientado às práticas de preservação, organização e disseminação dos saberes registrados”. Vale registrar que no Brasil a influência de Paul Otlet fomentou a criação do Instituto Brasileiro de Brasileiro de Bibliografia e Documentação (IBBD), instituição fundada no ano de 1954 que teve seu nome alterado para Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT) em 1976. O IBBD e atual IBICT, sempre esteve preocupado com o controle bibliográfico. Durante sua trajetória produziu uma série de bibliografias em parceria com outras instituições de ensino e pesquisa, mas ao longo dos tempos houve uma mudança de enfoque em suas pesquisas. Infelizmente, no Brasil, a produção bibliográfica é marcada pela descontinuidade e, a partir da década de 1970 pela quase inexistência, como afirma Crippa (2019, p. 14). Não cabe aqui aprofundar as discussões acerca dos estudos e reflexões que fundamentam a bibliografia, nem mesmo se pretende apresentar seu percurso histórico, mas é importante registrar sua relevância para a Biblioteconomia e Ciência da Informação, sua intima relação com as questões que envolvem a memória individual e coletiva de uma sociedade e o seu papel referencial na formação e desenvolvimento de coleções dos diferentes tipos de bibliotecas. Ao discutir a práxis dos fazeres bibliográfico Crippa (2016, p. 24) utiliza o termo ‘gesto bibliográfico’ e o define: como o estabelecimento, por parte do bibliógrafo, de sentidos aos dados, orientando-os dentro de um quadro de conhecimentos socialmente compartilhados que ele, na medida em que manipula os registros produzidos, contribui para constituir, desenvolvendo técnicas e selecionando tecnologias. Estamos falando dos atos de coleta, seleção, registro e organização dos materiais que fazem parte de um determinado recorte temático. Dentre esses atos, para o estabelecimento da forma de apresentação do registro optamos pela adoção da Norma Técnica 6023 de 2018. Foram os atos que envolvem a coleta, seleção e organização dos registros que se mostraram como os grandes desafios nesse estudo. 47 A bibliografia e a literatura de povos e comunidades tradicionais no Brasil Para nós a coleta e seleção estão intimamente ligados, pois são os critérios de seleção que direcionam o ato da coleta. No recorte da pesquisa já foram estabelecidos os principais critérios: obras na forma de livros ou manuscritos; na categoria literatura brasileira; com temática sobre os povos e comunidades tradicionais; privilegiando as edições mais recentes. No entanto, foi durante a processo de investigação do universo que surgiu o primeiro desafio: - seriam consideradas somente obras de autoria de pessoas que fazem parte desses coletivos, ou seriam considerados também aquelas obras escritas por pessoas de fora das comunidades? Na história da literatura brasileira, como vimos anteriormente, as obras categorizadas como indigenistas e regionalistas não refletem a realidade dessas culturas, poucos são os autores que conseguem fugir da narrativa estereotipada e preconceituosa, no entanto, são esses mesmos autores os mais fáceis de serem acessados e adquiridos, pois foram publicados comercialmente e encontram-se nas prateleiras das grandes editoras e livrarias. Se quisermos que essa bibliografia sirva de base para estudo sobre a temática que envolvam o campo da crítica literária a resposta é sim, no entanto, se essa bibliografia tiver por objetivo dar voz aos sujeitos que fazem parte dos povos e comunidades tradicionais a resposta será não. Inicialmente decidimos coletar obras de e sobre os povos e comunidades e indicar ao leitor aquelas que são escritas por autores que fazem parte desses coletivos. Diante dessa decisão é importante considerar que a quantidade de obras sobre a temática em questão é vasta e envolve os clássicos da literatura brasileira e também a literatura publicada individualmente, ou por pequenas editoras locais, pouco conhecidas pela grande maioria da população. As obras publicadas fora do circuito das editoras comerciais, principalmente aquelas produzidas por membros dessas comunidades estão dispersas pelo país, tornando o ato da coleta o segundo desafio, pois como as dimensões e condições sociotécnicas do Brasil é impossível que essa tarefa seja feita por uma única pessoa de um único ponto do país. Para ampliar a abrangência da coleta optamos pela adoção de uma metodologia de trabalho colaborativa envolvendo profissionais e instituições que tem o reconhecimento e a valorização da literatura brasileira identitária por objetivo comum, mas que além disso também atuem junto a coleções que respeitem o princípio da bibliodiversidade, a exemplo das bibliotecas comunitárias que integram a Rede Nacional de Bibliotecas Comunitárias (RNBC)10. Há de se levar em conta que o trabalho colaborativo envolve a formação de um repertório comum ao grupo de profissionais e pesquisadores envolvidos, diante disso, foi criado um espaço coletivo virtual para o estudo, debate e reflexão de temas que envolvem o fazer bibliográfico, o controle 10 Endereço eletrônico: https://rnbc.org.br 48 Elisa Campos Machado, Gustavo Saldanha de vocabulário na temática dos povos e comunidades tradicionais, a padronização e os métodos de coleta e registro de documentos. Por fim, o terceiro desafio se apresentou no ato de organização dos registros. O planejamento inicial já apontava para a necessidade de estabelecer o arranjo no qual os registros seriam apresentados, levando em consideração a recuperação das obras por povos e comunidades. Tendo em vista a carência de instrumentos de controle de vocabulário nessa temática específica, foi necessário fazer um levantamento dos termos que representam esses coletivos, identificar as sinonímias e estabelecer as relações hierárquicas e de equivalência. Esse vocabulário controlado criado pelo grupo será utilizado para classificar as obras coletadas. 4 Considerações finais A compreensão de um projeto de democracia documentária, conforme o percurso desta pesquisa pressupõe a necessária metarrepresentação de povos e comunidades tradicionais através de fontes de referência capazes de avançar, continuamente, na representação social dos saberes, dos fazeres e dos viveres dessas sociedades. O exercício científico aqui desenvolvimento demonstra caminhos para essa política bibliográfica, operacionalização a expressão conceitual da bibliografia como ato político. Igualmente, o estudo comprova as lacunas e aponta horizontes para a aplicação do princípio da bibliodiversidade na formação e desenvolvimento de coleções de bibliotecas no país. Sobressai aqui o questionamento da capacidade de representação democrática de tais coleções, com destaque para o vínculo necessário de problematização e de efetivação da noção de coleções identitárias na reflexão sobre os acervos do país. Trata-se de correlacionar, inicialmente, os discursos de e sobre povos e comunidades tradicionais presentes no território bibliográfico nacional. A construção do ‘Repertório bibliográfico de literatura sobre e de povos e comunidades tradicionais no Brasil’ constitui, pois, nessa medida, uma práxis: a construção do próprio percurso de questionamento conceitual e ferramental a partir de e com a bibliografia para a metarrepresenatação sociocultural da realidade brasileira. Referências BRASIL. Decreto nº 6.040, de 7 de fevereiro de 2007. Institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, 07 fevereiro 1992. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato20072010/2007/decreto/d6040.htm. Acesso em: 28 dez. 2021. 49 A bibliografia e a literatura de povos e comunidades tradicionais no Brasil BRASIL. Lei nº 13.696, de 12 de julho de 2018. Institui a Política Nacional de Leitura e Escrita. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, 2018. 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Que ferramentas teremos de desenvolver para dar conta da produção do conhecimento e de sua recepção quando verificamos que as referências da documentação ainda estão assentadas nas hierarquias, no privilégio dos substantivos (as essências) e, muitas vezes, em parâmetros universais? Nesse mesmo sentido, Saldanha e Souza (2017, p. 16) ao se referirem aos métodos da Organização do Conhecimento também questionam: “qual a capacidade de refletir sobre a condição social e qual a propensão de lutar pelas mudanças (de seus construtos e daqueles imersos na complexidade do mundo social)?” Verifica-se, então, que de um lado tem-se a complexidade inerente ao conhecimento que vem sendo produzido sobre questões sociais e, de outro lado, o ques1 Doutor em Ciência da Informação pela UNESP. Professor na UFPE. E-mail: [email protected] Termos fronteiriços no domínio gênero e sexualidade na Organização... tionamento sobre como a Organização do Conhecimento desenvolverá seu arcabouço teórico-metodológico para tratar dessas questões complexas com intuito de desenvolver sistemas eticamente aceitáveis. Felizmente a comunidade científica, composta por pesquisadores da Organização do Conhecimento, não tem ignorado tal fenômeno e seus reflexos, mesmo na perspectiva dos paradigmas físico e cognitivo da Ciência da Informação. De tal modo, observa-se que o capítulo brasileiro da ISKO (International Society for Knowledge Organization) preocupou-se em destacar, em seus eventos, as pesquisas de cunho político-social atribuindo-lhes um espaço próprio (eixo) para discussão. É nesse cenário que surge esta pesquisa sobre termos fronteiriços no domínio gênero e sexualidade com a justificativa de que tal estudo possui utilidade social à medida que seu compromisso com a comunidade usuária seja de tornar-lhe disponível informação passível de ser utilizada da melhor maneira possível em seu dia-a-dia, distanciando-se de aspectos relativos à censura ou discriminação. Diante disso, essa pesquisa se justifica também porque revisita métodos tradicionais da Organização do Conhecimento no sentido de compreendê-los em contextos complexos e plurais de conhecimento produzido, demonstrando não apenas sua utilidade, mas também, o impacto social dos seus resultados. Diante disso, esta pesquisa fundamenta-se no pós-estruturalismo subjetivo, pois segundo Martínez-Ávila e Beak (2016, p. 360), “consiste na existência de múltiplas realidades e o posicionamento epistemológico tenta revelar as premissas subjacentes a essas realidades”. E por que termos fronteiriços no domínio de gênero e sexualidade? Porque alguns termos que materializam determinadas identidades subjacentes a gênero e sexualidade não se enquadram, em termos classificatórios, em dicotomias ou hierarquias. Por conta disso, eles são considerados fronteiriços, pois as características epistêmicas de seus conceitos transitam por múltiplas classes ou negam algumas delas. Assim sendo, são termos que estão nas fronteiras podendo ou não pertencer a várias classes. Nesse sentido, a problemática da pesquisa reside no fato de que esses termos fronteiriços materializam uma realidade diversa social e culturalmente que confrontam com os métodos tradicionais de organização e representação do conhecimento, tais como as categorias fundamentais de Ranganathan (PMEST). Diante disso, tem-se a seguinte questão de pesquisa: as categorias fundamentais de Ranganathan (PMEST) e os mapas conceituais são adequados para organizar termos fronteiriços no domínio de gênero e sexualidade? Para responder a essa questão, o objetivo desta pesquisa foi verificar a adequação das categorias fundamentais de Ranganathan (PMEST) e de mapas conceituais para organizar termos fronteiriços no domínio de gênero e sexualidade. 56 Fabio Assis Pinho 2 Organização do Conhecimento em gênero e sexualidade Para a elaboração de Sistemas de Organização do Conhecimento (SOC), tais como tesauros, classificações bibliográficas, ontologias etc. são necessárias as garantias de uso/usuário, literária, cultural entre outras. As garantias mais recorrentes para elaboração de SOC são a literária e a de uso/usuário, sendo que a primeira pressupõe que a base léxica seja oriunda da produção de conhecimento do domínio estudado e, a segunda, pressupõe que a comunidade discursiva faça uso da base léxica em questão. Entretanto, Barité et al. (2010, p. 124) destacam que “faltam estudos regulares sobre o estado de reconhecimento do princípio” e que as metodologias de SOC fazem menções esporádicas sobre o uso e aplicação de tais garantias, particularmente a literária. As garantias validam os temas oriundos dos documentos pertencentes ao domínio. Na mesma proporção, a análise de domínio possibilita que os estudos terminográficos e terminológicos para SOC possibilitem a compreensão daquela área/ campo/comunidade discursiva. Dessa maneira, os estudos de gênero e sexualidade são considerados como o domínio a ser compreendido a partir da compreensão de Hjørland (2002). Tennis (2012, p. 6) elenca dois tipos de análises de domínio para criar os SOC: a descritiva e a instrumental. Enquanto a primeira é regida pelos interesses dos pesquisadores no domínio e em pesquisas básicas, a segunda é utilizada pelos desenvolvedores de SOC em pesquisas empíricas/aplicadas. Dessa forma, ao estudarmos um domínio torna-se necessário nomeá-lo, defini-lo e identificar seu escopo, alcance e propósito. Assim, compreendemos gênero e sexualidade como o domínio a ser investigado por meio de um estudo terminográfico e terminológico, na perspectiva da Organização do Conhecimento, com o intuito de entender essas realidades sociais. Com isso, o desafio da Organização do Conhecimento na contemporaneidade situa-se na tentativa de integrar a multiplicidade sociocultural, particularmente no tocante a gênero e sexualidade, nos seus sistemas. Segundo Guimarães (2017, p. 92-93), na “dimensão cultural, os maiores desafios se colocam no sentido de se evitar o preconceito, o proselitismo e as dominações culturais de modo a promover a compatibilização entre a necessidade de uma comunicação global e o respeito às questões locais”. Tal dimensão citada deve ser considerada pela tríade que rege a atuação da Organização do Conhecimento, sendo: o domínio, a materialidade da informação e os métodos da Organização do Conhecimento, conforme figura 1 a seguir. 57 Termos fronteiriços no domínio gênero e sexualidade na Organização... Figura 1 – Tríade de atuação da Organização do Conhecimento. Fonte: Interpretação do autor. O domínio de gênero e sexualidade, nesta pesquisa, parte do entendimento de construção social, onde o gênero possui características descritas pela sociedade, a partir da dicotomia masculino e feminino e, sexualidade, por sua vez, é compreendida a partir de um conjunto de comportamentos para satisfação do desejo. Em ambos há elementos que farão parte da identidade do sujeito. Percebemos que o domínio de gênero e sexualidade possui um conjunto de fatores que dificilmente se encaixam em uma definição única e absoluta. Esse domínio é submetido aos procedimentos metodológicos da Organização do Conhecimento que, por sua vez, estão sustentados nos nove princípios propostos por Hjørland (1994, p. 91-100), a saber: 1) a percepção realístico-ingênua de estruturas do conhecimento não é possível em ciências mais avançadas (critério esse baseado na filosofia da ciência); 2) categorizações e classificações devem reunir assuntos relacionados e separar assuntos distintos; 3) para fins práticos, o conhecimento pode ser organizado de diferentes formas, e com diferentes níveis de ambição; 4) qualquer categorização deve refletir seu próprio objetivo; 5) categorizações científicas concretas e classificações sempre podem ser questionadas; 6) a importância do conceito de polirrepresentação; 7) diferentes artes e ciências podem, de certo modo, ser entendidas como diferentes formas de organizar os mesmos fenômenos; 8) a natureza das disciplinas é variável; 9) a qualidade da produção do conhecimento em muitas disciplinas enfrenta uma situação confusa. Entendemos, dessa forma, que a complexidade do domínio em questão – gênero e sexualidade – não é simplista e, por conta disso, deve ser organizado de forma 58 Fabio Assis Pinho individualizada e os termos fronteiriços inerentes a ele não encontrarão respaldo nas categorizações dicotômicas convencionais. Dessa forma, neste estudo foram destacados dois métodos: a categorização de Ranganathan (PMEST) e a elaboração de mapas conceituais. Os termos fronteiriços relativos ao domínio de gênero e sexualidade são oriundos de publicações científicas e, diante disso, eles perfazem a tríade de atuação da Organização do Conhecimento, uma vez que, são oriundos da materialidade da informação onde o conhecimento a respeito do domínio é produzido. Temos, portanto, os termos fronteiriços oriundos da literatura científica vislumbrando o que Buckland (1991) denomina de “informação-como-coisa”, ou seja, o documento e/ou documentação científica. A partir dos teóricos citados anteriormente, encontra-se a seguir, o percurso metodológico utilizado para dar resposta à questão de pesquisa e, consequentemente, alcançar o objetivo proposto, bem como, as análises realizadas. 3 Análise dos termos fronteiriços Esta pesquisa foi considerada exploratória à medida que buscou familiaridade com o tema – termos fronteiriços no domínio de gênero e sexualidade – com o objetivo de verificar a adequação das categorias fundamentais de Ranganathan e dos mapas conceituais para organizá-los. Nascimento, Leite Júnior e Pinho (2016) haviam alertado para os desafios que a Organização do Conhecimento teria em relação ao domínio gênero e sexualidade, especialmente, para que processos, produtos e instrumentos fossem permeados de forma ética. Consequentemente, Pinho, Melo e Oliveira (2019) investigaram como o domínio gênero e sexualidade é representando em dois catálogos bibliográficos, demonstrando não apenas a generalização com a qual os termos do domínio são tratados, mas também os problemas éticos decorrentes. A partir de então, o fio dessa linha de pesquisa foi sendo amarrado aos interesses dos estudos políticos e culturais da Organização do Conhecimento. Nesse sentido, os 35 termos fronteiriços em relação a gênero e sexualidade foram extraídos das palavras-chave dos artigos científicos publicados em Journal of Homosexuality, Sexualities e Journal of Gay & Lesbian Mental Health, entre os anos de 2010 e 2019, sendo eles: agender, aliagender, ambigender, androgine, bigender (female-male), butch non-binary, cristaline, demigender, denboy, demigirl, efemere, femme non-binary, genderfluid (female-male), genderflux, genderfuck, genderpivot, genderqueer non-binary, graygender, male non-binary, intergender ou intersex, female non-binary, nan0gender, nan0boy, nan0girl, nan0-menine, negative, neutrois, pangender, poligender, positive, third gender, transfemale ou male to female, transfemale ou female to male, travestite non-binary e trigender. 59 Termos fronteiriços no domínio gênero e sexualidade na Organização... Nesse aspecto, vislumbrou-se um estudo terminológico, levando em consideração a Teoria Comunicativa da Terminologia (TCT) de Cabré (2005), uma vez que a Terminologia se dedica à observação do comportamento dos termos e sua relação com o conhecimento científico e, dessa maneira, apontou elementos teóricos e princípios práticos capazes de nortear a ordenação de termos do domínio estudado. Sob o ponto de vista da Terminologia, Adelstein e Cabré (2002) argumentam que as unidades lexicais (no caso aqui são os termos fronteiriços) estão associadas às situações comunicacionais e, por isso, podem manter relacionamentos polissêmicos. Com base no argumento anterior e com o objetivo de organizar o processo terminográfico, no âmbito da Documentação, a Terminologia auxiliou na análise desse conjunto de 35 termos como um elemento-chave para representar o conteúdo de documentos, possibilitando sua compreensão como fronteiriços. Após a coleta dos termos foi realizada a revisão dos termos selecionados, seus conceitos e traduções por meio de pesquisas em dicionários, livros, artigos e revistas acessados pelo Portal da CAPES. Logo em seguida, eles foram classificados de acordo com as categorias fundamentais de Ranganathan – Personalidade (P), Matéria (M), Energia (E) – sendo que as categorias – Espaço (S) e Tempo (T) – foram excluídas da análise, uma vez que os termos são dinâmicos e não se esgotam em si, podendo mudar ao longo do tempo. O uso das categorias de Ranganathan tem apoio nos argumentos de Campos, Gomes e Oliveira (2013) e foi pelo fato de ser um método de raciocínio para explicar o domínio estudado por meio de seus conceitos. As categorias de Ranganathan têm amparo nas categorias Coisa, Propriedade e Ação de Aristóteles e possuem base na lógica e com elas é possível realizar a organização de conceitos obtendo cadeias e renques, o que possibilita que o domínio seja visto de forma inter-relacionada (CAMPOS; GOMES; OLIVEIRA, 2013). O resultado parcial dessa análise pode ser verificado em Pinho e Milani (2020, p. 95) e foi trazido para esta pesquisa, conforme Quadro 1 a seguir, com adaptações e complementação para sua compreensão utilizando os mapas conceituais. Assim, no Quadro 1 obtivemos, por meio do uso das categorias de Ranganathan, as inter-relações existentes nos conceitos, a partir dos questionamentos quem, o quê e como, do domínio estudado e que são materializadas pelos termos fronteiriços. 60 Fabio Assis Pinho Quadro 1 – Termos fronteiriços analisados de acordo com o PMEST. TERMO Agênero Agender RANGANATHAN Personalidade (Enuncia o discurso – quem é) Matéria (Conseguir o produto final – o que faz) Energia (Manifesta nas atividades – como faz) Personalidade (Enuncia o discurso – quem é) Ambigênero Closet Matéria (Conseguir o produto final – o que faz) Energia (Manifesta nas atividades – como faz) Personalidade (Enuncia o discurso – quem é) Andrógeno Closet Matéria (Conseguir o produto final – o que faz) Energia (Manifesta nas atividades – como faz) Personalidade (Enuncia o discurso – quem é) Bigênero FemininoMasculino Closet Matéria (Conseguir o produto final – o que faz) Energia (Manifesta nas atividades – como faz) Personalidade (Enuncia o discurso – quem é) Cristal Cristaline Matéria (Conseguir o produto final – o que faz) Energia (Manifesta nas atividades – como faz) Personalidade (Enuncia o discurso – quem é) Demigênero Demigender Matéria (Conseguir o produto final – o que faz) Energia (Manifesta nas atividades – como faz) Personalidade (Enuncia o discurso – quem é) Demimenino Denboy “Demiboy” Matéria (Conseguir o produto final – o que faz) Energia (Manifesta nas atividades – como faz) Personalidade (Enuncia o discurso – quem é) Demimenina Demigirl Matéria (Conseguir o produto final – o que faz) Energia (Manifesta nas atividades – como faz) RESULTADO Indivíduo que não se considera pertencente a nenhum gênero. Ignora os conceitos de gênero. Não se identificando com nenhum gênero. Indivíduo que se identifica simultaneamente com os gêneros feminino e masculino. Identifica-se simultaneamente com os gêneros feminino e masculino. Se reconhecendo como mulher e homem simultaneamente. Indivíduo que tem características físicas dos sexos femininos e masculinos, ou possui sexo indeterminado. Possui características físicas dos sexos femininos e masculinos, ou possui sexo indeterminado. Apresentando características físicas dos sexos femininos e masculinos, ou possui sexo indeterminado. Indivíduo cuja identidade de gênero engloba tanto o gênero feminino quanto o masculino. Reconhece-se com o gênero biológico e também com o gênero oposto dentro da divisão binária. Reconhecendo sua identidade de gênero como a sua biológica e também a oposta dentro da divisão binária. Indivíduo cujo gênero se quebra em vários gêneros diferentes. Identifica-se com diversos gêneros de maneira fluida, aleatória e fragmentada. Identificando-se com diversos gêneros de maneira fluida, aleatória e fragmentada. Indivíduo que possui uma conexão parcial com sua identidade de gênero. Sentem-se representadas apenas em parte por um gênero específico. Sentindo-se representadas apenas parcialmente por um gênero específico. Indivíduo que se identifica parcialmente com o gênero masculino. Reconhece-se como pertencente ao gênero masculino, entretanto apenas parcialmente. Reconhecendo-se como pertencente ao gênero masculino, entretanto apenas parcialmente. Indivíduo que se identifica parcialmente com o gênero feminino. Reconhece-se como pertencente ao gênero feminino, entretanto apenas parcialmente. Reconhecendo-se como pertencente ao gênero feminino, entretanto apenas parcialmente. 61 Termos fronteiriços no domínio gênero e sexualidade na Organização... Quadro 1 – Termos fronteiriços analisados de acordo com o PMEST. TERMO RANGANATHAN Personalidade (Enuncia o discurso – quem é) Entre gênero Aliagender Matéria (Conseguir o produto final – o que faz) Energia (Manifesta nas atividades – como faz) Personalidade (Enuncia o discurso – quem é) Efêmero Efemer Matéria (Conseguir o produto final – o que faz) Energia (Manifesta nas atividades – como faz) Personalidade (Enuncia o discurso – quem é) Feminina não binária Femme non-binary Matéria (Conseguir o produto final – o que faz) Energia (Manifesta nas atividades – como faz) Gênero fluido femininomasculino Genderfluid Female-male Personalidade (Enuncia o discurso – quem é) Matéria (Conseguir o produto final – o que faz) Energia (Manifesta nas atividades – como faz) Personalidade (Enuncia o discurso – quem é) Gênero fluxo Genderflux Matéria (Conseguir o produto final – o que faz) Energia (Manifesta nas atividades – como faz) Personalidade (Enuncia o discurso – quem é) “Quebra de Gênero” Genderfuck Matéria (Conseguir o produto final – o que faz) Energia (Manifesta nas atividades – como faz) Personalidade (Enuncia o discurso – quem é) Gênero Pivô Genderpivot Matéria (Conseguir o produto final – o que faz) Energia (Manifesta nas atividades – como faz) 62 RESULTADO Indivíduo que possui forte ligação com seu gênero, mas transcende qualquer gênero. Não se identifica com nenhum dos gêneros, mas possuem forte ligação com sua própria identidade de gênero. Possuindo forte ligação com sua identidade de gênero, entretanto não se identifica com nenhuma característica de nenhum gênero. Indivíduo que tem sua orientação sexual transitória. Possui orientação sexual transitória, temporária, passageira. Transitando entre gêneros. Indivíduo que tem características e comportamentos predominantemente femininos, mas não se identifica com a divisão binária de gênero e sexualidade. Não se identifica com a divisão binária de gêneros, mas tem comportamentos predominantemente femininos. Possuindo características e comportamentos predominantemente femininos, mas não acreditam na divisão binária de gênero. Indivíduo que não possui identidade de gênero fixa. Muda a identidade de gênero, entre a divisão binária. Mudando a sua identidade de gênero entre a divisão binária, sendo um de cada vez. Indivíduo que muda a intensidade do gênero (seja ele binário ou não) que se identifica de um momento para o outro. Muda a intensidade do gênero que se identifica de um momento para o outro. Mudando a intensidade do gênero que se identifica de um momento para o outro. Indivíduo que propositalmente desafia as normas de gênero. Transgridem as “normas” de comportamento e apresentação dos gêneros feminino e masculino, fazendo combinações inesperadas características dos dois gêneros. Apresentando combinações inesperadas de comportamentos e características dos gêneros masculino e feminino. Indivíduo que ao mesmo tempo se identifica de forma fixa como bigênero e de forma mutável como gênero fluido. Reconhecem seu gênero pela divisão binária e tem esse mesmo como fixo, além de ser gênero fluido, provocando mudanças de gênero nesse aspecto. Reconhecendo seu gênero pela divisão binária e tem esse mesmo como fixo, além de ser gênero fluido, provocando mudanças de gênero nesse aspecto. Fabio Assis Pinho Quadro 1 – Termos fronteiriços analisados de acordo com o PMEST. TERMO RANGANATHAN Personalidade (Enuncia o discurso – quem é) Gênero distinto não binário Matéria (Conseguir o produto final – o que faz) Genderqueer non-binary Energia (Manifesta nas atividades – como faz) Personalidade (Enuncia o discurso – quem é) Gênero cinza Graygender Matéria (Conseguir o produto final – o que faz) Energia (Manifesta nas atividades – como faz) Personalidade (Enuncia o discurso – quem é) Homem não binário Male non-binary Matéria (Conseguir o produto final – o que faz) Energia (Manifesta nas atividades – como faz) Personalidade (Enuncia o discurso – quem é) Intergênero ou Intersexo Intergender Intersex Matéria (Conseguir o produto final – o que faz) Energia (Manifesta nas atividades – como faz) Personalidade (Enuncia o discurso – quem é) Mulher não binária Female non-binary Matéria (Conseguir o produto final – o que faz) Energia (Manifesta nas atividades – como faz) Personalidade (Enuncia o discurso – quem é) Nano Gênero / “Pequeno gênero” Nanogender Matéria (Conseguir o produto final – o que faz) Energia (Manifesta nas atividades – como faz) RESULTADO Indivíduo que não se encaixa nas distinções convencionais de gênero, além de não se identificar com a divisão binária. Não se consideram pertencentes ao gênero feminino ou masculino. Não apresentando características das distinções convencionais da divisão binária de gênero. Indivíduo que possui fraca ligação com sua identidade de gênero. Não possui forte ligação com o gênero que se reconhece. Possuindo o sentimento de ligação fraca com o gênero que se reconhece. Indivíduo que possui características e comportamentos tradicionalmente masculinos, mas que não se identifica com a divisão binária de gênero e sexualidade. Possui características e comportamentos tradicionalmente masculinos, mas que não se identifica com a divisão binária de gênero e sexualidade. Não se identificando com a divisão binária de gênero e sexualidade, mesmo possuindo características e comportamentos tradicionalmente masculinos. Indivíduo que possui ambos os órgãos sexuais ou características sexuais femininas e masculinas. Apresenta características femininas e masculinas, incluindo os dois órgãos sexuais. Possuindo as características e órgãos sexuais masculinos e femininos. Indivíduo que possui características e comportamentos tradicionalmente femininos, mas não se identifica com a divisão binária de gênero e sexualidade. Possui características e comportamentos tradicionalmente femininos, mas não se identifica com a divisão binária de gênero e sexualidade. Não se identificando com a divisão binária de gênero e sexualidade, mesmo possuindo características e comportamentos tradicionalmente femininos. Indivíduo que possui leve identificação com o conceito de gênero ou com alguma identidade de gênero não binária. Possui leve identificação com alguma identidade de gênero, e simultaneamente, com alguma outra identidade de gênero não-binária, sendo esta de forma predominante. Possuindo leve identificação com alguma identidade de gênero, e simultaneamente, com alguma outra identidade de gênero não-binária, sendo esta de forma predominante. 63 Termos fronteiriços no domínio gênero e sexualidade na Organização... Quadro 1 – Termos fronteiriços analisados de acordo com o PMEST. TERMO RANGANATHAN Personalidade (Enuncia o discurso – quem é) Nano Menino / “Pequeno garoto” Nanoboy Matéria (Conseguir o produto final – o que faz) Energia (Manifesta nas atividades – como faz) Personalidade (Enuncia o discurso – quem é) Nano menina / “Pequena menina” Nanogirl Matéria (Conseguir o produto final – o que faz) Energia (Manifesta nas atividades – como faz) Nano-Menine Matéria (Conseguir o produto final – o que faz) Energia (Manifesta nas atividades – como faz) Personalidade (Enuncia o discurso – quem é) Neutro Neutrois Matéria (Conseguir o produto final – o que faz) Energia (Manifesta nas atividades – como faz) Personalidade (Enuncia o discurso – quem é) Pangênero Pangender Matéria (Conseguir o produto final – o que faz) Energia (Manifesta nas atividades – como faz) 64 Indivíduo que possui leve identificação com o gênero masculino e simultaneamente com alguma outra identidade de gênero não-binária, sendo esta predominante. Possui leve identificação com o gênero masculino e simultaneamente com alguma outra identidade de gênero não-binária, sendo esta predominante. Possuindo leve identificação com o gênero masculino e simultaneamente com alguma outra identidade de gênero não-binária, sendo esta predominante. Indivíduo que possui leve identificação com o gênero feminino e simultaneamente com alguma outra identidade de gênero não-binária, sendo esta predominante. Possui leve identificação com o gênero feminino e simultaneamente com alguma outra identidade de gênero não-binária, sendo esta predominante. Possuindo leve identificação com o gênero feminino e simultaneamente com alguma outra identidade de gênero não-binária, sendo esta predominante. É um termo utilizado com o mesmo significado de Nano gênero. Personalidade (Enuncia o discurso – quem é) Negativo Negative RESULTADO Indivíduo que não se sente parte de um gênero específico. Não possui identidade relacionada às outras construções de gênero ou tem apenas uma vivência distante. Não se identificando como as construções de gênero, ou possuindo apenas uma vivência distante. Indivíduo que tem sua identidade caracterizada pela sensação de neutralidade ou balanceamento. Não pertence especificamente ao gênero feminino ou masculino, ou a qualquer outro, mas uma parte de todos. Não se sentindo pertencente especificamente ao gênero feminino ou masculino, ou a qualquer outro, mas uma parte de todos. Indivíduo que pode possuir multiplicidade de gêneros e se identificar com infinitos gêneros, incluindo aqueles ainda não reconhecidos. Identifica-se com infinitos gêneros, incluindo gêneros ainda não reconhecidos. Identificando-se com infinitos gêneros, incluindo gêneros ainda não reconhecidos, podendo ser simultaneamente todos, ou não. Fabio Assis Pinho Quadro 1 – Termos fronteiriços analisados de acordo com o PMEST. TERMO RANGANATHAN Personalidade (Enuncia o discurso – quem é) Matéria (Conseguir o produto final – o que faz) Poligênero Poligender Energia (Manifesta nas atividades – como faz) Personalidade (Enuncia o discurso – quem é) Positivo Positive Matéria (Conseguir o produto final – o que faz) Energia (Manifesta nas atividades – como faz) Personalidade (Enuncia o discurso – quem é) “Sapatão não binário” Butch non-binary Matéria (Conseguir o produto final – o que faz) Energia (Manifesta nas atividades – como faz) Personalidade (Enuncia o discurso – quem é) Terceiro Gênero Third gender Matéria (Conseguir o produto final – o que faz) Energia (Manifesta nas atividades – como faz) Personalidade (Enuncia o discurso – quem é) Mulher trans Transfemale / Male to female Matéria (Conseguir o produto final – o que faz) Energia (Manifesta nas atividades – como faz) Personalidade (Enuncia o discurso – quem é) Homem Trans Transmale / Female to male Matéria (Conseguir o produto final – o que faz) Energia (Manifesta nas atividades – como faz) RESULTADO Indivíduo que possui muitos gêneros. Possui vários gêneros, esses podendo ser binários e não-binários. Possuindo vários gêneros, que podem se apresentar simultaneamente ou não. Estes podem ser binários ou não-binários. Indivíduo que não tem sua identidade relacionada às construções de gêneros, mas que se sente parte de um gênero específico. Não possui identidade relacionada às outras construções de gêneros, mas se sente parte de um gênero específico. Não possuindo identidade relacionada às outras construções de gêneros, se sente parte de um gênero específico. Indivíduo do sexo feminino que apresenta características tradicionalmente masculinas, mas que não se identifica com a divisão binária de gêneros e sexualidade. Não se identifica com a divisão binária de gêneros e sexualidade mesmo possuindo características tradicionalmente masculinas, e sendo originalmente do sexo feminino. Não se identificando com a divisão binária de gêneros e sexualidade mesmo possuindo características tradicionalmente masculinas, e sendo originalmente do sexo feminino. Indivíduo que não se identifica com gênero específico algum. Não se reconhece pelos gêneros binários, nem pela junção de outros gêneros não-binários. Não se reconhecendo pelos gêneros binários, nem pela junção de outros gêneros não-binários. Indivíduo nascido no sexo masculino, mas que se identifica com o gênero feminino. Reconhece-se como pertencente ao gênero feminino, mesmo nascendo do sexo masculino. Reconhece-se como pertencente ao gênero feminino, mesmo nascendo do sexo masculino, podendo ter feito cirurgia de transição ou não. Indivíduo nascido no sexo feminino, mas que se identifica com o gênero masculino. Reconhece-se como pertencente ao gênero masculino, mesmo nascendo do sexo feminino. Reconhece-se como pertencente ao gênero masculino, mesmo nascendo do sexo feminino, podendo ter feito cirurgia de transição ou não. 65 Termos fronteiriços no domínio gênero e sexualidade na Organização... Quadro 1 – Termos fronteiriços analisados de acordo com o PMEST. TERMO RANGANATHAN Personalidade (Enuncia o discurso – quem é) Travesti não binário Travestite non-binary Matéria (Conseguir o produto final – o que faz) Energia (Manifesta nas atividades – como faz) Personalidade (Enuncia o discurso – quem é) Trigênero Trigender Matéria (Conseguir o produto final – o que faz) Energia (Manifesta nas atividades – como faz) RESULTADO Indivíduo geralmente do sexo masculino que sente prazer em usar trajes associadas ao gênero oposto. Usa trajes/vestimentas associados ao gênero oposto do masculino, por prazer. Usando trajes/vestimentas associados ao gênero oposto do masculino, por prazer. Indivíduo que possui três identidades de gênero, simultaneamente ou não, sendo elas: feminina, masculina e qualquer outra. Possui três identidades de gênero, simultaneamente ou não, sendo elas: feminina, masculina e qualquer outra. Possuindo três identidades de gênero, simultaneamente ou não, sendo elas: feminina, masculina e qualquer outra. Fonte: Adaptado de Pinho e Milani (2020). Os resultados descritos no Quadro 1 demonstram as características epistêmicas de cada um dos termos fronteiriços a partir das categorias fundamentais de Ranganathan, excluindo-se as categorias de Espaço e Tempo. Esses resultados foram submetidos ao procedimento de elaboração de mapas conceituais proposto por Rodrigues e Cervantes (2016), que se resumem em seis: i) identificação do tema a se representar, ii) verificação dos conceitos, iii) ordenação dos conceitos em listas, iv) agrupamento e arranjos dos conceitos por palavras ou símbolos, v) estabelecimento das conexões e vi) revisão da estrutura do mapa. Após esse procedimento, foi utilizado o software gratuito CmapTools para a confecção dos mapas conceituais que são demonstrados a seguir nas Figuras 2 e 3. 66 Fabio Assis Pinho Figura 2 – Mapa conceitual de termos fronteiriços em relação a Gênero. Fonte: Dados da pesquisa. 67 Termos fronteiriços no domínio gênero e sexualidade na Organização... Figura 3 – Mapa conceitual de termos fronteiriços em relação à Sexualidade. Fonte: Dados da pesquisa. Os mapas conceituais demonstram que as características epistêmicas dos conceitos materializados pelos termos fronteiriços possuem conexões que transitam pela dicotomia masculino e feminino, porém, não se encerram nelas. Os resultados das análises expostas no Quadro 1 e nas Figuras 2 e 3 retomam o que García Gutiérrez (2002, p. 519) denominou de Epistemografia Interativa, onde permite que questões polarizadas possam, de forma dialógica, serem introduzidas sem privilégios pelo mediador no SOC. A organização dos termos fronteiriços do domínio gênero e sexualidade necessitam de uma forma dialógica de organização para que possam ser eticamente representados em SOC. A Epistemografia Interativa permite uma maneira de incluir as diferentes visões culturais e suas relações, estabelecendo uma ética transcultural de mediação. Nesse sentido, a categorização por meio do PMEST e a compreensão temática por meio dos mapas conceituais permitem esse entendimento teórico advindo da Epistemografia Interativa, ou seja, uma combinação de Teoria Crítica com a Hermenêutica, nas práticas de organização e representação do conhecimento permitindo uma contraposição à classificação linear e à purificação conceitual ou mesmo às dicotomias. Esses resultados corroboram também com Gaudêncio (2020) que ao analisar as temáticas relativas aos “cibercordéis” utilizou-se de marcadores sociais a par- 68 Fabio Assis Pinho tir de uma bricolagem metodológica para compreender a complexidade temática inerente a esse tipo documental, resultando em um protótipo de Ecossistema da Representação Sociocultural do Conhecimento. Assim, entendemos que a partir de uma construção dialética compreenderemos adequada e eticamente as temáticas relativas às construções sociais, particularmente em relação a gênero e sexualidade e inseri-las adequada e eticamente em SOC. 4 Considerações De acordo com a pesquisa, concluímos que as categorias fundamentais de Ranganathan são adequadas para organizar os termos fronteiriços no domínio gênero e sexualidade, particularmente por meio das categorias Personalidade, Matéria e Energia, bem como, uma análise combinada com os mapas conceituais para averiguar as relações entre os termos e conceitos. Dessa forma, obtivemos subsídios para a elaboração de SOC eticamente aceitáveis à medida que as categorias fundamentais de Ranganathan permitiram a compreensão das características epistêmicas dos conceitos materializados por meio dos termos fronteiriços e os mapas conceituais permitiram a compreensão dessas fronteiras subsidiando a elaboração de futuras relações entre os termos e os conceitos, incluindo a possibilidade de compreensão dos assuntos nos documentos a partir da laminação, desnudação, dissecação e agregação. Portanto, os termos fronteiriços no domínio gênero e sexualidade não podem ser organizados por meio de dicotomias ou hierarquias em SOC, mas sim, levando em consideração o contexto e as características epistêmicas de seus conceitos e a forma como elas se relacionam proporcionando uma epistemografia interativa. Referências ADELSTEIN, A.; CABRÉ, M. T. The specificity of units with specialized meaning: polysemy as explanatory factor. 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PINHO, F. A.; MELO, L. A. F.; OLIVEIRA, J. P. Os assuntos gênero e sexualidade: representação temática nos sistemas SophiA/Biblioteca Nacional e Pergamum/ UFPE. Brazilian Journal of Information Science, Marília, v. 13, n. 2, p. 36-47, 2019. PINHO, F. A.; MILANI, S. O. Ética em organização do conhecimento: categorização de termos fronteiriços em relação a gênero e sexualidade. Logeion: Filosofia da Informação, Rio de Janeiro, v. 6, n. 2, p. 84-103, 2020. RODRIGUES, M. R.; CERVANTES, B. M. N. Organização e representação do conhecimento por meio de mapas conceituais. Ciência da Informação, Brasília, v. 41, n. 1, p. 154-169, 2016. SALDANHA, G. S.; SOUZA, R. F. Teoria barroca da organização do conhecimento: Emanuele Tesauro e o espelho turvo das tensões entre epistemologia, metodologia e sociedade. Informação & Informação, Londrina, v. 22, n. 2, p. 11-32, 2017. TENNIS, J. Com o que uma análise de domínio se parece no tocante a sua forma, função e gênero? Brazilian Journal of Information Science, Marília, v. 6, n. 1, p. 3-15, 2012. 71 Dorothy Porter Wesley e a organização do conhecimento: um olhar a partir da Teoria Crítica Racial Duboisiana Franciéle Carneiro Garcês da Silva1 1 Introdução Nos Estados Unidos da América, discursos oriundos de classes dominantes estiveram (e ainda estão) presentes em diversos espaços, dentre eles, nas universidades, nas bibliotecas, nas organizações, enfim, na sociedade como um todo. O multiculturalismo identitário e a colonização disciplinar condensavam os discursos hegemônicos, enquanto as epistemologias descoloniais se propunham a um discurso contra-hegemônico (GROSFOGUEL, 2007). Os Estudos Africanos e da Diáspora, também chamados de Estudos Étnicos, surgiram como parte do movimento de direitos civis pela luta das minorias étnico-raciais que sofriam discriminação. Entre 1960 e 1970, diversas greves estudantis e ocupações de espaços universitários, organizados por essas minorias foram o estopim para a criação dos estudos com enfoque em e lugar de enunciação das populações afro-americanas, porto-riquenhas, indígenas, asiáticas, entre outras. Foi a partir dessa “desobediência epistêmica” (MIGNOLO, 2008) que se desenvolveram espaços para atuação de docentes negros, bibliotecários negros e demais profissionais descendentes de populações marginalizadas (GROSFOGUEL, 2007). 1 Bibliotecária negra pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Mestra em Ciência da Informação pelo Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia/Universidade Federal do Rio de Janeiro (IBICT-UFRJ). Doutoranda em Ciência da Informação na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Integrante do Grupo de Pesquisa Ecce Liber: Filosofia, linguagem e organização dos saberes (IBICT-UFRJ) e do Núcleo de Estudos sobre Performance, Patrimônio e Mediações Culturais (NEPPaMCs-UFMG). Idealizadora e gestora do Quilombo Intelectual e uma das coordenadoras do Selo Nyota de publicações. Escritora do livro sobre Biblioteconomia Negra e organizadora de obras protagonizadas por bibliotecárias(os) negras(os), com enfoque nas epistemologias negras, protagonismo da mulher, relações étnico-raciais e atuação bibliotecária. Pesquisadora e ativista da Biblioteconomia Negra Brasileira e Americana. E-mail: [email protected] Dorothy Porter Wesley e a organização do conhecimento A partir dessa ruptura das estruturas sociais, a produção de conhecimento com epistemologias e reflexões oriundas de grupos étnico-raciais excluídos passou a fazer parte desse contexto, que até aquele momento era totalmente de origem branca. Para que esses estudos se construíssem como campo de pesquisa, foram criadas novas universidades ou consolidadas as existentes, assim como escolas, centro de pesquisas e bibliotecas consideradas “historicamente negras” para permitir promover pesquisas e epistemologias contra-hegemônicas, nas quais os afros e demais populações não-brancas estivessem em lugar de promotoras e produtoras de conhecimento e não como “objetos de estudos” dentro da academia (KILOMBA, 2019). Para organizar esse conhecimento, foram estabelecidas bibliotecas com atuação de bibliotecárias e bibliotecários negros responsáveis pela organização, catalogação e disponibilização para a população afro-americana e demais grupos étnico-raciais não-brancos. Nesse sentido, este capítulo possui como objetivo evidenciar a bibliotecária negra, Dorothy Porter Wesley, que atuou na organização do conhecimento de e sobre pessoas negras dentro do Moorland-Spingarn Research Center, com enfoque na preservação da memória e história de populações africanas e da diáspora, assim como sua disponibilização e disseminação para a população afro-americana no contexto estadunidense a partir da década de 1920. Embasados na Teoria Crítica Racial Duboisiana, entendemos que o conhecimento produzido por populações negras e africanas na diáspora promove uma ruptura com a perspectiva colonial à medida em que desvela o mito da neutralidade acadêmica criada para manutenção de privilégios e de discursos dos grupos dominantes. Evidencia, ainda, como a invisibilização das discussões sobre questões étnico-raciais em bibliotecas e unidades de informação colabora para limitar a reflexão acerca da branquitude e do privilégio branco, assim como somente destaca a reprodução de conhecimentos sem reflexões críticas. As lentes da teoria crítica racial – em nosso caso, a Teoria Crítica Racial Duboisiana –, possuem potencial para mudar ou romper com essas estruturas de dominação (LÓPEZ-MCKNIGHT, 2017). Entendemos também, que é urgente ao campo biblioteconômico-informacional um olhar que enfrente a discussão de raça e gênero de forma direta, sem subterfúgios que visem camuflar tais debates que se propõem a descortinar os silenciamentos cotidianos e as ausências promotoras de racismo epistêmico (LIMA; SILVA, 2020). Este capítulo está fundamentado por livros escritos pela bibliotecária, assim como as biografias de Dorothy Porter Wesley escrita por James A. Findlay em 2001, e outra escrita por Janet Sims-Wood em 2014. Utilizamos ainda, artigos e demais materiais bibliográficos publicados por e sobre Wesley no período de 1920 a 1995, ano de seu falecimento. Ademais, utilizamos informações e produções científicas obtidas nos sites de bibliotecas universitárias das instituições: Universidade de 74 Franciéle Carneiro Garcês da Silva Chicago, Universidade Howard, Universidade de Atlanta e do Moorland-Spingarn Research Center2. 3 Organização do Conhecimento: uma breve contextualização O Dicionário Aurélio define o termo organização como ato de organizar, estabelecer as bases de; compor uma estrutura para; pôr em ordem, arrumar. Organizar todo conhecimento disponível (registros, documentos, livros etc.) é, desde a Antiguidade, uma preocupação humana, haja vista o intuito de organizar e promover o acesso e uso das informações a ele vinculadas (GOMES, 2017). A partir desse acesso, uso e assimilação das informações disponibilizadas, os sujeitos poderiam produzir novos conhecimentos e transformar as realidades sociais nas quais estão inseridos (ORRICO, 2017). Organizar o conhecimento possui diversos aspectos, dentre eles: identificar mensagens contidas em obras e outros materiais e recursos de informação; identificar os textos nos quais as mensagens são representadas; descrever os documentos em que os textos são apresentados; descrever o conteúdo, recursos e significados dessas mensagens. Desse processo, o resultado das identificações e descrições é organizado em índices, bancos de dados, catálogos, bibliotecas digitais e outros sistemas que permitam a recuperação das informações pelas pessoas interessadas (ANDERSON, 2003). No âmbito nacional e internacional, entre seus principais teóricas(os) dentro do campo biblioteconômico-informacional, podemos citar A. C. Foskett, Antonio García Gutiérrez, Birger Hjørland, Gustavo Silva Saldanha, Hagar Espanha Gomes, Ingetraut Dahlberg, José Augusto Chaves Guimarães, Julius Otto Kaiser, Lígia Café, Marisa Bräscher, Mariângela Spotti Lopes Fujita, Rosali Fernandez de Souza, Rodrigo de Sales, entre outros, os quais possuem a Organização do conhecimento como seu enfoque de investigação e reflexão. Enquanto definição, a Organização do conhecimento ainda não possui uma precisão conceitual definida consensualmente pelas(os) pesquisadoras(es) da área. No Diccionário de organización del conocimiento: clasificación, indización, terminología, de Mario Barité e colaboradores, a Organização do Conhecimento é compreendida como Área do conhecimento de formação recente, que estuda as leis, princípios e procedimentos pelos quais o conhecimento especializado se estrutura em qualquer disciplina, de forma a representar temática e recu2 O Centro pode ser conhecido pelo site: https://dh.howard.edu/msrc/ 75 Dorothy Porter Wesley e a organização do conhecimento perar a informação contida em documentos de qualquer natureza, por meios eficientes que responder rapidamente às necessidades do usuário (BARITÉ et al., 2015, p. 121). Para Ingetraut Dahlberg, a Organização do conhecimento é “[...] a ciência que estrutura e organiza sistematicamente unidades do conhecimento (conceitos) segundo seus elementos de conhecimento (características) inerentes e a aplicação desses conceitos e classes de conceitos ordenados a objetos/assuntos” (DAHLBERG, 1993, p. 211). A partir dessa organização do conhecimento são criados instrumentos que apresentam a interpretação organizada e estruturada do objeto, os quais chamamos de Sistemas de Organização do Conhecimento. Dentre os sistemas existentes, citamos os sistemas de classificação, as taxonomias, os tesauros, os mapas conceituais etc. (DAHLBERG, 1993, 2006; BRÄSCHER; CAFÉ, 2008). A emergência de temas e enfoques sociais tem levado a área da Organização do conhecimento a desenvolver, por intermédio de pesquisas, um olhar crítico para suas atividades, epistemologias e exclusões ou invisibilizações que seus sistemas, processos e ações podem reproduzir. Quando pensamos nos contextos de lutas sociais por direitos básicos, assim como pelo direito à informação, ao livro e à leitura, não podemos deixar de refletir que até recentemente os regimes de segregação racial de grupos étnico-raciais foram uma realidade em diversas sociedades, inclusive na brasileira. No contexto internacional, destacamos a Biblioteconomia Negra dos Estados Unidos da América (Black Librarianship), movimento social, identitário, intelectual, ativista e bibliográfico que reivindicou, não só a luta pelo direito à informação, ao livro e à biblioteca, como também pela formação em Biblioteconomia e atuação de bibliotecários negros na elaboração e promoção da biblioteca para comunidades negras americanas. Lutaram ainda, pelo extermínio do racismo dentro das organizações, bibliotecas e demais espaços em sociedade (SILVA, 2019; SILVA; SALDANHA, 2018, 2019). Dentro da Organização do Conhecimento, as(os) bibliotecárias(os) negras(os) americanas(os) foram fundamentais para apontar o racismo e exclusão presentes nos instrumentos de organização e representação da informação, assim como utilizaram a organização do conhecimento como instrumento para preservar e disponibilizar informações sobre pessoas negras contribuidoras da história dos Estados Unidos da América. Embasados na teoria crítica racial, muitas(os) bibliotecárias(os) negras(os) direcionaram suas ações pensando as exclusões de povos negros nos sistemas de segregação racial, opressões, microagressões e toda série de elementos sociais nocivos à sociedade oriundos de um dos problemas mais difíceis dos últimos séculos: a raça. 76 Franciéle Carneiro Garcês da Silva 4 Intelectualidade negra e o olhar para a Organização do Conhecimento a partir da Teoria Crítica Racial Duboisiana A teoria crítica é comumente associada à Escola de Frankfurt, em especial, à vida e contribuições teóricas de intelectuais como Theodor Adorno, Walter Benjamin, Erich Fromm, Jurgen Habermas, Max Horkheimer e Herbert Marcuse. Entretanto, o olhar crítico a partir de e sobre estudiosos pertencentes às populações negras e outras à margem da sociedade, promove uma perspectiva outra que ainda se encontra sob a superfície na teoria crítica de origem frankfurtiana (RABAKA, 2009). A Teoria Crítica Racial (TCR) nasceu na década de 1970 e se tornou inicialmente atuante em duas áreas principais: o direito e as ciências sociais. No primeiro, começou a questionar criticamente as pretensões intelectuais da supremacia branca na lei, desafiando formas ortodoxas, questionamentos e premissas do liberalismo e debatendo outros saberes (DELGADO; STEFANIC, 2000; RABAKA, 2009; ZUBERI, 2001, 2006, 2016). Reiland Rabaka (2008, s.p., tradução minha) infere que “os paradigmas e pontos de partida para teóricos críticos variam dependendo da raça, gênero, orientação sexual, filiação religiosa, nacionalidade, interesses intelectuais e convicções políticas”. Recorrer a autores como Hegel, Marx, Freud ou à Escola de Frankfurt, por exemplo, tem relação com o pensamento expresso por esses teóricos para abordar o mundo da vida e as experiências do mundo moderno (RABAKA, 2008). Para o autor, o uso de teóricos críticos do norte global expressa, em grande medida, o pensamento europeu (muitas vezes, um pensamento supremacista branco) que negligencia – do seu lugar de privilégio e discurso teórico clássico e contemporâneo – outros olhares que não aqueles hegemônicos e parabeniza-se por contornar as discussões sobre racismo e colonialismo dentro de seus discursos, conhecimentos e produções científicas (RABAKA, 2008). Enquanto que ao utilizar a TCR, elaborada a partir do olhar de teóricos críticos negros ou africanos, permite-se a conexão com pensamentos e textos de intelectuais cujos paradigmas teórico-críticos e pontos de partida buscam a solução para as lutas da vida e realidades sociais de populações negras e à margem (RABAKA, 2008, 2009). Nas ciências sociais, os antecedentes da TCR já estavam presentes muito antes do movimento intelectual elaborado no direito. Grupos negros e de origem africana já tinham uma tradição crítica antes mesmo da criação das ciências sociais. Zuberi (2016) destaca como exemplos de tal tradição, os relatos de libertação de escravizados e as solicitações de populações de origem africana quando escreveram contra a supremacia branca e escravização de populações africanas. No entanto, o nascimento das ciências sociais está intrinsicamente ligado às justificativas de separação, de forma hierarquizada, dos sujeitos por grupos étnico-raciais, haja vista que as ciências sociais não passaram a refletir sobre a tradição crítica existente no sécu- 77 Dorothy Porter Wesley e a organização do conhecimento lo XIX. Ao contrário, diante desse contexto, as ciências sociais elaboraram teorias e métodos analíticos para auxiliar na justificativa dessa estratificação racial, mesmo quando acadêmicos negros e de outros pertencimentos étnico-raciais passaram a integrar a área (ZUBERI; BONILLA-SILVA, 2008; ZUBERI, 2001, 2016). Nos Estados Unidos da América, sempre houve teóricos críticos de raça, dos quais podemos citar Patricia Hill Collins, Jane Addams, James B. Stuart, Eduardo Bonilla-Silva, Oliver Cox, James Blackwell, W. E. B. Du Bois, os quais promoveram interpretações das desigualdades humanas, realidades sociais e do colonialismo (ZUBERI, 2016). W. E. B. Du Bois – intelectual, pan-africanista, afro-americano e crítico de raça – possui uma importante colaboração para a teoria crítica. Em obras como Black Reconstruction in America, The Philadelphia Negro, The Souls of Black Folk, An Essay in the History and Sociology of the Negro Race, o autor promove reflexões teórico-críticas sobre uma miríade de impulsos imperiais contidos em fenômenos e práticas sociais, políticas e culturais na sociedade contemporânea, assim como discute sobre dominação, discriminação e libertação dos sujeitos via transformação social (RABAKA, 2009; ZUBERI, 2006, 2016). O reconhecimento à intelectualidade negra é uma das pautas dos movimentos sociais e de pesquisadoras(es) negras(os) da academia. Historicamente, dentro de contextos científicos e acadêmicos, pessoas de origem africana e mulheres eram percebidas somente como “objetos de estudos”; no entanto, mulheres, pessoas negras e de outros pertencimentos étnico-raciais atuavam como agentes de mudança ao se inserirem na academia em prol da luta pela decolonização daquele espaço (ZUBERI, 2001, 2006, 2016). A crítica duboisiana para o meio acadêmico se refere às discussões do racismo, colonialismo, capitalismo, direitos civis, libertação das mulheres, socialismo democrático, entre outros, haja vista que a universidade é reflexo da sociedade e faz parte de um contexto cuja hegemonia é eurocêntrica e americanizada. A TCR duboisiana promove a intelectualidade radical direcionada à resolução de problemas enfrentados por pessoas negras dentro de contextos racistas e de pensamento colonial, como os Estados Unidos e o Brasil, por exemplo. Em consonância aos pan-africanistas críticos de raça, Patricia Williams, Fannie Lou Hamer, Malcom X, Frantz Fanon, Amilcar Cabral, Ella Baker, Aimé Césaire, C. L. R James, Oliver C. Cox, W. E. B. Du Bois – enquanto um teórico social e ativista político radical – atua criticamente para repensarmos as resistências e (re)existências de populações negras, as quais estão cotidianamente sendo retiradas dos lugares de seres humanos, sujeitos de direitos, intelectuais etc. Ademais, colabora intelectualmente para tornar os fundamentos da teoria crítica multicultural, transétnica, transgeracional, sensíveis à orientação sexual e aos sujeitos não-europeus ocidentais, promovendo 78 Franciéle Carneiro Garcês da Silva a dialética entre a teoria crítica e os fenômenos por ela negligenciados (RABAKA, 2009). Influenciado por Karl Marx, Du Bois advoga ainda em favor de uma perspectiva afrocentrada, na qual defende a inserção intelectual de africanos e suas contribuições para a construção da sociedade moderna em uma contranarrativa ao assimilacionismo (ZUBERI, 2006, 2016). Assim, esses autores refletem as possibilidades de reconstruir e transformar os pensamentos, desenvolver novas teorias que apoiem teoricamente a política radical e promovam o constante ativismo político dos sujeitos para se formarem enquanto intelectuais, pesquisadores, organizadores sociais e trabalhadores culturais (RABAKA, 2009). Nesse sentido, promover uma arqueologia da história intelectual negra se relaciona a uma das bases elementares para Organização do Conhecimento, permite a manutenção da memória e a disponibilização de estudos elaborados por negros e negras, africanos e africanas, pessoas do sul do globo, as quais sempre estiveram fora da lógica colonialista de produtores de conhecimento e de intelectuais ou pesquisadores. A seguir, refletindo a partir da lente da TCR Duboisiana, apresentamos a contribuição da bibliotecária negra, Dorothy Porter Wesley, cuja atuação dentro da organização do conhecimento produzido sobre e por pessoas negras foi fundamental para a disponibilização de informações sobre a história do negro nos Estados Unidos da América e no mundo, e para a transformação social das comunidades negras a partir do acesso à biblioteca para emancipação humana. 5 Organizando o conhecimento da e para a população negra: evidenciando o trabalho de Dorothy Porther Wesley “A única recompensa para mim é trazer à tona informações que ninguém conhece. Qual é o ponto de refazer a mesma coisa de sempre?” Dorothy Porter Wesley (1995) Bibliotecária, bibliógrafa, acadêmica, historiadora e arquivista, a afro-americana Dorothy Porter Wesley foi por 43 anos (1930-1973) curadora da Coleção Moorland-Spingarn na Howard University em Washington, DC. Nasceu na Virgínia em 1905, filha de um médico e uma tenista, e tornou-se a primeira mulher negra afro-americana a concluir bacharelado e mestrado em Biblioteconomia pela Universidade de Columbia. Em 1928, foi convidada a integrar a equipe da biblioteca da Howard University e dois anos depois, foi nomeada para organizar e administrar Library of Negro Life and History (Biblioteca da vida e história do negro), que pos- 79 Dorothy Porter Wesley e a organização do conhecimento teriormente passou a se chamar de Moorland-Spingarn Research Center, com mais de três mil títulos da coleção de Jesse E. Moorland – ministro e líder negro que doou sua vasta coleção pessoal para a biblioteca da Universidade Howard –, sobre o negro e a escravidão recebidos em 1914 e a coleção particular de Arthur B. Spingarn – advogado e presidente do comitê jurídico da National Association for the Advancement of Colored People (NAACP), além de bibliófilo –, adquirida pela Howard University em 1946. Na referida biblioteca, Wesley trabalhou para construir coleções documentando a diáspora africana até sua aposentadoria em 1973. Após a aposentadoria, Wesley trabalhou como consultora para o Radcliffe University’s Black Women Oral History Archive [Arquivo de História Oral das Mulheres Negras], da Universidade Radcliffe, e foi autora de vários artigos e livros relacionados à Biblioteconomia e à diáspora africana. Os livros de autoria de Dorothy Porter Wesley incluem Early Negro Writing, 1760-1837, e Afro-Braziliana: A Working Bibliography (PORTER, 1938, 1945, 1970, 1995, FINDLAY, 2001, SIMS-WOOD, 2014). Figura 1 – Dorothy Porter em 1939, em sua mesa na Biblioteca Carnegie da Howard University. MoorlandSpingarn Research Center, Manuscript Division, Howard University. Fonte: https://bit.ly/3i3Br2b Como missão pessoal, Dorothy Porter Wesley resolveu construir uma biblioteca livro-por-livro na Howard University. James A. Findlay, em seu livro intitulado Dorothy Porter Wesley (1905-1995), Afro-American Librarian and Bibliophile: An Exhibition), comenta que “seu zelo em descobrir materiais relacionados à história afro-americana lhe rendeu o nome de ‘Sacola de compras’3 (FINDLAY, 2001, p. 6, 3 Escrito no original: Shopping Bag Lady. 80 Franciéle Carneiro Garcês da Silva tradução minha). Porter estava interessada na avaliação das coleções das primeiras obras de e sobre autores negros. Na América, antes do século XVIII, havia pouca história escrita sobre afro-americano. Wesley aponta que, “provavelmente o primeiro desses homens (Afro-americano) foi o britânico [Júpiter] Hammon, cuja narrativa foi publicada em 1760 em Boston... Acredito que seja o primeiro livro escrito por um negro e publicado nos Estados Unidos” (WESLEY, 1957 apud FINDLAY, 2001, p. 7, tradução minha). Nos primeiros anos de sua carreira já era nítida sua paixão e o compromisso em atuar na preservação e compartilhamento do “legado da história e da cultura afro-americana” (FINDLAY, 2001). Ela procurava pessoalmente em sótãos, porões, armários e caixas por materiais que, para olhos destreinados, costumavam ser considerados lixo. O autor enfatiza o interesse de Dorothy Porter Wesley em construir a biblioteca: “A Sra. Wesley, por causa de seu amor e conhecimento da história e cultura dos negros, foi quase sozinha responsável por transformar a biblioteca (Moorland-Spingarn Collection na Howard University) em um centro de pesquisa de classe mundial [...]” (FINDLAY, 2001, p. 6, tradução minha). O intuito de Dorothy Porter Wesley durante sua existência foi coletar, codificar material afro-americano e disponibilizar a coleção ao público. Conforme Zita Cristina Nunes (2018, s.p.), Para Porter, essa missão envolveu não apenas coletar e preservar uma ampla gama de materiais relacionados à experiência negra global, mas também abordar como esses trabalhos exigiam abordagens qualitativas e quantitativas novas e específicas para coletá-los, avaliá-los e catalogá-los. Essa motivação parte de uma necessidade da comunidade afro-americana de conhecer sua história, como declara: “Lembro-me de que, não muitos anos atrás, dizia-se que o africano carecia de todo o sentido da história porque a história africana não estava disponível na forma de linguagem escrita” (FINDLAY, 2001, p. 6, tradução minha). Atualmente, o Moorland-Spingarn Research Center é considerado como um dos mais completos repositórios de informações do mundo sobre a história e a cultura dos negros (FINDLAY, 2001). Para além do trabalho com no Moorland-Spingarn, enquanto pesquisadora e bibliotecária, compilou numerosas bibliografias e compêndios da história afro-americana. Como resposta à dificuldade em encontrar materiais de e sobre pessoas negras antes de 1835, Dorothy elaborou sua dissertação de mestrado intitulada 81 Dorothy Porter Wesley e a organização do conhecimento “Afro-American Writings Published Before 1835”4, que marcou o início de uma carreira de décadas da autora na bibliografia. Devido à busca incansável por novos materiais, bem como à hesitação dos editores em publicar sobre o assunto, sua dissertação não seria publicada em sua forma completa até 1971 com o título de Early Negro Writing, 1760-1837. No que se refere à Organização do Conhecimento, dentro das reflexões sobre os sistemas de Organização do Conhecimento, Dorothy Porter Wesley trouxe uma atitude crítica para repensar a maneira de como os materiais bibliográficos do Centro eram catalogados, haja vista que os códigos de classificação e catalogação eram produzidos por uma perspectiva eurocêntrica e “branco-americana” de refletir sobre o mundo, e não estavam adequados para representar os materiais de e sobre a população negra (NUNES, 2018). Com a ascensão do New Negro movement [Novo Movimento Negro], e a introdução do currículo de estudos negros em Howard, a principal tarefa de Dorothy era reunir todos os materiais das prateleiras da biblioteca principal para construir o que foi originalmente chamado de “Livros de e sobre os negros” (BOTNICK, 2014). Thomas C. Battle, em seu ensaio intitulado “Moorland-Spingarn Researh Center, Howard University”, publicado em 1988 na Library Quarterly, aponta que as bibliotecas americanas não possuíam um esquema de classificação adequado para materiais negros, em especial, para classificação de panfletos, algo que era parte integrante do acervo da Moorland-Spingarn. Dessa forma, a equipe da Biblioteca da Howard University criou métodos de acesso ao acervo: “Lula V. Allan e Edith Brown, assistidos por Lula E. Connor e Rosa C. Hershaw, foram responsáveis pelo desenvolvimento inicial de um esquema satisfatório de classificação e catalogação” (BATTLE, 1988, p. 145, tradução minha). Conforme Zita Cristina Nunes (2018, s.p., tradução minha), o objetivo das quatro bibliotecárias foi “priorizar o significado acadêmico e intelectual e a coerência dos materiais que haviam sido marginalizados pelas concepções eurocêntricas de conhecimento e produção de conhecimento”. Posteriormente, Dorothy Porter Wesley (à época conhecida como Dorothy Burnett Porter) fez o melhoramento do esquema de classificação e o tornou adequado à Coleção, desenvolvendo ainda, uma amplitude de ferramentas de pesquisa e bibliografias confiáveis a partir de seu conhecimento no campo, o qual seria posteriormente chamado de Black Studies (PORTER, 1938; BATTLE, 1988; NUNES, 2018). O Sistema Decimal de Dewey padronizou e revolucionou a classificação das bibliotecas, mas refletiu os preconceitos de seu fundador e de sua época, conforme in4 Afro-American writings published before 1835: With an alphabetical list (tentative) of imprints written by American Negroes, 1760-1835. 82 Franciéle Carneiro Garcês da Silva fere Botnick (2014, p. 35). No referido sistema, os preconceitos são evidenciados. As “classes 396, posição e tratamento das mulheres, e 397, Outcast studies[...]”. Ainda, Tudo relacionado à reprodução e sexualidade foi listado em ‘Higiene’. Havia dois números, 325 e 326, que categorizavam a colonização e a escravidão, respectivamente, sob os quais qualquer coisa por ou sobre africanos e afro-americanos seria listada. Ebony seria listado lá, em vez de com outros periódicos. Um poema de James Weldon Johnson estaria lá, também, em vez de com outros poetas (BOTNICK, 2014, p. 35). Em entrevista à Avril Johnson Madison, Dorothy Porter Wesley destaca sua resistência em utilizar a Classificação Decimal de Dewey, mesmo quando todas as bibliotecas da época a utilizassem. Sempre buscamos orientação na Biblioteca do Congresso e em bibliotecas que usam um sistema chamado Sistema Decimal de Dewey. Agora, no sistema decimal de Dewey, eles tinham um número - 326 - que significava escravidão, e eles tinham um outro número - 325, pelo que me lembro - que significava colonização. Assim, todas as bibliotecas - muitas das bibliotecas brancas, que visitei mais tarde - cada livro, fosse um livro de poemas de James Weldon Johnson, que todos sabiam que era um poeta negro, tinha que estar na 325. E isso era estúpido para mim. (WESLEY, 1995, p. 12). Dorothy ainda infere que foi necessária a mudança que realizou para classificar o acervo da Coleção, pois haviam problemas no sistema: Por que não pegar todo o Sistema Decimal de Dewey e colocar um livro do poeta James Weldon Johnson abaixo do número para poesia? Entende? Então foi isso que eu fiz. Eu adaptei todo o sistema para toda a coleção de acordo com o que o assunto era. Agora, se eu tivesse livros sobre escravidão, o que eu tinha, livros sobre colonização, o que nós tínhamos, então eu os colocava sob esses números, veja, e então fiz números [separados] para os autores, veja. Os autores tinham seus próprios números, para que você não se confundisse com tudo isso. Você reúne todos os livros que um homem escreveu, digamos, sobre a escravidão. Mas foi uma coisa muito simples; não foi nada difícil de fazer. (WESLEY, 1995, p. 12, tradução minha). 83 Dorothy Porter Wesley e a organização do conhecimento Houve uma tentativa de Porter Wesley para que fosse modificada a classificação de Dewey visando incluir o conhecimento negro com representação adequada. Conforme Julie Botnick, após o falecimento de Dewey, Jennie Dorcas Fellows5, sua sucessora, transferiu o trabalho de Dewey para a Biblioteca do Congresso. Porter Wesley entrou em contato solicitando que houvesse a expansão do sistema para acomodar a Coleção na qual ela estava trabalhando e as obras negras que estavam sendo acumuladas ao longo daquele período. Dorcas, citado por Julie Botnik (2014, p. 35) “sugeriu… a possibilidade de usar, em sua maior parte, números regulares [Dewey] para o tópico em questão, com alguma designação de prefixo, por ex. N para Negro, para indicar o ângulo especial a partir do qual o assunto estava sendo considerado”. Ainda, Fellows, em cartas6 trocadas entre elas, recusou o pedido de permissão solicitado por Dorothy Porter Wesley para mimeografar o “Tentative Supplementary Classification Scheme”[Esquema de classificação complementar provisório] informando que “isso estaria totalmente fora de questão, a menos que o tivéssemos aprovado em detalhes” (FELLOWS apud HELTON, 2019, p. 106), pois, conforme Fellows, essa alteração “resultaria em destruir toda a padronização” (FELLOWS apud HELTON, 2019, p. 106) criada por Dewey. Dorothy Porter Wesley lembrou que Fellows “não conseguia ver por que eu queria desenvolver outra coisa, por que não queria colocar um livro de poesia de James Weldon Johnson em ‘325’ ou ‘326’ (PORTER apud HELTON, 2019, p. 106). Inclusive, a bibliotecária negra recebeu uma advertência da American Library Association informando que, se ela compartilhasse seu esquema de classificação adaptado com outros bibliotecários(as) e curadores(as) seria acusada de violar os direitos autorais da obra de Dewey (HELTON, 2019). Para burlar esse sistema punitivo e a ameaça de sanções, Dorothy Porter Wesley publicou em 1939, o “Catalogue of Books in the Moorland Foundation” [Catálogo de livros na Fundação Moorland], no qual, incorporou os números da classificação de Dewey e personalizou para atender aos interesses de classificação de obras de autoria negra e sobre a população negra na diáspora. Assim, buscou auxiliar bibliotecas na classificação dos mesmos títulos que estavam presentes na Coleção (HELTON, 2019). O sistema de classificação especial desenvolvido por Porter na década de 1930 para a Coleção, foi categorizado com uma divisão por áreas básicas, como arte, antropologia, comunicação, demografia, economia, educação, geografia, história, 5 Posteriormente, a bibliotecária modificou o sobrenome para Dorkas, como é atualmente conhecida. 6 Dorkas Fellows to Dorothy Porter, December 6, 1934, box 5, Wesley Papers. 84 Franciéle Carneiro Garcês da Silva saúde, relações internacionais, linguística, literatura, medicina, música, ciência política, sociologia, esportes e religião (PHILLIPS, 1980). Ainda, a bibliotecária classificou as obras por autoria e por gênero, visando enfatizar os negros como produtores de conhecimento em todas as áreas (NUNES, 2018). Quando analisamos o trabalho de Dorothy Porter Wesley, percebemos que sua abordagem está alinhada às prioridades elencadas pela TCR Duboisiana, pois, para além de catalogar, classificar e disponibilizar o conhecimento feito por e sobre negros, ainda possui uma abordagem teórico-prática crítica que busca, a partir da organização de materiais – sejam eles quais forem – visibilizar as sociabilidades, vivências, experiências, produção científica e intelectual de pessoas de origem africana na diáspora. Ademais, o enfrentamento ao racismo, em todas as suas facetas, dentro do campo da Organização do Conhecimento é também desafiar a lógica hegemônica euroamericanizada de produção de conhecimento e história brancas, pois retira os brancos do centro, para trazer os negros – que sempre estiveram à margem –, para o lugar de intelectualidade e quebra de estereótipos. 5 Considerações finais Este capítulo destacou o trabalho da bibliotecária negra, Dorothy Porter Wesley, e sua contribuição para a organização do conhecimento dos Estudos Negros nos Estados Unidos da América. Evidenciamos que a Teoria Crítica Racial possui seu início desde os tempos da escravização, com as cartas elaboradas por pessoas escravizadas. Refletimos também como a Teoria Crítica Racial Duboisiana nos serve de lente para analisarmos a produção e atuação de uma bibliotecária negra contemporânea de W. E. Du Bois e seu papel na coleta, organização, armazenamento, disseminação de conhecimentos elaborados por e sobre pessoas negras na diáspora. Essa pesquisa não finda aqui, haja vista que a colaboração dessa bibliotecária também esteve relacionada à coleta, armazenamento e disponibilização de conhecimento produzidos, inclusive, por negros do Brasil. Por fim, inferimos que a produção do conhecimento sobre essa bibliotecária negra precisa ser reconhecida em nosso país. Os seus estudos na área da Organização do Conhecimento, em especial, os catálogos, livros e demais materiais bibliográficos precisam ser estudados, assim como consideramos ser profícuo realizar o estudo e a análise do esquema de classificação por ela elaborado para o acervo do Moorland-Spingarn Research Center. Agradecimentos A autora agradece à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pela bolsa de doutorado. 85 Dorothy Porter Wesley e a organização do conhecimento Referências ANDERSON, James D. 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Assim, a organização do conhecimento, enquanto atividade da Biblioteconomia e da Ciência da Informação, assume a responsabilidade de desenvolver processos e instrumentos ligados ao tratamento temático da informação (FOSKETT, 1973) e, portanto, desempenha um papel mediador entre os contextos de produção e uso da informação. No entanto, vale destacar que no âmbito da International Society for Knowledge Organization (ISKO), autores influentes como Dahlberg (1993, 1995, 2006, 2014) e Hjorland (2003, 2008) defendem a ideia de que a organização do conhecimento deva se tornar autônoma e ampliar seus escopos técnico-científicos. 1 Administradora negra com graduação pelo Centro Universitário Leonardo da Vinci (UNIASSELVI). Mestra em Ciência da Informação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Doutoranda em Ciência da Informação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Integrante do Grupo de Pesquisa Ecce Liber: Filosofia, linguagem e organização dos saberes (IBICT-UFRJ) e do Representação e Organização do Conhecimento (ROC-UFSC) E-mail: dirnele. [email protected] 2 Doutor em Ciência da Informação pela Universidade Estadual Paulista (UNESP/Marília). Professor do Departamento de Ciência da Informação da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). E-mail: [email protected] Teorias críticas utilizadas por autores latino-americanos em organização... O discurso de uma organização do conhecimento enquanto campo de estudo autônomo pode ser encontrado também em estudos como o de Ohly (2012), Guimarães, Oliveira e Gracio (2012) e Barros e Moraes (2012). Esse discurso emancipatório, segundo Sales (2016, 2017), ganhou força em finais do século XX, especialmente nas publicações de Dahlberg (1993, 1995), onde a autora procurou definir o escopo, os fazeres profissionais, os aspectos institucionais, a classificação da literatura especializada e as tendências da organização do conhecimento. Em princípios do século XXI, Dahlberg permaneceu advogando a favor de uma organização do conhecimento autônoma das áreas informacionais, chegando a atribuir à organização do conhecimento o status de “disciplina científica” e/ou “ciência” (DAHLBERG, 2006, 2014). Hjorland (2003, 2008), propondo uma distinção entre a organização cognitiva do conhecimento e a organização social do conhecimento, fortaleceu a perspectiva de que a organização do conhecimento devesse ser compreendida como um campo de estudo autônomo. Mas, diferentemente do total desprendimento da organização do conhecimento com relação às áreas informacionais, como proposto por Dahlberg, a perspectiva de Hjorland vislumbrava uma autonomia à organização do conhecimento sem desliga-la da Biblioteconomia e da Ciência da Informação que, segundo ele, assumiriam papeis importantes para se resolver as questões cognitivas (estritas) da própria organização do conhecimento. Salvaguardadas as devidas distinções, que, por ora, preferimos entender como diferentes facetas de um mesmo espaço epistemológico, adotaremos para o presente estudo a compreensão de que a organização do conhecimento é um espaço investigativo próprio que pode ser observado de diferentes maneiras e que, dotado de um arcabouço teórico e metodológico diverso, desenvolve-se com o fim precípuo de criar e aprimorar formas sistemáticas de se organizar o conhecimento, relacionando-se, em maior ou menor medida, com os campos informacionais. O objetivo principal deste estudo foi evidenciar na literatura latino-americana abordagens teóricas críticas em organização do conhecimento que apresentem olhares epistemológicos decoloniais. O alcance deste objetivo principal foi obtido a partir do estabelecimento de dois objetivos específicos: a) identificar as possíveis teorias críticas na literatura latino-americana de organização do conhecimento e b) verificar quais dessas teorias apresentam olhares epistemológicos decoloniais. Interessa-nos, aqui, identificar as teorias que vêm subsidiando esse espaço investigativo no contexto latino-americano, de modo a revelar a existência ou não de uma postura teórica crítica e decoloniadora na organização do conhecimento desenvolvida neste contexto geográfico. 92 Dirnele Carneiro Garcez e Rodrigo de Sales 2 Teorias críticas (em linhas gerais) Partindo de uma visão generalista, não é descabido afirmar que uma teoria crítica é a junção da capacidade de observar com a capacidade de formar juízo. Entretanto, é sabido que a teoria crítica, enquanto movimento intelectual ou abordagem teórica surgida a partir da década de 1930, é o aprofundamento da tensão existente entre a funcionalidade da ciência e a realidade sociocultural. Embora sejam várias as possibilidades de definição, a depender de cada vertente que a utiliza, Drago (1992) afirma que a Escola de Frankfurt foi a principal instituição para o desenvolvimento da teoria crítica. Para o autor, a teoria crítica seria parte do paradigma do humanismo radical. Nesse paradigma de humanismo radical, o sujeito seria dominado por uma estrutura ideológica com a qual interage, mas, no entanto, causadora de dificuldades na criação da consciência do próprio sujeito. A partir dessa dificuldade, ter-se-ia a alienação do sujeito e o impedimento de seu pleno desenvolvimento. Buscando formas de desenvolver o pleno potencial dos sujeitos e contrapor essa sociedade que é ‘anti-humana’, essa corrente teórica, cujas origens encontram-se no idealismo alemão e na noção kantiana de que a realidade é mais racional do que material, enfoca na luta pelas mudanças radicais, pelas emancipações, pelo combate às formas de dominação, entre outros fatores (BURREL; MORGAN, 1979; DRAGO, 1992). Decursiva da perspectiva marxista, as teorias críticas foram estruturadas por representantes da Escola de Frankfurt, dentre eles: Jürgen Habermas, Herbert Marcuse, Max Hokheimer e Theodor Adorno (TOZETTO GOES et al., 2017). Desenvolvida como alternativa teórica para se alcançar a compreensão das tensões socioculturais por meio de uma tomada de consciência oposta àquela proporcionada pela cientificidade cartesiana, a teoria crítica busca unir de uma vez por todas teoria e prática e problematiza-las a partir de uma realidade atravessada por aspectos humanos, econômicos, históricos, culturais e ideológicos. Contrapondo-se ao caráter cientificista das ciências humanas, que em princípios do século XX encontravam-se ainda adeptas às perspectivas funcionalistas, instrumentais e empíricas, pautadas, ainda, na eficiência da administração de dados e resultados, a teoria crítica buscou, na esteira marxista e na ótica psicanalítica, compreender o corpo social em suas dimensões coletiva e individual, tendo em conta os fenômenos concretos que o circunda e o conduz. Nesse sentido, a teoria crítica tenta abrir espaço para se examinar a realidade desconfiando das lógicas hegemônicas e dos determinismos vigentes. Nas áreas informacionais, alguns autores vêm chamando atenção ao trabalharem com essa alternativa teórica. Araújo (2009) infere que, no campo da Ciência da Informação, as teorias críticas foram consolidadas nas esferas da teoria crítica da informação, 93 Teorias críticas utilizadas por autores latino-americanos em organização... oriundas das humanidades, em especial, da filosofia e da história. Tais teorias críticas têm por atitude epistemológica o olhar desconfiado, a negação daquilo que está dado, a busca pelo que se esconde ou se camufla entre os conhecimentos. Martínez-Ávila, Semidão & Ferreira (2016), corroborando a informação de que as teorias críticas tiveram suas origens intelectuais oriundas da escola de crítica do pensamento social de Frankfurt, afirmam que a inserção das teorias críticas no campo da organização do conhecimento foi voltada para apoiar e fortalecer as respostas aos problemas éticos de grupos sociais, visando a estudar e representar abordagens específicas para organização do conhecimento. Araújo (2009, p. 196) aborda que “a teoria crítica vai enfatizar o conflito, a desigualdade, o embate de interesses em torno da questão da informação – e para tanto, buscará explicar os fenômenos a partir de sua historicidade”. Saldanha (2019) reflete epistemologicamente sobre a crítica na Ciência da Informação e estabelece que esta possui três dimensões programáticas, sendo elas: conceitual, metametodológica e temática, onde: a conceitual partiria da perspectiva; a metametodológica se apoiaria em instrumentos críticos contra-hegemônicos usados no tratamento dos resultados da realidade social; e a dimensão temática estaria voltada para grupos marginalizados e oprimidos. Essas dimensões se apoiam nas tipologias teóricas de abordagens teórico-críticas compostas por círculos, correntes, escolas e teorias críticas. Nesse sentido, entendemos que a observação da realidade social tendo em vista a desconfiança dos determinismos vigentes, a construção de instrumentos contra-hegemônicos e a ênfase em grupos marginalizados, são traços característicos principais das abordagens teóricas que podemos considerar como próximas às ideias das teorias críticas. A despeito de terem sido definidas ou não por pensadores da escola de Frankfurt, ou pautadas em lógicas marxistas, verificamos, no presente estudo, como pode ser observado nas páginas a seguir, todas as abordagens teóricas levantadas nos textos analisados, de modo a identificar posturas críticas nas mesmas. 3 A busca por olhares epistemológicos decolonizadores na organização do conhecimento Para pensar em decolonialidade é necessário estabelecer o entendimento sobre a colonialidade e sua relação com a produção do conhecimento. A colonialidade é “um dos elementos constitutivos e específicos do padrão mundial de poder capitalista” (QUIJANO, 2009, p. 73), o qual se constitui através da articulação entre o capitalismo, eurocentrismo, estado, colonialidade do poder e do domínio e subalternidade de populações não-eurocentradas (QUIJANO, 2005; 2009). A colonialidade se estabelece a partir de modelo único, universal e objetivo de conhecimento, 94 Dirnele Carneiro Garcez e Rodrigo de Sales com suas principais referências oriundas da Europa (QUIJANO, 2005, OLIVEIRA; CANDAU, 2013). Encontra-se presente em três dimensões das sociedades: a colonialidade do ser, a colonialidade do saber e a colonialidade do poder. A primeira se refere à experiência de colonização e seus impactos nos povos que passaram por esse processo; a segunda está presente na epistemologia e suas formas de construir pensamentos e conhecimento; a terceira e última, utiliza-se da classificação social e racial (a partir da ideia de raça) para efetivar a dominação colonial em povos não-europeus (QUIJANO, 2002; MALDONADO-TORRES, 2007a,b). A utilização dos termos decolonial ou descolonial carrega consigo algumas diferentes abordagens, embora ambas estejam voltadas para a desagregação das formas de exploração e dominação geradas pela colonialidade, bem como para a desconstrução do que foi por ela estabelecido. O termo descolonização denota superação do colonialismo, enquanto decolonialidade difere dessa ideia e transcende a colonialidade – parte da modernidade – e suas formas de opressão, controle e subordinação ainda vigentes no padrão mundial de poder (BALLESTRIN, 2013). Os estudos decoloniais se estabelecem com procedimentos conceituais e sistemáticos associados às questões de poder na modernidade. A modernidade é como um fenômeno mundial baseado em relações de poder. Isso resulta na subalternização de epistemologias, práticas e características de populações étnico-raciais não-europeias, ou seja, de povos dominados pelo colonizador. Com isso, o eurocentrismo é constituído como principal forma de produção de conhecimento e subjetividades na modernidade (GRUPO DE ESTUDIOS SOBRE COLONIALIDAD, 2012). Entende-se como estudos decoloniais um “conjunto heterogêneo de contribuições teóricas e investigativas sobre a colonialidade” (QUINTERO; FIGUEIRA; ELIZALDE, 2019, p. 4), que abrangem revisões historiográficas, estudos de casos, recuperação do pensamento crítico latino-americano, formulações e reconceitualizações voltados para a revisão e expansão de indagações teóricas (QUINTERO; FIGUEIRA; ELIZALDE, 2019). Dessa forma, os estudos decoloniais possuem como foco ir além das perspectivas Europeias, pois visam a apresentar uma pluralidade temática e novas concepções epistemológicas a partir de autores latino-americanos. Neste estudo, utilizamos o termo “decolonial”, pois assim como Walsh (2017) justifica, a supressão do “s” de descolonial marcaria uma diferença com o significado do “des” em espanhol, que pode ser entendido como [...] desarmar, des-hacer o revertir de lo colonial. [...]. Con este juego lingüístico, intento poner en evidencia que no existe un estado nulo de la colonialidad, sino posturas, posicionamientos, horizontes y proyec- 95 Teorias críticas utilizadas por autores latino-americanos em organização... tos de resistir, transgredir, intervenir, in-surgir, crear e incidir” (WALSH, 2017, p. 24-25). No que se refere aos estudos pós-coloniais, estes nascem sob a influência do pós-modernismo e do pós-estruturalismo, voltados para a ressignificação dos discursos e de categorias da textualidade realizados pelas relações transversais. O pós-colonialismo passou a receber fortes influências das produções intelectuais periféricas, que estavam voltadas a olhar criticamente o discurso dominante (PEZZODIPANE, 2013). A contribuição dos estudos pós-coloniais está na: [...] ruptura com a história única, sustentada pelas metanarrativas que legitimaram as ideologias do processo de colonização, naturalizando a dominação do homem pelo homem, a partir das diferenças raciais hierarquizadas como justificativa para o “processo civilizatório” (PEZZODIPANE, 2013, p. 88) Enquanto comprometimento intelectual e político, os estudos pós-coloniais se comprometem, ao mesmo tempo em que buscam criticar e desconstruir o discurso colonial, a evidenciar outras vozes vindas dos próprios sujeitos - que estão descentralizados do norte global - sobre suas próprias existências e as relações com a exploração, a dominação, a perda identitária, o processo diaspórico, a tortura e a banalização da vida, entre outros processos intrínsecos ao processo colonialista. (PEZZODIPANE, 2013). A reflexão e a produção do conhecimento em Ciência da Informação estão intrinsecamente vinculadas à perspectiva colonialista e, portanto, precisam ser revisitadas sob olhares críticos e epistemes decoloniais de fazer ciência. O termo “epistemologia” é empregado para se referir à teoria do conhecimento e pode ser entendida como um estudo científico e filosófico do conhecimento voltado para “o saber científico, filosófico, cultural, social e técnico, visando a explicar os seus condicionamentos [...], organizar e sistematizar as suas relações, esclarecer os seus vínculos e avaliar os seus resultados e aplicações” (FARIA, 2014, p. 2). Para Santos e Meneses (2009, p. 9), o conceito de epistemologia se refere à [...] toda a noção ou ideia, reflectida ou não, sobre as condições do que conta como conhecimento válido. É por via do conhecimento válido que uma dada experiência social se torna intencional e inteligível. Não há, pois, conhecimento sem prática e actores sociais. E como umas e outros não existem senão no interior de relações sociais, diferentes tipos de relações sociais podem dar origem a diferentes epistemologias. 96 Dirnele Carneiro Garcez e Rodrigo de Sales Os autores reforçam a ideia que não existem epistemologias neutras e que a reflexão epistemológica deve estar presente, em especial, nas práticas de conhecimento e seus impactos em outras práticas em sociedade (SANTOS; MENESES, 2009). Quando pensamos em epistemologia, precisamos entender que em essência, uma epistemologia é considerada crítica. No entanto, nem toda epistemologia é de fato crítica quando se refere a sua prática (FARIA, 2014). Dessa forma, o conceito definido por José Henrique de Faria sobre epistemologia crítica é de que esta: [...] é o estudo científico e filosófico do conhecimento que têm por objeto o saber científico, técnico, cultural e filosófico de um conjunto autônomo e crítico de práticas (ações) e saberes conscientes baseados em instâncias integradas de mediação (objeto←→sujeito), que sejam: (i) não dogmáticas ou absolutas, mas flexíveis e coletivas, em que todo o objeto do conhecimento pode ser matéria (princípio), instrumento (meio) e produto ou forma (fim); (ii) sem conteúdos prévios, mas construídas através da sistematização das suas relações, do esclarecimento dos seus vínculos, da avaliação dos seus resultados e aplicações; (iii) não hierarquizadas, em que o objeto e o sujeito do conhecimento são mediados e mediadores, em que a alternância e a polivalência do objeto e do sujeito no que se refere à mediação é uma regra e não uma exceção; (iv) baseadas no primado do real concreto sobre o real pensado, com uma necessária integração dinâmica e contraditória entre ambos (FARIA, 2014, p. 3) O autor afirma ainda que as pessoas se constituem como sujeitos quando produzem suas condições materiais de existência. Assim, a mediação entre a consciência e a realidade sempre é realizada em certas condições ou em lócus de mediação, tais como a mediação do pensamento por intermédio de atividades práticas de produção de existência; pela prática política e ações de intervenção desses sujeitos em suas realidades sociais buscando uma intervenção efetiva; pelos vínculos sociais comuns que estabelecem coletivamente seja de formal ou informal; pela aceitação de conjunto de regras, valores éticos, elementos culturais, crenças, mitos e configurações simbólicas e imateriais (FARIA, 2014, 2015). No sul global, podemos elencar as epistemologias do Sul como formas de epistemologias críticas ao olhar para a produção de ciência e conhecimento e suas inter-relações com a colonialidade do ser, do saber e do poder, e propor alternativas a partir do próprio hemisfério sul (SANTOS, 1995). As epistemologias do sul buscam a descontinuidade radical com o projeto moderno de epistemologia vigente e uma 97 Teorias críticas utilizadas por autores latino-americanos em organização... reconstrução da reflexão sobre os saberes, a partir do olhar de saberes subalternos e oprimidos. Estabelecem intervenções epistemológicas para denunciar a exclusão/ invisibilização de saberes não europeus que foram suprimidos pelo grupo estabelecedor de normas dominantes no contexto mundial, assim como evidenciam saberes que resistiram à essa lógica hegemônica e que mantém diálogos entre os conhecimentos (NUNES, 2009; SANTOS, 1995). Na organização do conhecimento, as epistemologias críticas contribuiriam para estabelecer perspectivas contra-hegemônicas de produção de conhecimentos, levando em consideração olhares de sujeitos e povos marginalizados na sua construção. Dentre as perspectivas críticas decoloniais, podemos elencar pesquisadores como García Gutierrez, que apresenta a noção de desclassificação da organização do conhecimento como provocação à ideia de Classificação (GARCÍA GUTIÉRREZ, 2011). O autor infere que para: “pensar, utilizando e construindo contradições, como propõe um procedimento central da desclassificação, é necessário aceitá-las, admitir que a contradição abre um mundo de outras lógicas que operam fora da lógica convencional” (GARCÍA GUTIERREZ, 2020, p. 85, tradução nossa). Em seu entendimento, a desclassificação é uma “teoria que assume sua contradição de matriz para não acabar como qualquer teoria: com o tempo, essa contradição se torna evidente3 “. (GARCÍA GUTIERREZ, 2020, p. 59, tradução nossa). Em diversos contextos, inclusive no contexto brasileiro, abordagens teóricas em organização do conhecimento têm sido pautadas visando a entender a construção e a organização dos conhecimentos ainda sob uma lógica eurocêntrica de produção científica. Nesse sentido, é urgente o diálogo e entendimento de abordagens e teorias que são utilizadas por povos subalternizados, em especial, daqueles que estão ao sul do globo (BERNARDINO-COSTA; MALDONADO-TORRES; GROSFOGUEL, 2018). Diante do exposto sobre a decolonialidade, somado ao que foi tratado anteriormente a respeito das teorias de abordagens críticas, buscamos a seguir identificar as abordagens teóricas que vem sendo utilizadas na organização do conhecimento, no contexto latino-americano, que podem ser compreendidas como abordagens críticas e decoloniais. Para tanto, sintetizamos as seguintes variáveis de análise: i) oposição aos determinismos hegemônicos vigentes, ii) primazia às relações efetivamente estabelecidas nas sociedades, iii) ênfase em grupos marginalizados e iv) desprendimento da lógica eurocêntrica. 3 Original: Desclasificación: creencia que recusa ser víctima del destino inexorable de las creencias. Teoría que asume su contradicción matriz para no acabar como toda teoría: con el tiempo poniendo en evidencia esa contradicción. 98 Dirnele Carneiro Garcez e Rodrigo de Sales 4 Procedimentos metodológicos Os textos analisados foram coletados no mês de Junho de 2020, na base de dados Web Of Science a partir da estratégia de busca “(TS=(Knowledge Organization) AND CU=(Argentina OR Bolivia OR Brazil OR Chile OR Colombia OR Costa Rica OR Cuba OR Equador OR EL Salvador OR Guatemala OR Haiti OR Honduras OR Mexico OR Nicaragua OR Panama OR Paraguai OR Peru OR Republica Dominicana OR Uruguay OR Venezuela))” na qual refinou-se a busca por artigos (tipo de documento) publicados no período de 2016 a 2020, na categoria de Information Science / Library Science, excluindo países e regiões não pertencentes à América Latina. Os materiais recuperados foram armazenados em planilha eletrônica, na qual foram registrados os seguintes dados: título, autoria, periódico, idioma de publicação, ano de publicação, DOI, resumo e palavras-chaves. Para a análise, foi considerada como pertencente à América Latina a produção científica existente na WoS de autores de países latino-americanos ou com vínculo em instituições latino-americanas de ensino, pesquisa e tecnologia. Como recorte do escopo, foram selecionados os autores que tiveram de três a cinco artigos recuperados durante a coleta de dados, os quais abordassem teorias vinculadas à organização do conhecimento. Ao total, foram selecionados 16 autores latino-americanos e 59 artigos. Para a extração das teorias, foi realizada a leitura completa dos materiais, visando a identificar todas as teorias citadas nos estudos, separando-as e armazenando-as em planilha eletrônica. Posteriormente, além dos materiais encontrados, outras fontes da literatura foram consultadas, a fim de identificar as autorias de tais teorias e obter mais informações das mesmas. Após identificar quais foram as teorias, foram aferidos em cada uma delas seus traços característicos, visando a verificar quais podem fazer parte das abordagens teóricas críticas em organização do conhecimento e quais possuem olhares epistemológicos decoloniais. Importante destacar que utilizamos como percepção para definir o que seriam teorias críticas aquelas teorias concebidas por pensadores críticos ou aquelas teorias utilizadas para trazer alguma crítica a determinada questão. Também consideramos a possibilidade de não serem teorias críticas de nascimento, mas que podem ser utilizadas como método ou instrumento para uma análise da perspectiva dentro do contexto social. Os traços característicos (variáveis de análise) que adotamos para a verificação das teorias levantadas, de modo a identificar possíveis abordagens teóricas críticas e decoloniais, foram: i) oposição aos determinismos hegemônicos vigentes, ii) primazia às relações efetivamente estabelecidas nas sociedades, iii) ênfase em grupos marginalizados e iv) desprendimento da lógica eurocêntrica. É importante frisar 99 Teorias críticas utilizadas por autores latino-americanos em organização... que as abordagens foram verificadas a despeito de serem ou não provenientes de pensadores pertencentes a escola de Frankfurt. 5 Resultados e discussões Após a análise dos conteúdos dos textos, identificamos as seguintes abordagens teóricas utilizadas pelos autores de organização do conhecimento que guardam fortes proximidades com as teorias críticas, de acordo com as variáveis de análise estabelecidas acima: • Teoria das representações sociais: teoria que busca explicar e compreender a realidade social, considerando a dimensão histórico-crítica. Estabelece-se entre a psicologia e a sociologia, especialmente entre a psicologia e a sociologia do conhecimento. Difundida por Serge Moscovici. Europa (a partir da década de 1960). • Teoria crítica da raça: propõe transformar a relação entre raça, racismo e poder. Desenvolvida por ativistas e acadêmicos, centra atenção crítica na tensão social gerada por questões raciais e dialoga com movimentos como o feminismo radical, a libertação negra e outros estudos pós-estruturalistas. Tem como princípios centrais o compromisso com a justiça social e o compromisso epistemológico de construção conceitual a respeito de raças e populações. Opõe-se à hegemonia social branca. Disseminado a partir dos Movimentos de Estudos Negros, nos Estados Unidos, a partir das décadas de 1960 e 1970, especialmente por nomes como William Edward Burghardt Du Bois e Kimberlé Williams Crenshaw. • Teoria queer: teoria sobre gênero, orientação e identidade sexual que se distancia propositadamente de um discurso de ordenação normativa que atribui essência biológica à natureza humana. Vai além das discussões que rivalizam homens e mulheres e trabalha na compreensão e desconstrução dos constructos sociais vigentes, dando ênfase ao combate dos processos estabelecidos na sociedade que marginalizam minorias sexuais. Principais disseminadores: Eve Kosofsky Sedgwick, Judith Butler, Michael Warner, David M. Halperin. Estados Unidos (século XXI). • Teorias semióticas: contemplam abordagens relacionadas aos signos, à semiose e à significação nos contextos culturais, tendo em conta também o papel dos interpretantes. Principais disseminadores: Charles Peirce, Ferdinand Saussure, Louis Hjelmslev, Roman Jakobson, Roland Barthes e Umberto Eco. América do Norte e Europa (a partir da segunda metade do século XIX). • Teoria pós-moderna da organização do conhecimento: rejeita a ideia de 100 Dirnele Carneiro Garcez e Rodrigo de Sales • • • • • • • que um instrumento ordenador possa ser neutro e direciona a atenção para o contexto sociocultural, especialmente à linguagem da comunidade e às práxis sociais. Principal disseminador na organização do conhecimento: Jens-Erik Mai. América do Norte e Europa (século XXI). Teoria da linguística documental: abordagem teórico-prática interdisciplinar que tem como propósito a resolução de problemas no armazenamento e na recuperação de informações, com base em problemas reais e não ideais. Principal disseminador: Antonio García Gutiérrez. Europa (a partir da década de 1980). Epistemografia interativa: abordagem que promove a inclusão de visões culturais diferentes, estabelecendo uma ética transcultural de mediação, opondo-se ao desenvolvimento instrumental logico-semântico de visão positivista. Disseminada por Antonio García Gutiérrez. Europa (século XXI). Teoria da complexidade: abordagem epistemológica interdisciplinar que lida com sistemas complexos adaptativos, comportamento emergente, complexidade de redes, teoria do caos e auto-organização, tanto numa perspectiva filosófica quanto numa perspectiva sociológica. Difusão: Edgar Morin, Isabelle Stengers e Ilya Prigogine. Europa (a partir da década de 1970). Jogo de linguagem ou jogos de linguagem: abordagem filosófica que demonstra a possibilidade de diferentes formas de percepção real por meio da linguagem, a partir de uma lógica pragmática. Origem: Ludwig Wittgenstein. Europa (a partir da década de 1950). Memória social: abordagem cuja ênfase está voltada à relação da memória com a sociedade, lidando com mecanismos de caráter social, tais como, valores, sentimentos, pressão social etc., elementos que são constitutivos de toda sociedade. Origem em Maurice Halbwachs. Europa (a partir da década de 1930). Teoria do colecionismo: para além de classificar, nomear e atribuir significados, esta abordagem vislumbra a possibilidade de se tecer análises sob diferentes perspectivas, como social, cultural, psicológica e econômica e semântica. Relacionada também com aspectos marcadamente sociais, há indícios consistentes que sua origem esteja nos estudos de representações sociais de Émile Durkheim. Europa (a partir da segunda metade do século XIX). Teoria Comunicativa da Terminologia: teoria que lida com as questões terminológicas sob uma ótica comunicativa pautada na linguagem efetivamente utilizada nos ambientes de especialidades, contrapondo a ótica prescritiva e determinística da teoria geral da terminologia. Criadora: María Teresa Cabré, Europa (a partir da década de 1990). 101 Teorias críticas utilizadas por autores latino-americanos em organização... As abordagens teóricas expostas acima guardam proximidades marcantes com as teorias críticas, principalmente no que se referem à busca por novas compreensões sociais, à concepção de novas posturas epistemológicas e o enfoque nos grupos sociais marginalizados, em detrimento das ordenações discursivas hegemônicas e normativas. Assim, é possível inferir que as abordagens apresentadas acima correspondem a abordagens teóricas críticas empregadas na produção literária latino-americana de organização do conhecimento. Entretanto, no que se refere ao olhar epistemológico decolonial, todas as abordagens teóricas aqui identificadas advêm de regiões dominantes do hemisfério norte. Em outras palavras, não identificamos neste estudo nenhuma teoria ou abordagem construída e disseminada na América Latina ou em outra região do sul global. Tal fato evidencia que a crítica tecida pelos autores latino-americanos no campo da organização do conhecimento se respalda e se constrói hegemonicamente na visão dos pensadores de regiões dominantes como Europa e América do Norte. Os resultados apontam para a necessidade de uma urgente decolonização na organização do conhecimento, em prol de uma construção epistemológica própria e libertadora. 6 Considerações finais A proposta de evidenciar na literatura latino-americana abordagens teóricas críticas utilizadas na organização do conhecimento, que apresentem olhares epistemológicos decoloniais, foi levada a cabo com a constatação de que embora abordagens críticas venham sendo empregadas nos estudos de organização do conhecimento, a área carece ainda de um movimento efetivamente decolonizador. Se por um lado foi possível identificar a presença de teorias aproximativas às teorias críticas, por outro se revelou o preocupante dado de que a crítica nos estudos de organização do conhecimento na América Latina vem sendo construída ainda com abordagens advindas de pensamentos do hemisfério norte. Desta forma, consideramos que os resultados aqui alcançados servem de subsídios para uma conclamação àqueles que pretendem construir uma organização do conhecimento de fato livre e decolonizadora na América Latina, centrando esforços na concepção de uma epistemologia própria capaz de lidar diretamente com os problemas socioculturais impostos em nossas realidades. Se nossas pesquisas já lançam mão de abordagens teóricas críticas, basta iniciar de fato o movimento de decolonização, pensando e articulando nossas questões e nossas problematizações. Agradecimentos À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001, pela concessão da bolsa de Doutorado. 102 Dirnele Carneiro Garcez e Rodrigo de Sales Referências ARAÚJO, C. A. Á. Correntes teóricas da ciência da informação. Ciência da Informação, Brasília, DF, v. 38, n. 3, p.192-204, set./dez., 2009. 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Estes conhecimentos, representados por negros, ciganos, ribeirinhos, mulheres, LGBTIA+ - os ditos saberes populares dos condenados da terra, como dizia Fanon (2005) -, são invisibilizados pela ciência como um saber verdadeiro. O saber dito verdadeiro remete aos apontamentos epistemológicos de René Descartes por meio da filosofia cartesiana. Para Grosfoguel (2016, p.30) “a filosofia cartesiana tem exercido grande influência nos projetos ocidentalizados de produção de conhecimento” o que possibilita ditar se o conhecimento é considerado verdadeiro ou não. Nesse mesmo entendimento, as universidades ocidentalizadas, baseadas no legado de Descartes seguem o mesmo procedimento de validação da produção da ciência e do conhecimento (GROSFOGUEL, 2016). A legitimação do conhecimento deixa em evidência e tido como válido o conhecimento masculino e heterossexual e invisibiliza outros conhecimentos e saberes. O desconhecimento desses saberes possibilita a não representação do mesmo nos sistemas de organização do conhecimento tornando-os inexistentes, limitados e logo, impossíveis de representar de uma maneira realística. O desconhecimento implica em um epistemicídio (SANTOS, 1995; CARNEIRO, 2005). Epistemicídio se 1 Termo cunhado por Paulo Henrique Martins em 2019 que determina o florecimento a partir das margens e intersecções em um entre lugar a descolonização do ser, do saber e do poder. 2 Doutoranda em Ciência da Informação pela Universidade Estudal Paulista, “Julio de Mesquista Filho”, Campus Marília, [email protected] Teoria crítica da colonialidade na Organização do Conhecimento configura em uma anulação e desqualificação dos conhecimentos de povos marginalizados. Entender tais teorias para evidenciar e desconstruir os saberes hegemônicos3 é de fundamental importância, pois possibilita dimensionar o papel da ciência diante à dominação de territórios, culturas e saberes, feita por meio de “antigas teorias e categorias de explicar o mundo” (BERNARDINO-COSTA; GROSFOGUEL, 2016, p. 15) que evidenciaram um saber-poder, na qual privilegiava/privilegia um conhecimento em detrimento de outro. As teorias, com o viés emancipatório, possibilitam enxergar as epistemes ausentes nas narrativas hegemônicas (atrelada ao imperialismo e no eurocentrismo) permitindo ter uma teoria e uma metodologia (SANTOS, 2007) a partir das margens. Quando pensamos as epistemologias a partir das margens propusemos uma nova ciência, a ciência que coloca o foco a partir do/a narrador/a, ou seja, a partir de um locus de enunciação, como bem diz Larissa Pelúcio (2012, p. 398-399) Anunciar o lugar de fala significa muito em termos epistemológicos, porque rompe não só com aquela ciência que esconde seu narrador, como denuncia que essa forma de produzir conhecimento é geocentrada, e se consolidou a partir da desqualificação de outros sistemas simbólicos e de produção de saberes. Sendo a Biblioteconomia e a Ciência da Informação ciências que possibilitam o acesso à informação para um amplo público, por meio das teorias e metodologias da Organização do Conhecimento, a sub-representação dos saberes não científicos, saberes que circulam no meio cotidiano, impossibilita que pessoas que não fazem parte do meio científico tenham acesso à informação de maneira eficaz ou se enquadrem, de certa forma, nos saberes hegemônicos. Esse texto parte da premissa de que o conhecimento dito marginal, ou cientificamente favelado4, é tão importante de ser representado, quanto os conhecimentos técnicos científicos voltados para uma episteme estadunidense e europeia. Nesse sentido, eis a pergunta: O que a teoria pós-colonial, decolonial e dos estudos subalternos podem contribuir para pensar a descolonização da Organização do Conhecimento? O objetivo desse trabalho é relacionar as teorias críticas da colonialidade com o campo da Organização do Conhecimento, os chamados pensamentos subalternos, sendo que estes saberes empregam a realidade de pessoas e culturas que deveriam 3 Os saberes hegemônicos são saberes que se sobrepõem a outros saberes ditos marginais. 4 Ver García Gutiérrez (2006) 110 Graziela dos Santos Lima ser representadas nos sistemas de organização do conhecimento5 fidedigna e no contexto de suas realidades. Para a reflexão e elaboração do trabalho utilizou-se as bibliografias relacionadas às teorias pós-coloniais, decoloniais e estudos subalternos por meio de pesquisadores críticos da colonialidade do saber, poder e ser (QUIJANO, 2005; 2010, LANDER, 2005, DUSSEL, 2005, MIGNOLO, 2005, SPIVAK, 2010, MENESESES, 2010, SANTOS, 2010, GROSFOGUEL, 2006; 2016, MALDONADO-TORRES, 2016; 2019) para pensar em uma representação do conhecimento das populações tradicionais, os etnoconhecimentos (MIRANDA, 2007), os saberes socialmente oprimidos (SALDANHA, et al., 2018), saberes subalternos (SPIVAK, 2010) que compõem populações locais e regionais, para uma perspectiva de saberes diversos ou uma ecologia dos saberes (SANTOS, 2010). O capítulo está dividido em seções que articulam o pensamento e chegam à compreensão do objetivo. Nesse sentido, a primeira seção versa sobre a configuração da Organização do Conhecimento no período da modernidade e pós-modernidade. A segunda seção compreende os aspectos teóricos e epistemológicos da teoria pós-colonial, decolonial e estudos subalternos. Na terceira seção, identificamos o pensamento pós-colonial e decolonial nos teóricos da organização do conhecimento, em especial no pensamento de Hjorland (2003), Hope Olson (2003) e de Garcia Gutiérrez (2011) na Organização do Conhecimento6. Portanto, uma epistemologia que transcende um pensamento hegemônico permite-nos pensar na organização dos saberes excluídos ao longo do tempo por um discurso homogeneizante e, nesse sentido, ter uma posição ético-política na Organização do Conhecimento que não permita mais a exclusão dos saberes marginalizados pela ciência. 2 A configuração da Organização do Conhecimento na modernidade e pós-modernidade Podemos dizer que não estamos imunes a fatores ideológicos que permeiam o campo simbólico em que atuamos. Hjorland (2000) relata que as comunidades absorvem práticas e ideologias que se configuram em um sistema simbólico que transparece nas produções de registros documentais (LARA; MENDES, 2017). Desse modo, podemos inferir que o sistema simbólico, imbuído de ideologia, influencia nas interpretações dos documentos quando estes são submetidos ao tratamento da informação7 e na construção e utilização de sistemas de organização do conhecimento. 5 São sistemas conceituais semanticamente estruturados que contemplam termos, definições, relacionamentos e propriedades dos conceitos (CARLAN; BRÄSCHER, 2011, p. 54) 6 Outros autores estão sendo analisados, tais como: Jonathan Furner (2007), Maria das Graças Simões,, Maria Aparecida Moura (2018), Marcio Ferreira da Silva (2018), Melodie J. Fox (2016), Rosa San Segundo (2008), dentre outros. 7 Tratamento da informação engloba todas as áreas técnicas, métodos e processos destinados 111 Teoria crítica da colonialidade na Organização do Conhecimento O tratamento da informação faz parte do processo que sistematiza a organização do conhecimento, linha de estudo dentro da Organização do Conhecimento voltada à parte prática e técnica do suporte e conteúdo do documento. A Organização do Conhecimento se configura em uma disciplina, dedicada ao estudo e desenvolvimento dos fundamentos e técnicas de planejamento, construção, gestão, uso e avaliação de sistemas de descrição, catalogação, ordenação, classificação, armazenamento, comunicação e recuperação dos documentos criados pelo homem para testemunhar, conservar e transmitir seu saber e seus atos, a partir de seu conteúdo, com a finalidade de garantir sua conversão em informação capaz de gerar novo conhecimento. (ESTEBAN NAVARRO; GARCÍA MARCO, 1995, p. 149) Para tanto, teorias, metodologias e processos nos estudos da Organização do Conhecimento possuem influências ideológicas dominantes que possibilitam a erradicação dos ditos saberes subalternos. As influências ideológicas também estão intrínsecas aos instrumentos de organização do conhecimento, construídos segundo Hjorland (2003) por um pensamento limitante e autoritário, edificados na passagem do pensamento moderno para o pós-moderno. Nesse sentido, os instrumentos considerados universais não são neutros, e por esse motivo expressam, em grande escala, as representações constituídas por um discurso hegemônico dado como um discurso colonizador, denominando e representando outras culturas por um olhar tanto imperialista quanto ocidental. Muitos pesquisadores, tais como Boaventura de Sousa Santos (2010), Anibal Quijano (2005), Walter Mignolo (2003) dentre outros, relatam que a modernidade e a pós-modernidade8 são conceitos forjados para camuflar o colonialismo9 por às descrições físicas ou temáticas dos documentos em bibliotecas ou sistemas de recuperação da informação (DAL’ EVEDOVE; FUJITA, 2013, p. 26) 8 Mesmo que a pós-modernidade tenha sido a origem do pensamento crítico, por discutirem a ausência de subjetividade, discutir a valorização exacerbada da neutralidade, a falta da diversidade cultural e linguistica nas epistemes, dentre outras, ainda observamos, lacunas da colonialidade na ciência e nos meios tecnológicos. Para San Segundo (2008, s/p.), é “fundamental una revisión epistemológica que abarque las epistemes locales”, ou seja, a partir do locus de enunciação, pois “la nueva Organización del conocimiento en el entorno digital está representada, inventada y articulada por la ideología y economía neocapitalistas [...]”(SAN SEGUNDO, 2008, s/p.) 9 Refere-se a uma estrutura de dominação/exploração onde o controle da autoridade política, dos recursos de produção e do trabalho de uma população determinada domina outra de diferente identidade e cujas sedes centrais estão, além disso, localizadas noutra jurisdição territorial. 112 Graziela dos Santos Lima diversos vieses: linguístico, territorial, cultural, epistemológico, dentre outros. Se o conhecimento é constituinte dessas dimensões, linguísticas, culturais, geográficas e relações intersubjetivas, então esse conhecimento de certa forma é construído por parâmetros eurocêntricos e colonizadores. Logo, os instrumentos de organização10 desses conhecimentos também o são. Entretanto, antes de entrar de fato na teoria pós-colonial, decolonial e dos estudos subalternos, linhas de pesquisas que pregam a emancipação do conhecimento, é preciso entender o que foi a modernidade e a pós-modernidade no campo científico, relacionados aos conhecimentos representados de maneira subalterna ou inexistente. Para Santos (2010), os modelos de exclusão radical, seja territorial e/ou epistemológico, que aconteceram no ciclo colonial, permaneceram no pensamento e nas práticas da modernidade e que ainda perduram até nos dias atuais. A modernidade evidenciada no iluminismo, o chamado século das luzes, concebia a ciência como racialista (pautada na racionalidade europeia de homens brancos) e manifestava/manifesta de uma maneira universal. A universalidade11 pautava-se em um único discurso que tinha o poder de representar e invisibilizar outros saberes, os ditos saberes subalternos e ser conhecido e representado por um discurso hegemônico (ocidentalizado) que não condiz com as outras realidades de sujeitos e culturas. A racionalidade diz respeito ao ser possuidores de direito do pensamento, nesse caso os homens brancos, Cisheterossexual e cristãos e europeu. As outras culturas as que viraram alvo de desumanização eram tidas como irracionais por serem consideradas sujeitos sem alma e consequentemente passíveis de serem escravizadas e terem suas cosmovisões invisibilizadas e destruídas (GROSFOGUEL, 2016). A modernidade reflete as transformações institucionais (inclusive as universitárias) originadas no ocidente (GIDDENS, 1991), em especial na Europa e é vista como a ascensão do capitalismo12 e a constituição da América via apropriação/ violência13 de terras (SANTOS, 2010), tendo como justificativa leis jurídicas e a episO colonialismo nem sempre implica relações racistas de poder. (QUIJANO, 2010, p. 73). 10 São sistemas que dão acesso às informações contidas nos documentos (ARAÚJO, 1995). 11 A “universalidade, na Modernidade europeia, significa ‘um define pelos outros’” (GROSFOGUEL, 2016, p. 45), ja Ortiz (2015) informa que a universalidade, um termo polissêmico, dependendo do contexto na qual é abordado, significa a manifestação de uma cultura sobre a outra, por meio de uma perspectiva de saber, por natureza eurocentrado (ORTIZ, 2015). 12 É um sistema de produção de mercadorias, centrado sobre a relação entre a propriedade privada do capital e o trabalho assalariados em posse de propriedade, esta relação formando o eixo principal de um sistema de classes (GIDDENS, 1991, p. 68) 13 A apropriação envolve incorporação, cooptação e assimilação, enquanto a violência implica 113 Teoria crítica da colonialidade na Organização do Conhecimento temologia para impor a dominação do mundo. A dominação foi feita na América por meio da classificação social da população mundial com base na ideia de raça (QUIJANO, 2005), que se constituiu em uma nova organização social. A classificação social, para o mesmo autor, com base na ideia de raça se expandiu primeiramente na América e depois pelo mundo e, nesse sentido, novas identidades foram formadas, como: índio, negro, mestiço, branco, amarelos e azeitonados, ou seja, constituiram-se identidades que foram promovidas com objetivo de marcar os sujeitos subalternos, identificando-os/as como sujeitos inferiores, marcadores estes que serviram de justificativa para a dominação de seus territórios e apagamento de suas culturas e epistemes. O processo de modernização produziu perspectiva e um modo de fazer conhecimento que demonstra o caráter do padrão mundial de poder que desse conta da expansão do capitalismo (QUIJANO, 2005). Essa perspectiva e produção de conhecimento, chama-se eurocentrismo14, que é a manifestação mais bem concebida do pensamento moderno. No campo do conhecimento, a perspectiva eurocêntrica consistia no monopólio da distinção universal entre o verdadeiro e o falso, em contraponto aos conhecimentos alternativos que eram, na época, a filosofia e a teologia (SANTOS, 2010). Essa perspectiva configurou uma disputa moderna entre as formas científicas e não-científicas de verdade. Os conhecimentos chamados de não-científicos, na modernidade, eram os conhecimentos populares, leigos, de plebeus, de camponeses, ou de indígenas (SANTOS, 2010), Saberes, na concepção de Foucault (1999), de pessoas delinquentes, dos doentes, resumidamente, saberes sujeitados, de pessoas locais e regionais, construídos a partir de suas experiências, e que não possuem a inquirição científica. Eram tidos como conhecimentos invisíveis, considerados irrelevantes ou incomensuráveis pela ciência, no entanto, para o pensamento europeu/ocidental, esses saberes não passavam de crenças, opiniões, magias, idolatria, intuição, que se tornaram objeto de conhecimento para inquirição científica (SANTOS, 2010). Atualmente podemos perceber esses saberes em movimentos sociais, quilombolas, sem terras, moradores de periferias, favelas, camponeses, dentre outros recharçados pelo campo científico por não ser um saber erudito. Podemos evidenciar, também nessa lógica da hieraquia do conhecimento, que muitos dos saberes populares foram politicamente silenciados, cujo, o maior temor destruição física, material, cultural e humana (SANTOS, 2010, p. 38). 14 Eurocentrismo é uma doutrina que toma a cultura europeia como paradigma, modelo histórico, e por isso uma referência mundial para todas as nações e seus elementos culturais são o padrão de civilização (DUSSEL, 2005). 114 Graziela dos Santos Lima se constituia no saber histórico das lutas por emancipação (FOUCAULT, 1999). No decorrer do tempo, esses saberes foram denominados de saberes tradicionais/conhecimentos tradicionais. Há diferença entre os dois conhecimentos, o conhecimento tradicional e o conhecimento científico na sua forma de constituição, mas o que os une é a busca em compreender a realidade, ou seja, “ ambos são formas de procurar entender e agir sobre o mundo” (CUNHA, 2007, p. 78). Além de buscar compreender a realidade tida como algo semelhante entre os dois conhecimentos, ambos são obras abertas que estão sempre se refazendo, ou seja, são conhecimentos inacabados (CUNHA, 2007). O não acabado por vezes gira em torno das contradições encontradas que são revistas ao ponto de construirem novos conhecimentos. A diferença entre os dois conhecimentos está no fato de que o conhecimento científico impera por unidades conceituais, ou seja,utiliza-se de conceitos construídos a partir de outros aportes teóricos, meios linguisticos e da tradução advinda do pensamento de quem construiu o conhecimento, porém há uma inquirição para verificação e legitimidade da crença. já o conhecimento tradicional utiliza-se de percepções (CUNHA, 2007) que se fazem conhecimento a partir da repetitividade, constituídas por práticas advindas de experiências tanto individuais quanto coletivas. Santos (2010) relata que os conhecimentos que se legitimam como verdades científicas são considerados passíveis de medição e o conhecimento tradicional incomensurável. Cunha (2007) discorda dessa perspectiva, pois para a autora sendo conhecimento não importa de que lado seja, os dois são incomensuráveis. A comensurabilidade foi uma das táticas de validação do conhecimento, em um “subsistema de distinções visíveis e invisíveis” (SANTOS, 2010, p. 33), dentro do rigor científico que dá status ao pensamento moderno (SÍVERES; SANTOS, 2013). As práticas científicas na modernidade eram baseadas na racionalidade, no positivismo e na universalidade. Para Japiassu (2011) é uma ciência que se origina com uma perspectiva patriarcal e, na concepção de Grosfoguel (2016), sexista e racialista. Ambos os autores consideram que a ciência foi construída com objetivo de exploração e dominação, que se inicia a partir de pesquisas feitas na natureza e posteriormente no ser humano. Na pós-modernidade surge perspectiva reivindicatória pelos pesquisadores e críticos da escola de Frankfurt. Na transição do pensamento moderno para a pós-moderno gerou por parte dos críticos reflexões, análises (HARVEY, 2006; SANTOS, 2000) e questionamentos sobre a modernidade, com relação aos métodos científicos utilizados, que não incluíam conhecimentos socioculturais. Jean-François Lyotard vê a perspectiva pós-moderna como “uma pluralidade de reivindicações heterogêneas de conhecimento, na qual a ciência não tem um 115 Teoria crítica da colonialidade na Organização do Conhecimento lugar privilegiado” (GIDDENS, 1991, p. 12). Segundo Harvey (2006), Lyotard faz uma crítica à linguagem, no sentido de dar importância e investir em diferentes códigos linguísticos. É na pós-modernidade que surgem movimentos reivindicatórios, como o multiculturalismo. O multiculturalismo é um movimento de grupos sociais e marginalizados, tais como feministas, afrodescendentes, LGBTQIA+, indígenas, quilombolas, dentre outros, que reivindicam políticas públicas e garantias de direitos civis básicos a todos requerendo o fim de toda forma de intolerância (CARDOSO, 2014, p. 79), além de reivindicar “terras e suas crenças, como reconhecimento público internacional de suas memórias, lutas e histórias” (ANTONACCI, 2015, p. 342). A reivindicação do movimento multiculturalista também adentrava nas áreas do conhecimento, cujos sujeitos, alocados nas zonas marginais conhecimento, tinham seus saberes invisibilizados. No contexto da modernidade, as práticas relacionadas à organização e à representação do conhecimento, vindas da Biblioteconomia e Documentação, possuíam um caráter positivista, fisicista e tecnicista voltado para a organização de acervos, o que possibilitou a construção dos instrumentos de classificação e organização do conhecimento. Porém, estes instrumentos, construídos nos séculos XIX e XX, chamados de universais, não abarcam as realidades que integram o mundo. Este fato é um dos pressupostos questionadores que os pós-modernistas, em especial os que lidam com o conhecimento crítico, relatam sobre a modernidade, pois “os problemas questionados pela pós-modernidade impactam nas formas de produzir conhecimento e propor soluções práticas a diversas áreas, incluindo, sobretudo, a Organização do Conhecimento” (PANDO, 2018, p. 139). Além de ser um instrumento dito universal, com a racionalidade, baseada em uma perspectiva eurocêntrica, da ciência na modernidade, que pressupõe uma forma de construir conhecimento verdadeiro, possibilitou a dicotomização e a hierarquização dos conhecimentos nos instrumentos de organização de conhecimento. No contexto da pós-modernidade, na organização do conhecimento, questões relacionadas às abordagens socioculturais emegem, porém passiveis de questionamentos, pois a pós-modenidade, de certa forma, não sanou em sua totalidade, os vícios advindas da modernidade. Para os críticos da época, isso quer dizer que todos os conhecimentos são válidos e que não existe um conhecimento único e verdadeiro. Além disso, segundo Pando (2018), no pós-modernismo o conhecimento não pode mais ser pensado de forma determinista e/ou mecanicista, pois a realidade não é e nunca foi compatível a esse modelo de pensamento. O autor ainda ressalta que, com o advento das tecnologias é possivel avançar em novas construções de sistema de organização do 116 Graziela dos Santos Lima conhecimento sem que estes instrumentos sejam de fato de forma hierarquizada, sistematizada e dicotômica. Da pós-modernidade até os dias atuais presenciamos pensamentos e metodologias pertencentes a abordagem sociocultural. A abordagem sociocultural na organização do conhecimento está direcionada aos subsídios norteadores para os profissionais da informação nas atividades relacionadas ao tratamento da informação. Entre estes subsídios destacam-se: estudos éticos na organização do conhecimento (DAHLBERG, 1992; GUIMARÃES, 2008; PINHO, 2010; MILANI, 2014). A ética está direcionada ao conjunto de normas e condutas que o profissional da informação deve ter nas práticas relacionadas ao tratamento temático da informação, ou seja, a ética ajuda orientar o agir do/a bibliotecário/a (PIZARRO, 2017). Os estudos sobre ética transcultural (GÁRCIA GUTIÉRREZ, 1998, 2002) partem do entendimento de que as diversas culturas devem ser respeitadas no momento de representar a informação e/ou construir o instrumento de organização do conhecimento, tendo como norte a ideia de que a cultura é um sistema aberto, dialógico e interativo. A Hospitalidade cultural e a garantia cultural (BEGHTOL, 2002) pressupõem que os indivíduos situados em diferentes culturas necessitam de diversos tipo de informação e muitas vezes em contextos diferentes, no entanto, o sistema de organização do conhecimento deve representar conhecimento e informação de maneira global e local por diferentes línguas para qualquer lugar do mundo. Os Tesauros multilíngues (HUDON, 1997) que propõem indexar documentos em diversas línguas, proporcionam uma relação entre culturas e comunicação interlinguística. As abordagens socioculturais se configuram para analisar e servir de metodologia para a construção de um Sistema de Organização do Conhecimento que incluam equitativamente outras culturas, como é previsto na pós-modernidade. Como a ciência pós-moderna tem se preocupado com a inclusão de diferentes códigos linguísticos, mais específicos na forma de utilização, seria interessante “uma análise semiótica de produção de significados de uma comunidade discursiva, antes da construção de arranjo de conhecimento” (PANDO, 2018, p. 143). Uma das fragilidades percebidas em algumas teorias críticas da organização do conhecimento, e que corroboram com a abordagens socioculturais, é a falta de questionamento sobre a modernidade ter sido a continuação do colonialismo com o propósito de dominação e apagamento de conhecimentos de outras culturas ditas marginais, e uma das armas dessa dominação era a disseminação seletiva, e muitas vezes forjadas da informação, que serviram para construção de novos conhecimentos propagando a ideologia dominante, os quais eram classificados e catalogados por um instrumento que também possui um viés excludente, que potencializa a 117 Teoria crítica da colonialidade na Organização do Conhecimento relação de poder para dar continuidade nas desigualdades. O fenômeno chamado modernidade se referia somente à racionalidade, à ciência, à tecnologia, etc. Contudo, estudos voltados nos aspectos pós-coloniais, decoloniais e estudos subalternos possibilitam ter uma visão ampla dos acontecimentos da modernidades e perceber como foi feita a construção do sistema de organização do conhecimento, em especial a CDD e a CDU. 3 Aspectos teórico-críticos e epistemológicos dos estudos pós-coloniais, decoloniais e subalternos Estudos pós-coloniais, decoloniais e subalternos são epistemologias baseadas em saberes diversos, vindos em especial do conhecimento da América Latina, Sul global e do Oriente no que concerne a saberes dos sujeitos subalternos. São saberes invisibilizados e deslegitimados na modernidade como saberes não válidos e nesse sentido inexistentes (SANTOS, 2010), que transcenderam campos e áreas do conhecimento. Estes saberes partiram de reflexões e projeções de críticos latino-americanos (em sua maioria) que discutem a modernidade versus experiência colonial, um pensamento inerente a desconstrução do conhecimento racial (ANTONACCI, 2015). Os estudos pós-coloniais, decoloniais e saberes subalternos trata de epistemologias que criticam o conhecimento europeu que se naturalizou como um conhecimento universal ao longo do tempo, levado a repensar nossa formação epistemológica (ANTONACCI, 2015). Os conhecimentos não válidos pela ótica eurocêntrica são representações clássicas da modernidade que os desconsideram simbolicamente e linguisticamente (SIQUEIRA, 2014). A desconsideração das epistemes ditas subalternas é originária do colonialismo que se perpetuou na modernidade. Essa perpetuação, na leitura de Aníbal Quijano (2005; 2010), denomina-se de colonialidade do poder e para Boaventura de Sousa Santos (2010) pensamento abissal. Com base nessa concepção de pensamento que transgride a colonialidade/pensamento abissal serão apresentados os críticos que vão ao encontro de uma nova episteme, partindo de lugares subalternos. Mas antes disso, será envidenciado as diferenças e semelhaças em torno dos termos que propagaram nas obras bibliográficas na área de Ciências Sociais. O estudos pós-coloniais, decoloniais e estudos subalternos são estudos contra a lógica de dominação imperalista vinda do extrangeiro que possuem um poderio e contra o eurocentrismo que ainda se perpetua nas produções de conhecimento legitimadora dos campos de estudos. Esses estudos têm como princípio as teorias pós-coloniais, ou seja, uma teoria que pensa estratégicas de libertação depois do colonialismo. No decorrer do tempo, outros estudos, como os estudos subalternos e decoloniais foram se desmembrando das teorias pós-coloniais formando 118 Graziela dos Santos Lima identidades novas com bases em suas teorias que faz com que uma se diferencie de outra. Os estudos pós-coloniais: é uma linha de estudos que teoriza os processos drásticos ocorrido pelo colonialismo e que ainda sucede historicamente em diferentes espaços e dimensões. Se configura como um “movimento político, intelectual e interdisciplinar” (AGUIAR, 2016, p .276). O pós dos estudos pós colonais, segundo Hall (2009) não significa encerramento com o período colonial, mas evidencia as relações coloniais de dominação na contemporanialidade. É um campo epistemológico que possui fortes abordagem críticas, vinda do pós-etruturalismo, desconstrutivismo, estudos culturais e estudos anticoloniais, sobre os efeitos do colonialismo nas sociedades (HALL, 2009) e propõem o recharçamento de dicotomias e hierarquias que possibilita estagnar identidades culturais e nos possibilita evidenciar a essencialização e dominação constituida históricamente (COSTA, 2006) nas populações colocadas à margem.O estudos pós-colonial têm como principais autores Albert Memmi, Aimé Cesárie, Franz Fanon e Edward Said. Os estudos subalternos: É proveniente de projetos pensados e construídos por historiadores indianos, liderado por Ranajit Guha, Gayatry Spivak e Dipesh Chakrabarty entre 1970 e 1980 e identificados como grupo Sul Asiático dos Estudos Subalternos. A utilização do termo subalterno é parte inerente da teoria pós-colonial, proveniente do marxismo gramsciano15 e é utilizado para marcar posição relacionada ao aspecto teórico e politico às intepretações elitistas dentro do contexto indiano que possuíam/possuem viés colonialista e/ou nacionalista (AGUIAR, 2016). O termo subalterno refere à perspectiva de pessoas de regiões e grupos fora do poder da estrutura hegemonica, bem como fora do pensamento hegemonico. A noção de subalterno transcedeu o território indiano e ganhou destaque na acadêmia Norte-Americana e posterior na América-Latina onde foi criado o grupo de estudos Latino-Americano de Estudos Subalternos em 1992 pelos pesquisadores John Beverly, Robert Carr, José Rabaa, Lleana Rodriguez, Javier Sanjines. Os dois grupos tinham diálogos entre si até que ouve uma ruptura em 1998 por divergencias teoricas (BALLESTRIN, 2013) e parte dos componentes do grupo Latino-Ameriano se constitui em grupo Modernidade/Colonialidade. Os estudos decoloniais ou a decolonialidade: é uma linha de estudos do grupo Modernidade/colonialidadde que por meio do giro decolonial abarca uma longa tradição de resistência das populações negras e indígenas e dos condenados da 15 Antonio Gramsci “desenvolve a categoria classe subalterna como elaboração de uma estratégia política de transformação social, baseada na existência dos subalternos, na reconstrução da história integral” (AGUIAR, 2016, p.274) 119 Teoria crítica da colonialidade na Organização do Conhecimento terra. Os estudos decolonais ajudam a pensar em estratégias para transformar a realidade e viabilizam o locus de enunciação dos saberes indígenas e afrodescendentes, pautando a dimensão política e a resistência no terceiro mundo. É uma linha de estudo que busca autonomia por meio da descolonização epistemológica dos cânones ocidentais (GROSFOGUEL, 2008) e busca refletir e evidenciar a realidade da América Latina e sul global. Além de evidenciar o locus de enunciação das populações às margens, situados na América Latina e sul global, analisa “as dimensões culturais e economicas, organizadas pelo processo de expansão europeia em torno da colonialidade do poder” (JARDIM; CAVAS, 2017, p. 85). As três linhas de estudos visam a descolonização das práticas engendradas pelo colonialismo em diversos espaços e níveis16 e nos proporcionam pensar em estratégias de libertação que nos possibilitam refletir e construir conhecimentos a partir da margem. Enrique Dussel (2005), filósofo e mexicano, apresenta questionamentos sobre o ego cogito e o ego conquisto a partir do México, relatando que este foi o primeiro país da América Latina no âmbito do ego moderno. A Europa impôs sua superioridade sobre às suas culturas asteca, maia, inca, dentre outras e utilizou-as como comparação a suas culturas antigas antagônicas, para impor a denominação de culturas primitivas. O sociólogo peruano Aníbal Quijano (2005; 2010) discute a colonialidade do poder originada por meio da classificação racial/étnica da população que é indissociável da divisão do trabalho e do capitalismo. A ideia de classificação por raça coloca os conquistados em situação de inferioridade. A relação de superioridade e inferioridade também atinge as relações de gênero e o modus europeu de produzir conhecimento. Walter Mignolo (2005), antropólogo e argentino, questiona a colonialidade a partir da nação de diferença colonial e da emergência do pensamento limiar sem sistematizações e enquadramentos. O pensamento limiar discorre sobre “fraturas profunda entre visões de mundo, simbologias, imaginários e forma de cognição que não vivem clivagens cartesianas” (ANTONACCI, 2015, p. 358). Os filósofos porto-riquenhos Nelson Maldonado-Torres (2016) e Rámon Grosfoguel (2006) propõem conhecimentos para além das hierarquias raciais, de gênero e geopolíticas em direção a epistemologias pluriversais17. 16 “[...] na vida pessoal e política, nas relações de gênero, raça, sexualidade e localização geográfica, traçando estratégias de pensamento – não dicotômicas e não hierarquicas – que permitam desfazer, ou superar, a colonialidade das relações estabelecidas” (JARDIM; CAVAS, 2017, p. 84) 17 Pluriversais seria um diálogo intercultural com os diversos saberes levando em conta as assi- 120 Graziela dos Santos Lima Saindo da América Latina, temos o pesquisador Boaventura de Sousa Santos que é sociólogo e nascido em Coimbra. Boaventura propõe o Epistemologia do Sul que é uma epistemologia que reflete sobre as condições de conhecimentos válidos (GOMES, 2012) e dos conhecimentos ditos não válidos, que por meio do processo de colonização passaram a ser um conhecimento inexistente. Refere-se aqui, que os conhecimentos válidos são os conhecimentos produzidos por homens, cis, heterossexuais, cristãos, possuidores de bens; e os conhecimentos ditos não válidos, ou seja, não reconhecido enquanto científicos verdadeiros, são os conhecimentos populares, leigos, indígenas, quilombolas, negros, das mulheres, dos ciganos, dentre outros que desaparecem enquanto conhecimento relevante. Desse modo, a Epistemologia do Sul traz a percepção de que o mundo é variado e diverso e que a história ao longo do tempo transformou em um conhecimento dito não científico, e por consequência disso tornou-se subalterno (SANTOS; MENESES, 2010). No Oriente, temos a pesquisadora indiana Gayatri Chakravorty Spivak, que teoriza sobre os estudos subalternos. A pesquisadora trabalha o sentido de representação do sujeito no contexto político, econômico e social. De modo que esse sujeito se represente, ou seja, ela rediscute a representação do sujeito no Terceiro Mundo. Além disso, Spivak (2010) trabalha com a questão da conscientização da resistência da/na subalternidade. Outro ponto importante é a questão de se criar mecanismos para que as pessoas ditas subalternas possam falar e se ouvidas. Dentro da estrutura societal, a mulher, em especial, a mulher negra, está em situação de marginalidade subalterna, segundo Spivak (2010, p. 15) a “mulher como subalterna, não pode falar e quando tenta fazê-lo não encontra os meios para se fazer ouvir”. Por fim, autora também discute sobre a violência epistêmica que invisibiliza o sujeito subalterno e colonizado impossibilitando de se represente a si mesmo, causando, então, um silenciamento. Podemos evidenciar que as mazelas do colonialismo ultrapassaram tempos, configurando-se em colonialidade do poder18, do ser19 e do saber20, e que os estudos metrias de poder (DUSSEL, 2015) 18 A colonialidade do poder, termo cunhado por Anibal Quijano (2005; 2000) e que se configura em dois eixos fundamentais, capital/trabalho e europeu/não-europeu, que se utilizou da ideia de raça nas distribuição de lugares no mundo e na sociedade. Portanto, o racismo é o principio organizador da economia, da política e das diversas formas de poder e existência, bem como é organizador das formas de saber. 19 A colonialidade do ser, evidenciado no escritos de Maldonato-Torres (2008), são os efeitos da colonialidade na experiêcia vivida em corpos racializados, ou seja, a experiência da negação do outro (enquanto sujeito) não eurocentrico. 20 A colonialidade do saber, segundo Castro-Gómez (2012) faz referencia à dimensão epistemi- 121 Teoria crítica da colonialidade na Organização do Conhecimento citados acima propõem uma reviravolta no triapé de modo a mudar a geopolítica, em especial naprodução e organização do conhecimento. As questões relatadas acima via pesquisadores que criticam a epistemologia dominante também estão viabilizadas nos discursos dos pesquisadores discursos dos pesquisadores da Biblioteconomia e Ciência da Informação, em especial, Hjorland (2003), Hope Olson (2003) e García Gutiérrez (2013) na seção seguinte. 4 Estudos pós-coloniais e decoloniais e estudos subalterno: epistemologias emancipatórias para pensar uma nova Organização do Conhecimento Como relatado nas seções anteriores, a contribuição da pós-colonialidade, decolonialidade e estudos subalternos consiste em perceber e criticar a colonialidade do poder, do saber baseado no saber eurocêntrico e estadunidense e reconstruir, reconhecer outros saberes dados como invisíveis, sub-representados, por não se adequarem ao saber europeu, um saber hegemônico. Na Ciência da Informação e também na Organização do Conhecimento pesquisadores como Hjorland (2003), Hope Olson (2003) e Garcia Gutiérrez (2013) têm questionado os métodos de construção de instrumentos para organizar os conhecimentos humanos. Hjorland (2003) tem evidenciado que pesquisadores da KO possuem métodos que padronizam os instrumentos de organização do conhecimento, tornando-os positivista e autoritário. Pesquisadores como Hope Olson (2003) e Garcia Gutiérrez (2013) têm refletido com base na desconstrução e pós-colonialidade sobre o campo engessado e com viés do pensamento moderno, o campo de estudo da Organização do Conhecimento. Sendo o conhecimento colonizado por práticas de poder originadas por meio de relações entre indivíduos e grupos, parte-se do princípio de que na Organização do Conhecimento para que o conhecimento seja representado este deve ser científico e sistematizado por meio de conceitos. Para o pensador Gutierrez (2013, p. 95) os conceitos “son sedimentaciones efímeras y excepcionales del sentido, de larga trayectoria histórica, cognitiva y cultural, sobre los que una intencionalidad dada inflige un corte tomográfico que impide su flujo y fuga naturales”. A teoria da desclassificação cunhada por García Gutiérrez chega próximo aos estudos pós-coloniais, decoloniais e aos estudos subalternos no âmbito da organização dos saberes. Porém, García Gutiérrez não é cem por cento favorável, de fato, aos estudos pós-coloniais, pois ca e sua aplicabilidade e a forma de pensar pautada numa perspectiva européia. 122 Graziela dos Santos Lima la propia visión poscolonial del mundo llevaria implicita no sólo el inevitable lastre que tal prefijo suele arrastrar, en larazonable certidumbre de que podemos ocultar una deusa que no se saldará más que contrayendo otra sino, especialmente, la errónea sensación de acabamiento o superación que lo ‘pos-’ sugiere (GUTIÉRREZ, 2013, p. 95). Nesse sentido, García Gutiérrez percebe que os estudos pós-coloniais não poderiam se opor ao colonialismo por este já está imbricado no contexto de cada cultura que sofre os processos de colonização e recolonização. Mas, ao contrário de García Gutiérrez, os autores Boaventura de Sousa Santos e Aníbal Quijano, por meio dos termos pensamento abissal e colonialidade do poder explicam que o processo da modernização e consequentemente da pós-modernização, que o colonialismo se expandiu com o objetivo de tornar a Europa/Ocidente o centro do mundo, e universalizar saberes, culturas, linguagens e modos de ser com os parâmetros da eurocêntricos. E os estudos pós-coloniais surgem para desmistificar o processo de modernização que só pautava a modificação e a inovação da ciência. Para Olson (2003) “é um ponto crítico que reconhece os impactos sociais e políticos da colonização e a consequente diasporização e hibridização dos povos e das culturas”. Outro pensamento de García Gutiérrez sobre o pós-colonial21 é que essa perspectiva de estudos proporciona a inversão de poder formando um outro centro de dominação e como observado em teóricos pós-coloniais, são visões que questionam a práxis colonial na modernidade e que avança na pós-modernidade. Nesse sentido propõem uma epistemologia que visibiliza outros saberes que foram tratados como um saber não científico e por fim inválido. Portanto, García Gutiérrez propõem via epistemografía22 a teoria da desclassificação que é “desmontar uma estrutura de ordenação dominante - geralmente hierárquica - implica reclassificar com parâmetros diferentes aos dessa estrutura” 21 “lo poscolonial no existe como estado definitivo sino que acontece como proceso inestable e inexorable de recolonización de todas las instancias físicas y simbólicas. Y, por tanto, los objetivos, las herramientas y nuestra propia posición perceptiva, enunciativa, ética y política –epistémica, en suma-, ante cualquier objeto de investigación, tendría que estar obligadamente atravesada por una voluntad descolonizadora y sensible que sólo reconoce el estado como cambio y la indomabilidad de su paradójico e inestable régimen” (GUTIÉRREZ, 2013, p. 96). 22 “A epistemografia propõe operações de organização horizontal do saber e da memória registrada, formando-se como a corporificação algológica (de ‘algos’ dolor) de um conhecimento e memória gerados com toda dignidade pelos despercebidos do planeta. Em suma, constituiria a dimensão material desse espírito intransigente que caracteriza a Epistemologia, pois, como disse Santos (1989), ela dita, para a ciência, leis incapazes de serem aplicadas a elas próprias” (GUTIÉRREZ, 2006, p. 106). 123 Teoria crítica da colonialidade na Organização do Conhecimento (GUTIÉRREZ, 2006, p. 110), ou seja, transgredir o limite da classificação. A desclassificação também propõe uma produção de conhecimento aberto, auto e heterodescolonizador que possibilita o reconhecimento e a retomada do sujeito (GUTIÉRREZ, 2013). Para o mesmo autor é um projeto de “recolonización descolonizante” (GUTIÉRREZ, 2013, p. 97), que sobrepõe razão política sobre a razão técnica dominante na Organização do Conhecimento. Hope Olson (2003) também possui o mesmo pensamento transgressor de Garcia Gutierrez. Olson (2003) parte da perspectiva pós-estruturais e culturais com a análise de discurso de Foucault e a desconstrução de Jacques Derrida e depois entra em estudos feministas e pós-colonial para abarcar as limitações encontradas nos autores citados e desconstruir representações de caráter dicotômico. A discussão por parte da autora, parte do princípio de que não há uma verdade universal, e a teoria da desconstrução, como uma teoria crítica que possibilita questionamentos sobre suposições originadas, geralmente, de oposições binárias. Para Olson (2003, p. 732), oposições binárias “são pares de conceitos opostos nos quais um conceito é dominante e o outro é subordinado”. Porém, toda teoria possui lacunas e a desconstrução baseada em Derrida mostra isso. Para Olson (2003), a desconstrução “elimina o significado através de um enfraquecimento niilista de valores”. Nesse sentido, a autora, utiliza-se da denominação desconstruções transgressivas de modo a incorporar os estudos feministas e pós-coloniais. Na concepção da autora, são aplicáveis na organização do conhecimento por ser um campo de práticas concretas, tanto material quanto teórica. 5 Considerações finais O presente capítulo, cujo objetivo foi mostrar as contribuições das teorias críticas referentes aos estudos pós-coloniais, decoloniais e subalternos para a Organização do Conhecimento, por meio de autores das Ciências Sociais e autores críticos da Organização do Conhecimento, com o intuito de questionar as ausências de saberes marginalizados na Organização do Conhecimento. Este estudo mostra-nos que a Organização do Conhecimento ainda é fragilizada no que concerne à disseminação de valores considerados universais, devido a influência modernista, o que implica, segundo García Gutiérrez e Hope Olson, numa formação de conceitos fechados, dicotômicos, hierarquizados, de forma valorativa e enquadrada para um campo científico que faz com que os sistemas de organização do conhecimento, em especial os ditos universais sejam limitantes, sendo passíveis de sub representações, invisibilidade e limitações. A perspectiva dos/as teóricos citados/as tem-nos mostrado que é possível olhar para a Organização do Conhecimento a partir das margens, basta que nós, como 124 Graziela dos Santos Lima pesquisadores/as, percebamos a realidade em que nos situamos, teorizamos e nos localizamos e que conhecimentos/saberes, muitas vezes de pessoas que não estão no âmbito acadêmico devem ser representados para que estas pessoas de fato consigam realizar, a partir de sua cosmovisão, o acesso à informação. Outra questão é analisar as epistemologias desenvolvidas que viabilizam a construção do sistema de organização do conhecimento, as quais dão base para a sua construção, tais como: a teoria do conceito, a terminologia, a linguística, dentre outras, bem como uma análise das representações sociais dos profissionais da informação que atuam diretamente nos processos de organização da informação, uma vez que, qualquer ser humano está passivel de representar o documentos, nos mais variados suportes, uma representação que não condiz com a realidade pois está imerso em uma matriz colonial. A contribuição para a Organização do Conhecimento, advinda das teorias que questionam o saber hegemônico, é a percepção dos valores universais tanto nas disciplinas, quanto nos métodos de construção de instrumentos de organização do conhecimento que utilizam de epistemologias que não adotam perspectivas pluralistas. Referências AGUIAR, J. D. N.. 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Walter Benjamin (2009 [1914], p. 28) Shiyali Ramamrita Ranganathan pensou a imanência da vida através dos olhos e das máscaras da Biblioteconomia. Esse texto é sobre os olhos e as máscaras que o pensamento de Ranganathan legou para a história social do pensamento biblioteconômico. Trata-se de uma leitura apenas, ao lado de tantas outras interpretações dos escritos do pensador hindu. Nesta arte de começos que é ler um pensador clássico como Ranganathan, partimos da narração de uma estória contada pelo próprio: o seu encontro insólito com um conjunto de brinquedos Meccano. Aos nossos olhos perspectivos, este fato improvável alterou os rumos do pensamento biblioteconômico e revolucionou a tradição da teoria da classificação. Na aflição do momento que vivia, insatisfeito com a insuficiência dos esquemas classificatórios de sua época e pessoalmente angustiado pois não conseguia propor um desenho alternativo que resolvesse as questões aporéticas, Ranganathan se deparou com a encruzilhada do país dos brinquedos. Sob a máscara daquele es1 Doutor em Ciência da Informação pelo PPGCI IBICT UFRJ; Professor Substituto do Departamento de Ciência da Informação da UFS; [email protected] Ranganathan no país dos brinquedos ‘:’ colon, uma classificação, uma filosofia... pécime Meccano, a vida tornou-se jogo e energia. Feito o encontro transformador de Pinóquio com o país dos brinquedos, onde o sonho do boneco de encantar-se e tornar-se criança fez-se presente na dimensão dos jogos, Ranganathan ao deparar-se com o brinquedo percebeu que o problema da predeterminação estrutural que o imobilizava em suas pretensões, como também a Pinóquio, desconcertava-se perante a encruzilhada de possibilidades, de escolhas e composições que aquele brinquedo Meccano proporcionava. Ranganathan fez desta encruzilhada de materiais heterogêneos a metáfora da sua classificação e do colon, o seu brinquedo conceitual. Com isso, poderíamos dizer que a Colon Classification é, metaforicamente, uma classificação filosófica do brinquedo. E é sobre isto que trata esse texto – a estadia de Ranganathan no país dos brinquedos. O método adotado para a configuração deste texto diz mais sobre uma máquina de leitura do que propriamente sobre abordagens, procedimentos e técnicas metodológicas. Andarilho feito Ranganathan, “método é caminho indireto, desvio”, já dizia Benjamin (1984, p. 50). Foi no curso das experiências não-ocidentais que em suas travessias Ranganathan associou o misticismo hindu com a “síntese do conhecimento ocidental”, a energia sociocósmica de Sakti com o logos classificatório-relacional do Ocidente e fez do uso, categoria dedicada aos barbarismos por Aristóteles (1988, §1254b, p. 57-59), a fonte de mantras libertadores de livros e pessoas. Desviante, como o imaginário dos brinquedos e a condição humana, a experiência que este texto busca expor é que, à diferença do método enquanto caminho reto, claro e evidente, o que a pragmática de Ranganathan nos propõe é fugidio e indireto como um brinquedo, é obliquo e cheio de veredas como as experiências pragmáticas, e, por fim, é impróprio, não tem determinação prévia e nem dá-se a ver de antemão na vidência dos esquemas universais. O método é fazer colon com o mundo, relacionar-se com a energia que nos configura. Associado a este encantamento do mundo e os efeitos classificatórios provocados no pensamento de Ranganathan, agenciamos alguns elementos heterogêneos que irmanados apresentam um pouco do mosaico da obra distribuída através de colagens na revisão documental deste texto. São eles: i) uma discussão antropológica sobre a questão conceitual do brinquedo e as possíveis relações com alguns movimentos do pensamento ranganathiano, ii) uma filosofia do colon narrada pelo imaginário ocidental e suas formações gramaticais e, por outro lado, as influências vitais do ponto de vista da cosmologia hindu sobre o desenvolvimento da ideia de energia (Sakti) configuradora do colon em Ranganathan, além de, por fim, iii) tratar das possibilidades de descolonização e desclassificação do pensamento que a imaginação conceitual de Ranganathan pode proporcionar para nós ocidentais nesse contato com a alteridade. Por meio deste exercício de variação da imaginação 134 Vinícios Souza de Menezes propomos uma brincadeira de desver o mundo com a espiral do método científico de Ranganathan a partir do universo infantil de brasilidades da cultura popular. 2 Ranganathan no país dos brinquedos Onde as crianças brincam existe um segredo enterrado. Walter Benjamin (2009 [1930], p. 142). Este texto encontra-se mobilizado por uma anedota contada por Ranganathan em 1924, a partir das suas inquietações frente às insuficiências dos esquemas classificatórios anteriores a ele. Essa anedota foi rememorada pelo texto “A atualidade do pensamento de Ranganathan: princípios para a organização de domínios de conhecimento”, escrito por Hagar Espanha Gomes e Maria Luiza de Almeida Campos (2016, p. 113), especialistas nos escritos ranganathianos. Partirei desta anedota narrada por Ranganathan no texto “Genesis of Colon Classification” (1924) e revisto entre 1971 e 1972. Em um primeiro momento, seguindo a argumentação de Ranganathan, apresentarei as circunstâncias históricas, as insatisfações, em especial, com as classificações decimais e, após, expresso a anedota que o pensador hindu classificou como “uma possível solução” para os problemas enfrentados. Entre 9 julho de 1917 e 4 de janeiro de 1924, Ranganathan atuou como professor de Matemática em diferentes Faculdades da Universidade de Madras. Em julho de 1923, a Universidade de Madras criou o cargo de bibliotecário. Em novembro de 1923, Ranganathan foi nomeado o primeiro bibliotecário da Universidade de Madras. Tomando posse como bibliotecário, numa tarde de quinta-feira, 4 de janeiro de 1924, Ranganathan inicia sua atuação que se tornaria revolucionária para o campo da Biblioteconomia e o mundo futuro. Ao assumir o posto de bibliotecário, Ranganathan confrontou-se com a realidade de época do mundo das bibliotecas indianas e entediou-se frente a monotonia do “organizar, tratar e disseminar as informações contidas em registros de conhecimento” (GOMES; CAMPOS, 2016, p. 110), isto é, o “universo do documento”. Ele buscava a ebulição do conhecimento e a biblioteca seria um espaço holístico para a propagação dos saberes – os mais diversos – e a difusão do conhecimento, nos mais distintos contextos sociais. Com a agudeza e a pragmática social do seu pensamento, viajou a Londres para estudar e conhecer as experiências das bibliotecas britânicas, com o intuito de retornar e transformar a realidade do mundo das bibliotecas indianas. Na Escola de Londres encontra-se com Berwick Sayers, docente que trabalhava com os aspectos teóricos dos esquemas de classificação bibliográfica e com Teoria da Classificação. No período que passou em Londres, “Sayers atuou como supervisor de Ranganathan e 135 Ranganathan no país dos brinquedos ‘:’ colon, uma classificação, uma filosofia... participou com ele das primeiras iniciativas da Colon Classification” (GOMES; CAMPOS, 2016, p. 110). Ranganathan (1924) disse: “classification truely charmed me”2. Com Sayers, dedicou-se exclusivamente por três semanas com os seguintes esquemas: Decimal Classification (DC), Expansive Classification (EC), Subject Classification (SC) e Library of Congress Classification (LC). Sente-se atraído pela DC, o que é reforçado pelo conhecimento do Classified Catalogue of the Carnegie Library of Pittsburgh e pelo classified periodical accession lists of the Mitchel Library of Glasgow, ambos baseados na DC. Apesar de afeiçoar-se com a Classificação Decimal de Dewey, é justamente em relação a ela que Ranganathan direcionará a sua crítica e por meio dela que inclinará seu espírito engenhoso na formulação da Colon Classification, um esquema classificatório de assuntos. Desta maneira, podemos dizer que a Colon Classification surge da insatisfação de Ranganathan com o que ele denominou de classificações decimais enumerativas: “DC did not give satisfaction. Many compound Subjects did not get a co-extensive DC number. All the facets of the Class Number of a Compound Subject, except the last one, were frozen. My dissatisfaction was traced to this fact”, dizia Ranganathan (1924). As classificações decimais, por serem enumerativas, limitavam os assuntos compostos e os representavam em Decimal Fraction Numbers3. Diante das barreiras impostas pela prévia destinação dos assuntos nas tábuas classificatórias, esses esquemas não poderiam fornecer ou forjar números de classes coextensivos, por exemplo, para as novas disciplinas científicas que surgiam no início do século XX. Os mapas temáticos dos esquemas decimais enumerativos representavam um estado definitivo do conhecimento, as fronteiras dos saberes estavam determinadas e as possibilidades classificatórias do que desabrochava encontravam-se subjugadas aos termos que a precediam. A DC chocava-se diretamente com a elasticidade, princípio da quinta lei da Biblioteconomia formulada anos depois – “o novo sempre vem”. A violência simbólica causada por esses esquemas decimais enumerativos saltava aos olhos de Ranganathan no momento da decisão sobre o assunto, onde, 2 Os textos de Ranganathan possuem algumas palavras em inglês grafadas de maneiras distintas do inglês contemporâneo. Como a língua é um organismo vivo e em constante variação, nossa opção foi por preservar a historicidade das grafias utilizadas por Ranganathan. 3 Gomes e Campos (2016, p. 113) rememoram que “havia um exercício então usado no qual o tutor lia o nome de um livro com um título expressivo, e os estudantes forneciam um número decimal apropriado. Ranganathan muitas vezes achava que ele poderia fornecer dois. Ele verificou que muitos assuntos não permitiam criar notação coextensiva e compreendeu que era um sistema enumerativo. Tentou encontrar uma solução que permitisse notação coextensiva inclusive para representar novos assuntos.” 136 Vinícios Souza de Menezes por exemplo, os livros que incorporavam a nova literatura carregada de inovações temáticas eram forçosamente classificados em números de classes demasiadamente extensivos, tornando imprecisa e inconsistente a classificação. Na revisão do texto de 1924, Ranganathan inclusive cita o Code for classifiers (1928), publicado por W.S. Merill, como uma “list of the libraries in USA placing the new subjects forcedly in this or that of the possible more extensive Class Numbers.” A partir de então ocorreu a Ranganathan (1924): “‘Is the design of DC faulty?’ came the feeling.” O espírito social e inclusivo de Ranganathan era fiel ao princípio basilar das classificações bibliográficas: todo e qualquer tópico abordado por um documento deve ter um lugar na estante. Sob os olhos da organização do conhecimento, este princípio excederá os limites do princípio da garantia literária das classificações bibliográficas. Era preciso, aos olhos do pensador hindu, incluir os saberes mais diversos, não somente as disciplinas científicas, que, por sua vez, também se multiplicavam e ultrapassavam as demarcações dos sistemas decimais enumerativos (GOMES; CAMPOS, 2016, p. 111). Enfim, tornava-se irrepresável a força do conhecimento e esta potencialidade merecia um esquema classificatório que com ela caminhasse através dos múltiplos matizes das paisagens que se apresentavam. Feito um camaleão, pertencido pelas cores, o desenho do esquema ranganathiano precisava se aperfeiçoar com as contingências temáticas das paisagens. Desta maneira, Ranganathan no Prolegomena to Library Classification (1937) propõe uma Teoria Dinâmica para contrapor ao que ele denominou de Teoria Descritiva das Classificações Enumerativas. Enquanto a Teoria Descritiva dedicava-se à dimensão constativa do estado de coisas das classificações enumerativas, ao enquadrar os assuntos dos livros às notações já prescritas nos esquemas decimais, a Teoria Dinâmica visava compor e forjar as notações de acordo com a iminência dos assuntos tratados, acoplando o novo de modo orgânico ao aparato classificatório. Segundo Gomes e Campos (2016, p. 111), “ele propõe princípios que permitem que novos tópicos encontrem um lugar no esquema”, e não que o esquema imponha aos novos assuntos um lugar predeterminado. Segundo Ranganathan (1937, p. 137-141), enquanto a Teoria Descritiva organizava-se através de Termos Constituintes Fundamentais (Fundamental Constituent Terms), estáveis ao plano esquemático prescrito, a Teoria Dinâmica se configuraria por meio de Termos Compostos Derivados (Derived Composited Terms) que arranjariam os novos assuntos conforme o cânone da hospitalidade e o princípio de filiação: “the crux of the Special Theory Classification peculiar to the Universe of Knowledge which has an infinity of entities and classes, some of which are unknown, is that of providing filiatory accommodation for new classes” (RANGANATHAN, 1937, p. 139). Deste modo, um novo assunto cria a sua própria notação, inicia a sua his- 137 Ranganathan no país dos brinquedos ‘:’ colon, uma classificação, uma filosofia... tória classificatória em acordo com as regras do jogo, não dependendo da fixidez, nem das fronteiras prescritas pelos sistemas enumerativos4. Anos depois, n’As cinco leis da Biblioteconomia, Ranganathan (2009, p. 252) revela que essas ideias que desenharam a Colon Classification foram desenvolvidas em profundo diálogo com o pensamento de Sayers, desde uma noite de outubro, numa cafeteria, em 19245: Como UMA BIBLIOTECA É UM ORGANISMO EM CRESCIMENTO e como o próprio conhecimento está a crescer, é necessário que a ‘classificação seja abrangente, envolvendo todo o saber passado e presente, e que preveja espaços para possíveis acréscimos ao conhecimento.’ Na verdade, isto foi estabelecido pelo Sr. Sayers como o primeiro cânone da classificação. E citando Sayers novamente: ‘uma classificação deve ser elástica, expansível e hospitaleira no mais alto grau. Isto é, deve ser construída de tal maneira que todo novo assunto possa ser inserido nela sem perturbar sua sequência’. Perante as inquietações que o afligia e os pressupostos normativos de como deveria se comportar teoricamente na prática um esquema classificatório, de modo a não somente incluir o “conhecido” (vastu-tantra)6, mas também o “conhecedor” (kartru-tantra)7 e suas inovações temático-conceituais, Ranganathan angustiava-se 4 “A diferencia de los sistemas enumerativos, la Clasificación Colonada no provee una distribución monolítica de clases como la Clasificación Decimal Dewey, la ‘Library of Congress Classification’ o la Clasificación Decimal Universal, es decir, no tiene en sus tablas una lista completa preparada de números, sino que se confecciona la notación para cada trabajo clasificado, lo que obliga a desarrollar una labor de síntesis en cada caso, de tal manera que cada documento no se sitúa en una signatura preestablecida correspondiente de la tabla creada al efecto, sino que se define analíticamente merced a una combinación de signos que expresan su personalidad, materia, energía, espacio y tiempo. La esencia de la clasificación por facetas consiste, por lo tanto, en que trata de reflejar la diversidad y multiplicidad de las relaciones entre los fenómenos que se dan en el mundo real.” (GIL URDICIAIN, 1994, p. 114) 5 “One evening in October 1924, W C Berwick Sayers and myself spent some time in the cafetaria of the University College, London, in designing a Scheme for Library Classification along these lines.” (RANGANTHAN, 1924). 6 “Este modo é chamado vastu-tantra em sânscrito. Diz-se que é adquirido por meio de tapas, um método de concentração, autossublimação e autodesenvolvimento, e significa ‘depende do conhecido’.” (RANGANATHAN, 2009, p. 267). Para um maior desenvolvimento desta perspectiva ranganathiana, indicamos o ótimo “Vastu-tantra: sobre a pragmática transcendental em Ranganathan”, escrito por Gustavo Silva Saldanha (2016). 7 “A forma de conhecer com a ajuda das faculdades e métodos mencionados nas últimas quatro seções é denominada kartru-tantra em sânscrito, que significa ‘dependente do conhecedor’.” (RANGANATHAN, 2009, p. 267). 138 Vinícios Souza de Menezes na busca pela zona de imanência entre o vastu-tantra e kartru-tantra que faria, a partir de uma “pragmática transcendental” (SALDANHA, 2016, p. 43-56), surgir misticamente o conhecimento – “quando o conhecedor [kartru-tantra] e o conhecido [vastu-tantra] entram em contato, o conhecedor conhece o conhecido, e daí surge o conhecimento” (RANGANATHAN, 2009, p. 267). A procura de Ranganathan por esta zona de imanência, cujo contato friccionaria os pólos do conhecido e do conhecedor, e iluminá-lo-ia para o conhecimento foi árdua e carregada de grande tensão: “No light would come for a few days. The mental strain was great.” (RANGANATHAN, 1924). Foi neste momento de desassossego que Ranganthan se deparou com o país dos brinquedos e libertou da sua condição latente o almejado esquema classificatório, ou, como em outro momento o pensador hindu manifestou: foi iluminado pela “light from the ‘Mother’” (RANGANATHAN, 1961, p. 181), sendo “Mother” aqui Sakti, a energia cósmica primordial que perpassa e anima todos os existentes do cosmos em algumas mitologias hinduístas. Desta maneira, não é acidental colon significar energy no pensamento de Ranganathan. Assim ele nos conta a anedota do nascimento do colon nas miniaturizações dos brinquedos e suas “microideias”, como Ranganathan denominava algumas de suas experiências classificatórias. At that time, I happened to visit one of the Selfridges’ Shops in London. I was attracted by the stall demonstrating the use of a Meccano set. With a few slotted metal plates, two small thin metal rods, a few metal hooks, a few bolts and nuts, and a few short thin pieces of string, the man demonstrated the making of toys in the shape of truck, crane, and many others. I saw this for the first time. It gave me the clue. Instead of selling read-made rigid toys, the man showed a few fundamental components; with these a child could itself make any toy. So, it should be with Class Numbers. That was my feeling. Instead of providing ready-made Class Numbers for Compound Subjects, it should be possible to construct the Class Number for any such subject by combining together an assortment of a few appropriate component numbers taken from short schedules for component ideas. […] The digit ‘:’ (Colon) was used to function as ‘bolt and nut’ in assembling the various components of the Class Number of a Compound Subject to distinguish it from the Class Number of a bare Basic Subject. It was so denoted because the digit “:” (Colon) was made to play an important role in the Class Numbers of the scheme (RANGANATHAN, 1924). 139 Ranganathan no país dos brinquedos ‘:’ colon, uma classificação, uma filosofia... Naquele mundo reduzido de um conjunto Meccano, Ranganathan deparou-se com os agenciamentos (assemblages) naturais de todo brinquedo, ou como dizia Baudelaire, com a “alma do brinquedo”, isto é, o jogo e seus usos. Sob esta perspectiva, Ranganathan travou uma experiência que guarda suas analogias à narrada por Carlo Collodi (2014) n’As Aventuras de Pinóquio, quando, no capítulo XXXI, o anímico boneco de madeira, com pretensões à menino, após uma longa viagem na companhia do seu burrinho falante, chega feliz, com o raiar da aurora, ao país dos brinquedos. Nesta utópica república infantil, a vida é atravessada pelo jogo, tudo não é nada mais que jogo, onde na medida dos usos dos objetos e palavras, as finalidades e os sentidos estruturais alteram-se, fazendo com que tudo aquilo que é velho e estabelecido em seus usos, torne-se suscetível de virar brinquedo, com outros usos, novos e transformadores (AGAMBEN, 2008, p. 81-85). Neste momento, diante de um punhado de peças pertencentes a conjuntos estruturais diferentes – peças de metal, fendas, hastes, ganchos, cantoneiras, rodas, manivelas, pinhões etc. –, Ranganathan percebeu o elástico iconismo dos brinquedos ao observar que por meio dos jogos de aplicações e usos de uma pequena porção de parafusos e porcas (“bolt and nut”), aqueles conjuntos estruturais seriam transformados indefinidamente. A partir desses componentes fundamentais, em vez de brinquedos rígidos estruturalmente8, as crianças poderiam montar qualquer possível brinquedo, num processo de composição que estaria limitado somente pela imaginação infantil, que, como sabemos, beira o deslimite. Desta experiência típica do país dos brinquedos, ocorreu a Ranganathan que assim, ao modo dos brinquedos, deveriam ser os números das classes do seu esquema classificatório. Em vez de fornecer classes prontas para assuntos compostos e, por ora, até mesmo desconhecidos historicamente, deve ser possível, através de agenciamentos temáticos, construir números de classes para qualquer assunto combinando-os com outros componentes, como no caso das fendas, hastes e gan- 8 Por mais rígidos que sejam estruturalmente, as crianças os transformam, alteram e destroem tal rigidez, seja nas tentativas obstinadas por aferrar o brinquedo, ao revirá-lo em suas mãos, sacudindo-o, atirando-o contra o chão e fazendo-o em pedaços, ou, através da subversão simbólica dos usos e da alteração dos estatutos do brinquedo. Esta condição fragmentar é a “essência do brinquedo”, a sua “marca distintiva” (AGAMBEN, 2008, p. 86-87). Contemporâneo de Ranganathan, Walter Benjamin em 1928 escreve de modo lapidar a natureza metamórfica dessas relações: “Há algo que não pode ser esquecido: jamais são os adultos que executam a correção mais eficaz dos brinquedos – sejam eles pedagogos, fabricantes ou literatos –, mas as crianças mesmas, no próprio ato de brincar. Uma vez extraviada, quebrada e consertada, mesmo a boneca mais principesca transforma-se numa eficiente camarada proletária na comuna lúdica das crianças” (2009 [1928], p. 87). 140 Vinícios Souza de Menezes chos do conjunto Meccano – “These schedules correspond to the standard pieces in a Meccano apparatus” (RANGANATHAN, 1946, p. 53). Ao invés de fornecer uma lista enumerativa contendo inumeráveis classes para atender a todos os assuntos, diz Ranganathan (1994, p. 55), um esquema de classificação deve ser como um conjunto Meccano – “Classification Scheme should be like a Meccano Set” –, pois, assim, aos olhos do pensador hindu, era a linguagem9. Figura 1: Conjunto de brinquedos Meccano, 1915 Fonte: Museum of Applied Arts & Sciences (2020). Provavelmente o modelo do conjunto de brinquedos Meccano visto por Ranganathan seja semelhante ao da figura acima. Os primeiros conjuntos foram inventados na Inglaterra por Frank Hornby (1863-1936) em 1901 e projetados para serem comercializados no Natal do mesmo ano. Em 1909 foram lançados os conjuntos números 5 e 6, vinham em armários de madeira contendo 168 faixas perfuradas e 245 cantoneiras. Somente em 1926, dois anos após a experiência de Ranganathan, os conjuntos 5 e 6 sofreram uma pequena modificação, com a troca das peças em 9 “In a Selfridge’s Department Stores in London, I saw for the first time, a Meccano set consisting of slotted strips, wheels, rods, screws, nuts, and pieces of spring. By the combination of a suitable assortment of these pieces several kinds of toys could be easily constructed. I spent an entire hour observing a demonstration of the construction of different kinds of toys with the aid of a Meccano set. It brought to my mind that the alphabet of a language was itself a formidable analogue of a Meccano set. With a few digits, called the letters of the alphabet, an endless variety of words, phrases, sentences, paragraphs, and whole works are being produced, each totally different from every other. Viewed from one angle, the work in every book is only a combination of an assorted collection of the letters of the alphabet. These ideas gave me the courage to think that there was nothing wrong in building up class numbers as in a Meccano set, though the book of the numbers was unusual. I was encouraged to pursue the designing of the Colon Classification as a type of faceted classification.” (RANGANATHAN, 1994, p. 55). 141 Ranganathan no país dos brinquedos ‘:’ colon, uma classificação, uma filosofia... folhas de flandres para peças em níquel e a adição das cores vermelha e verde escuro da Borgonha. Com as peças em níquel, houve um aumento significativo no número de novas peças, todavia, contido com a Grande Depressão de 1929 e refletido na diminuição de peças do clássico conjunto Meccano nº 7. Portanto, diante deste conjunto Meccano nº6, o pensamento classificacionista de Ranganathan se iluminou com a capacidade de permutações e combinações virtualmente possíveis “enterradas em segredo” pelo brinquedo. Desperto pelos jogos de sentido do brinquedo, Ranganathan no Prolegomena (1937, p. 192) manifesta que o primeiro princípio do seu esquema classificatório é o “Meccano principle” – “the first principle hit upon was the synthetic or Meccano principle” –, e a função do colon (dois pontos) é relacional, similar a das porcas e dos parafusos no aparato Meccano, como nos diz na introdução à primeira edição da Colon Classification (RANGANATHAN, 1939, p. 12): “In this scheme, the function of the symbol ‘:’ is like that of nuts and bolts in Meccano”. Sob esta perspectiva, poderíamos dizer que o colon é o brinquedo de Ranganathan, a energia vital (Sakti) que anima e conecta as possibilidades classificatórias do seu mundo histórico – “energy ‘:’ (colon)” (RANGANATHAN, 1924) –, e a Colon Classification não é senão, metaforicamente, uma “classificação filosófica do brinquedo”. 3 O brinquedo de Ranganathan ‘:’ colon, uma classificação, uma filosofia Esta última questão [o que é um brinquedo, o que ele significa] ultrapassa certamente a sua moldura original e leva a uma classificação filosófica do brinquedo. Walter Benjamin (2009 [1928], p. 93). Ao entrar em contato com o mundo miniaturizado dos brinquedos e fazer deste mundo um princípio basilar para as suas pretensões classificatórias, Ranganathan alia à sua concepção metafísica oriental, as esferas prático-econômicas e do sagrado, que orbita ao redor de todo brinquedo. Segundo Giorgio Agamben (2008, p. 86) “o brinquedo é aquilo que pertenceu – uma vez, agora não mais – à esfera do sagrado ou à esfera prático-econômica”. A marca distintiva do brinquedo e que o diferencia de outros objetos do nosso universo coisal é que o brinquedo porta a potência de algo singular, que pode ser captado na dimensão temporal de um “uma vez” e de “um agora não mais”, como, por exemplo, na sua notável miniaturização, onde um automóvel, uma engenhosa estrutura, um forno elétrico ou uma pessoa, graças à miniaturização, transformam-se em brinquedo. A imagem do mundo à qual a miniatura se presta a representar é uma imagem histórica (AGAMBEN, 2008, p. 153) e a 142 Vinícios Souza de Menezes “essência do brinquedo é, então, algo de eminentemente histórico: aliás, por assim dizer, é o Histórico em estado puro”(AGAMBEN, 2008, p. 86). Deste modo, “a miniaturização é, pois, a cifra da história” e, se aquilo com que brincam as crianças é a história (AGAMBEN, 2008, p. 88), foram com as contingências do tempo humano que os olhos de Ranganathan defrontaram-se subitamente ao mirar aquele conjunto Meccano. Aquilo que o brinquedo conserva do seu modelo sagrado ou econômico, aquilo que deste sobrevive após o desmembramento ou a miniaturização, nada mais é que a temporalidade humana que aí estava contida, a sua pura essência histórica. O brinquedo é uma materialização da historicidade contida nos objetos, que ele consegue extrair por meio de uma manipulação particular. Enquanto, na verdade, o valor e o significado do objeto antigo ou do documento é função da sua antiguidade, ou seja, do seu presentificar e tornar tangível um passado mais ou menos remoto, o brinquedo, desmembrando e distorcendo o passado ou miniaturizando o presente – jogando, pois, tanto com a diacronia quanto com a sincronia – presentifica e torna tangível a temporalidade humana em si, o puro resíduo diferencial entre o ‘uma vez’ e o ‘agora não mais’ (AGAMBEN, 2008, p. 87). Desta experiência nasceu o colon, o brinquedo de Ranganathan, o puro resíduo diferencial entre o “uma vez”, e as classes sincronicamente estabilizadas pelos usos atribuídos, e o “agora não mais”, e as possibilidades diacrônicas de composição de classes provocadas pelas contingências circunstanciais do tempo humano e seus jogos classificatórios que tematizam o mundo10. O colon não é o “um”, conceitualmente imaginado pela teoria descritiva dos sistemas enumerativos, e não é o imediatamente oposto ao “um”, o “zero” que marca o contraste entre os termos. O colon é sobretudo a relação constituinte que anima e vitaliza o dinamismo da fundação múltipla do seu esquema classificatório, que, em última instância, representa o seu modo de ver o mundo11. O colon é o “new zero”, o intervalo entre o binarismo sintático da relação zero e um (RANGANATHAN, 1937, p. 192). One night the idea struck him that the class numbers were all merely ordinal numbers, not cardinal numbers, and that new ordinal numbers might 10 Themátikos é um “termo” grego oriundo da gramática antiga, significando aquilo que é fabricado, instituído e/ou acordado através de uma concordância linguística. 11 Para uma abordagem do conceito de relação na Colon Classificatioin, consultar Satija (2001). 143 Ranganathan no país dos brinquedos ‘:’ colon, uma classificação, uma filosofia... be invented, though they would have no cardinal value. This immediately led to the corollary that the invention of an ordinal number lying between zero and unity - a greater zero so to speak - was all that was required to meet the situation. A single dot, the simplest symbol, having been put to another use by Dewey, the double dot or the colon was taken to represent the new zero. Se radicalizarmos a interpretação do colon como o brinquedo fabricado por Ranganathan, sob uma perspectiva linguística, os resíduos diferenciais dos materiais irmanados pelo new zero fazem dele um “significante instável que pode transformar-se a todo momento em seu próprio oposto” (AGAMBEN, 2008, p. 102), no caso de Ranganathan, o zero (significante estável) e o um (significado). Os dois pontos (colon) é uma diferença significante entre os termos, uma descontinuidade necessária para manter ativo o funcionamento do esquema classificatório. O colon é uma abertura relacional que articula toda e qualquer possível composição temática – não se trata de uma forma (eidos), mas de uma força (energy) capaz de alterar os mais diversos conjuntos estruturais (scheme). Ranganathan no país dos brinquedos desenhou a utópica topologia do país da história da classificação. O colon seria a maneira que Ranganathan encontrou para o seu esquema não estar dirigido à rigidez das identidades dos esquemas enumerativos, nem ser acometido pelo ceticismo classificatório, que frente a multiplicidade de tematizações do mundo, avalia-o como inclassificável e diz “aporética” toda e qualquer pretensão classificatória. Em sua função de porcas e parafusos, o colon visa irmanar o conhecido (vastu-tantra) e o conhecedor (kartru-tantra), as identidades e as diferenças, as multiplicidades e as repetições, o clássico e o barroco (SALDANHA; SOUZA, 2017), sem com isso, estabelecer para si uma forma, pois, a condição mesma do colon é informe (MENEZES, 2017), estando sempre e a cada vez, não em vista de si, mas em vista de outros agenciamentos. O termo usado por Ranganathan é assembling. Saldanha (2016, p. 46) recorda-nos do pano de fundo transcendental do pensamento brâmane. Uma das significações guardadas por este aspecto brâmane que envolve o pensar ranganathiano é que o transcendental é um ato de estabelecer uma relação, sem que esta signifique unidade ou identidade de seus termos, mas, antes, que a relação garanta a possibilidade do diferente, isto é, da alteridade. A condição informe do colon é uma diferença sempre para menos – “o menor intervalo é sempre diabólico: o senhor das metamorfoses se opõe ao rei hierático invariante” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 56). O colon enquanto brinquedo “transforma assim antigos significados em significantes e vice-versa” (AGAMBEN, 2008, p. 87), joga com as possibilidades dos 144 Vinícios Souza de Menezes usos dos fragmentos e das peças, ou, dos mais heterogêneos assuntos, sendo este modo de agir típico das crianças, como manifesta Benjamin (2009, p. 86): “nada é mais adequado à criança do que irmanar em suas construções os materiais mais heterogêneos – pedras, plastilina, madeira, papel.” Esse espírito infantil sente-se atraído pelos detritos, sejam das ruínas de uma construção ou de um jardim, pelos restos de panos dos alfaiates ou pelas sobras de madeira deixadas pelo trabalho de marcenaria, ou, mais uma vez, por um conjunto Meccano. Todos esses produtos residuais são transformados em brinquedos e brincadeiras pelas crianças12, estabelecendo entre os diferentes materiais outras relações: “com isso as crianças formam o seu próprio mundo de coisas, um pequeno mundo inserido no grande” (BENJAMIN, 2009, p. 104), ou, ainda, de modo análogo, criam um sistema de classificação híbrido13 e flexível através de suas miniaturas, representativas dos seus modos de tematizar a vida. Assim, a criança mistura-se de maneira muito mais íntima ao vívido, mantém com as coisas uma relação viva, fareja nelas os vestígios dos espíritos que ali depositaram as suas energias vitais (colon). Mal entra na vida e já é caçador. Caça os espíritos cujos vestígios fareja nas coisas; entre espíritos e coisas transcorrem-lhe anos, durante os quais o seu campo visual permanece livre de seres humanos. Sucede-lhe como em sonhos: ela [criança] não conhece nada de permanente; tudo lhe acontece, pensa ela, vem ao seu encontro, se passa com ela (BENJAMIN, 2009, p. 107). Desta utópica república infantil onde nada que se conhece é permanente e o mundo é um organismo vivo e em crescimento, nasceu o colon. Ranganathan, no reino infantil das metamorfoses, captou as suas matrizes centrais: o jogo e o uso. Desta fonte rebentou a Colon Classification e o colon fez-se brinquedo versado na arte dos usos14. O colon é um dispositivo disposto a libertar, para as possibilidades 12 “As crianças, que brincam com qualquer bugiganga que lhes caia nas mãos, transformam em brinquedo também o que pertence à esfera da economia, da guerra, do direito e das outras atividades que estamos acostumados a considerar sérias” (AGAMBEN, 2007, p. 67). 13 “‘Pôr em ordem’ [perspectiva do classificar] significaria aniquilar uma obra repleta de castanhas espinhosas, que são as clavas medievais, papéis de estanho, uma mina de prata, blocos de madeira, os ataúdes, cactos, as árvores totêmicas e moedas de cobre, que são os escudos. A criança já ajuda há muito tempo no armário de roupas da mãe, na biblioteca do pai, enquanto que no próprio território continua sendo o hóspede mais instável e belicoso.” (BENJAMIN, 2009, p. 107). 14 “As narrativas de fundamentação da Biblioteconomia em Ranganathan demonstram que está na transformação desta cultura tipicamente material o seu contato com um dos conceitos cen- 145 Ranganathan no país dos brinquedos ‘:’ colon, uma classificação, uma filosofia... dos jogos, os assuntos substancializados e petrificados pela essencialização dos esquemas. Transformar os esquemas classificatórios num “grande balé artístico de metamorfoses” que dançam “ao compasso da vida” é uma das tarefas do brinquedo (BENJAMIN, 2009, p. 84). Sendo o colon, o brinquedo de Ranganathan, ele criou para si, conforme as artes dos usos e dos jogos, um pequeno mundo (Colon Classification) – um mundo menor, multidimensional e liberto das amarras invariantes. Afinal, “não há dúvida que brincar significa sempre libertação” (BENJAMIN, 2009, p. 85). Sob os olhos desta sabedoria infantil podemos ler: A cada instante o pessoal da biblioteca deve lembrar-se que OS LIVROS SÃO PARA USAR. Jamais deve cair no estado de espírito de seu ancestral da Bodleian Library, do qual se diz que ‘era um bibliotecário muito bom em alguns sentidos; mas odiava quem se aproximasse dos seus livros’. Jamais deve esquecer que nas bibliotecas os livros são reunidos para serem USADOS, preparados para serem USADOS, guardados para serem USADOS e oferecidos para serem USADOS. Os intermináveis processos e rotinas técnicas – receber sugestões dos especialistas, adquirir por compra ou doação, registrar, classificar, catalogar, registrar o número de chamada, colocar nas estantes, emprestar e dar baixa – tudo isso é executado tendo como única finalidade o USO (RANGANATHAN, 2009, p. 41). A dimensão do jogo e dos usos provocados pelo conjunto Meccano no esquema classificatório de Ranganathan provocou uma alteração, potencializando a concepção do colon (ou dos dois pontos), símbolo já existente em esquemas classificatórios precedentes à Colon Classification, como, por exemplo, a Classificação Decimal de Dewey (CDD) e a Classificação Decimal Universal (CDU) (RANGANATHAN, 1937, p. 192). Vejamos o exemplo da CDU. O sinal gráfico de dois pontos (:) representa a “relação”, na Classificação Decimal Universal (CDU), desenvolvida, a partir de 1894, por Paul Otlet e Henri La Fontaine. Aparentemente de importância secundária, por ora moribunda, flertando com um possível desuso, a “relação” (:) aparece como um “sinal auxiliar comum”, subscrito nas “tabelas de auxiliares cotrais da pragmática: o uso. [...] Estamos diante da ‘revelação’ do maha-mantra de uma filosofia prática: a filosofia da ciência biblioteconômica, epifania indicada por Ranganathan (2009) no fragmento §05 como tendo ocorrido no final de uma tarde do ano de 1928, quando já estava de volta à Índia. Trata-se do mantra supremo da filosofia biblioteconômica segundo a visão ranganathiana, manifestado como ‘os livros são para usar’.” (SALDANHA, 2016, p. 49). 146 Vinícios Souza de Menezes muns” que assiste as “tabelas principais” da CDU. Logo, o sinal de dois pontos é um grafismo suplementar às notações principais que visam classificar “a coisa” em questão em seu mínimo grau de identidade temática. Como em seu uso textual entre um título e um subtítulo, os dois pontos (:) interligam uma relação entre dois ou mais assuntos ordenados estruturalmente conforme o código notacional da classificação, no caso, da CDU. Por exemplo, 17:7, isto é, ética em relação à arte. O consórcio que “cuida” da CDU – UDC Consortium – e suas respectivas discussões, atualizações, revisões, nos diz, a partir de uma “nota de conteúdo”, algo relevante sobre o uso deste sinal gráfico (UDC, 2017): “o sinal de relação limita os assuntos que liga.” Ou seja, o sinal de relação liga e, em sua ação de ligar o que se supõe conceitualmente separado (ética ∉ arte), limita o que assume (assumptus) identitariamente: os assuntos em seu enlace. Para a CDU, os dois pontos ao ligar, limita. De antemão, algo escapa a esta interpretação clássica da teoria relacional da classificação e, consequentemente, deste grafo classificatório suplementar (:). Esta interpretação lógica oblitera a condição metafórica de toda relação, ou seja, a sua gramática15 (DERRIDA, 2013). Trópica carregada pelas designações impróprias da linguagem (NIETZSCHE, 2000, p. 107-109; SUAREZ, 2011, p. 72-73), a metáfora para a interpretação lógico-filosófica da Organização do Conhecimento representa o impossível, pois fere a correção do sentido próprio e não-contraditório da linguagem lógica. Outro fato diz respeito à impossibilidade de utilizar metáforas para a organização do conhecimento. A questão é que, semioticamente, a metáfora é um hipoícone que, apesar de ser um símbolo (posto que 15 Na literatura sobre o pensamento ranganathiano, há uma querela entre aqueles que defendem a supremacia lógica da “sintaxe absoluta” do pensamento de Ranganathan (HJØRLAND, 2005; NEELAMEGHAN, 1975) e aqueles outros que argumentam que o pensamento ranganathiano encontra-se diluído nos jogos gramaticais dos seus esquemas linguísticos, inclusive, o lógico (SALDANHA, 2016; GIL URDICIAIN, 1994). Gomes e Campos (2016, p. 114), acerca do “postulado das cinco categorias fundamentais”, argumentam que “a notação para um assunto deveria ser a organizada com códigos que identificariam cada Categoria: ‘,’ [vírgula] para Personalidade, ‘;’ [ponto e vírgula] para Matéria; ‘:’ [dois pontos] para Energia; ‘.’ [ponto] para Espaço; ‘*’ [asterisco] para Tempo.” A estruturação destas categorias formaria o assunto como uma sentença. Esta sintaxe que ordenaria as ideias estaria voltada para a Lógica e não para a Gramática, contudo, por outro lado, Blanca Gil Urdiciain (1994, p. 114) argumenta que a estruturação do PMEST estaria baseada no contexto gramatical das orações: “Personalidad sería el sujeto (de qué o quién se habla), Materia se correspondería con el acusativo, el Complemento directo, algo sobre lo cual el proceso se realiza, Energía sería el verbo (proceso, acción, algo en movimiento), Espacio y Tiempo constituirían complementos circunstanciales de lugar y de tiempo.” 147 Ranganathan no país dos brinquedos ‘:’ colon, uma classificação, uma filosofia... é palavra), possui a proeminência de interpretação no ícone, suscita, portanto, imagens mentais e qualidades de sentimento na semiose. Tal analogia também pode suscitar ambiguidade na interpretação, de modo a interferir na significação correta, problema esse que o conceito resolve plenamente com o fechamento semântico do termo. A área da Informação desenvolveu os tesaurus visando a atender as várias áreas do conhecimento humano, na geração de índices, bibliografias e catálogos de bibliotecas especializadas. Entretanto, as relações entre os termos especializados são mais evidentes, não comportando metáforas, o que dificultaria evidentemente o quesito da univocidade do significado buscado e ensejado no fechamento semântico da indexação e de suas linguagens (MONTEIRO; GIRALDES, 2008, p. 23-24, grifo nosso). Monteiro e Giraldes tecem tal crítica tendo como mirada o índice categórico desenvolvido no livro Il Cannocchiale Aristotelico – “A luneta aristotélica” – de Emanuele Tesauro (1655). Segundo Umberto Eco (1998, p. 196-198), Emanuele Tesauro, dramaturgo, literato e retor italiano, desenvolveu um índice categórico baseado numa leitura barroca de Aristóteles, onde a metáfora representaria não o curso das relações ontológicas entre dois sentidos em si mesmo parcialmente completos e categorizados, mas “una medida desmedida para medir” a “todo tropo y a toda figura”, isto é, a agudeza metafórica é “la estrutuctura misma del linguaje” (ECO, 1998, p. 196-197). Esta “medida desmedida para medir” nos recorda a condição de “new zero” do colon ranganathiano. Esta agudeza metafórica que constitui a “estrutura mesma da linguagem”, um problema para os esquemas classificatórios ocidentais baseados na substância das identidades, não é um problema para a classificação do pensador hindu como já vimos até aqui, possuindo a Colon Classification entre os seus Canons of Classification, por exemplo, no Idea Plane o Canon of Differentiation e os Canons for Filiatory Sequence, no Verbal Plane o Canon of Context e no Notational Plane o Canon of Homonym (RANGANATHAN, 1924). Umberto Eco afirma que “las páginas” de Tesauro esfregam-se com “la teoria moderna de los actos linguísticos”, em especial, com o exercício gramatical wittgensteiniano, “un trabajo que debe aprenderse mediante ejercicios” e, continua, “este ejercicio [de leitura] constituye una mera invitación a la intertextualidad”, nascendo daí “la possibilidad de recorrer el índice categórico ad infinitum descubriendo una reserva de metáforas inéditas, y de proposiciones y argumentaciones metafóricas”, pois esta luneta proposta por Tesauro nos reenvia para “un puro tejido de unidades de 148 Vinícios Souza de Menezes contenido culturales”, baseado numa “red de interpretantes” (ECO, 1998, p. 196-198) –, nas palavras de Ranganathan, uma rede constituída entre o conhecido (vastu-tantra) e o conhecedor (kartru-tantra). Desta maneira, a impossibilidade da metáfora para os princípios lógico-filosóficos da clássica organização do conhecimento ocidental, se dá porque a relação ou a metáfora está circunscrita nos contextos da “gramática do tecido da vida”. Portanto, por meio desta figura informe impossível é que a condição de possibilidade classificatória se erige de modo pragmático e transcendental em Ranganathan (SALDANHA, 2016). Contudo, sob as lentes filosóficas do colon, seria o esquema ranganathiano transcendental no sentido da ultrapassagem cujo horizonte é uma “imanência absoluta”16: a vida e seus usos. Uma vida em que tudo se marca, mas que seria em si mesmo não-marcada, não determinada por um campo transcendental inteligível ou sensível. Fora da lógica da binaridade – um “new zero” –, a vida informe é a terceira margem (triton genos) entre os planos de determinação da metafísica: “o campo transcendental se define por um plano de imanência, e o plano de imanência por uma vida” (DELEUZE, 2004, p. 161). O colon é o brinquedo da u:tópica república infantil com que se deparou Ranganathan. No país dos brinquedos, lugar onde a vida se faz possível, carrega-se de possibilidades e acontece, Ranganathan brincou de fazer do colon a possibilidade do impossível. Quando o impossível se faz possível, o acontecimento tem lugar (possibilidade do impossível). [...] Para que um acontecimento tenha lugar, para que seja possível, é preciso que seja, como acontecimento, como invenção, a vinda do impossível. [...] Dito de outro modo, e isso é uma introdução a uma aporia sem exemplo, uma aporia da lógica de preferência a uma aporia lógica, eis um beco sem saída do indecidível, pelo qual uma decisão não pode não passar. Toda responsabilidade deve passar por essa aporia que, longe de paralisá-la, põe em movimento um novo pensamento do possível. Ela lhe assegura o ritmo e a respiração: diástole, sístole e síncope, batimento do possível im-possível, do impossível como condição do possível. [...] A condição de possibilidade daria, portanto, uma chance ao possível, privando-o todavia de sua pureza. A lei da contaminação espectral, a lei impura da impureza, eis o que é preciso reelaborar incessantemente (DERRIDA, 2004, p. 279-280). 16 Segundo Gilles Deleuze (2004, p. 163): “A transcendência é sempre um produto da imanência”. 149 Ranganathan no país dos brinquedos ‘:’ colon, uma classificação, uma filosofia... A mirada da “impossibilidade” metafórica está expressamente escrita na gramática do uso, isto é, na relação ensejada pela sua condição aporética de impossibilidade. O sinal de relação que limita os assuntos que liga, segundo a CDU, sob as maneiras instáveis e, por isto, “impróprias” do colon ranganathiano, ao limitar o que liga, transcende os limites demarcatórios dos conceitos ligados à sua própria passagem, contagiando-os em seu limiar. Na vibração da zona de imanência, o colon ou a relação é um lugar de “não conceitualidade” (BLUMENBERG, 2013), ou, em outras palavras, é a condição de possibilidade de todo conceito, se por conceito entendermos “uma unidade de conhecimento” (BARITÉ et al, 2015, p. 52). Deslimitando os limites, a relação é a cifra metafórico-gramatical do nosso “pensar/classificar” (PEREC, 1986, p. 108-126) no mundo, o mundo e a sua alteridade. Interpretando simbolicamente a notação 17:7 como uma sentença linguística da CDU, a relação seria um “suplemento de cópula” entre um sujeito ético e um predicado artístico. Nem identidade ética, nem complemento artístico, o colon (:) é a informe “condição de possibilidade de qualquer linguagem e de qualquer conceito” (DERRIDA, 1991, p. 217). Ainda que não esteja grafado entre conceitos, termos, descritores ou mesmo palavras, todos esses elementos linguísticos heterogêneos partilham da rasura deste grafo, são irmanados pelo caractere límbico do colon – uma dobradura da imanência. Etimologicamente colon vem do grego κῶλον que significa limbo, porção, membro. Na retórica grega, o colon significava a expressão da “passagem mesma”, sem remissão para um fora ou um dentro, tratava-se de um acontecer cujo lugar era uma abertura medial para o respirar rítmico do texto. Isidoro de Sevilha (560-636 d.C.) em suas Etymologiae, talvez recordando Aristófanes de Bizâncio (257-185 a.C.), nos diz, a respeito dos signos de pontuação, em especial, o colon (2004, p. 299): Cuando, a medida que progresa la oración, va aflorando el sentido, pero todavia falta algo para que éste sea completo, se produce un colon, que notamos con un punto a la altura media de la letra. Lo llamamos distinctio media, por ir situado el punto tras la letra, a media altura. […] por lo demás, entre los poetas se habla de comma cuando, en un verso, después de medirlo, tiene lugar una cesura y, a continuación de dos piés métricos, encontramos una sílaba. Cuando detrás de esos dos pies no aparece ninguna sílaba, se trata de un colon. O colon partilha do “inacabamento do sentido”, condição demasiadamente humana ou límbica, pois, Deus, o doador por excelência do sentido para Isidoro de Sevilha, na cursividade da sua escritura, ao deixar nas “mãos da humanidade” a 150 Vinícios Souza de Menezes próxima gramma (letra), produz o colon (:), e, a humanidade em sua busca pelo “sacramento da linguagem” – a palavra sagrada – ou da anterioridade pré-linguística da palavra que legitimaria a obra, não encontra após a última sílaba nada além de um “abismo” [ : ] –, um dois pontos e o “branco por escrever”, cujo selo é a liberdade, a abertura da sua própria escritura situada como livre, no jogo da vida, entre os jogos do mundo e suas relações com os “camaradas de jogo” (amatores mundi). Sob esta perspectiva, o colon é límbico17. No texto “A imanência absoluta”, Giorgio Agamben (2013) comentando a noção de “vida humana” a partir do texto L’immanence: une vie..., de Gilles Deleuze, que fora publicado dois meses antes de sua morte, assinala que o colon (:) é o movimento chamado por Deleuze de imanação, um jogo de palavras com a emanação (neo)platônica. Agamben (2013, p. 330) argumenta que os dois pontos, nos históricos tratados gramaticais sobre pontuação, indica a “intersecção entre dois parâmetros”, uma terceira margem atravessada por “um valor de pausa (mais forte 17 “De onde provêm as singularidades quaisquer, qual é o seu reino? As discussões de S. Tomás sobre o limbo contêm os elementos para uma resposta. Segundo o teólogo, a pena a que estão sujeitas as crianças não baptizadas, que morreram sem outra culpa que a do pecado original, não pode na verdade ser uma pena aflitiva, como é a do inferno, mas unicamente uma pena privativa, que consiste na perpétua ausência da visão de Deus. No entanto, contrariamente aos condenados, os habitantes do limbo não experimentam nenhuma dor por esta ausência: uma vez que são apenas dotados da consciência natural e não da consciência sobrenatural, que foi implantada em nós pelo baptismo, eles não sabem que estão privados do bem supremo, ou, se o sabem (como se admite num outro ponto de vista), não podem afligir-se mais do que sofreria um homem sensato por não poder voar. [...] Além disso, os seus corpos são como os dos bem-aventurados, impassíveis, mas só relativamente à acção da justiça divina; quanto ao resto, gozam plenamente das suas perfeições naturais. [...] A pena maior - a ausência da visão de Deus – transforma-se assim em natural alegria: irremediavelmente perdidos, permanecem sem dor no abandono divino. Não é Deus que os esqueceu, são eles que o esqueceram desde sempre, e contra o seu esquecimento é impotente o esquecimento divino. Como cartas sem destinatário, estes ressuscitados ficaram sem destino. Nem bem-aventurados como os eleitos, nem desesperados como os condenados, eles estão cheios de uma alegria que não pode chegar ao fim. Esta natureza límbica é o segredo do mundo de Walser. As suas criaturas estão irremediavelmente extraviadas, mas numa região que está para além da perdição e da salvação: a sua nulidade, de que tanto se orgulham, é acima de tudo neutralidade em relação à salvação, a objecção mais radical que alguma vez foi feita contra a própria ideia de redenção. Propriamente impossível de salvar é, de facto, a vida em que nada há para salvar e contra ela naufraga a poderosa máquina teológica da oiconomia cristã. [...] Tal como o condenado liberto na colónia penitenciária kafkiana, que sobreviveu à destruição da máquina que devia executá-lo, eles deixaram atrás de si o mundo da culpa e da justiça: a luz que se derrama na testa deles é a luz – irreparável – da alba que se segue à novissima dies do juízo Final. Mas a vida que começa na terra depois do último dia é simplesmente a vida humana” (AGAMBEN, 1993, p. 13-14). 151 Ranganathan no país dos brinquedos ‘:’ colon, uma classificação, uma filosofia... do que o ponto e vírgula e menor do que o ponto) e um valor semântico, que marca a relação indissolúvel entre dois sentidos”. Na série que vai do signo = (identidade de sentido) ao hífen (dialética da unidade e da separação), o colon (:) desempenha uma função intermédia, cuja mirada não é nem uma simples identidade, nem apenas uma conexão lógica, todavia, uma relação diferida – “outra outra” | “new zero”. Entre a imanência e uma vida, os dois pontos introduzem algo menos que uma identidade e mais do que um agencement, ou melhor, um agencement de espécie particular, algo como um agencement absoluto, que inclui também a ‘não-relação’, ou a relação que deriva da não-relação, de que ele fala no ensaio sobre Foucault, a propósito da relação com o Fora. Se retomarmos a metáfora adorniana – os dois pontos como o semáforo verde no tráfico da linguagem – que se encontra, nos tratados sobre a pontuação, quando estes classificam os dois pontos entre os sinais ‘de abertura’, entre a imanência e uma vida existe então uma espécie de trânsito sem distância nem identificação, algo como uma passagem sem mudança espacial. Neste sentido, os dois pontos representam a deslocação da imanência em si mesma, a abertura a outro que permanece, porém, absolutamente imanente (AGAMBEN, 2013, p. 330). O colon, esta imanência que é uma vida, é “o sinal verde no trânsito da linguagem”, o “agenciamento absoluto” da sintaxe ranganathiana. Giorgio Agamben (2013, p. 331) nos recorda que nos antigos tratados gramaticais, o colon era “um elemento a-sintático e, em geral, a-semântico, implícito na relação entre pontuação e respiração, que surge constantemente estabelecida desde os primeiros tratados e que age necessariamente como uma interrupção do sentido” e cita a Grammatica de Dionísio de Trácia (170 a.C.-90 a.C.), onde o colon aparece como “o ponto médio” que “indica onde se deve respirar”. Essa histórica condição manifesta-se na percepção do colon ranganathiano como “energia”, um “agenciamento absoluto” que conecta os caracteres facetados do seu esquema (SATIJA, 1989). Blanca Gil Urdiciain (1994, p. 119) rememora que “en un principio, el signo de conexión que existía para todas las categorías era el colon (:)” e, por conta de “una mayor claridad en la expresión de los aspectos relativos a cada documento, se incorporaron los demais”. Assim, perante a história do desenvolvimento esquemático, o colon era literalmente o “agenciamento absoluto” da sintaxe das categorias fundamentais do PMEST, passando a vir, por motivos didáticos, num segundo momento, acompanhado de outros sinais (‘,’| ‘;’ | ‘.’ | ‘*’), todavia, sendo todos ainda marcados pela “aura do colon”, ou seja, são “sinais de conexão”. 152 Vinícios Souza de Menezes No país dos brinquedos, Ranganathan confrontou-se com o colon, este limiar de “(im)pura” relacionalidade, alheio às oposições clássicas e cuja “passagem” parte da supressão do em-si à gramática da relação (CABRAL, 2014, p. 135). Visto que a gramatologia é uma “ciência das relações”, um “ter-lugar” da “disposição analógica dos intervalos” (DERRIDA, 2013, p. 260), o colon é por Raganathan anunciado pela metáfora do brinquedo, um feitura irmanada ou imanada no múltiplo, como diz Deleuze. Em seus agenciamentos, Shiyali Ramamrita Ranganathan deslocou o colon do caráter suplementar ocupado na CDU ou do caráter simples prescrito por Dewey, para o plano fulcral do seu pensamento classificatório, ao chamar seu esquema de classificação de Colon Classification. Ranganathan foi um classificacionista marginal, imanente na multiplicidade da vida, seu pensamento pode ser classificado como um “pensamento do intervalo”, instalado “na grande fronteira” intercultural entre o pragmatismo ocidental e o transcendentalismo oriental, sendo a sua obra um exemplo de interseção entre o “Ocidente e o Oriente” (SALDANHA, 2016, p. 44). Perante seu viés pragmático, poderíamos dizer, utilizando o vocabulário de Antonio García Gutiérrez (2011, p. 8), que Ranganathan é um desclassificador18. Fora das dicotomias do princípio classificatório da não-contradição, Ranganathan instaura seu esquema classificatório na gramática da relação e faz do colon, o seu brinquedo, o seu selo (des)classificatório. Muito além do significado técnico dos “dois pontos” para o ordenamento classificatório, Ranganathan faz do colon a sua “energia”, a equação do seu pensamento: “energy ‘:’ (colon)” (RANGANATHAN, 1924). Poderíamos dizer, num exercício de materialização, que em Ranganathan – pensador do intervalo – o colon pode ser, por exemplo, o livro. Para Ranganathan, o livro é a energia tripartida entre os intervalos “colonados” da alma e seus corpos: “A book may, then, be taken to be a trinity of soul (=alma), subtle body (=sukshma sarira) and gross body (= sthula sarira)” (RANGANATHAN, 1952, p. 23). Inserido no desejo infantil de saber, marcado por “uma relação viva com as coisas” (BENJAMIN, 2009, p. 127), o livro enquanto colon é uma personificação dessa energia vital – um organismo vivo, dotado de alma (soul) e corpos simbólico (sukshma sarira) e material (sthula sarira), feito pessoa. 18 “[...] from the demolition of dichotomies, I developed a provoked construction of oxymora and hyperbatic oxymora (inversions), inducing the cooperation of the elements of many automatic oppositions, such as centre/periphery, so as to transform them into two efficient epistemological and heuristic resources: central periphery (Bangalore or São Paulo, for instance) and peripheral centre (be it The Bronx or the poorest districts of LA). The calculated construction of oxymora and contradictions is a powerful metacognitive tool of declassifying thought” (GARCÍA GUTIÉRREZ, 2011, p. 8). 153 Ranganathan no país dos brinquedos ‘:’ colon, uma classificação, uma filosofia... Esta força que move o pensamento hindu ranganathiano é chamado em sânscrito de Sakti (ou Shákti), a energia cósmica primordial, traduzida pelas forças dinâmicas que movem todo o cosmos. Sakti é a energia que conecta e anima todos os seres ao colocá-los em relação. Sendo assim, poderíamos dizer que o colon é o operador de relação cósmica fabricado por Ranganathan. Uma classificação, uma filosofia, um brinquedo, o colon é informe, não possui uma forma determinada. Feito Sakti, se manifesta em todas as formas materiais. Sakti é também o nome da Grande Mãe do Universo, a vibração de toda matéria, de todo movimento e de toda a existência19. Sakti é a dança da vida. Esta deusa de múltiplas encarnações é muito cultuada pelos aldeões sulistas e possui vários templos espalhados por toda região sul da Índia, onde nasceu Ranganathan. Foi no estado de Tamil Nadu, no extremo sul da Índia, que Ranganathan nasceu e onde exerceu suas atividades de matemático e bibliotecário na Universidade da antiga Madras. O papel exercido pelo colon, essa “máscara imaginária” de Sakti, no pensamento de Ranganathan é visceral. É notória a importância da concepção dos serviços de referência para o pensamento biblioteconômico do pensador hindu, com alguma frequência espaçado para todas as práticas bibliotecárias. Segundo Ranganathan (1961, p. 181), a biblioteca é uma trindade constituída por livros, leitores e bibliotecários, especialmente em sua função de referência. É papel do bibliotecário estimular a integração desta trindade, atuando através do seu poder de mediação (power mediating) entre os leitores e os livros. Esta função do bibliotecário é um “instrument of Sakti” e, para o bibliotecário, se faz necessário assumir-se enquanto colon, incorporar em seu exercício as quatro faces de Sakti – Maheswari (sabedoria), Mahakali (força), Mahalakshmi (harmonia) e Mahasaraswati (perfeição) (RANGANATHAN, 1961, p. 182). Personificação do colon, o bibliotecário vivificado pelos ensinamentos de Sakti está livre de toda mancha identitária, de todo traço egoísta, como a energia cósmica de Sakti, que tudo relaciona, faz-se colon, feito um brinquedo, encontra-se livre para todos os usos. All stain of egoistic choice, of hankering after personal profit, and of self-regarding desire must be extirpated from the reference librarian while effecting contact between reader and book. There must be no demand for 19 Mandakranta Bose (2000, p. 115), em sua pesquisa sobre as faces do feminino na Índia Antiga, Medieval e Moderna, nos apresenta Shaktisangama Tantra, um cântico para Sakti: “Woman is the creator of the universe, the universe is her form / woman is the foundation of the world / she is the true form of the body. / In woman is the form of all things, of all that lives and moves in the world. / There is no jewel rarer than woman, no condition superior to that of a woman.” 154 Vinícios Souza de Menezes fruit and for seeking for reward; the only fruit is the fulfillment of establishing contact between books and readers; the only reward is a constant progression towards the attainment of the ideals set up by the Laws of Library Science. The reference librarian should allow nothing to creep in to stain the purity of the self-giving. His only object in action should be to serve, to fulfill, and to become a manifesting instrument of the Divine Sakti in her works. There must be no pride of the instrument, no vanity, no arrogance. The books constitute Purusha as Akshara Brahma (Scriptal form of God). The readers constitute Prakriti manifesting itself as Manushya Prakriti (human manifestation of nature) (RANGANATHAN, 1961, p. 181, grifo nosso). Enquanto o livro partilharia da energia cósmica do Purusha20, uma manifestação escrita de Akshara Brahma, dotada de alma (soul) e corpos (sukshma sarira e sthula sarira), os leitores seriam Prakriti21, uma manifestação humana da natureza (Manushya Prakriti) que necessita do enriquecimento proporcionado por Purusha. Por sua vez, os bibliotecários são uma representação das faces da Deusa Sakti22 “Truly, the part of the reference librarian is not unlike that of Sakti in the Trinity [...] Sakti uses the reference librarian as instrument” (RANGANATHAN, 1961, p. 181). Nesta trindade que compõe a biblioteca, a energia expande-se ciclicamente, onde Purusha busca a realização na Prakriti vivificada e a consumação da Prakriti consiste na realização da Purusha. A descida de Sakti em Prakriti o transmuta. Sublimado, Prakriti alcança Purusha. Deste modo, Sakti usa a ação do bibliotecário como seu instrumento de realização, consumação e transmutação do conhecido e do conhecedor. The Purusha seeks fulfilment in enlivened Prakriti and the consummation of the Prakriti consists in realising Purusha. The descent of Sakti on Prakriti transmutes the latter. The sublimated Prakriti reaches out to the Purusha. Sakti uses the reference librarian as instrument. He should value this opportunity (RANGANATHAN, 1961, p. 182). No mundo ocidental, algumas interpretações chamam a atenção para o caráter central da categoria de Personalidade pela manifesta “equivalencia entre esta cate20 “Purusha = The Divine Unmanifest” (RANGANATHAN, 1961, p. 181). 21 “Prakriti = nature standing in need of enrichment by Purusha” (RANGANATHAN, 1961, p. 182). 22 “Sakti = The Energising Principle activating the descent of Purusha on to Prakriti and the ascent of the latter to the former.” (RANGANATHAN, 1961, p. 182). 155 Ranganathan no país dos brinquedos ‘:’ colon, uma classificação, uma filosofia... goría y la sustancia aristotélica” (GIL URDICIAIN, 1994, p. 113). O trabalho de Stella Mello e Barros (2019), “A categoria ‘Personalidade’ na Teoria da Classificação de Ranganathan: discussões epistemológicas a partir de Aristóteles”, expõe o argumento central deste movimento que, aparentemente, visa para os olhos da metafísica colonial do ocidente dizer: Ranganathan era aristotélico. As categorias fundamentais Personalidade, Matéria, Energia, Espaço e Tempo (PMEST) são formuladas à luz dos planos de trabalho da classificação. Estas auxiliam a organização das classes de conceitos no contexto de assunto, proporcionando a flexibilidade de relacionar e incluir facetas afirmadas sempre em relação à categoria Personalidade (P). Esta categoria é considerada a mais relevante, pois existe em si mesma como o termo sujeito da predicação e indica as propriedades da essência e a definição dos assuntos inseridos no universo do conhecimento (BARROS, 2019, p. 2) O trabalho de Stella Mello e Barros põe em relevo muito mais do que um Ranganathan aristotélico. Aos nossos olhos, há nesta leitura uma descrição da colonialidade da metafísica aristotélica, no sentido de que tudo aquilo que não é a substância (ou a “Personalidade”) é acidental a esta essência, ou, de que tudo aquilo que não é aristotélico é acidental a ele. O que defendemos é que não há uma metafísica colonial em Ranganathan: É habitual começar toda história clássica com Aristóteles. Qual a resposta que ele deu para esta questão fundamental [da educação]? ‘A intenção da natureza é que os corpos dos escravos e dos homens livres sejam diferentes entre si [...] E uma vez que isso é verdade com relação ao corpo, mais justo ainda é definir do mesmo modo quando consideramos a alma.’ Estas premissas plausíveis levaram Aristóteles à conclusão característica de que ‘um escravo não tem qualquer faculdade de deliberar’. O resultado deste raciocínio rigoroso foi que ‘embora Atenas e Esparta oferecessem educação aos homens livres, nove décimos da população estavam excluídos do privilégio de estudar’. Traduzindo isso em termos de livros, descobrimos que LIVROS PARA OS POUCOS ELEITOS era o conceito dominante e que a Segunda Lei [da Biblioteconomia] não tinha qualquer reconhecimento. Mesmo em Roma, que iniciou a criação de escolas municipais e públicas, o privilégio da educação raramente cruzava as fronteiras ocupacionais e de renda. (RANGANATHAN, 2009, p. 51) 156 Vinícios Souza de Menezes O Aristóteles que habita em Ranganathan fala tâmil e sânscrito. A substância que faz morada no pensador hindu é material (Mulaprakriti), uma Personalidade “colonada”, em movimento pela força viva da energia da deusa do corpo do mundo, que dança e nutre: Sakti. Desta maneira, a digvijaya ranganathiana não tem por fundamento a substância e seus substantivos, mas a energia e suas ações, a força do verbo dos Vedas, como recorda Ranganathan (2009, p. 49) por meio da fala de Sri Krishna: “Teu direito é à ação apenas e jamais aos frutos / Não deixai que os frutos da ação sejam o motivo”, ou seja, à diferença da primazia pela substância e pelos atos realizados do pensamento aristotélico, Ranganathan recorre à potência e ao dinamismo das ações, seguindo os ensinamentos de Sri Krishna. Krishan Kumar (1981), teórico indiano da classificação, em seu livro Theory of classification, ordena em três períodos a Colon Classification: i) rigidamente facetada (entre a 1ª e 3ª edições), ii) quase-livremente facetada (entre a 4ª e 6ª edições) e iii) livremente facetada (a partir da 7ª edição)23. No segundo período, Kumar (1981, p. 72) chama a atenção para a adição do conceito de “ciclos e níveis”. A partir desta inclusão, “la fórmula facetada se completa mediante la posibilidad de utilizar las categorías, tantas veces como sea preciso, en una serie de vueltas (ciclos, rounds)” (GIL URDICIAIN, 1994, p. 115). As facetas Personalidade (P) e Matéria (M) que aparecem antes da faceta Energia (E) formam a primeira (1ª) volta das facetas. As facetas P e M que se dão após a faceta E formam a segunda (2ª) volta (2P e 2M), e assim sucessivamente24. As facetas de Espaço (S) e Tempo (T) somente aparecem numa última volta. Em outras palavras, Blanca Gil Urdiciain (1994, p. 115) constata que a “cada vez que aparece una faceta E comienza una nueva vuelta”. Mais uma vez podemos ver a característica infantil de tal ato; a energia da faceta “:” é feito um carrossel, a cada vez que é acionada, o seu uso provoca um giro e um recomeço. Como uma eterna dança infantil marcada por “repetição e retorno”, a faceta Energia age como uma criança: “sempre de novo, centenas e milhares de vezes”, e, caso precise, “começa mais uma vez do início” (BENJAMIN, 2009, p. 101). Este colon facetado em Energia joga com os dois pólos categóricos – i) Personalidade e Matéria, ii) Espaço e Tempo –, este é o brinquedo de Ranganthan, pois, “a essência do brincar não é um ‘fazer como se’, mas um ‘fazer sempre de novo’, transformação da experiência 23 Sobre a questão da facetação e seus usos para a construção de sistemas classificatórios para a organização de recursos de informação, consultar Aida Slavic (2017) e o uso de classificações facetadas em um ambiente online e Kathryn La Barre (2004) e a aplicação da teoria facetada para análise de sites. 24 Blanca Gil Urdiciain (1994, p. 115) nos apresenta o seguinte exemplo: Enfermedad intestinal causada por infección y curada mediante antibióticos en España en 1993. Intestino [P]. Enfermedad [E]. Infección [2P]. Curación [2E]. Antibióticos [3P]. España [S]. 1993 [T]. 157 Ranganathan no país dos brinquedos ‘:’ colon, uma classificação, uma filosofia... mais comovente em hábito”, enfim, “há muito que o eterno retorno de todas as coisas tornou-se sabedoria infantil e a vida [ : uma imanência..., diríamos] um êxtase primordial” (BENJAMIN, 2009, p. 102-106). Aos nossos olhos, o colon é o néctar do “grito ético-revolucionário” de Ranganathan. A emblemática da liberdade. 4 Uma conclusão à maneira de uma imaginação conceitual A alteridade e a multiplicidade como forças revolucionárias. A revolução, ou a essa altura será melhor dizer, a insurreição e a alteração começam pelo conceito. Para além das variações em imaginação, a variação da imaginação. Eduardo Viveiros de Castro (2012, p. 155). Trata-se de “uma conclusão à maneira” porque “maneira”, no sentido dos maneirismos, é um modo marcado pela desapropriação e pela não pertença. Não há traço próprio para a maneira. Como o colon, a maneira “consiste exatamente no intervalo – ou melhor, no agio”, aquele espaço proposital entre dois mecanismos que possibilita que entre eles haja jogo. A maneira é uma desapropriação apropriadora, um equilíbrio instável, um uso (AGAMBEN, 2011, p. 36-37). Neste sentido, trata-se de uma conclusão inconclusa, equilibrada sobre o funâmbulo e o tremor dos novos usos. As forças revolucionárias que moveram o pensamento de Ranganathan sempre estiveram marcadas pela inclusão do outro, pela empatia com a alteridade, pela multiplicidade com que o mundo pode ser tematizado. Tais qualidades fogem da mancha egoísta da persona e do apego custodial pelos objetos. Como a de Mahatma Gandhi, seu contemporâneo, a insurreição de Ranganathan foi travada ao modo de uma “desapropriada maneira” – a luta (digvijaya) por fazer com que a energia de Sakti se expandisse, nas vestes mascaradas dos bibliotecários, na manifestação dos livros, na humanidade dos seus leitores. Ranganathan brincou com seu colon de fazer do impossível (metáfora), o real, da condição aporética entre zero e um, o habitat do new zero, enfim, fez da sua vida, uma imanência absoluta. Ranganathan foi o bibliotecário das mulheres marginalizadas (2009, p. 60-66), das populações escravizadas (2009, p. 51), do pescador (2009, p. 56), do proletário (2009, p. 277-278), das crianças (2009, p. 56), dos camponeses (2009, p. 67-75), dos pobres (2009, p. 37), do cego, do enfermo, do surdo, do carcereiro (2009, p. 81-86), dos negros e pardos segregados pelo Apartheid (2009, p. 105), da democracia ilimitada (2009, p. 92-93), da desobediência civil (sua obra). Seguindo a máxima de 158 Vinícios Souza de Menezes Manu, “levar o saber às portas de quem dele carece”, Ranganathan “fincou triunfalmente sua bandeira democrática em muitas terras, tendo reduzido a pó a barreira aristocrática do elitismo e do esnobismo” (RANGANATHAN, 2009, p. 58). Nunca foi “só” uma questão bibliográfica. Transcende o tempo e o campo. Nesta perspectiva, o colon é “uma máscara imaginária” de Sakti, uma energia que destitui as identidades imobilizadas. Feito uma criança, o colon mira a forma e o sentido com o “binóculo que segura ao contrário” (BENJAMIN, 2009, p. 108). No país dos brinquedos, Ranganathan fez do colon um “arsenal de máscaras”, despertou a sensibilidade, a criatividade e a reflexividade inerentes à vida dos coletivos, fez da imaginação um corpo vário, do agir bibliotecário, uma tarefa infantil imaginada pelo borbotar de Sakti. Na classificação filosófica do brinquedo, a imaginação da criança não é determinada pelo conteúdo imaginário do brinquedo, mas, ao contrário, a variação da imaginação da criança altera o imaginário do brinquedo. Ao transformar algo em brinquedo e brincar, a criança liberta-se de si, torna-se outrem, transmuta-se e transfigura o brinquedo. A criança ao vestir-se com algo branco e ondulado deseja converter-se em fantasma, ao puxar alguma coisa e galopar imagina-se cavalo, ao modular pães com areia torna-se padeiro (BENJAMIN, 2009, p. 93) e atrás de uma porta, incorporada com uma pesada máscara, feita uma sacerdote-mago, enfeitiçará todas as pessoas que entrarem desavisadas pelo desencanto do mundo (BENJAMIN, 2009, p. 108). O colon é uma revolução do conceito arvorada por Ranganathan. Trata-se de uma máscara pois é uma questão de devir, de tornar-se, não é autenticamente nada, coisa nada de brincar. O que o pensador hindu nos devolveu foi um espelho turvo com a irreconhecível imagem de nós mesmos, pois “o que toda experiência de uma outra cultura nos oferece é a ocasião para se fazer uma experiência sobre nossa própria cultura” (CASTRO, 2018, p. 21). Para além de uma variação imaginária, uma introdução de novas variáveis imaginativas sobre um chão comum – o imaginário ocidental –, o que o pensamento de Ranganathan provocou e constantemente nos desafia a pensar é um regime de variação da estrutura da nossa imaginação conceitual. Frente a força colonizadora do pensamento ocidental, de ver-nos sempre nós mesmos no outro, “de dizer que sob a máscara do outro somos ‘nós’ que estamos olhando para nós mesmos” (CASTRO, 2018, p. 21), trata-se de, ao contrário, nos assumirmos como variante, versão, transformação da força vital do feminino, de Sakti, nos diz o método ranganathiano. Por fim, caminhando para o encerramento do texto imaginamos uma brincadeira conceitual com a “espiral do método científico” proposta por Ranganathan (2009, p. 269). É conhecido que a formação do alfabeto, suas letras e símbolos, guarda semelhanças com o imaginário contextual daquilo que historicamente nos 159 Ranganathan no país dos brinquedos ‘:’ colon, uma classificação, uma filosofia... cerca, sejam elementos da fauna, da flora, das relações sociais entre humanos e não-humanos, dos objetos que orbitam pelas constelações de suas épocas, enfim, por uma mixórdia de eventos que compõem as cosmologias do conhecimento. O prazer de escrever partindo da alegria de desenhar é estimulado na idade mais tenra, onde a imagem e a escrita se cruzam e reciprocamente iluminam os seus imaginários. Através das artes caligráficas que configuram a grafologia, ainda hoje alguns materiais didáticos fazem uso do biomorfismo das letras como uma reprodução da maneira por meio da qual as crianças superam o abismo entre as palavras e as coisas. A criança ao olhar o “P” vê o homem com uma cabeça, em geral o “Pai”, ao fitar o “O” vê um olho ou uma glote de onça, no caso das crianças ameríndias, ao mirar o “H” vê uma cerca ou um início de escada, ao detidamente observar o “M” vê uma coruja com a sua saliente sobrancelha, ou, ao perspectivar o “Q” vê um gato de costas balançando o rabo. A experiência visual que propomos como uma imaginação conceitual é inspirada no “Q” e num encontro infantil análogo entre Alice, no país irmão ao dos brinquedos – o país das maravilhas –, e o Gato de Cheshire. Mire e veja a espiral ranganathiana como um “Q” ou um redemoinho infantil de imaginação conceitual. Um redemoinho porque no imaginário popular de brasilidades é conhecido que este guarda consigo, em seu vórtice, uma força desconcertante, uma energia vital que o anima e o equilibra na instabilidade dos seus ritmos. Quem sabe, numa rua imaginária do sertão brasileiro, frente ao redemoinho, Ranganathan dissesse: - há aí um colon onde Sakti dança. Figura 2: Redemoinho infantil de imaginação conceitual Fonte: Adaptado pelo autor a partir da ilustração de Alex Cerveny (2014). Neste redemoinho de imaginação conceitual, o movimento espiral centrífugo descompassa e a sua origem salta, desprende-se do fluxo constante das correntes que se dirigem para a mesma direção – as leis fundamentais do método científico na espiral ranganathiana. Gota é o nome para este acontecimento onde o líquido se separa de si e entra em êxtase. A origem, ou o “sol negro”, como algumas tradições chamam o centro do vórtice, jorra a sua força ativa de aspiração para fora e, no 160 Vinícios Souza de Menezes reino da alteridade radical, junto à inconstância das correntes é lançada ao ritmo de outras espirais do conhecimento. O sol negro distende a sua energia e ao dilatar-se, a gota expande Sakti, amplia em possibilidades a sua capacidade de conhecer e alterar-se – faz colon nos fluxos do tempo. Sob esta perspectiva, “Q” é uma justa variação da imagem conceitual da espiral ranganathiana, um new zero não necessariamente em espiral, mas um fio de novelo para outros desenhos esquemáticos, outras potências classificatórias – onde o classificado possa tornar-se o classificador e desclassifique todo e qualquer pensamento colonizador. Desver o mundo é a tarefa libertária, imanente e revolucionária do brinquedo, o segredo enterrado “onde as crianças brincam”. Com o brinquedo, Ranganathan jogou e fez pleno uso. O que eu queria era fazer brinquedos com as palavras Manoel de Barros (2010, p. 327). Agradecimentos O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (Capes), agência financiadora do estágio pós-doutoral concluído em 2019, e, com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que financiou materialmente a minha formação pretérita no doutorado. Agradeço ao grupo de pesquisa “Ecce Liber: Filosofia, Linguagem e Organização dos Saberes” pelos momentos de debate crítico-inclusivo e, em especial, a Rosali Fernandez de Souza e Gustavo Silva Saldanha, amigos e supervisores do estágio pós-doutoral. Referências AGAMBEN, Giorgio. A potência do pensamento. Lisboa: Relógio D’água, 2013. AGAMBEN, Giorgio. A coisa perdida: Agamben comenta Caproni. Florianópolis: Ed. UFSC, 2011. AGAMBEN, Giorgio. Infância e história: destruição da experiência e origem da história. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007. AGAMBEN, Giorgio. 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É possível observar e destacar, por exemplo, o impacto ocasionado pela pandemia COVID19 em 2020, que acelerou e ampliou os elementos, os processos e as atividades digitalizadas e virtuais, como o uso de videochamadas para audiências judiciais, teleconsulta médica, eventos científicos online, ensino remoto, apresentações artísticas por meio de lives etc. Os sujeitos, nativos digitais ou não, as instituições, diversos setores e serviços, sobretudo as áreas de Saúde e de Educação, tiveram que rapidamente se adequar ao digital e desenvolver novos serviços, novos ambientes de trabalho, digitalizando documentos, produzindo regimentos e resoluções emergenciais. Certamente, a vida digital já se instituía, mas, com a pandemia, essa imposição foi acelerada. A partir das características e dos impactos da cultura digital, que requer inovações associadas às tecnologias digitais, a confluência e a intersecção da computação às práticas de investigação acadêmica em Ciências Humanas, seja para coletar, analisar ou criar dados, ou seja, para práticas metodológicas, deram origem a uma nova noção, denominada de Digital Humanities - Humanidades Digitais (HD). 1 Dados do autor: Doutora em Informação e Comunicação nas Plataformas Digitais (Universidade do Porto), Docente no Departamento de Ciência da Informação da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (DECIN/UFRN), [email protected] Organização do conhecimento em Humanidades Digitais: breves reflexões Humanidades Digitais é um termo polissêmico e complexo, não tendo um consenso universal na literatura. Para compreender as Humanidades Digitais, é necessário olhar para as práticas e observar três pontos principais (CASTRO, 2020): 1) o fazer digital pela sociedade, ou seja, o que se realiza através do meio digital, a transformação do físico em digital, por exemplo, o envio de documentos digitais; 2) a metodologia de pesquisa nas Ciências Humanas (História, Artes, Teatro etc.), áreas e disciplinas que não estavam habituadas a utilizar ferramentas computacionais; 3) a percepção de que todo esse movimento passa a corresponder a um campo novo, no qual a noção ‘Humanidades Digitais’ pode ser considerada uma transdisciplina, ou seja, um campo que comunga com diversos objetos, atores e atividades nas Ciências Humanas e nas Ciências Computacionais e representa um novo recorte novo e que necessita de compreensão. No campo informacional, a utilização das tecnologias computacionais é sobejamente antiga. Esse fato não dispensa uma reflexão atual acerca das Humanidades Digitais e a Ciência da Informação, a fim de ponderar a ligação entre esses campos. Em vista disso, este texto tem o objetivo de refletir sobre a conexão entre aspectos das Humanidades Digitais e a Organização do Conhecimento e, nomeadamente, identificar as definições de HD, seus pilares e objetivos e ponderar sobre em que medida a Organização do Conhecimento é útil às Humanidades Digitais. Para isso, procede-se a um estudo exploratório, baseado na pesquisa bibliográfica a partir da análise de fontes de informação em Ciência da Informação, Ciências da Computação e Informática. 2 Humanidades Digitais: tecnologia emergente e pesquisa humanística O conceito de Humanidades Digitais ainda não é consensual. Algumas vezes, sua noção se confunde com Humanities Computing (Computação em Humanidades) que é compreendida como uma prática de representação, uma forma de modelagem ou, de certo modo, um mimetismo. Refere-se a uma forma de raciocínio e a um conjunto de compromissos ontológicos, cuja prática representacional é moldada pela necessidade de computação eficiente, de um lado, e da comunicação humana, de outro (UNSWORHT, 2013), e às aplicações específicas, como o desenvolvimento e a análise de grandes corpora textuais2, a construção de edições digitais 2 Corpora é o plural de corpus, que é um conjunto de textos para fins de pesquisa e análise linguística. 168 Jacqueline Aparecida de Souza de obras de literatura, a criação de artefatos digitais através do processo de digitalização, o uso de realidade virtual para reconstruir modelos arquitetônicos etc., que corresponde às novas técnicas e tecnologias desenvolvidas e aplicadas aos dados de Humanidades (TERRAS, 2013). Nesse contexto, o primeiro trabalho em humanidade digitais data de 1949, quando o jesuíta e teólogo italiano Roberto Busa procurou o fundador da IBM (International Business Machine Corporation), Thomas J. Wathson, para solicitar ajuda para indexar os trabalhos de Tomás de Aquino. O pedido não foi para contabilizar palavras, foi para conseguir interpretação doutrinal, sendo um trabalho qualitativo (MARTIRE, PINA 2019). Historicamente, o termo Humanidades Digitais foi utilizado, pela primeira vez, por John Unsworth, em 2002. Porém, só em 2004, com a publicação do livro Companion to Digital Humanties, editado por Schreibman, Siemens e Unsworth, foi que o termo passou a ser mais utilizado e divulgado (ALVES, 2016). Outras variações são encontradas na literatura, como Informatica humanistica (Humanistic informatics), Computação literária e linguística (literary and linguistic computing), Recursos digitais em humanidades e, proveniente da Europa Continental, o eHumanidades (eHumanities) (TERRAS; NYHAN; VANHOUTTE, 2013). A respeito das definições, embora não haja consenso universal, de modo geral, revelam a intersecção da computação, das tecnologias digitais às humanidades. Cohen (2011), em Day of Digital Humanities,3 afirma que humanidades digitais é o uso de mídia digital e de tecnologias para fazer avançar toda a gama de pensamento e de prática nas humanidades, desde a criação de recursos acadêmicos até a pesquisa sobre esses recursos, assim como a comunicação dos resultados. O autor ressalta que são métodos para fazer investigação humanística. Complementarmente, ‘Humanidades Digitais’ são uma área de atividade acadêmica que faz a interseção entre a computação ou tecnologias digitais e as disciplinas das humanidades, incluindo o uso sistemático de recursos digitais e a reflexão sobre sua aplicação nas humanidades (PALLETA, 2018). O autor acrescenta que podem ser definidas como novas formas computacionais de estudos acadêmicos transdisciplinares, que envolvem pesquisa, ensino e publicação e são provenientes das reflexões acerca da realidade contemporânea de presença tecnológica no âmbito das fontes de informação, antes usufruídas exclusivamente em formato físico (PALLETA, 2018). No Manifesto das Humanidades Digitais (DACOS, 2011), além de situação, declaração e orientações, constam os seguintes apontamentos acerca da definição: 3 Projeto que reúne pesquisadores de Humanidades Digitais de todos os graus e campos para refletirem acerca de suas pesquisas. 169 Organização do conhecimento em Humanidades Digitais: breves reflexões 1. A opção da sociedade pelo digital altera e questiona as condições de produção e divulgação dos conhecimentos. 2. Para nós, as digital humanities referem-se ao conjunto das Ciências humanas e sociais, às Artes e às Letras. As humanas digitais não negam o passado, apoiam-se, pelo contrário, no conjunto dos paradigmas, savoir-faire e conhecimentos próprios dessas disciplinas, mobilizando simultaneamente os instrumentos e as perspectivas singulares do mundo digital. 3. As digital humanities designam uma transdisciplina, portadora dos métodos, dos dispositivos e das perspectivas heurísticas ligadas ao digital no domínio das Ciências humanas e sociais (DACOS, 2011). Com base nessas exposições sobre a definição de Digital Humanities, verifica-se que, embora exista uma variação terminológica, no bojo dessa discussão, estão em relevo a criação e a aplicação crítica de tecnologias digitais para desenvolver e impulsionar as comunidades acadêmicas e aprofundar o conhecimento humanístico. Illmayer (2017) resume algumas atividades das Humanidades Digitais, a saber: iniciar e apoiar a transformação digital na Academia; digitalizar material e criar material nato digital; criar ambientes digitais para alunos e professores; divulgar resultados de pesquisa e publicações; fornecer material de pesquisa; permitir novas ou melhores possibilidades de pesquisa; construir comunidades de DH e proporcionar a análise crítica sobre a utilização das tecnologias digitais na investigação e na sociedade. O autor estabelece alguns pilares das DH, quais sejam: a transformação digital alcança todas as disciplinas acadêmicas; as DH como incubadoras de implementação de métodos informáticos e infraestruturas digitais nas Ciências Humanas; a DH discute sobre as mudanças e os desafios da revolução digital, especialmente para financiar estudos, assim como para as sociedades, comunidades e humanos; a DH é um campo aberto e depende de uma comunidade pulsante e em crescimento constante, incluindo acadêmicos, bibliotecários, estudantes, desenvolvedores, professores, cidadãos e cientistas. O núcleo interdisciplinar das HD é no campo da Humanities Computing, que tem uma longa e dinâmica história que é mais bem ilustrada por meio do exame dos locais em que práticas disciplinares específicas se cruzam com a computação. O crescente campo da representação do conhecimento, que se baseia no campo da Inteligência Artificial e visa produzir modelos de compreensão humana que sejam tratáveis por computação, fornece uma lente por meio da qual é possível compreender essas implicações. Isso é especialmente verdadeiro em questões relacionadas à 170 Jacqueline Aparecida de Souza representação arquivística e à edição textual, teoria interpretativa e crítica de alto nível e protocolos de transferência de conhecimento - conforme modelado com técnicas computacionais, capturado por meio de sistemas de codificação e classificação e representados em estruturas de dados, algumas das quais têm grande impacto nas formas como associamos a informação humana e interpretamos as formas como exerce influência sobre nós (SCHREIBMAN; SIEMENS; UNSWORTH, 2004). 3 Organização do Conhecimento: ontologias em humanidades A organização do conhecimento dedica-se à ordem conceitual do conhecimento. No sentido mais amplo, é a arena em que as heurísticas de ordenação do conhecimento são estudadas; é a comunidade de pesquisa que envolve classificação e ontologia, tesauros e vocabulário controlado, epistemologia e garantia e o desenvolvimento de sistemas aplicados para todos os anteriores (muitas vezes, especialmente na América do Norte, a descrição de recursos também é considerada um parte da organização do conhecimento). Há uma longa tradição de atividades e ferramentas de organização do conhecimento, como por exemplo, classificação, taxonomia e tipologia, que sempre foram fundamentais para o desenvolvimento de pesquisas. A organização do conhecimento é, claramente, um domínio coerente com uma base ontológica, cuja extensão, ao longo de uma dimensão, estende-se da teoria do conceito (ou semântica) ao sistema de organização do conhecimento aplicado (SMIRAGLIA, 2013). A OC oferece um modelo conceitual adequado com as diversas práticas e atividades sociais relacionada ao acesso ao conhecimento e opera como instrumento de tratamento da informação e de gestão de uso da informação e integrador dos fenômenos e aplicações vinculados a estruturação do conhecimento (BARITÉ, 2001). Essa estrutura conceitual representa uma visão de mundo, um modelo. Isso quer dizer que a representação do conhecimento é um modelo incorpora um vocabulário estruturado, mas com mais recursos, tornando-o mais poderoso para determinadas operações definidas, ou seja, são intencionais (GILCHRIST, 2011). Portanto, representar conteúdos de informação para organizá-los significa recortar, segmentar e apresentá-la de outra maneira. São as necessidades pragmáticas dos usuários, da instituição e do acervo que irão determinar a melhor estratégia de representação para atender ao fluxo informacional que se pretende (MACULAN, 2016). O processo de tornar presentes conteúdos informacionais é uma atividade que diz respeito à representação da informação, a qual se instrumentaliza por meio de modelos de representação do conhecimento. A representação do conhecimento trata-se de um processo mental (campo das ideias), responsável pela organização do conhecimento. Dessa organização, surgem os sistemas de organização do co- 171 Organização do conhecimento em Humanidades Digitais: breves reflexões nhecimentos (SOC), ou knowledge organization systems (KOS), também chamados de modelos de representação do conhecimento que servem de ferramentas para as atividades de representação da informação. Os modelos de representação do conhecimento, como os tesauros e as ontologias, representam uma parte do mundo das ideias (representação do conhecimento) e são aplicados nas atividades de representação da informação. Nesse sentido, entre os SOC que agregam elementos incorporados nas inovações tecnológicas e são emergentes em ambientes digitais, destaca-se a ontologia. Na perspectiva da Ciência da Computação e da Ciência da Informação, as ontologias são consideradas artefatos desenhados especificamente para possibilitar a representação computacional de algum fenômeno e se configuram como modelos de algum aspecto da realidade em que os conceitos são definidos de modo lógico-semântico em termos de seus limites e suas correlações (MOREIRA; SANTOS NETO, 2014). A definição mais recorrente na literatura é a de Gruber (1993), que concebe a ontologia como a especificação explícita de uma conceituação. Segundo o autor, quando o conhecimento do domínio é representado em um formalismo declarativo, o conjunto de objetos que pode ser representado é chamado de universo do discurso. Esse conjunto de objetos e as relações descritíveis entre eles são refletidos no vocabulário representacional por meio do qual um programa baseado em conhecimento representa conhecimento. Assim, a ontologia de um programa é definida como um conjunto de termos representacionais, na qual as definições associam os nomes de entidades no universo do discurso (por exemplo, classes, relações, funções ou outros objetos) a um texto legível por humanos, descrevendo o que os nomes significam, e axiomas formais que restringem a interpretação. Formalmente, ontologia é a afirmação de uma teoria lógica. Assim, ontologia é um conjunto de objetos que são divididos em classes, conceitos, propriedades (também slots) e restrições. Relacionando classes principais e subclasses (classes específicas), uma hierarquia pode ser criada. Além disso, as chamadas instâncias das classes representam objetos individuais do domínio selecionado. Embora a estrutura de uma ontologia seja bastante estática, as informações incluídas podem ser consultadas e manipuladas de várias maneiras, usando-se padrões de linguagem, como o Ontology Web Language (OWL), Resource Description Framework Schema (RDFS) e o XML Scheme (Extensible Markup Language) (ZÖLLNER-WEBER, 2009), que têm a finalidade de atribuir significado à web e são linguagens para descrever, definir e representar a ontologia. Os principais motivos para o desenvolvimento de ontologias são: 1) elas compartilham de conhecimento comum em estruturas de informação entre outros po- 172 Jacqueline Aparecida de Souza vos ou para os agentes de software; 2) permitem que conhecimento seja reusado; 3) realizam inferências em um domínio do conhecimento; 4) separam o conhecimento de domínio do conhecimento operacional; e 5) analisam o conhecimento estruturado tendo como resultado respostas mais relevantes. Nessa perspectiva, as ontologias promovem e facilitam a interoperabilidade entre sistemas de informação. Assim, por meio de um processo “inteligente” dos computadores, é possível compartilhar e reutilizar o conhecimento entre os sistemas (NOY; MCGUINNESS, 2001 apud CARLAN; MEDEIROS, 2011) A partir do exposto, pode-se questionar: As ontologias são úteis às humanidades digitais? De que maneira as ontologias estão a serviço das Humanidades Digitais? Certamente essas questões merecem um grande espaço de debate, um olhar crítico e reflexivo, considerando que as ontologias representam uma visão de mundo, são manipuláveis, porém relativamente estáveis, e as Ciências Humanas comportam uma complexidade que parece difícil simplificar, simbolizar, representar. Nesse seguimento, relativamente ao aspecto da representação, Santos (2010), com base em Davis et al (1993), enumera cinco funções que uma representação pode desempenhar: 1) Uma representação do conhecimento é, acima de tudo, um substituto para as coisas, usado para possibilitar que uma entidade determine consequências pensando e não agindo, isto é, raciocinando sobre o mundo, e não, agindo nele; 2) É um conjunto de compromissos ontológicos, uma resposta para a questão: Em que termos se pensa sobre o mundo? 3) É uma teoria fragmentária de raciocínio inteligente, expressa em termos de três componentes: a) a concepção fundamental da representação de raciocínio inteligente; b) o conjunto de inferências que a representação sanciona; c) o conjunto de inferências que recomenda; 4) É um meio para uma computação pragmática eficiente, ou seja, o ambiente computacional em que o pensamento é concebido. Uma contribuição para essa eficiência pragmática é dada pela orientação que uma representação fornece na organização da informação, para facilitar que sejam tomadas as inferências recomendadas; 5) É uma forma de expressão humana, a língua com a qual dizemos coisas acerca do mundo. Ainda de acordo com Santos (2010), cada uma das funções mencionadas requer um tipo diferente de representação, um conjunto diferente de propriedades. 173 Organização do conhecimento em Humanidades Digitais: breves reflexões Davis et al (1993), citados por Santos (2010), argumentam que a única representação do objeto completamente fiel é o próprio objeto, e isso serve tanto para a representação de objetos tangíveis quanto para noções abstratas, processos, credos ou categorias, que podem ser descritas dentro de uma entidade para que se possa raciocinar sobre ela. A autora ressalta, ainda, que selecionar uma representação significa optar por um conjunto de compromissos ontológicos. Não se trata de saber o que existe no mundo, mas de como se vê. É uma espécie de lente que determina o que pode ser visto, tornando umas partes nítidas, e outras, difusas. Portanto, ao selecionar os compromissos ontológicos, pode-se focar a atenção em aspectos do mundo que se acredita serem importantes. É nesse sentido que a ontologia assume maior relevância , pois não se trata apenas de uma linguagem de representação, mas do conjunto de conceitos relacionados e estruturados, oferecidos como uma forma de pensar sobre o mundo. Relativamente à conexão ontologias e humanidades digitais, alguns contributos referem-se a selecionar termos e identificar possíveis categorias e classificação, assim como o uso de ontologia para estudos linguísticos e terminológicos para extrair dados. Como exemplo disso, podemos citar a tese doutoral Terminology and Knowledge Representation: ceramic artefacts of al-Ândalus, de Almeida (2019), cujo objetivo foi o de estabelecer os fundamentos teórico-metodológicos para a criação de um recurso ontoterminológico com vistas à harmonização terminológica e à disseminação do conhecimento nos estudos sobre cerâmica do al-Ândalus. A pesquisa pressupôs que a terminologia é um campo interdisciplinar que articula uma dimensão conceitual baseada no conhecimento e uma dimensão linguística baseada em termos, relacionando ambas as dimensões por meio de um corpus textual especializado com uma dupla finalidade: a de apoiar a modelização do domínio e a de possibilitar a extração de termos em português e castelhano. Desse modo, considerou que uma ontologia sobre a cerâmica do al-Ândalus pode ser um suporte conceitual de um futuro recurso terminológico (ALMEIDA, 2019). ontologias e as humanidades, alguns contributos se referem à construção de ontologias, que prevê a composição de um corpus textual Outro exemplo de ontologias em Humanidades é o estudo de Zöllner-Weber (2009), que trata da descrição de personagens literários realizada por meio de uma ontologia. Várias teorias de personagens literários são combinadas para criar uma base de descrição formal usando uma ontologia. O objetivo foi de representar a estrutura de informação mental de um leitor e o que ele tem em mente ao ler um livro. Perguntar para um leitor o que um personagem significa não quer dizer que tipos de personagens há, mas que estrutura geral e atributos um personagem tem. Foi considerado um personagem como uma entidade cognitiva complexa na men- 174 Jacqueline Aparecida de Souza te do leitor, em vez de enfatizar metáforas ou arquétipos. Neste estudo, categorias que descrevem aspectos gerais de personagens literários formam as classes principais da ontologia, como, por exemplo, as características internas e externas e as ações em outros personagens e objetos. Os personagens são considerados como objetos individuais, que não estão ligados a papéis ou arquétipos. Ao utilizar uma hierarquia, as descrições individuais dos personagens devem obter uma base comum para comparar essas descrições. Ao usar subclasses, as categorias podem incluir características de caracteres especiais ou grupos de caracteres. Além disso, as chamadas instâncias das classes representam objetos individuais e explícitos do domínio dos personagens literários. Uma única representação mental de um personagem é modelada, como mostra a figura abaixo (ZÖLLNER-WEBER, 2009): Figura 1 - Estrutura ontológica de personagens literários Fonte: Extraído de Zöllner-Weber (2009) Esta abordagem tem como foco a descrição individual, a pré-etapa da interpretação. Encontrar os mesmos padrões revelados em diferentes descrições pode ser considerado senso comum. Ao analisá-los, podem ser encontradas semelhanças com base na formação cultural dos leitores ou nas tradições de escrita e de leitura (ZÖLLNER-WEBER, 2009). Outros aspectos relevantes em relação às ontologias são o raciocínio lógico e as relações semânticas. O primeiro, por ser útil para verificar a consistência durante seu desenvolvimento e permitir a fusão semiautomática de ontologias de domínio, assim como para deduzir informações. E o segundo, porque, como as relações semânticas são “associações significativas entre dois ou mais conceitos, entidades ou 175 Organização do conhecimento em Humanidades Digitais: breves reflexões conjuntos de entidades (KHOO; NA, 2006), assumem um papel relevante nas humanidades, uma vez que os dados textuais costumam ser fundamentais. Em síntese, os aspectos linguísticos e conceituais, as estruturas de representação do conhecimento e o raciocínio lógico conectam-se com as práticas de humanidades digitais. No âmbito da OC, destacam-se as ferramentas computacionais para editar os sistemas de organização do conhecimento, assim como ferramentas para coletar, compor e analisar corpus, que são processos necessários para construir ontologias. 4 Considerações finais Este texto não teve a pretensão de se aprofundar nos aspectos associados que conectam as humanidades digitais e a organização do conhecimento, mas fazer alguns apontamentos e identificar pontos que carecem de ampla e profunda discussão, sendo considero a início de uma discussão que poderá ser mais explorado em trabalhos futuros. De todo modo, observou-se que há uma variação terminológica acerca de Humanidade Digitais, mas que são uma nova expressão para a pesquisa acadêmica e que talvez no âmbito da Ciência da Informação, nomeadamente na subárea de organização do conhecimento a intersecção da computação às práticas profissionais não represente uma novidade, considerando que, em maior ou menor grau, sempre dialogou-se com a computação com vista à aprimorar o desenvolvimento dos SOC, para a indexação automática etc. Adicionalmente, no centro das práticas das humanidades digitais, consoante aos sistemas de organização do conhecimento emergentes em ambientes digitais, como as ontologias e as folksonomias, encontram-se a colaboratividade e o compartilhamento, uma característica comum entre essas áreas, seja para construir ferramentas computacionais seja para usá-las, dando suporte às pesquisas acadêmicas em Humanidades. Ainda, consoante a OC e HD, apoiando-se nos apontamentos de Pando (2018) a organização do conhecimento deve ser interpretada como parte do contexto social, cultural em que não cabe mais estrutura fechada e linear, em que os aspectos sociais não são significativamente considerados, devendo-se, enquanto ontologistas revisar a posição de buscar encaixar os seres em sua respectiva classe biológica, e aproximar-se mais da lógica do etnógrafo, mais próximo de saber sobre o funcionamento das comunidades. Deste modo, as ontologias, sendo um instrumento da pós-modernidade em organização do conhecimento, estabelecem forte conexão com as práticas de humanidades digitais. 176 Jacqueline Aparecida de Souza Referências ALMEIDA, Bruno Filipe Aguiar Ribeiro. Terminology and knowledge representation: ceramic artefacts of al-Andalus. 2019. Tese (Doutorado em Linguística) – Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 2019. 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Contudo, para o autor, a charge, a caricatura e o cartum são tipos de desenho que expressam a realidade de um modo próprio e através de intenções específicas para o objeto que abordam. Em estudo anterior, eu analisei essas palavras visando a identificar semelhanças e diferenças entre esses desenhos de humor. O foco investigativo foi o conceito de charge a fim de diferenciá-la dos demais desenhos. O estudo apoiou-se em uma análise de usos consolidados dessas palavras a partir de dicionários gerais de língua e de discussões de chargistas, especialistas e estudiosos. Hoje, eu avalio que a metodologia adotada é profícua para análise de palavras, mas me pergunto sobre a pertinência de classificar desenhos artísticos em frente a uma crescente tendência para a hibridização de códigos de diferentes gêneros do discurso. Eu ainda não tenho resposta para essa questão, porém, neste texto, eu pretendo desenvolver uma reflexão sobre alguns dos esforços de classificação desses gêneros, bem como indicar outros caminhos possíveis. 2 Desenhos de humor na teoria de gêneros Tanto as culturas orais quanto as culturas escritas dispõem de formas de transmissão de conhecimento a fim de preservá-lo para usos futuros e comunicá-lo às próximas gerações. As músicas, as histórias, as genealogias, as poesias, os hinos, os rituais e as lendas, entre outras, são exemplos de formas de preservação do conhecimento utilizadas pelas culturas orais. As culturas escritas, por sua vez, utilizam listas, 1 Bibliotecário na Universidade Federal Fluminense (UFF). Doutor em ciência da informação pela Universidade de São Paulo (USP). E-mail: [email protected] Caricatura, cartoon e charge livros, jornais, mapas, diários, relatórios, manuais, cartas e e-mails, entre tantos outros meios, para transmitir o seu conhecimento às próximas gerações (ANDERSEN, 2008). Essas formas de comunicação pertencem ao que McGarry (1999, p. 64) chama de sistema de armazenamento da informação. Segundo o autor, “sem este mecanismo imprescindível cada nova geração teria que reaprender do início todos os conhecimentos e habilidades tão arduamente adquiridos por seus antepassados ao longo do tempo”. Andersen (2008, p. 339, tradução nossa) explica que “algumas formas de comunicação são partes inerentes da organização social de uma cultura porque elas estruturam e sustentam os meios e os modos de comunicação institucionalizados na sociedade”. Segundo o autor, o conceito que cobre esta variedade de formas de comunicação é o de gênero (genre). Andersen dá ênfase aos gêneros não ficcionais, uma vez que estes mantêm maior relação com as atividades humanas, com a organização social bem como com os meios de comunicação. Beghtol (2001) afirma que tipologias são desenvolvidas rotineiramente em todas as áreas do conhecimento e em diferentes comunidades de atuação. Para a autora, a discussão de gêneros consiste em uma questão de atividade classificatória, mais especificamente, da divisão de alguma coisa inteira em tipos de coisa. Dessa forma, o esforço de classificação de gêneros pode ser considerado uma atividade do escopo da organização do conhecimento. Entretanto, a compreensão sobre gêneros da autora é limitada ao tipo textual, ou seja, como o texto se apresenta, excluindo dele a dimensão social. Para Bakhtin, gêneros se referem a tipos relativamente estáveis de enunciados, produzidos em cada esfera de comunicação (lugar social dos interlocutores que são caracterizados pelo conteúdo temático, estilo e tipo de composição, adotados em função de uma situação determinada por parâmetros relacionados à finalidade, ao receptor e ao conteúdo (BAKHTIN, 1979). Alguns pesquisadores defendem a contribuição da compreensão de gêneros para a ciência da informação. Mollica e Guedes (2013) sugerem que o conhecimento sobre gêneros discursivos permite a compreensão dos fenômenos de produção, de organização, de circulação e de uso da informação. Hjørland (2002) afirma que os gêneros existem apenas quando os indivíduos de determinado domínio estão organizados, isto é, quando surge uma comunidade discursiva organizada. Este autor acrescenta que os gêneros refletem a atividade desse domínio discursivo. Nessa mesma direção, os gêneros são relacionados por Andersen (2008) às atividades humanas e às organizações sociais. Esse mesmo autor demonstra que o conceito de gênero é bastante explorado nos estudos da informação e defende que a ciência da informação, em sua interdisciplinaridade, não apenas deve utilizá-lo, mas também deve contribuir para o desenvolvimento de teorias de gênero. 182 Thulio Pereira Dias Gomes É possível o questionamento sobre a validade do esforço de classificar os gêneros de desenhos de humor. Se a compreensão de classificação for de “segmentação espacial, temporal ou espaço-temporal do mundo” (BOWKER; STAR, 2000, p. 10), é razoável pensar na possibilidade de definir os limites exatos de charge, caricatura e cartum e colocá-las em “caixinhas”. Todavia, o objetivo não é separar a charge, caricatura e cartum entre si, tampouco evitar a possibilidade de mistura de gêneros, que sempre foi reconhecida por estudiosos. Derrida (1980), por exemplo, apresenta um trabalho sobre a lei de gênero. O autor afirma que os gêneros não podem ser misturados, porque merecem um voto de obediência, de compromisso e de fidelidade. O autor fala que a lei de gênero é a lei da pureza. Em seguida, Derrida desmente essa afirmação, ao falar que a lei da pureza é impossível de ser praticada, de modo que é impossível não misturar os gêneros. Então, segundo Derrida, é possível falar de uma lei da lei de gênero, que seria a lei da impureza e o princípio da contaminação. Para Derrida, o grande enigma dos gêneros é trabalhar com seus limites, isto é, até que ponto um gênero não pode ser contaminado por outro gênero é a questão proposta pelo filósofo francês. No âmbito do jornalismo, Marques de Melo (1985) reconhece a dificuldade de definir gêneros nas mídias, porém destaca a importância desse esforço. Nas palavras do autor, classificar gêneros jornalísticos é o maior desafio do jornalismo, como campo de conhecimento, é, sem dúvida, a configuração da sua identidade enquanto objeto científico e o alcance da autonomia jornalística que passa inevitavelmente pela sistematização dos processos sociais inerentes à captação, registro e difusão da informação da atualidade, ou seja, do seu discurso manifesto. (MARQUES DE MELO, 1985, p. 85). As utilidades de estabelecer os gêneros jornalísticos são muitas. Gêneros são úteis para os leitores na identificação das formas e dos conteúdos dos jornais. Gêneros favorecem o diálogo entre o jornal e o leitor, uma vez que é através dos hábitos deste que o primeiro modifica seu conteúdo. Gêneros também favorecem a identificação da intenção do conteúdo jornalístico, seja de informar, seja de opinar, de interpretar ou de divertir. E daí poderiam ser mencionadas diversas outras vantagens. Ao considerar a relação dialógica dos gêneros jornalísticos, Marques de Melo (1985) os compreende como fenômenos históricos. Para o autor, até mesmo os efeitos da globalização sobre o jornalismo não eximem os gêneros da historicidade. Nas palavras do autor, 183 Caricatura, cartoon e charge se os gêneros são determinados pelo estilo e este depende de uma relação dialógica que o jornalismo deve manter com seu público, apreendendo seus modos de expressão (linguagem) e suas expectativas (temáticas), é evidente que a sua classificação restringe-se a universos culturais delimitados. Por mais que as empresas jornalísticas assumam hoje uma dimensão transnacional em sua estrutura operativa, permanecem, contudo, as especificidades nacionais ou regionais que ordenam o processo de recodificação das mensagens importadas. Tais especificidades não excluem as articulações interculturais que muitas vezes subsistem através das línguas e são prolongamentos do colonialismo. (MARQUES DE MELO, 1985, p. 39-40). Uma vez que os gêneros jornalísticos são demarcados historicamente no tempo e no espaço, sua classificação universal é utópica. Em cada lugar, os conteúdos jornalísticos se configuram em classificações diferentes. Assim, é possível dizer que as classificações de gênero precisam ser constantemente adaptadas da melhor forma possível em cada contexto. Uma consequência dessa característica é o surgimento de gêneros e de subgêneros com o passar do tempo. Gêneros podem surgir de acordo com as demandas do público e com a evolução das linguagens jornalísticas. Outra possibilidade é a mudança de função ou de estrutura. Por exemplo, o conteúdo publicitário nos jornais se reconfigura aos produtos do mercado, às demandas do público e aos recursos tecnológicos. Portanto, uma classificação de gêneros só é válida para um momento e um lugar específico na história. Diversos estudos de pesquisadores liderados por José Marques de Melo demonstram as variações históricas dos gêneros jornalísticos (FERREIRA, 2012). O que era chamado de artigo, no Chile, na década de 1980, provavelmente não é o que era chamado por artigo no Brasil naquela época, tampouco o que é considerado artigo pelos dois países hoje em dia. Outro exemplo são as ilustrações dos jornais do século XIX, que podem ser chamadas de charges, hoje, sem que seus autores tivessem essa intenção. No contexto da classificação dos gêneros jornalísticos, a charge, a caricatura e o cartum podem ser classificados como gênero opinativo, ilustrativo ou diversional, a depender da proposta de classificação (MARQUES DE MELO, 1985; MARQUES DE MELO; ASSIS, 2010, p. 26; MEDINA, 2001). Porém, os desenhos de humor poderiam facilmente ser classificados em mais de uma dessas categorias. Daí nos vemos diante a inclinação a uma mistura dos gêneros. Em meu trabalho de conclusão de curso, propus uma definição de charge em uma perspectiva aproximada da teoria dos gêneros. A definição foi inspirada nos pontos de concordância em Gawryszewski (2008), Flôres (2002) e Rabaça e Barbo- 184 Thulio Pereira Dias Gomes sa (2002). Assim, chegou-se à charge como “um gênero discursivo de uso híbrido das linguagens verbal e imagética, caracterizado pela temporalidade marcada pela sátira e pela crítica referentes a determinado evento, em geral de natureza política” (GOMES, 2013, p. 26-27). Alguns anos depois, é impossível não reconhecer limites desse esforço de uma definição de charges, apesar de ainda manter-se útil para identificá-las. Todavia, podemos transpor a dimensão textual para a discursiva a fim de abarcar uma gama maior de elementos enunciativos. Além disso, podemos acrescentar o gesto como um dos códigos da linguagem híbrida da charge. O gesto está tanto na expressão dos personagens quanto na própria expressão do narrador e do chargista. Então, a charge caracteriza-se pelo hibridismo das linguagens imagética, gestual e verbal. Figura 1. Única área com recursos inesgotáveis (Carol Ito) Fonte: @carolito.h (instagram) 3 Desenhos de humor na língua corrente Em minha dissertação de mestrado, analisei o que pode ser denominado como charge, caricatura e cartum pelos falantes comuns da língua corrente. No estudo, foram consideradas as origens de cada uma dessas palavras além de uma confrontação com os étimos próximos nas línguas francesa, italiana e inglesa, bem como com as adaptações atuais. O estudo apoiou-se em verbetes dos dicionários gerais 185 Caricatura, cartoon e charge de cada uma das línguas. Os resultados indicaram aproximações semânticas entre os empréstimos charge, caricatura e cartum e suas respectivas palavras de origem estrangeira, ocorrendo, todavia, adaptações em língua portuguesa. Por exemplo, a noção italiana de caricatura está próxima ao entendimento lusófono de caricatura, estando ambas associadas à ideia de exagerar determinadas características de algo. No entanto, para cada uma dessas palavras, o significado em português atribui uma especificidade ao desenho (GOMES, 2015). O estudo também indicou que apenas no português brasileiro coexistem essas unidades lexicais usadas para designar diferentes tipos de desenho. As consultas aos dicionários gerais de língua não permitiram identificar as motivações desses empréstimos, de modo que não foi possível reconhecer o fator ou os fatores que confluíram para a incorporação de valores diferentes de seus sistemas de origem na língua portuguesa falada no Brasil. Entretanto, é possível dizer que as diferenças entre os significados pelos respectivos usos em sistemas linguísticos de origem desses empréstimos são insuficientes para estabelecer as diferenças necessárias para esta pesquisa. Em tal estudo, porém, há um cuidado com a imprecisão conceitual e terminológica. O alerta sinaliza a necessidade de prudência ao transpor essas palavras para outros idiomas, de modo que não pode ser dispensado o entendimento das especificidades de cada um dos tipos de desenhos de humor. Todavia, será mesmo necessária tanta cautela para distinguir esses desenhos de humor no uso corrente da língua? Conforme Dicionário Houaiss da língua portuguesa, a charge é um substantivo feminino que denota um desenho humorístico, com ou sem legenda ou balão, geralmente veiculado pela imprensa e tendo por tema algum acontecimento atual que comporta crítica e focaliza, por meio da caricatura, uma ou mais personagens envolvidas. Segundo o dicionário, charge pode significar caricatura ou cartum. O étimo próximo de que provém charge é a palavra francesa charge, que aparece no século XII, com o significado nuclear de carga. Em 1680, charge, por extensão, significou o que exagera o caráter de alguém ou de algo para torná-lo ridículo, uma representação exagerada e burlesca, uma caricatura. Charge é uma derivação regressiva de charger, que significa carregar, e tem origem no baixo latim caricâre (HOUAISS; VILLAR, 2001). Caricatura é um substantivo feminino e pode assumir quatro significados. Primeiro, caricatura pode referir-se a um desenho de pessoa ou de fato que, pelas deformações obtidas por um traço cheio de exageros, se apresenta por meio de forma de expressão grotesca ou jocosa. Em segundo, em um sentido figurado, caricatura pode ser uma reprodução grotesca de alguma coisa. Em terceiro, também uma figuração, 186 Thulio Pereira Dias Gomes pode-se referir a um indivíduo de aparência ou de maneiras ridículas. Na área do saber e do fazer teatral, caricatura é uma representação em que figuram pessoas e se apresentam caracteres e fatos de maneira grotesca e cômica. O dicionário ainda apresenta caricatura como homônimo de uma flexão do verbo caricaturar. A datação de caricatura remonta a 1836, quando foi incluída na nominata da obra lexicográfica de Constâncio (1836). O étimo próximo de caricatura é a palavra homógrafa italiana caricatura. Em 1188, caricatura aparece com significado nuclear de ato ou efeito de carregar. Caricatura tem origem em caricatura do latim medieval de Veneza, que, por sua vez, vem de caricaturum, particípio passado de caricare, derivado de carrus. Em fins do século XVII, caricatura passa também a significar retrato ou escrito que, com intenção cômica ou satírica, acentua até a deformação os traços característicos do modelo (HOUAISS; VILLAR, 2001). Cunha (1982), citado por Houaiss e Villar (2009), vê influência do francês caricature, que aparece em 1749 e significa uma reprodução grotesca através do desenho ou da pintura e vem do italiano caricatura. De acordo com o Dicionário Houaiss da língua portuguesa, cartum é um substantivo masculino que pode assumir dois significados. Na área do saber e do fazer dos meios de comunicação, cartum é um desenho humorístico ou caricatural, espécie de anedota gráfica que satiriza comportamentos humanos, geralmente destinado à publicação jornalística. De uma forma mais específica, este desenho pode dizer respeito à história em quadrinhos, geralmente humorística. Na área do cinema, cartum significa um desenho animado e, de uma forma mais específica, uma vinheta cômica. O primeiro registro conhecido da palavra cartum na língua portuguesa é de 1962, mas o dicionário indica desconhecer onde esse aparecimento aconteceu. A etimologia de cartum remete a uma adaptação do inglês cartoon. O étimo próximo aparece em 1671 como um esboço ou um modelo de desenho em cartão. Em 1863, cartoon aparece como desenho humorístico ou satírico veiculado, em geral, por jornais e por revistas. Um pouco mais tarde, aparece animated cartoon com o significado nuclear de desenhado animado. Cartoon vem do italiano cartone, aumentativo de carta, que significa papel (HOUAISS; VILLAR, 2009). Nas definições propostas nos verbetes de Houaiss e Villar (2009), é possível observar o caráter de desenho humorístico como ponto de intersecção entre a charge, a caricatura e o cartum. Por outro lado, o tema é ponto de distinção entre os três tipos de desenho. A caricatura apresenta traços exagerados de alguém ou de alguma coisa, enquanto a charge faz referência a algum acontecimento atual e o cartum, ao comportamento humano. 187 Caricatura, cartoon e charge Figura 2. “Família”, por Laerte (s. d.) Fonte: @laertegenial 4 Desenhos de humor por especialistas O chargista Chico Caruso, em uma entrevista, explicou a diferença entre caricatura, charge e cartum: Para explicar a diferença entre cartum e charge, eu faço uma analogia com a lente de uma câmera fotográfica, ou de uma filmadora. Se você foca no infinito, se você pega o que é universal – por exemplo, uma bomba atômica, um naufrágio, uma coisa que o cara pode entender tanto aqui quanto no Paquistão –, aí você tem o que a gente chama de cartum, o cartum clássico, que é universal. Se você pega o que a gente chama de plano americano, que mostra a realidade da cintura para cima, só as figuras que você consegue reconhecer, é o que chamo de charge. É como uma aproximação da câmera, uma realidade que só será entendida por quem a conhecer. Eu não entendo uma charge argentina; e eles não entendem uma brasileira porque não conhecem as figuras e não conhecem a situação. E se você der um close, aí você tem a caricatura, só a cara da pessoa. Aí o desenho vai ser tão mais compreensível quanto mais conhecida for aquela pessoa (CARUSO apud SOUZA, 2002, p. 14-15). 188 Thulio Pereira Dias Gomes A fala de Caruso é uma evidência de como a charge, a caricatura e o cartum são vistos pelo próprio artista. É interessante notar que o chargista não iguala as diferentes manifestações de arte. A analogia a uma lente de câmera fotográfica sugere que, para o chargista, a diferença entre cartum, charge e caricatura está no foco, ou seja, o que é destacado no desenho. Outro aspecto relevante na fala de Caruso é o fato de o chargista se valer da experiência prática para chegar a uma conclusão a respeito das diferenças entre os desenhos de humor. Em um estudo teórico sobre charge, caricatura e cartum, Teixeira (2005, p. 22), sustenta que, independente do que os separam quanto a gêneros, objetivos e linguagens, a charge, a caricatura e o cartum compartilham de um mesmo problema. Trata-se da “produção de uma identidade capaz de identificar [...] a realidade com a ficção, a verdade, com a fantasia e o sujeito, com o personagem”. O autor declara se tratar, para cada um, de produzir e de projetar nos personagens fictícios uma identidade do sujeito que corresponda perfeitamente aos sujeitos reais dos quais se originam. O autor propõe a identidade por diferença como própria da charge. A identidade por dessemelhança, segundo o autor, é inerente à caricatura. Por sua vez, a identidade coletiva é buscada no cartum. De acordo com Teixeira (2005), a busca por uma identidade é o fundamento comum a partir do qual a charge, a caricatura e a cartum significam as ações objetivas e usuais de sujeitos reais. Tal produção de identidade não é confirmada por conteúdos de racionalidade. Ao contrário, para o autor, “charge, caricatura e cartum são discursos sem razão, porque se debruçam sobre sujeitos através do humor, descartando [a razão] como mediadora, intermediária ou condição necessária” (TEIXEIRA, 2005, p. 24). O autor sugere a construção de uma identidade pelo humor como uma negação necessária da razão como condição única e exclusiva de significado. Teixeira (2005) considera inerente à charge a identidade por diferença. Na charge, é construído um personagem que não se assemelha com o sujeito real do qual deriva. Ao contrário, é a relação de diferença entre personagem e sujeito real que aprofunda a mútua identificação. O autor afirma ser a diferença o que torna possível o personagem como outro do sujeito real. A identidade por dessemelhança é a produzida na caricatura. Teixeira (2005, p. 94) adverte que não se confunda dessemelhança com o contrário de semelhança. A dessemelhança, que pode ser entendida como falta de semelhança, no pensamento do autor, deve ser concebida como semelhança por outros meios. Por meio da dessemelhança, a caricatura se constitui em um discurso sem razão na medida em que produz semelhança através de dessemelhanças. Dessa forma, a função da dessemelhança na caricatura é a produção de “verossimilhança – ou inverossimi- 189 Caricatura, cartoon e charge lhanças convincentes – entre as partes que a constituem”. O autor conclui que “a dessemelhança, então, é uma extravagante semelhança”. É possível, então, dizer que a caricatura é um close dessemelhante do sujeito real. Para isso, a caricatura se apropria do sujeito, a partir de características marcantes. Teixeira (2005) afirma que a caricatura é produzida por cortes periféricos e superficiais na exterioridade corporal do próprio sujeito para reproduzi-lo no mesmo sujeito. De acordo com o autor, nessa relação de superficialidade e de exterioridade entre o sujeito real e a caricatura, o traço os torna iguais entre si. Quanto mais aprofundado o traço na percepção do essencial no sujeito, mais a sua superfície é ressaltada. Em outras palavras, a reprodução na caricatura apresenta traços excessivos e exagerados em relação ao modelo original. Desse modo, serão traços, como a orelha de abano, o penteado eriçado, o nariz empinado, os dentes grandes, os olhos fundos ou a barriga proeminente, que serão exagerados para provocação do riso de quem vê a caricatura. Quanto mais sensível o caricaturista for ao que é essencial no sujeito, mais estes exageros da exterioridade identificam a caricatura com o modelo original. O cartum é caracterizado pela produção de identidade coletiva. Segundo Teixeira (2005, p. 23), os personagens são criados, neste tipo de desenho, à margem de qualquer sujeito real para, assim, evidenciar temas passíveis de serem apropriados consensualmente. Para o autor, não há realidade no universo do cartum, porque, nele, o sujeito é imaginário e a realidade, fantasia. Os temas do cartum não se referem, necessariamente, a sujeitos ou a realidades individuais e particulares. Cada personagem no cartum é um coletivo de sujeitos particulares. Teixeira (2005, p. 102) apresenta o cartum como “um traço de reflexão e de humor que problematiza sujeitos reais, através de personagens e de temas fictícios”. O cartum produz “verdades” através de situações imaginárias, com objetivos definidos, geralmente, políticos, existenciais ou comportamentais. De acordo com Teixeira (2005, p. 102), o cartum é o mais complexo entre os três gêneros de desenhos de humor analisados. O autor argumenta que o cartum “constrói personagens inverossímeis, a partir de um mundo sem sujeito e sem real”. Teixeira explica que o cartum não tem compromisso com racionalidade dos personagens ou das histórias que conta, apresentando enredos impossíveis e tipos improváveis. É o equilíbrio entre o avesso e o real que sustenta a identificação dos personagens com sujeitos e situações reais. Tal como a charge, o cartum propõe uma síntese da política, da realidade e da cultura, sob as perspectivas da reflexão e do humor. O que o distingue da charge e da caricatura é que, em vez de focar na singularidade de um sujeito, o cartum dispensa o fato real e a cara evidente e se vale de uma miríade de possibilidades de personagens fictícios para problematizar o coletivo. O personagem do cartum 190 Thulio Pereira Dias Gomes “é o possível de uma sociedade, de políticas, comportamentos, desejos e fantasias, conteúdos, enfim, expressos por uma variedade – imaginável e inimaginável – de tipos que não precisam ser, necessariamente, ‘humanos’” (TEIXEIRA, 2005, p. 104). A análise das noções de charge por especialistas aponta que a interseção entre a charge, a caricatura e o cartum é a produção de identidade por meio do humor, de modo que esses desenhos negam a razão para produzir verdades sobre sujeitos reais. No entanto, cada uma dessas imagens produz identidade segundo determinada especificidade. A charge produz a identidade por diferença, a caricatura, identidade pela dessemelhança e, por sua vez, o cartum, a identidade coletiva. Figura 3. “Eu invoco as instituições democráticas”, por Ribs (2020) Fonte: @o.ribs 5 Algumas considerações Reagindo às provocações de Foucault (1999), em As palavras e as coisas, reconhecemos que a ordem a que se chegou para os desenhos de humor não é a única possível, tampouco a melhor. Por isso, não se deixa de criticar a ordem estabelecida e aprisionada pelas palavras. Não se deve ignorar que as imagens, nas possibilidades de sua linguagem, de produções de sentido, de construções de narrativa e de intergenericidade, são muito mais que os nomes charge, caricatura, cartum ou que qualquer outro nome de tipo de imagem pode designá-las. Tais unidades linguísticas e terminológicas podem funcionar como redutores das possibilidades de encontrar charge, caricatura, cartun, chargecaricatura, chargecartum, caricaturacartum, chargecaricaturacartum e chargequalqueroutracoisa. 191 Caricatura, cartoon e charge Figura 4. Interseções entre caricatura, cartum e charge Fonte: Gomes (2015, p. 154). Outro caminho possível é apresentado pela pragmática. Em vez de buscar a definição de verdades e consensos a respeito das palavras, busca-se reconhecer que charge, caricatura e cartum podem variar conforme o grupo de usuários da língua e os diferentes contextos de práticas de linguagem. Assim, podemos seguir a dica de Saldanha (2013) para uma abordagem pragmática, em que o uso da linguagem é elemento fundador da significação. Referências ANDERSEN, Jack. The concept of genre in information studies. Annual review of information science and technology, v. 42, cap. 8, p. 339-367, 2008. BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. In: _______. 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Organizada por Gustavo Saldanha, Tatiana de Almeida e Naira Silveira, a coletânea é um encontro de pesquisadores dedicados à luta social através das ferramentas científicas da organização do conhecimento, integrando outras frentes nacionais e internacionais de construção de uma via crítica para as práticas de produção, uso e disseminação da informação. EM COOPERAÇÃO