Teorias Críticas em
Organização do Conhecimento
© 2021 Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT)
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Esta publicação tem a cooperação da UNESCO no âmbito do projeto “Ampliação e Modernização das Ações do IBICT relacionadas às Atividades de Coleta, Armazenamento, Sistematização,
Análise, Disseminação e Preservação de Dados e Informações Relativos à Ciência, Tecnologia e
Inovação” (Prodoc 914BRZ2005). As indicações de nomes e a apresentação do material ao longo
deste livro não implicam a manifestação de qualquer opinião por parte da UNESCO a respeito da
condição jurídica de qualquer país, território, cidade, região ou de suas autoridades, tampouco
da delimitação de suas fronteiras ou limites. As ideias e opiniões expressas nesta publicação são
as dos autores e não refletem obrigatoriamente as da UNESCO nem comprometem a Organização.
COLEÇÃO PPGCI
50 ANOS
Conselho Executivo
› Gustavo Saldanha (Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia – IBICT;
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – Unirio)
› Paulo César Castro (Escola de Comunicação – ECO/UFRJ)
Conselho científico DA COLEÇÃO
› Cecília Leite (Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia - IBICT)
› Miguel Ángel Rendón Rojas (Universidad Nacional Autónoma de México - UNAM)
› Muniz Sodré (Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ)
› Ivana Bentes (Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ)
› Naira Christofoletti Silveira (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – Unirio)
› Rafael Capurro (Unesco)
COMITÊ Científico DO LIVRO
› Catalina Naumis Peña (UNAM / México)
› Marianna Zattar Barra Ribeiro (UFRJ)
› Giovana Deliberali Maimone (USP)
› Suellen Oliveira Milani (UFF)
PARECERISTAS AD HOC DOS CAPÍTULOS
› Adriana Suárez Sánchez (UNAM - México)
› Andre Vieira de Freitas Araujo (UFRJ)
› Gabrielle Francinne de S. C. Tanus (UFRN)
› Jenny Teresita Guerra González (UNAM México)
› Linair Maria Campos (UFF)
› Maria Luiza de Almeida Campos (UFF)
› Rafael Aparecido Moron Semidão (UNESP)
› Robson Santos Costa (UFRJ)
› Vânia Mara Alves Lima (USP)
› Alessandra Rodrigues da Silva (Embrapa)
›Cibele Araújo Camargo Marques dos Santos (USP)
› Hugo A. Figueroa (UNAM - México)
› Jonathan Hernández Pérez (UNAM - México)
› Luciana de Souza Gracioso (UFSCar)
› Marivalde Moacir Francelin (USP)
› Roberta Cristina Dal'Evedove Tartarotti
(UNICAMP)
› Vânia Lisboa da Silveira Guedes (UFRJ)
Teorias Críticas em
Organização do Conhecimento
Gustavo Saldanha
Tatiana de Almeida
Naira Silveira
organizadores
Rio de Janeiro
2022
Capa: Fernanda Estevam
Ilustração: GK Vector (br.freepik.com)
Projeto Gráfico: Paulo César Castro
Normalização e catalogação: Selo Nyota
Diagramação: Fernanda Estevam
Essa obra tem o financiamento do Conselho Nacional para o Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), da Fundação Carlos Chagas de Apoio à Pesquisa Científica do
Estado do Rio de Janeiro (Faperj) e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior – Brasil (CAPES).
T314
Teorias Críticas em Organização do Conhecimento / Gustavo Silva Saldanha,
Tatiana de Almeida, Naira Silveira, organizadores. – Rio de Janeiro: IBICT, 2022.
194p. – (Coleção PPGCI 50 anos)
Inclui Bibliografia.
Disponível em: https://ridi.ibict.br/
ISBN 978-65-89167-55-6 (digital)
1. Ciência da Informação. 2. Organização do Conhecimento. 3. Teoria Crítica.
I. Saldanha, Gustavo Silva, org. II. Almeida, Tatiana de, org. III. Silveira, Naira
Christofoletti, org.
CDD 020
Ficha Catalográfica: Priscila Fevrier – CRB 7-6678
Projeto editorial em colaboração com o Programa de Educação Tutorial (PET) da Escola de
Comunicação (ECO-UFRJ): Paulo César Castro (tutor) / aluno(a)s: Carolina Torres, Dandara
Campello, João Maurício Maturana, Juliana Sorrenti, Kethury Santos, Lianne Henriques, Mariana da Paz, Moniqui Frazão, Robertha Braga, Sabrina Oliveira e Sara Maluf.
Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação (PPGCI), desenvolvido
pelo Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia, do Ministério
da Ciência e Tecnologia e Inovação (IBICT/MCTI) em convênio com a Escola de
Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO/UFRJ).
Rua Lauro Muller, 455 - 4° andar
Botafogo - Rio de Janeiro - RJ
http://www.ppgci.ufrj.br
A pesquisa que resulta nesta publicação obteve o fomento de
CNPq
FAPERJ
Capes
& com o apoio de
UNESCO
IBICT
CENACIN
UNIRIO
UFRJ
A todas as pessoas dedicadas
ao pensamento crítico em
Organização do Conhecimento
que acreditam em sua
práxis revolucionária.
It boils down to “question everything.”
Questioning and critiquing are not the
same as rejecting and criticizing.
Given the power of classification and
other instruments of knowledge
organization (KO), I believe that
researchers have a responsibility to
reveal what is behind/beneath
our practices. (OLSON, 2018, p. 491).
OLSON, Hope. Entrevista à Hope
Olson. Liinc em Revista, Rio de
Janeiro, v.14, n.2, p. 491-494, nov. 2018.
Sumário
13
Apresentação
Tatiana de Almeida, Naira Silveira, Gustavo Saldanha
15
Prefácio
Profa. Dra. Catalina Naumis Peña
21
Da Teoria Crítica às Teorias Críticas: o percurso das
reivindicações aplicadas na Organização do Conhecimento
Daniel Martínez-Ávila e Mariana Rodrigues Gomes de Mello
35
A bibliografia e a literatura de povos e comunidades
tradicionais no Brasil
Elisa Campos Machado, Gustavo Saldanha
55
Termos fronteiriços no domínio gênero e sexualidade na
Organização do Conhecimento
Fabio Assis Pinho
73
Dorothy Porter Wesley e a organização do conhecimento:
um olhar a partir da Teoria Crítica Racial Duboisiana
Franciéle Carneiro Garcês da Silva
91
Teorias críticas utilizadas por autores latino-americanos em
organização do conhecimento
Dirnele Carneiro Garcez e Rodrigo de Sales
109 Teoria crítica da colonialidade na Organização do
Conhecimento
Graziela dos Santos Lima
133 Ranganathan no país dos brinquedos ‘:’ colon, uma
classificação, uma filosofia, um brinquedo
Vinícios Souza de Menezes
167 Organização do conhecimento em Humanidades Digitais:
breves reflexões
Jacqueline Aparecida de Souza
181 Caricatura, cartoon e charge
Thulio Pereira Dias Gomes
Apresentação
Tatiana de Almeida, Naira Silveira, Gustavo Saldanha
Rio de Janeiro, Verão, 2021.
ste livro compõe a coleção PPGCI50 anos – UNESCO, IBICT, UFRJ, Nyota.
A coleção responde pela produção bibliográfica de um catálogo de obras
referentes ao cinquentenário do primeiro programa de pós-graduação stricto sensu
em Ciência da Informação da América Latina e Caribe (1970-2020). O jubileu é
fruto de uma travessia de reconhecimento internacional de ensino e pesquisa no
campo biblioteconômico-informacional, com a formação de centenas de pesquisadores e produção de milhares de produções científicas no percurso, a partir do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia e sua pós-graduação, em
atual acordo de cooperação com a Universidade Federal do Rio de Janeiro, grande
parceira acadêmico-científica dessa longa e rigorosa viagem ao conhecimento. O
PPGCI IBICT UFRJ celebra, pois, seu meio século de vanguarda, pesquisa e inovação
com uma coleção que reflete a dinâmica de sua produção científica para sociedade.
A obra intitulada “Teorias Críticas em Organização do Conhecimento”, organizada por Gustavo Saldanha (IBICT - UNIRIO), Tatiana de Almeida (UNIRIO) e Naira
Silveira (UNIRIO), reúne pesquisas recentes desdobradas de pós-doutoramento, de
teses e de dissertações com cenários, métodos e teorias contemporâneos dedicados
aos estudos socioculturais do domínio. A crítica, em seus mais diferentes modos de
afirmação conceitual, teórica e metodológica é aqui explicitada.
A obra reúne pesquisadores dedicados à luta social através das ferramentas
científicas da organização do conhecimento, integrando outras frentes nacionais
e internacionais de construção de uma via crítica para as práticas de produção,
uso e disseminação da informação. O quadro geral dos capítulos, deste modo, lança aos olhos das leituras ávidas por outros mundos possíveis os exercícios de representação do conhecimento como práxis: caminho de intervenção e mudança
social. Distintas teorias críticas são revisitadas ao longo da pesquisa, iluminando
circuitos reflexivos como gênero e povos e comunidades tradicionais, movimento
antirracista, Biblioteconomia negra e a produção latino-americana nas abordagens
críticas, decolonialidade, imagem, humanidades digitais e outras grandes esferas
E
Apresentação
emergentes das lentes para um pensamento libertador em e pela organização do
conhecimento.
Como parte de uma longa história de resistência e de resiliência, essa obra
precisa deixar o seu respeito a diferentes corpos. Nosso agradecimento especial à
Profa. Dra. Catalina Naumis Peña, da Universidad Nacional Autónoma de México
(UNAM), prefaciadora dessa obra e integrante do comitê científico, quem prontamente atendeu ao nosso chamado, redesenhando o contínuo e frutífero diálogo
Brasil – México no solo bravio da América Latina. Nosso agradecimento enorme às
pesquisadoras do comitê científico, Giovana Deliberali Maimone (USP), Marianna
Barra Ribeiro Zattar (UFRJ), Suellen Oliveira Milani (UFF), quem, junto de Catalina
Naumis Peña (UNAM), bem como a suas instituições públicas, que permitiram o
desenvolvimento da concepção e da realização do projeto. Nosso muito obrigado
a cada parecerista ad hoc que doou seu conhecimento para a análise rigorosa das
propostas. Por fim, e sempre, nosso agradecimento plural a todas as pessoas dedicadas ao pensamento crítico em organização do conhecimento que acreditam em
sua práxis revolucionária.
14
Prefácio
Profa. Dra. Catalina Naumis Peña1
sta obra es el resultado de la interacción, comunicación y colaboración entre profesionales de las Ciencias de la Información festejando los
50 años de los estudios de posgrado en Brasil. En esta ocasión se celebra a través de
la presentación de trabajos sobre la confluencia entre teoría crítica y organización
del conocimiento con la idea de contribuir a una vida mejor, desde la construcción
de una interacción social con los contenidos generados por la humanidad. En los
trabajos que se presentan el objetivo son los seres humanos entendidos como productores de nuevas formas de convivencia social.
La organización del conocimiento permeada durante muchos años por el positivismo rescata ahora su vocación social al buscar un conocimiento mediado por la
experiencia y las necesidades de los usuarios de la información. Se trata de buscar
una ciencia comprometida con el proceso cambiante de la vida social.
Este prefacio que se presenta aquí muestra la interacción que refleja esta obra
en la que han participado expertos no sólo de Brasil, sino de varios países. Además,
en la evaluación de los capítulos que conforman este libro entre otros, participaron
investigadores del Instituto de Investigaciones Bibliotecológicas y de la Información y profesores del Posgrado en Bibliotecología y Estudios de la Información de
la Facultad de Filosofía y Letras de la Universidad Nacional Autónoma de México.
Los capítulos revisados por expertos en las diversas temáticas tratadas avalan la
calidad de los trabajos que se presentan en este libro.
En el contexto actual la sociedad necesita una ciencia íntimamente relacionada
con las necesidades y aspiraciones del conjunto social al que se sirve. Desde las
Ciencias de la Información y más específicamente desde el análisis y representación de los contenidos documentales englobados en la Organización del Conocimiento (OC), los estudios hasta la segunda mitad del siglo pasado se centraron
en sistemas clasificatorios e indizaciones más bien universales, preconcebidas y
E
1 Instituto de Investigaciones Bibliotecológicas y de la Información (IIBI). Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM).
Prefácio
dependientes de las jerarquizaciones generalizadas que no siempre responden a
las necesidades particulares de la comunicación entre usuarios y generadores de
información y conocimiento.
La Organización del Conocimiento (OC) es una disciplina que tiene como objeto los procesos aplicados sobre el conocimiento documentado mediante el empleo de técnicas, normas, estándares, tecnologías y otros medios, a fin de optimizar
la recuperación de los contenidos tratados para ser apropiados por quienes quieran
conocerlos. Es decir, en la OC se busca vincular, sistematizar y organizar la información documental a través de diferentes métodos como jerarquizando, asociando
o relacionando a través de los temas tratados en ellos o de los datos por los cuales
pueden ser recuperados posteriormente.
Como en todas las disciplinas de orden social existen diferentes enfoques teóricos que prevalecen a lo largo de su existencia que están relacionados con diferentes
criterios acerca de la visión de los fenómenos de manera distinta. Una de las perspectivas teóricas para observar las OC es la Teoría Crítica.
La Teoría Crítica se opone radicalmente a la idea de teoría pura, que supone
una separación entre el sujeto que contempla y la verdad contemplada, e insiste en
un conocimiento que está mediado por la experiencia, tanto por las praxis concretas de una época, como por los intereses teóricos y extra teóricos que se mueven
al interior de estas. Lo cual significa que las organizaciones conceptuales, o sistematizaciones del conocimiento, en otras palabras, las ciencias, se han constituido y
se constituyen con relación al proceso cambiante de la vida social. El adjetivo que
complementa la teoría explica a grandes rasgos una visión, de hecho, el adjetivo
de “crítica” indica con claridad que tiene una posición de impugnación sobre una
teoría precedente.
Dicho de otra manera, las praxis y los intereses teóricos y extra teóricos que se
dan en determinado momento histórico, revisten un valor teórico-cognitivo. Pues,
son el punto de vista a partir del cual se organiza el conocimiento científico y los
objetos de dicho conocimiento y lo que es más importante se busca relacionar las
sistematizaciones cognoscitivas de una manera diferente a la anterior como en este
caso, con la influencia del positivismo presente y fuerte hasta la primera mitad del
siglo XX. En el caso de la OC existe una tendencia hacia sistemas cuya articulación
asociativa es muy fuerte. Ello es propio de las teorías reforzadas a fines del siglo
pasado de que el lenguaje humano es recursivo y funciona por asociación.
Surge así una aversión a los sistemas teóricos cerrados, y un gran interés por
el contexto social, sobre el cual se buscaba influir directamente a través de la filosofía. A partir del método dialéctico instrumentado por Hegel, los estudiosos de
la filosofía se preocuparon y trataron, como sus predecesores, de orientarlo en una
16
Profa. Dra. Catalina Naumis Peña
dirección materialista. Estaban particularmente interesados en explorar las posibilidades de transformar el orden social por medio de una praxis humana tradicional. Como respuesta Habermas se dedica a superar las contradicciones entre los
métodos materialistas y transcendentales en torno a una nueva teoría crítica de la
sociedad, a retomar la teoría social marxista contemplando las posturas individualistas propias del racionalismo crítico, en torno al análisis de las relaciones entre
los fenómenos socio-estructurales culturales con los psicológicos y de la estructura
económica de la sociedad moderna. (Martínez 2019, 299) (Martínez, 2019)2
El rol social que desempeña la profesión que ostenta como actividad la de organizadores de información supone reconocer no sólo lo que hay en la información
generada en la actividad investigadora o tecnológica, sino que es obligación registrar las modificaciones que se van produciendo, pero sobre todo la influencia que
puede ejercer sobre los usuarios estos conocimientos que se le transmiten.
Las Bibliotecas, los Archivos, los Centros de Documentación, los sistemas de
información en línea, no son lugares de adorno, son espacios que ostentan una intención comunicativa y formativa, con una organización de sentido de la información que contienen para fortalecer los vínculos de los lectores con las necesidades
de información. Son espacios para comprender y apropiarse de las experiencias que
transmiten los conocimientos resignificados por los profesionales de la información.
En la actualidad las Tecnologías de la Información y la Comunicación (TIC)
han supuesto una ayuda fundamental en los mecanismos de organizar la información y hacerla accesible al medio social, sin embargo, deben ser aprovechadas para
resolver los grandes retos que emergen de esa vida social. Uno de ellos es mantener
la supervivencia de la cultura y los valores engendrados a lo largo de la historia para
mejorar las condiciones de vida de los pueblos como se propugna con las teorías
vigentes.
Los países miembros de la ONU se comprometieron en septiembre de 2015
a trabajar a favor de la atención del planeta, la prosperidad, la paz, las personas y
el fortalecimiento de las alianzas. Con el título “Transformar Nuestro Mundo: la
Agenda 2030 para el Desarrollo Sostenible” se trabajó en torno a un documento
oficial que detalla los diecisiete objetivos para lograrlo.
Estos Objetivos del Desarrollo Sostenible (ODS), luego se desgranan en sesenta y nueve metas y doscientos treinta y dos indicadores y que una vez revisados
muestran la necesidad de información de calidad y servicios que la hagan accesible.
2 Martínez, D. (2019). La teoría crítica de Jürgen Habermas y la interpretación poskantiana
de Hegel. Revista de Humanidades, 39, 299-324. Obtenido de https://www.redalyc.org/jatsRepo/3212/321260114012/html/index.html
17
Prefácio
Ninguna persona o sector por si solo tiene el conocimiento necesario para consolidar el desarrollo sostenible en nuestra sociedad. Uno de los grandes desafíos de las
Ciencias de la Información es penetrar y apropiarse de los procesos sociales para
transmitir conocimiento de todas y cada una de las comunidades sociales. En la
medida que los ciudadanos obtengan nuevas oportunidades de aprender y conocer
los problemas que los aquejan su capacidad vital de respuesta se verá incrementada.
De ahí la importancia de plantear la búsqueda continua e incesante de axiomas, principios y reglas, de las que se puedan extraer algunas certezas provisorias,
pero que reflejan la búsqueda de mejores sistemas de información, más inclusivos,
que abarquen y resuelvan la transferencia de conocimiento que requieren los diversos grupos sociales. Los enfoques teóricos e históricos están relacionados con diferentes perspectivas de conocimiento, de cognición, de lenguaje y de organización
social para responder de manera diversa a la OC.
Los trabajos que se presentan en esta obra reflejan muy bien la preocupación y
respuesta de las Ciencias de la Información por la representación de los problemas
sociales en los sistemas de información.
En este sentido en uno de los estudios realizados se discute la influencia del
pensamiento colonial y sus impactos en la representación de obras de autoría colectiva indígena en los sistemas de organización del conocimiento (SOC), con la
firme intención de rescatar la corriente que revalora la obra de un sector que existe
y no debe ser olvidado.
En otro de los capítulos se analiza la propuesta de la Teoría Crítica que surge en
el contexto de la Escuela de Frankfurt y evoluciona hacia el desarrollo de múltiples
Teorías Críticas derivadas del Posestructuralismo y las implicaciones ideológicas
y científicas que presentan. El autor explica como la Teoría Crítica aplicada a la
Organización del Conocimiento ha dado lugar a uno de los principales espacios de
discusión académica para reclamar una representación respetuosa ante los grupos
y sujetos que reivindican las visiones de grupos y sujetos marginados.
En esta obra se resaltan también las teorías críticas desarrolladas por investigadores e investigadoras latinoamericanos en el campo de la Organización del Conocimiento (OC). La justificación se basa en visiones epistemológicas poscoloniales y
decoloniales en el contexto latinoamericano.
Un estudio terminológico aborda el lenguaje utilizado en la Organización del
Conocimiento para indizar contenidos sobre género y sexualidad. Es un compromiso social poner a disposición aspectos de género y sexualidad sin censura o discriminación para lo cual se hace una propuesta terminológica integral.
El racismo permeado a los Sistemas de Organización del Conocimiento obliga a enaltecer el aporte teórico-crítico de los bibliotecarios negros y bibliotecarias
18
Profa. Dra. Catalina Naumis Peña
negras en la construcción de la Organización del Conocimiento dándoles mayor
visibilidad al conjunto afroamericano que colaboró e hizo historia en el campo.
La necesidad de actualizar el campo de la Organización del Conocimiento con
una visión que refleje una posición universalista y de crítica poscolonial es otra de
las aportaciones que se hace en uno de los capítulos presentados.
El análisis de dominio es considerado en la actualidad una metodología de
trabajo muy importante en las Ciencias de la Información. Por ello, a través de
su utilización se trata de consolidar el núcleo epistemológico de la Organización
del Conocimiento insertando en él las dimensiones ontológicas, epistemológicas y
culturales del campo.
La amplitud de los temas en los que se incluyen componentes relacionados
con la etnia, la raza, el género, el feminismo, la sexualidad, el movimiento LGBT,
la religión y muchos otros problemas que la sociedad contemporánea ha abordado
desde un punto de vista científico influye en la Organización del Conocimiento
(OC) que los representa en los sistemas de información y exige una revisión que
en esta obra se analiza desde los trabajos de obtención de grado en el Programa de
Pós-Graduação em Ciência da Informação, los estudios presentados en el ISKO
Brasil y en los Encontros Nacionales de Pesquisa em Ciência da Informação.
Un enfoque teórico de las SOC aborda el alcance, la legitimidad, el potencial y
la apertura de sistemas para representar pluriepistemologías, visiones del mundo,
conocimientos y acciones hegemónicas desde el punto de vista de expertos.
El enfoque sobre la producción artística de internos psiquiátricos realizado por
Osorio y Nise produjo una teoría y una clasificación de esta producción relacionándolo con el tratamiento de los enfermos que ayuda a construir una sistematización de la información generada para aprovechar los conocimientos emanados del
arte producido por los enfermos, en la aplicación de los tratamientos psiquiátricos.
La combinación del conocimiento sobre la organización de la información, los
estudios de la incidencia en las redes sociales y los estudios de género especialmente relacionados con la violencia contra las población LGBTQIA son fundamentales
para que las Ciencias de la Información como ciencia social aplicada presten atención a los fenómenos naturalmente digitales como la difusión de información en
las redes y el aprovechamiento de las folksonomías en ellos.
Los géneros discursivos como la caricatura en la comunicación informal son
fenómenos que bien aprovechados son de un uso comunicativo positivo en aspectos como los educativos. Se estudia la clasificación de las diversas formas de la
caricatura que son consideradas un retos para clasificar de forma unívoca. Con ello
el estudio pretende revisar los esfuerzos para clasificar los géneros híbridos en el
dominio de la organización del conocimiento.
19
Prefácio
Shiyali Ramamrita Ranganathan explica el autor de este trabajo hace de los dos
puntos la energía clasificatoria de su forma de vida gramatical y la fórmula “energía ‘: ’(dos puntos)”, la ecuación de su pensamiento. La propuesta clasificatoria de
Ranganathan está marcada por una relación facetada (a diferencia de las clasificaciones jerárquicas) con la representación de los contenidos informativos a través
de una notación mixta de números, signos y letras para mayor flexibilidad en la
clasificación del conocimiento. Se destaca el uso de los dos puntos como estrategia
para plantear la relación entre la “Colon Classification” y los juegos, especialmente
de ensamblaje. Esos dos puntos son precisamente los que permiten una relación
semántica entre elementos compositivos que responden a la unión de piezas que
generan sentido.
La transdisciplinariedad de la Organización del Conocimiento contribuye teórica y metodológicamente al uso de tecnologías computacionales para diferentes
propósitos, en el desarrollo de productos y servicios requeridos por la sociedad
de la información. El autor de este trabajo analiza el concepto de Humanidades
Digitales y su consolidación como campo de estudio. A cuya construcción contribuye la Organización del Conocimiento a través de modelos de representación,
terminología y semántica.
Como se puede observar se abarcan muchos aspectos que son propios de comunidades particulares en los tiempos que corren y se exponen diversas respuestas
desde las Ciencias de la Información para ofrecer información organizada al medio
social. Se aprovecha la ocasión para felicitar a los organizadores de esta actividad,
a los autores y a los árbitros que otorgaron rigor a los trabajos presentados aquí.
20
Da Teoria Crítica às Teorias Críticas: o percurso das
reivindicações aplicadas na Organização do Conhecimento
Daniel Martínez-Ávila1 e Mariana Rodrigues Gomes de Mello2
1 Introdução
Ao falarmos de uma sociedade plural e inclusiva, logo associamos a
ideia de respeito às multiplicidades de visões e aos direitos dos sujeitos e grupos
mais diversos. A Teoria Crítica aplicada na Organização do Conhecimento tem
dado ensejo a um dos principais espaços de discussão acadêmica para reivindicar
uma representação respeitosa perante estes grupos e sujeitos. Não entanto, nos dias
hodiernos há diversas linhas e roupagens assumidas pela Teoria Crítica, o que dificulta uma conceituação única e a torna plural. Todavia, o termo foi cunhado, originalmente, por Max Horkheimer que o utilizou pela primeira vez em 1937 no artigo
intitulado ‘Teoria Tradicional e Teoria Crítica’. Na ocasião, ele a concebeu como a
Teoria Crítica da sociedade que visa compreender os homens como produtores de
todas as suas formas históricas de vida, tendo em vista que “[...] o que é dado não
depende apenas da natureza, mas também do poder do homem sobre ela. Os objetos e a espécie de percepção, a formulação de questões e o sentido da resposta dão
provas da atividade humana e do grau do seu poder” (HORKHEIMER, 1989, p.163).
No presente trabalho, por meio de uma abordagem teórico-crítica e histórica,
objetivamos revisar o percurso da Teoria Crítica que advém do contexto da Escola de Frankfurt ao desenvolvimento de múltiplas Teorias Críticas decorrentes
do pós-estruturalismo e as implicações ideológicas e científicas que apresentam.
Defendemos que, após a queda do Muro de Berlin, existem circunstâncias políticas
e históricas que justificam uma consideração dialética das Teorias Críticas Pós-Estruturalistas com os princípios da Teoria Crítica original.
1 Doutor em Documentação, Universidad de León,
[email protected]
2 Graduada em Direito e Filosofia, especialista em Direito Público, mestre e doutoranda em
Ciência da Informação (UNESP),
[email protected]
Da Teoria Crítica às Teorias Críticas
2 A Escola de Frankfurt
A Escola de Frankfurt é um movimento científico, político e social de pesquisadores, associada ao Instituto de Pesquisa Social da Universidade (Institut für
Sozialforschung), fundado em 1923 e vinculado à Universidade de Frankfurt na Alemanha. Theodor Adorno, Walter Benjamin, Erich Fromm, Leo Lowenthal, Herbert
Marcuse, Friedrich Pollock, Wilhelm Reich e, principalmente, Max Horkheimer
foram os expoentes da primeira geração da Escola de Frankfurt. Posteriormente,
configurando na segunda geração, também faria parte deste movimento, Jürgen
Habermas, aluno de Adorno e Horkheimer, que embora tenha se afastado significativamente de certas posições dos fundadores, ainda nos dias hodiernos, é considerado o maior representante da segunda geração do grupo.
Vale ressaltar, que a origem judaica da maioria dos integrantes da equipe, aliado aos estudos marxista, fez com que grande parte deles se exilassem nos EUA, em
decorrência das perseguições nazistas na Segunda Guerra Mundial. Fato que propiciou que o Instituto de Pesquisa Social fosse transferido novamente à Frankfurt
somente em 1954 (CONTRIM; FERNANDES, 2013). A primeira linhagem de frankfurtianos sofreu influência teórico-marxista, bem como de aspectos do pensamento
de Kant, Nietzsche, Freud, Weber, Heidegger, entre outros. Embora os diferentes
autores tenham apresentado um amplo abanico de interesses acadêmicos, contemplaram em comum um pensamento e análise neomarxista em questões, como as
origens histórico-sociais do capitalismo e a natureza do trabalho em um sistema
capitalista - o denominado como materialismo histórico - apesar de Marx nunca
ter empregado essa expressão – além das características e funcionamento do Estado moderno, os processos de hegemonia e dominação cultural, a exclusão e a
ideologia, visões alternativas da existência, a natureza da realidade e os processos
psicossociais do dia a dia (LECKIE; BUSCHMAN, 2010).
Estes autores também apresentaram um foco comum na teoria social contemporânea, incluindo o positivismo lógico, o pragmatismo, e a natureza da dialética.
Os pensadores, fundadores da Escola de Frankfurt, como Horkheimer, Adorno e
Marcuse tentaram reconstruir a lógica e o método do marxismo num esforço de
manter sua relevância ante o capitalismo do século XX. Na linha do autor marxista húngaro György Lukács (1971) tentaram vincular a análise econômica à análise
cultural e ideológica para explicar as razões pelas quais a revolução socialista augurada por Marx não tinha acontecido (AGGER, 1991). Para os pensadores da Escola
de Frankfurt, a surpreendente sobrevivência do capitalismo pode ser explicada nos
termos das ideologias dominantes, nos quais o positivismo seria a forma mais contundente da expressão capitalista de dominação, no sentido de que as pessoas são
ensinadas a aceitar o mundo “como ele é”, perpetuando-o sem reflexão crítica. Se-
22
Daniel Martínez-Ávila e Mariana Rodrigues Gomes de Mello
gundo os teóricos da Escola de Frankfurt, o positivismo não é apenas uma filosofia
da ciência equivocada, mas também uma teoria política errônea, já que reproduz o
status quo, incentivando a conformidade com supostas leis socioeconômicas. Teóricos críticos tentam desenvolver um modo de consciência e cognição que rompa
a identidade da realidade e da racionalidade, vendo os fatos sociais não como restrições inevitáveis à liberdade humana, tal como em Durkheim (1950), mas como
partes da história que podem ser alteradas (AGGER, 1991).
As primeiras reflexões da Teoria Crítica acerca do positivismo se deram em
oposição à teoria clássica de matriz cartesiana. A teoria clássica de natureza cartesiana, racionalista, dogmática, reducionista, mecanicista, com a pretensão de impor um olhar acrítico e distante do pesquisador ao objeto, tomou novas roupagens
com o Iluminismo, e posteriormente, com o positivismo, atingiu seu ápice, no início do século XX, tomando uma proporção maior do que a idealizada pelo próprio
Descartes. Era preciso uma teoria reativa, mais altruísta, que retomasse a ideia da
humanidade enquanto o fim maior da ciência. É neste cenário que se compõe a
Teoria Crítica. Assim, por meio da crítica ao caminho que a ciência foi seguindo, os
frankfurtianos, opõem-se à filosofia iluminista do século XVIII, isto é, ao legado da
ilustração e, por extensão, à contemporânea sociedade tecnológica liberal. A razão,
a partir do Século XVIII, vai se reduzindo ao domínio instrumental, tecnocrata, ela
não se dissocia apenas da religião, dos dogmas medievais, mas também da ética, da
ideia de finalismo, que se traduz na visão de bem comum. Nesta perspectiva, expõe
Horkheimer (2013, p.28), “os filósofos do Iluminismo atacaram a religião em nome
da razão; e ao final o que eles mataram não foi a Igreja, mas a metafísica e o próprio
conceito de razão objetiva, a fonte de poder de todos os seus esforços”. E Horkheimer completa: “[...] o núcleo oficial do liberalismo é o imperialismo intelectual do
interesse pessoal”.
A filosofia iluminista, consagrou a razão como uma força histórica que ensejaria à emancipação da humanidade de suas amarras, construindo um mundo
auspicioso e feliz. A princípio, realmente, Adorno e Horkheimer (1985) destacaram
que a razão iluminista, possuía um ideal emancipatório, extremamente otimista,
com possibilidades infinitas de conhecimento. Entretanto, esse movimento foi
paulatinamente ofuscado pela técnica, à medida que a burguesia foi impondo seu
projeto ideológico de dominação. Desse modo, segundo Adorno e Horkheimer, “o
preço das grandes invenções é a ruína progressiva da cultura teórica” (1985, p.11).
Sob este ponto de vista, passamos a ser reféns do próprio progresso e da racionalidade técnica. O conhecimento científico, que substituiria o filosófico, idealizado
como facilitador da vida humana, perde consideravelmente o potencial libertário.
O racionalismo iluminista que pretendia ser tão esclarecedor e emancipatório, na
23
Da Teoria Crítica às Teorias Críticas
realidade não era, pois nele se escondia uma nova ideologia. O Iluminismo acaba
denunciando o próprio esclarecimento como mitológico e ideológico, à medida
que a razão, tentando combater o pensamento mítico, assume traços do próprio
mito e, então, não tem a capacidade de identificar a própria irracionalidade que
dela emana.
Posto isto, Horkheimer, primeiramente sozinho, na obra ‘Eclipse da Razão’
(2013), e posteriormente, em conjunto com Adorno na ‘Dialética do Esclarecimento’ (1985) vai distinguido a razão subjetiva ou técnica da razão objetiva ou emancipatória. A razão subjetiva é subordinada à técnica, fruto de um pensamento instintivo, não reflexivo, de autopreservação que destaca os meios para se conseguir
algo. Um fim exclusivamente utilitarista, que não visa o bem comum, mas somente
os ganhos particulares. O outro nos serve enquanto nos é útil. Neste sentido, “a
técnica é a essência desse saber, que não visa conceitos e imagens, nem o prazer do
discernimento, mas o método, a utilização do trabalho de outros, o capital” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p.18).
Sob esse prisma, a ausência de autonomia, reflexão crítica e pensamento criativo nos leva à razão instrumental. “É como se o próprio pensamento tivesse reduzido ao nível do processo industrial, submetido ao programa estrito, em suma, tivesse se tornado uma parte e uma parcela da produção” (HORKHEIMER, 2013, p.31).
Ao considerarmos a técnica como um fim em si mesma, até as relações humanas
se tornam produtos, fruto da coisificação da consciência. A sensibilidade se esvai,
o subjetivismo vem à tona e vamos tratando a nós mesmos e aos outros como
coisas. A coisificação do espirito faz com que neguemos nosso íntimo, a possibilidade de oferecer amor e de seremos amados. Os preconceitos são relacionados ao
autoritarismo de um sujeito experimental, repertório da consciência coisificada. “A
capacidade de amar, que de alguma maneira sobrevive, eles precisam aplicá-las aos
meios” (ADORNO,2011, p.133).
No entanto, a razão objetiva, também conhecida como emancipatória, está intimamente aliada à ideia de finalismo, isto é, uma concepção axiológica, com escopo no bem comum, haja vista que ultrapassa os ganhos pessoais e a lógica capitalista. Desse modo, a ciência, a economia, a política não podem estar à mercê de uma
oligarquia mercadológica. Para a Escola de Frankfurt, a verdadeira racionalidade
se expressa pela capacidade crítica de análise e não pelo domínio da técnica. A simples repetição de conceitos e compreensão da técnica, de modo heterônomo e acrítico, não reluz à verdadeira racionalidade. Contudo, não foi somente a ciência que
primou pela razão técnica. A política também, pois originalmente, sua constituição
resultou da consolidação de princípios fundamentados na razão objetiva, como
“[...] a ideia de justiça, igualdade, felicidade, democracia [...]”. “Posteriormente, o
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Daniel Martínez-Ávila e Mariana Rodrigues Gomes de Mello
particular tomou lugar do universal” (HORKHEIMER, 2013, p.29). Este prisma ofereceu os meios necessários ao domínio político que no sistema liberal se inclina ao
fascismo, visto que “[...] a ideia da comunidade nacional (“Volksgemeinschaft”),
primeira erguida como um ídolo, pode subsequentemente ser mantida apenas pelo
terror” (HORKHEIMER, 2013, p.29).
Tendo em vista toda a dimensão que a razão técnica vai assumindo, no capítulo ‘Educação após Auschwitz’ da obra ‘Educação e Emancipação’ (2011), Adorno,
visando exemplificar as consequências do primado da técnica e ausência de finalismo em nossas ações, expõe que quando os meios sobrepõem aos fins, é legítimo
construirmos uma estrada de ferro em direção à Auschwitz, somente verificando
sua utilidade, isto é, se é o meio mais eficaz, a fim de transportar seres humanos
ao campo de concentração. O escopo último, mediato, ou seja, no que implicará
este ato, não é relevante, desde que a técnica empregada seja a mais eficiente para
alcançar o objetivo imediato. Com o decurso do tempo, inúmeras novas demandas
sociais foram surgindo no mundo todo, organizadas por movimentos das minorias
marginalizadas. Após a Segunda Guerra Mundial, ante as implicâncias aterrorizantes dos atos nazistas, foi necessário pensar numa ordem legal que pudesse conferir
o mínimo de respaldo à dignidade humana. Assim, é proclamada a Declaração
Universal dos Direitos Humanos, em dezembro de 1948, pela Organização das Nações Unidas. O documento serviu como base pra outros tratados e convenções que
tinham como fim a garantia dos direitos fundamentais às pessoas.
Neste cenário, o marxismo não ortodoxo da primeira geração dos frankfurtianos continuava muito importante como fonte reacionária e fundamento às outras
gerações da Escola de Frankfurt, porém, já não conseguia abranger todos os movimentos que visavam romper as estruturas de opressão preestabelecidas. Segundo
visões mais contemporâneas da Escola de Frankfurt, inclusive o marxismo tem-se
tornado positivista, por exemplo, ao retratar a queda do capitalismo como inevitável, de acordo com o que Marx chamou de “leis do movimento” econômico (AGGER,
1991). Por isso, a Escola de Frankfurt, nas gerações posteriores, vem se posicionando contrária a todos os tipos de positivismo, inclusive o marxista. Nesse sentido,
Habermas (1971) discorda de Horkheimer, Adorno e Marcuse que compreendiam
que Marx era um grande oponente do positivismo. Habermas compreende que é
necessário reconstruir o materialismo histórico de Marx, dando mais credibilidade
à diferença categórica entre o conhecimento obtido pela autorreflexão e o conhecimento auferido pela análise e técnica causais.
Na visão de Habermas, a crítica radical ao conceito de razão da primeira geração dos frankfurtianos, bem como a exaltação do materialismo histórico levaria
ao irracionalismo. Especialmente Adorno e Horkheimer entendiam que a razão
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Da Teoria Crítica às Teorias Críticas
emancipatória não seria possível ante o desenvolvimento do capitalismo que ofuscaria a consciência do proletário. Na acepção de Habermas, este posicionamento é
perigoso, visto que o projeto da modernidade ainda está em curso, não se findou.
Assim, ele defende que ainda há a possibilidade da racionalização do mundo, pela
via emancipatória. Habermas argumenta que para a retomada do projeto emancipatório é necessário o rompimento com a Teoria Marxista em alguns pontos fundamentais [...] “por exemplo, a centralidade do trabalho e a identificação do proletário como agente da transformação social” (CONTRIM; FERNANDES, 2013, p.316).
Para tanto, esse pensador elabora uma nova visão de razão, mais dialógica, fruto
da intersubjetividade do debate democrático. Razão que emana do que Habermas
concebe como ação comunicativa.
3 Pós-modernismo e Pós-estruturalismo
Partimos da concepção de que a Teoria Crítica é uma expressão ampla que
denomina e agrega todas as teorias que se pautam na negação da ordem preestabelecida pelo positivismo na busca de uma sociedade mais altruísta e justa, podendo-se falar de teorias críticas, enquanto um conceito plural. A princípio, como
já colocamos, os esforços da primeira geração dos frankfurtianos estiveram mais
voltados às relações de dominação entre as classes sociais, em decorrência das relações econômicas estabelecidas pelo capitalismo, por entenderem que resolvendo o
problema da divisão de classes sociais, a sociedade seria mais justa e igualitária. No
entanto, “[...] as Teorias Pós-Críticas não limitam a análise do poder ao campo das
relações econômicas do capitalismo. Com as teorias pós-críticas, o mapa do poder
é ampliado para incluir os processos de dominação centrados na raça, etnia, no
gênero e na sexualidade” (SILVA, 2005, p.149). Questões mais focadas no individuo
e nos diferentes grupos tradicionalmente marginalizados por sistemas totalitários,
estigmatizados pelos detentores do poder como “o outro”, foram desenvolvidas nas
décadas seguintes.
Pouco depois do grande movimento instaurado pela Escola de Frankfurt, surgiu outro de matriz francesa, constituído por acadêmicos, que inclui a Roland Barthes, Jean Baudrillard, Andre Gorz, Henry Lefebvre e Alain Touraine, que também
se basearam no marxismo e expandiram a crítica da economia política à uma mais
ampla da sociedade e da cultura como um todo (DANT, 2003). Deste movimento
derivaram outros de filósofos franceses, comumente considerados da Escola Estruturalistas e Pós-Estruturalistas, como Pierre Bourdieu, Jacques Derrida, Michel
Foucault, Jacques Lacan e Jean-François Lyotard. Se afastando dos princípios de
Marx e de Engels da Escola de Frankfurt, trataram de uma gama de questões e contradições que contemplou desde a hegemonia de vários sistemas socioeconômicos
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Daniel Martínez-Ávila e Mariana Rodrigues Gomes de Mello
até as formas não examinadas de dominação e regulação social, incidindo as forças
de marginalização e as restrições de um currículo pedagógico baseados em um
cânone privilegiado da literatura (LECKIE; BUSCHMAN, 2010). Nos estudos desses
autores, o pluralismo é um valor principal, desmantelando processos e hierarquias
de poder que selecionam e classificam pessoas criando assim o “outro” - por exemplo negros, mulheres e homossexuais. Segundo McCarthy e Apple (1988), esses teóricos críticos chamaram a atenção para a inadequação dos relatos reducionistas de
classe da sociedade humana e a marginalização de mulheres, entre outras minorias,
de maneiras que outras formas de análise crítica não foram capazes de contemplar.
O fulcro no pós-estruturalismo apresenta novas perspectivas na elaboração de
Teorias Críticas que repensem a realidade nas quais estão inseridas. Conceituar o
pós-estruturalismo não é uma tarefa simples, pois ele engloba vários aspectos e
nem sempre está bem distinto de outros movimentos, como o pós-modernismo.
Enquanto o pós-modernismo está mais ligado aos movimentos artísticos, literários
e arquitetônicos, entre outros; o pós-estruturalismo surge como um modo de repensar as teorias estruturalistas, instaurando a desconstrução de alguns conceitos
e estruturas considerados como verdades universais por elas. Tanto os autores pós-estruturalistas como os pós-modernistas têm em comum a rejeição das definições
e categorias positivistas. Muitos dos filósofos, mencionados anteriormente, não se
identificam com o pós-estruturalismo, mesmo que sejam comumente considerados pós-estruturalistas, como, notadamente, Derrida. Outros autores, como Foucault, Barthes ou Lyotard podem ser considerados tanto pós-estruturalistas como
pós-modernistas. O pós-estruturalismo de Derrida, bem como o das feministas
francesas, entre outros, incidem numa teoria do conhecimento e da linguagem;
enquanto o pós-modernismo contemplado por Foucault, Barthes, Lyotard e Baudrillard relata uma teoria da sociedade, da cultura e da história (AGGER, 1991).
Sob alguns pontos de vista, o pós-modernismo tem sido caraterizado como
fundamentalmente conservador - chamado de “a lógica cultural do capitalismo
tardio” (JAMESON, 1984). Já Habermas (1981, 1987) argumenta que o pós-modernismo é neoconservador. Agger (1990, 1991) distingue entre versões apologéticas e críticas do pós-modernismo, incluindo uma visão politizada. Outros autores, como
Kroker & Cook (1986) despolitizam o pós-modernismo, vendo-o simplesmente
como um movimento cultural, ou “cena”. Destes pensadores, Jean-François Lyotard (1984), foi quem mais assumiu sua “condição pós-moderna”. Lyotard rejeita as
perspectivas totalizadoras da história e da sociedade, o que ele chama de grandes
narrativas que tentam explicar o mundo em termos de inter-relações padronizadas,
como o marxismo. O pós-modernismo de Lyotard é uma rejeição explícita do que
ele chama de tendências totalizantes e do radicalismo político do marxismo. Para
27
Da Teoria Crítica às Teorias Críticas
Lyotard, entre outros pós-modernistas, não é possível contar grandes narrativas
históricas, como fazem os marxistas - a quem acusa de ter motivos de autoengrandecimento - mas apenas pequenas histórias de “posições de sujeito”, heterogêneas,
de indivíduos e grupos sociais plurais (AGGER, 1991). No entendimento de Agger
(1981), o pós-modernismo é pluralista e antirreducionista, o que inclui políticas
mais liberais. Uma teoria social pós-moderna examinaria o mundo social a partir de múltiplas perspectivas de classe, raça, gênero, rejeitando as reivindicações
totalizadoras e universais das chamadas grandes narrativas que tentam identificar
princípios estruturais para explicarem todo tipo de fenômeno social díspar - por
exemplo a teoria de Marx da lógica do capital (AGGER, 1991).
Tal como o pós-estruturalismo e a Teoria Crítica, o pós-modernismo rejeita a
possibilidade de uma representação livre de pressupostos, argumentando que todo
conhecimento é contextualizado por sua natureza histórica e cultural. Logo, não
seria possível desenvolver uma ciência social universal devido as diversas posições
dos sujeitos e seus particulares modos de conhecimento. Esse aspecto lembra muito o da Fenomenologia Social e da Etnometodologia, as quais também enfatizam
a irredutibilidade da experiência e rejeitam a análise socioestrutural, já que coincidem em ter como fundamentos as filosofias de Nietzsche e Heidegger (AGGER,
1991). Estas escolas de conhecimento e seus respectivos pensadores rejeitam os investimentos iluministas e positivistas na criação de um conhecimento universal,
expressando a ciência como uma voz universal e singular.
Por outro lado, na concepção de Lopes (2013, p.13), o pós-estruturalismo, em
linhas gerais, visa a crítica ao “cientificismo das ciências humanas com base na linguística, à pretensão do estruturalismo de construir fundamentos epistemológicos
e identificar estruturas universais comuns a todas as culturas e à mente humana em
geral [...]”. Além disso, “busca por salientar a pluralidade dos jogos de linguagem
que tornam provisório o processo de significação, sem fechamento final, terreno
de diferenças sempre passíveis de produzirem novos sentidos”. Desse modo, a ideia
de estrutura é substituída pela de discurso, pois na compreensão pós-estruturalista
não existem estruturas fixas e nem universais, tal como apresenta o estruturalismo,
que fechem de maneira definitiva a significação, mas somente estruturações e reestruturações discursivas (LOPES, 2013).
Vale ressaltar que o pós-estruturalismo pode auxiliar aos leitores e autores de
trabalhos científicos a reconhecerem seus próprios envolvimentos e investimentos
literários no texto científico (AGGER, 1991). Segundo este autor, todo recurso retórico do texto, mesmo aparentemente insignificante, contribui para o seu significado
geral: a organização das notas de rodapé, o título do artigo, a descrição do problema, a legitimação do tema de pesquisa, o uso de métodos quantitativos na apresen-
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Daniel Martínez-Ávila e Mariana Rodrigues Gomes de Mello
tação dos resultados, etc. Tudo isso afeta seu sentido geral. O pós-estruturalismo
põe em questão uma variedade de normas literárias da ciência empírica, sugerindo
que passemos a ler a ciência não como um espelho do mundo, mas como uma forte
intervenção literária e imaginativa.
Um outro ponto a ser mencionado, é que o pós-estruturalismo busca em Foucault a concepção da microesfera do poder, por meio da investigação das estruturas
do saber-poder. Segundo Foucault (2014), o poder não está presente apenas nas
grandes esferas, como no Estado. Está em todas as instituições e nas relações intersubjetivas. Todavia, não é em si apenas negativo, sinônimo de dominação, haja
vista que tem um aspecto positivo quando consegue criar novos saberes, que podem oprimir, mas também libertar. Portanto, o pós-estruturalismo apresenta elementos interdisciplinares, configurando-se por meio de diferentes correntes. Ao
nos deparamos com a visão pós-estruturalista, detectamos que além do combate
à dominação, inerente ao conceito de classe social, há a preocupação com o exercício do poder hegemônico de grupos que subordinam outros, tais como homens
e mulheres; brancos e negros; heterossexuais e homossexuais. O que implica na
necessidade da desconstrução do modelo construído historicamente, incorporado,
sem reflexão, e, portanto, aceito como verídico.
Além do aspecto discursivo, o pós-estruturalismo abrange na atualidade também os estudos desenvolvidos pela Teoria Queer, Epistemologias Feministas, Teoria Crítica Racial e Teoria Pós-Colonial que questionam a ordem política e cultural
hegemônica, buscando uma maior igualdade e rompimento do entendimento da
heterossexualidade, masculinidade e branquitude enquanto norma. Todos estes
movimentos têm sido aplicados à Organização do Conhecimento (MARTÍNEZ-ÁVILA et al., 2016) e são normalmente ligados às organizações e às reivindicações
da esquerda. O objetivo dessas Teorias Críticas não se limita à compreensão da
situação social, pois também almeja compreender a forma como a sociedade se
organizou historicamente, com suas estruturas hierárquicas e hegemônicas, a fim
de transformar sua organização. Aspectos, como conceitos e classificações que se
ligam às formas de subordinação ideologicamente construídas, sem o comprometimento com a igualdade racial e de gênero, precisam ser revistos e organizados de
uma nova forma, a fim de construir novos conhecimentos mais éticos e libertários.
4 Teorias Críticas e Organizaçao do Conhecimento na atualidade
Partimos da concepção de que a Teoria Crítica é uma expressão ampla que denomina e agrega na atualidade todas as teorias que se pautam na negação da ordem
preestabelecida pelo positivismo. O contexto político e histórico do século XX,
principalmente do final da Segunda Guerra Mundial, à queda do Muro de Berlin,
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Da Teoria Crítica às Teorias Críticas
fez com que os intelectuais, destacando-se os europeus, questionassem o contexto
onde estavam inseridos, sem imaginar o terrorismo neoliberal que viria posteriormente. Do mesmo modo que a rebelião geracional faz com que os filhos discordem
das ideias dos pais; os filhos acadêmicos de Sartre, Lacan, Barthes e Althusser também questionaram os fundamentos marxistas de seus “pais intelectuais”. Inclusive,
a Agência Americana de Espionagem, a CIA, divulgou um estudo (1985) sobre a
posição dos intelectuais franceses, destacando suas decepções com o socialismo,
o espírito antimarxista e antissoviético exteriorizado mediante argumentos pela
liberdade. Outros autores, como Peter Berger, receberam propinas da indústria capitalista do cigarro para caracterizar (TOLLISON, 1985) as campanhas dos governos
contra o cigarro como invasões do espaço privado pelo público. Enquanto o debate
intelectual tinha focado nos anos anteriores às questões da esquerda versus direita,
no pós-modernismo o foco das discussões primou as questões de liberdade versus
totalitarismo e privado versus público.
Contudo, esta situação tem mudado nos últimos anos. Com a queda do Muro
de Berlin e a perda da única esperança de uma alternativa real ao capitalismo, os diversos grupos sociais começaram a sofrer as consequências dos radicalismos neoliberais. As potências capitalistas não precisaram fazer concessões e nem se moldarem, a fim de minimizarem crises, sofrimento e conflitos. As políticas e manobras
da extrema direita afetaram de forma maciça, especialmente aos grupos marginalizados e o discurso antitotalitário por ela proclamado se tornou demagógico. Se
assim é, nos dias hodiernos, já não há justificativas plausíveis para não associarmos
as reivindicações da Teoria Crítica aos movimentos de esquerda, uma vez foi demonstrado que o capitalismo é um sistema falho que tem provocado miséria, fome
e milhões de mortos no mundo. O objetivo emancipatório tem que ser global, focado em educação e cientificidade. O discurso da direita tem se mostrado fundamentalista e distante do cientificismo. Em outras palavras, a história tem demonstrado nos últimos anos que as estratégias desconstrucionistas da Teoria Crítica têm
sido muito mais efetivas às liberdades individuais quando são aplicadas para expor
uma realidade construída pela classe dominante, já que a narrativa hegemônica na
atualidade resultou ser a realidade do capitalismo - baseada na retórica dos vencedores e na dissolução da URSS. Nem seu imperialismo e nem sua discriminação
são sustentados por argumentos científicos – por exemplo, atualmente, um racista
não se apoiaria em alegações científicas, como o darwinismo, ou a frenologia para
justificar sua alegada supremacia, mas se ampararia muito no seu privilégio de classe e/ou em algum dogma religioso. Ocorre que os movimentos de esquerda, com
o decurso do tempo, se tornaram mais centralizados, com poucas manifestações
radicais, aceitando aspectos da economia de mercado, sem perder o foco no cará-
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Daniel Martínez-Ávila e Mariana Rodrigues Gomes de Mello
ter social do Estado. Já os de direita assumiram a forma mais nociva e extrema, a
partir da década de 1970, como neoliberalismo. Entendemos que os radicalismos
originam sistemas totalitários, opressores, e por si só, antidemocráticos, sejam de
direita ou de esquerda. O positivismo, com seu absolutismo terminológico, não se
alia aos sistemas libertários e altruístas, visto que não é dialógico e nem complexo.
Seria ilógico pensarmos num positivismo crítico.
No que tange aos sistemas de Organização do Conhecimento, podemos dizer
que são instrumentos retóricos que refletem estes conflitos de forma totalmente
arbitrária. Desde o começo da história das bibliotecas a Organização do Conhecimento tem sido utilizada como método para justificar uma dominação - por exemplo, a Biblioteca de Alexandria estava mais interessada na ostentação de poder do
que em uma organização realista do conhecimento (FULLER, GORMAN, 1987, FULLER, 1987). Os sistemas de Organização do Conhecimento são sistemas lineares que
constroem representações teleológicas de diferentes grupos e conceitos em função
de uma priorização e arranjos de facetas. Do mesmo modo que inexiste igualdade
na expressão “meninos e meninas”, já que há uma enunciação verbal que obrigue
a priorizar um grupo, nos sistemas de organização do conhecimento existe uma
priorização de determinados grupos e visões que são colocados como hierarquicamente superiores. Resultando, então, uma representação privilegiada no sistema de
recuperação, ou no arranjo físico da unidade de informação. Estas facetas privilegiadas refletem os grupos dominantes considerados normais ou padrões: brancos,
etnicamente europeus, protestantes, heterossexuais, sem deficiências físicas, homens e burgueses. Porém, enquanto empresas e interesses econômicos tiverem se
envolvendo com a Ciência da Informação e, consequentemente, tendo representatividade no desenvolvimento de sistemas da Organização do Conhecimento - tanto
em um sentido estrito bibliotecário, por exemplo a Online Computer Library Center
e a Classificação Decimal de Dewey, como lato, no caso do Google, dos algoritmos
de relevância e do posicionamento de sistema de busca – as especificidades de classe e as implicações para a representação de diferentes grupos fazem com que as
Teorias Críticas estejam mais próximas, como jamais estiveram, da Teoria Crítica
da primeira geração em muitos aspetos.
Dito isso, na contemporaneidade, o quantitativo continua configurando como
ideologia dominante na ciência e os sistemas de organização do conhecimento
ainda se mostram suscetíveis na reflexão dos preconceitos de uma maioria privilegiada em varias vertentes, o que se reflete nos ambientes digitais. As lutas das mulheres negras, dos transexuais, dos pobres, entre outros grupos tradicionalmente
marginalizados, têm se demonstrado mais relevantes como nunca foram historicamente. Para promover a justiça social, estes movimentos sociais precisam de teo-
31
Da Teoria Crítica às Teorias Críticas
rias que apoiem tanto suas reivindicações como suas representações na época dos
algoritmos e do big data. Neste sentido, reivindicar a relevância da Organização do
Conhecimento aos grupos sociais implica no reconhecimento da Teoria Crítica.
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33
A bibliografia e a literatura de povos
e comunidades tradicionais no Brasil
Elisa Campos Machado1, Gustavo Saldanha2
1 Introdução
Os estudos e reflexões acerca da história, conceito e constituição de
bibliografias se estabeleceram dentro do campo da Organização do Conhecimento
e, ao longo dos tempos, se multiplicaram, apresentando a bibliografia como disciplina da Biblioteconomia e Ciência da Informação e como uma ferramenta de
mediação indireta. As bibliografias são também caracterizadas como uma fonte
de informação terciária, tal como os catálogos e repositórios bibliográficos, que
segundo Muller (2000, p. 31) tem a função de guiar o usuário para as fontes primárias e secundárias. Igualmente, desde seu processo de formação histórica em cada
contexto social de apropriação e de sobredeterminação da palavra escrita para vida
pública e privada (da educação ao direito, da medicina à literatura), a bibliografia
se desenvolveu como força constituída e constituinte dos regimes políticos.
Seja nas ditaduras, seja nos movimentos de revolução social, seja nos projetos democráticos, o papel ocupado pela palavra escrita estabelece um lugar privilegiado da bibliografia como parte do motor da história da opressão, bem como
ferramenta para potencial horizonte de emancipação. As listas bibliográficas co-constituintes da Modernidade são um testemunho da luta social marcada pelo
massacre e pelo silenciamento de povos e suas pluralidades culturais. O choque
civilizatório em sua marcha opõe, nas escadarias das listagens bibliográfica, formas de resistência por visibilidade e dignidade e a avalanche de apagamentos
simbólicos repercutidos nas (ausentes) políticas verdadeiramente públicas da
Modernidade tardia.
1 Doutora em Ciência da Informação Ciência da Informação pela Escola de Comunicação e
Artes da Universidade de São Paulo (USP).
2 Doutor em Ciência da Informação – PPGCI IBICT UFRJ; pesquisador titular (IBICT); professor
adjunto (UNIRIO); bolsista de produtividade CNPq 2; bolsista jovem cientista do estado Faperj).
A bibliografia e a literatura de povos e comunidades tradicionais no Brasil
No Brasil, ao longo dos tempos, a pratica da produção de bibliografias perdeu
espaço para os estudos teóricos sobre o tema, representando um descompasso
entre desenvolvimento de um projeto de nação e metarrepresentação, pela via
da produção bibliográfica, dos saberes e dos fazeres da pluralidade da sociedade brasileira. As instituições que investiam na produção de bibliografias tiveram
seus recursos reduzidos, dificultando a coleta, sistematização e análise dos dados de maneira regular, o que inviabiliza a sua publicação, a exemplo da Seção
de Bibliografia e Documentação da Biblioteca Infantojuvenil Monteiro Lobato
da cidade de São Paulo, que publicava desde 1953 a ‘Bibliografia brasileira de
literatura infanto-juvenil’ e teve seu último número publicado no ano de 2006,
ou tiveram suas diretrizes alteradas, como foi o caso do Instituto Brasileiro de
Brasileiro de Bibliografia e Documentação (IBBD), instituição fundada no ano
de 1954, que em 1976 se transformou no Instituto Brasileiro de Informação em
Ciência e Tecnologia (IBICT).
Neste caso, ou seja, no âmbito da fundação do IBBD, uma casa com missão
bibliográfica por objeto é fundada na metade do século XX e nos permite fotografar com acuidade o dilema da bibliografia no cenário brasileiro nesses cem anos.
Vê-se a partir dali, anos 1950, a separação entre um projeto bibliográfico nacional
orientado para o plano da sociedade e da cultura, já não democraticamente representado pela Biblioteca Nacional (cenário que se tornará cada vez pior a cada década da segunda metade do Novecentos, vivendo dos despojos do grande projeto
bibliográfico com sementes na Semana de Arte Moderna de 1922), e o princípio de
um modelo desenvolvimentista bibliográfico com foco na metarrepresentação da
produção científico-tecnológica do país.
O indicador de desequilíbrio entre o investimento discriminado entre sociedade-cultura, de um lado, e ciência-tecnologia, de outro, assim como a criação
da falsa dicotomia entre essas estruturas de uma só condição social, demonstram
a miséria da bibliografia em seu potencial papel de mudança social no Brasil. Ao
contrário do desenvolvimento paralelo de um projeto de ensino e pesquisa bibliográfico na pós-graduação, lato e stricto sensu, entre Biblioteca Nacional e IBBD,
com foco nas mais amplas perspectivas dos problemas nacionais e, centralmente,
lacunas de uma democratização pela via das teorias, métodos e técnicas bibliográficas, funda-se um modelo positivista de bibliografia no país, estruturado no bibliometria bibliometria-fontes científicas. O resultado é: a) o isolamento da ciência
perante a sociedade como forma do fazer bibliográfico; b) o silenciamento da produção bibliográfica sociocultural no Brasil, minando as linhas de desenvolvimento
de uma teoria crítica brasileira da bibliografia; c) ausência de metarrepresentação
bibliográfica das instituições voltadas para preservação e representação da cultura
36
Elisa Campos Machado, Gustavo Saldanha
do país, como bibliotecas, como método e indicar para a formação de coleções que
manifestem a construção e reconstrução da sociedade brasileira.
Nesse cenário, as bibliotecas públicas que dependem de instrumentos para apoiar
o processo de tomada de decisão na formação e desenvolvimento de coleções e que
tinham as bibliografias temáticas como uma de suas fontes de referência, ficaram
apenas com o catálogo bibliográfico da Biblioteca Nacional, instituição responsável
pelo depósito legal no Brasil, e com os catálogos de editoras comerciais, como principais fontes de informação para a seleção e aquisição de livros – sem investimento em
ensino e pesquisa voltados para os dilemas bibliográficos, como a própria ausência de
desenvolvimento de novos métodos para o problema da bibliografia na instituição.
Aprofundando um pouco mais essa questão, é importante lembrar que quando
pensamos em formação de coleções em bibliotecas públicas é necessário levar em
consideração a diversidade cultural que marca a sociedade brasileira e, dentre essas
marcas, não podemos deixar de contemplar aquelas que envolvem a cultura dos
povos e comunidades tradicionais. Vale registrar que aproximadamente 5 milhões,
dos mais de 210 milhões de habitantes no Brasil, integram os povos e comunidades tradicionais, representando uma parcela significativa da nossa população.
Suas memórias, histórias, costumes e tradições formam a cultura brasileira e são,
ou deveriam ser representadas na literatura, na ciência, na tecnologia entre outros
campos de conhecimento. No entanto, esses registros quando existentes são pouco conhecidos, valorizados e difundidos na sociedade que privilegia a cultura de
massa dentro de uma produção editorial comercial, bem como o foco isolado do
projeto desenvolvimentista científico-tecnológico que marca o modelo bibliográfico nacional a partir dos anos 1950.
Como resultado temos, por um lado, um mercado editorial pouco preocupado com a bibliodiversidade e, por outro lado, bibliotecas públicas – incluindo as
bibliotecas escolares e universitárias na federação - carentes de coleções que representem a cultura de seus territórios, do seu povo e consequentemente do seu país,
ou seja, a invisibilidade da produção cultural dos povos e comunidades tradicionais no Brasil é refletida nos seus acervos.
A preocupação com a ausência de coleções nessa temática e as dificuldades no
acesso e aquisição desse tipo de material foram apontadas no projeto capitaneado
pelo Sistema Nacional de Bibliotecas Públicas (SNBP)3, órgão do governo federal, à
época subordinado ao Ministério da Cultura (MinC), intitulado “Pontos de Leitura
Ancestralidade Africana no Brasil”4.
3 Endereço eletrônico: http://snbp.cultura.gov.br
4 Endereço eletrônico: http://ancestralidadeafricana.org.br/
37
A bibliografia e a literatura de povos e comunidades tradicionais no Brasil
Diante da complexidade que envolve a produção, organização, tratamento e difusão da literatura, entendida como uma manifestação artística, em seus diferentes
gêneros, acerca da temática dos povos e comunidades tradicionais no país, surgem
as seguintes questões:
a) O conjunto de publicações na temática literatura brasileira expressa os saberes e a cultura desses grupos?
b) Quais são as referências literárias na atualidade nesse campo?
c) Estas questões estão no cerne da Organização do Conhecimento e, mais
especificamente, as respostas envolvem a ideia do controle bibliográfico,
apoiada pela noção de preservação da memória e patrimônio cultural.
Dentro desse contexto, este estudo se configurou na aplicação pratica da organização, representação e recuperação da informação e do conhecimento de um
determinado conjunto de documentos, que compõem os acervos de bibliotecas
públicas – as coleções literárias que abordam a temática dos povos e comunidades
tradicionais no Brasil. O objetivo principal foi organizar um instrumento como
fontes de informação de literatura de e sobre povos e comunidades tradicionais no
Brasil, de maneira a ampliar e consolidar a compreensão acerca das questões que
envolvem a constituição de coleções que representem a identidade local, em bibliotecas públicas e comunitárias brasileiras.
Ao propor a construção de um repertório bibliográfico dessa natureza a pesquisa
se aproxima dos guias de literatura conforme explicita Caldeira (2000), os quais tem
por características: - dedicar-se a uma área do conhecimento; ser enumerativo já que
arrolam uma série de referências bibliográficas; e, se constituir numa obra de referência.
Cabe ainda registrar que a presente pesquisa integra os estudos que vem sendo
realizados pelo Grupo de Pesquisa “Bibliotecas públicas no Brasil: reflexão e prática”5, sediado na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO); está
alinhada a pesquisa “Organização dos saberes no domínio dos povos e comunidades tradicionais do Brasil: linguagens, tecnologias, instituições informacionais e
integração pragmática de dados”, proposta pelo IBICT e aprovada pelo Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq); e, é apresentada dentro da linha 1 - Comunicação, Organização e Gestão da Informação e do
Conhecimento -, do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação do
Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia – IBICT associado a
Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ/Escola de Comunicação – ECO.
5 Endereço eletrônico: http://culturadigital.br/gpbp/sobre-o-grupo/
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Elisa Campos Machado, Gustavo Saldanha
2 A literatura de e sobre povos e comunidades tradicionais no Brasil
O recorte temático desse estudo envolve a literatura, entendida no seu stricto
sensu, nos gêneros lírico, narrativo e dramático. Antônio Cândido (2004, p. 16)
chama de literatura:
todas as criações de toque poético, ficcional ou dramático em todos os
níveis de uma sociedade, em todos os tipos de cultura, desde o que chamamos folclore, lenda, chiste, até as formas mais complexas e difíceis da
produção escrita das grandes civilizações.
Especificadamente trataremos da literatura brasileira que aborda temas a respeito dos povos e comunidades tradicionais no Brasil de autoria de integrantes
desses coletivos ou não.
Cabe ressaltar que o reconhecimento dos povos e comunidades tradicionais
no Brasil se deu há bem pouco tempo, no ano de 2007, por meio do Decreto 6.040,
que instituiu a “Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais”. Com exceção das políticas indigenistas, até a publicação
desse decreto as políticas mais próximas desses grupos eram as ambientais, que
relacionavam o meio ambiente aos recursos naturais, mas que deixavam de lado os
indivíduos diretamente ligados com a terra, a exemplo das comunidades ribeirinhas, caiçaras, quilombolas e até mesmo indígenas.
Por meio desse decreto se definiu quem são os grupos que fazem parte dos
povos e comunidades tradicionais no Brasil, ou seja,
grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais,
que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e
usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos por tradição
(BRASIL, 2007, p. 1).
Com uma política nacional formalizada foram reconhecidos como grupos que
fazem parte dos povos e comunidades tradicionais as Andirobeiras, os Apanhadores de flores sempre-vivas, Babaçueiros, Beiradeiros, Caatingueiros, Caboclos,
Caiçaras, Campeiros, Camponeses, Canoeiros, Castanheiras, Catadores de caranguejo, Catadores de mangaba, Chapadeiros, Giganos, Cipozeiros, Faiscadores,
Faxinaleses do Paraná e região, Fundo de fecho de pastos da Bahia, Geraizeiros,
Ilhéus, Indígenas, Isqueiros, Jangadeiros, Marisqueiros, Morroquianos, Pantanei-
39
A bibliografia e a literatura de povos e comunidades tradicionais no Brasil
ros, Pastoreiros, Pequizeiros, Pescadores artesanais, Piaçaveiros, Pomeranos, Povos
de terreiros, Praieiros, Quebradeiras de coco de babaçu, Quilombolas, Remeiros,
Retireiros, Ribeirinhas, Seringueiros, Sertanejos, Vaqueiros, Vajeiros, Vazanteiros
e Veredeiros. Cada qual em seu território, de norte a sul, leste e oeste do país, produzindo seu sustento e passando de geração para geração suas culturas e tradições.
Perceba-se que, dada a experiência histórica e extensão continental do país, essas
identidades apontadas não representam a pluralidade da realidade social brasileira.
São parte – potencialmente pequena – de uma vastidão de saberes, de fazeres, de
viveres ramificados no território do Brasil, seja no meio urbano, seja no meio rural,
seja na vasta fronteira do país.
Dentre os povos e comunidades tradicionais, são os povos indígenas e sertanejos que estão mais presentes nos registros da história da literatura brasileira. O
indígena6 aparece deste o período chamado Quinhentimos, no século XVI, marcado pela produção literária informativa sobre o Brasil. Destaca-se nesse período
José de Anchieta que produziu “obras especificamente literárias, em quatro línguas,
algumas vezes misturadas: português, espanhol, latim e tupi” (CANDIDO, 1999, p.
17). No entanto, esse acolhimento e respeito a expressão linguística indígena, mais
aberta aos grupos dominados, não foi aprovada no Brasil Colônia já que a ordem
era que a literatura culta registrada nos escritos da época deveria ser na língua
portuguesa.
A produção literária do século XVI e XVII está localizada na Bahia e é marcada
por produções individuais, com uma função social, que pode ser classificada em
literatura religiosa, oficial e comemorativa, apresentada na forma de sermões, odes,
sonetos, discursos e descrições. É no século XVIII que surgem as Academias de
Letras e que começa a se formar o sentimento de uma atividade literária comum no
país (CANDIDO, 1999). É também no século XVIII que surgem as primeiras obras
que discutem o conflito entre colonizadores e indígenas, “Caramurú” (1781) de José
de Santa Rita Durão e “Uraguaia” (1769) de José Basílio da Gama. Essas obras são
consideradas a marca inicial da corrente indianista romântica na história da literatura brasileira.
A segunda metade do século XVIII e começo do século XIX foi marcada por
uma literatura que tinham como conteúdo os temas indígenas e religiosos, cum-
6 “O termo usado no século XV era índio, no entanto, optamos por adotar o termo indígena
no lugar de índio neste trabalho. Isso se deve ao fato desse termo ter sofrido uma mudança de
conotação ao longo dos tempos. Conforme explica Munduruku (2015) em entrevista a Radio
EBC. O termo índio na atualidade carrega uma conotação ideológica preconceituosa e omite a
diversidade característica dos povos indígenas.”
40
Elisa Campos Machado, Gustavo Saldanha
prindo assim a missão de transformar o indígena num símbolo nacional dentro
de um cenário tropical e exótico. José de Alencar, se destaca na corrente indianista
com as obras “Iracema” e “O Guarani”. É a dimensão nacionalista dentro do Romantismo na literatura brasileira que buscava sua independência da literatura culta
europeia. Segundo Candido (1999, p. 42) a corrente indianista:
Serviu inclusive para mascarar (como disse Roger Bastide) a herança
africana, considerada então menos digna, porque o negro ainda era escravo e não fora idealizado pelas literaturas da Europa, que, ao contrário, fizeram do indígena um personagem cheio de encanto e nobreza,
como se deu na obra de Chateaubriand e, na América do Norte, na de
Fenimore Cooper.
Somente no final do século XIX, dentro do cenário abolicionista que se instaurava no país, que surgiu a poesia em solidariedade aos escravos que teve seu grande
representante o poeta Castro Alves e os romances que enfocam as causas populares
ligadas aos povos negros, como é o caso da obra “A escrava Isaura”, de Bernardo
Guimarães. Casos como do romance “Úrsula”, de Maria Firmina dos Reis, mulher
negra e maranhense, publicado no ano de 1859, antes mesmo de “Navio Negreiro”
publicado em 1880, entraram para o rol das obras esquecidas na história da literatura brasileira.
Nesse mesmo período, começou a crescer a importância da vida no campo
no texto literário marcando o início da corrente Regionalista7, que é caracterizada
pela descrição de lugares e costumes do interior do país em oposição a cidade.
Essa corrente literária abriu espaço para a presença das comunidades sertanejas na
literatura brasileira, como pode ser verificado nas obras de Bernardo Guimarães,
Franklin da Távora, Simões Lopes Neto e posteriormente de Euclides da Cunha,
Guimarães Rosa entre outros. O caipira, também considerado dentro dos grupos
de comunidades tradicionais está fortemente presente na literatura dessa época,
especialmente em Monteiro Lobato.
Apesar de termos obras na corrente Regionalista que respeitam e valorizam
a identidade do povo sertanejo, a exemplo das obras memoráveis de Guimarães Rosa, grande parte da produção literária dessa corrente é marcada pela
7 O termo regionalismo foi usado inicialmente para caracterizar a literatura produzida fora
do Rio de Janeiro, nas províncias. Somente nos anos de 1920, a noção de regionalismo entraria
definitivamente para o pensamento crítico e histórico e também como tomada de consciência do
particular e da reivindicação da especificidade literária e cultural (GIL, 2019, 61).
41
A bibliografia e a literatura de povos e comunidades tradicionais no Brasil
superficialidade e se “baseava no interesse elitista pelo homem do campo, visto
à maneira de um objeto pitoresco e caricatural, podendo nos cultores menores
chegar a uma vulgaridade folclórica ao mesmo tempo tola e degradante (CANDIDO, 1999, p. 66).
Na história da literatura brasileira são os modernistas, a partir do século XX,
que tentam implementar um novo olhar sobre o Brasil e o seu povo. É entendido
como o momento em que a literatura brasileira atinge a sua maturidade. Vale
apontar alguns destaques para a relação da literatura nessa nova fase com os
povos e comunidades hoje reconhecidas tradicionais em “Macunaíma” de Mario
de Andrade (1928), que une o indígena, o negro e o branco e é considerado uma
obra-prima na história da literatura brasileira; “Cobra Norato” (1931) que tem por
tema os povos da floresta e “Urucungo” (1933), considerada a mais representativa
obra da geração vanguardista sob a influência da estética negra, ambas de Raul
Bopp; “Grande sertão: veredas” (1956) de Guimarães Rosa obra prima da literatura brasileira assim considerada por transcender os limites da proza regionalista;
e “Maíra” (1976) romance do antropólogo Darcy Ribeiro que retoma a temática
indígena.
Na busca de indícios da presença dos povos e comunidades tradicionais na
história crítica da literatura brasileira foi possível reconhecer o indígena, o negro,
o sertanejo, o caipira e o ribeirinha. No entanto, nem sempre essas mesmas representações são reconhecidas por seus coletivos, já que na maioria das vezes foram
estereotipadas e tratadas como uma coisa, ou objeto e não como sujeitos de sua
própria história.
O caso dos negros na literatura é representativo e Proença Filho (2004) apresenta um minucioso estudo sobre o assunto no artigo A trajetória do negro na
literatura brasileira. O negro tem os olhos azuis em “O mulato” de Aluízio de Azevedo, o escravo é vítima em “Navio negreiro” de Castro Alves e nobre em “A escrava
Isaura” de Bernardo Guimarães, esses são só alguns dos exemplos que poderem ser
mencionados. Além disso,
O problema da representatividade não se resume, é claro, à honestidade
na busca pelo olhar do outro ou ao respeito por suas peculiaridades.
Está em questão a diversidade de percepções do mundo, que depende
do acesso à voz e não é suprida pela boa vontade daqueles que monopolizam os lugares de fala (DALCASTAGNÈ, 2007, p. 20).
Apesar da literatura ser um espaço privilegiado para a diversidade de vozes
e para a manifestação do reconhecimento das múltiplas expressões culturais de
42
Elisa Campos Machado, Gustavo Saldanha
grupos considerados subalternos, é igualmente depósito da opressão, do racismo
e da violência contra povos e comunidades tradicionais. Neste sentido, condição
da representação do indígena e do negro só se altera efetivamente na literatura
brasileira, a partir do momento em que estes assumem a autoria de suas obras, e
passam de objetos a sujeitos de sua história, o que acontece muito recentemente, na
chamada literatura contemporânea8, final do século XX em diante.
A presença desses autores ainda é pequena como aponta pesquisas do Grupo
de estudos em literatura contemporânea da Universidade de Brasília (UnB):
O perfil do romancista brasileiro publicado por grandes editoras se manteve o mesmo por pelo menos 43 anos. Ele é homem, branco, de classe
média, nascido no eixo Rio-São Paulo. Seus narradores, protagonistas
e coadjuvantes são em sua maioria homens, também brancos, de classe
média, heterossexuais e moradores de grandes cidades (MASSUELA, 2018)
Já o sertanejo, dentre os povos e comunidades tradicionais, talvez seja o coletivo mais bem representado na literatura. Isso pode ter ocorrido pelo fato do número
significativo de autores nordestinos que estavam mais próximos da realidade do
seu povo. Nesse sentido vale ler esse trecho de entrevista de Guimarães Rosa:
Nós, os homens do sertão, somos fabulistas por natureza. Está no nosso
sangue narrar estórias; já no berço recebemos esse dom para toda a
vida. Desde pequenos, estamos constantemente escutando as narrativas multicoloridas dos velhos, os contos e lendas, e também nos criamos em um mundo que às vezes pode se assemelhar a uma lenda cruel.
Deste modo a gente se habitua, e narra estórias que corre por nossas
veias e penetra em nosso corpo, em nossa alma, porque o sertão é a
alma de seus homens [...] Eu trazia sempre os ouvidos atentos, escutava
todo o que podia e comecei a transformar em lenda o ambiente que me
rodeava, porque este, em sua essência, era e continua sendo uma lenda
(LORENZ, 1991, p. 64).
Os vaqueiros, os caatingueiros, remeiros, entre outros representantes dos povos sertanejos tem a seu favor a cultura da literatura do cordel, que se apresenta
8 Para alguns críticos a literatura contemporânea é marcada a partir dos anos de 1960 e para
outros a partir dos anos de 1980, mas sem dúvida podemos dizer que foi a partir da metade do
século XX que ela se estabelece.
43
A bibliografia e a literatura de povos e comunidades tradicionais no Brasil
na forma de poesia popular, produzida por autores locais e reconhecida, em 2018,
como patrimônio cultural imaterial brasileiro.
No Brasil, no campo dos estudos literários contemporâneos, o debate e a preocupação com o espaço e a representação de grupos marginalizados tem se ampliado, reconhecendo a necessidade de legitimar os diferentes grupos sociais que são
menosprezados dentro da cultura dominante no fazer literário.
A representação na literatura tem também a sua importância política, pois
através dela um determinado grupo pode ter sua cultura valorizada ou apagada.
Nesse cenário onde está o direito a literatura dos povos e comunidades tradicionais no Brasil? O direito a literatura, tão defendido por Antônio Candido (2004)
é explicitada na Lei 13.696, de 12 de julho de 2018, que institui a “Política Nacional
de Leitura e Escrita”, e se relaciona as questões que envolvem a igualdade, a identidade, dignidade e o respeito a diversidade dentro do contexto da formação cidadã
de um povo e de uma nação. No caso da produção literária de e sobre os povos e
comunidades tradicionais no Brasil esse direito está previsto no inciso XIV do 1º.
Artigo, do Decreto 6040, que aborda as questões relativas a preservação dos direitos culturais, a memória cultural e a identidade racial e étnica.
Do ponto de vista bibliográfico, esse direito integra a metarrepresentação da pluralidade cultural do país, seus povos, seus saberes, seus fazeres, seus viveres, através
dos sistemas instituídos pela bibliografia. Trata-se, no plano da política, de perceber
como a experiência social e científica da bibliografia está presente nas mais diferentes formas do agir na cidade na Modernidade. A isso chamamos o horizonte da democracia documentária, a procura por uma construção da bibliografia como forma
política por fundamento. Os direitos sociais e culturais, os direitos à saúde e à educação, passam, nesse construto conceitual, por uma necessária formação bibliográfica
do país em seu amplo sentido – formação como processo educativo, como criação de
serviços e produtos, como manifestação de mecanismos de mudança social.
Sendo um direito é imperativo que a produção literária sobre e dos povos e comunidades tradicionais seja conhecida e difundida e a Biblioteconomia e a Ciência
da Informação podem colaborar não só participando dos debates e reflexões acerca
dessa temática, mas também na produção de métodos e instrumentos que organizem a produção literária de e sobre esses grupos.
3 A formação e desenvolvimento de coleções identitárias
Dentre as formas de colaboração para que os direitos culturais dos povos e
comunidades tradicionais no Brasil sejam reconhecidos, valorizados e difundidos,
podemos considerar a formação e desenvolvimento de coleções em bibliotecas.
Para isso é necessário identificar, selecionar, adquirir e tratar obras que tenham os
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Elisa Campos Machado, Gustavo Saldanha
povos e comunidades tradicionais como conteúdo temático. Cabe registrar que a
produção cultural de um povo ou comunidade tem uma abrangência documentaria que vai além da produção literária e do formato de livro, no entanto, esse foi o
recorte temático e a opção metodológica adotada neste estudo; - trabalhar com documentos no formato de livro e de manuscrito9 que tenham por assunto a literatura
brasileira de e sobre os povos e comunidades tradicionais.
No entanto, a complexidade que envolve a produção, difusão, circulação e recuperação de obras de literatura dessa natureza interfere substancialmente no desenvolvimento de coleções em bibliotecas, como apontado por Cidinha da Silva
(2014) na obra “Africanidades e relações raciais: insumos para políticas públicas
na área do livro, leitura, literatura e bibliotecas no Brasil”, bem como, na investigação de Graciele Ferreira (2017) intitulada “A biblioteca pública e a promoção da
cultura e identidade de remanescentes Quilombolas: o projeto Pontos de Leitura
Ancestralidade Africana no Brasil”. Essas são apenas duas fontes, entre outras, que
evidenciam a carência de políticas públicas estruturantes que contribuam para superar os desafios da ausência de coleções bibliográficas nos acervos das bibliotecas
brasileiras com registro da memória e dos saberes de grupos sociais menos favorecidos na sociedade brasileira atual.
Entende-se que entre as diferentes instituições de cultura e memória são as bibliotecas públicas e comunitárias, associadas a noção da promoção da cultura que
devem formar, manter e disponibilizar acervos que representem a cultura local.
Silveira e Reis (2011, p. 47) defendem que as bibliotecas públicas são “lugares de
memória”, justamente porque suas funções sociais estão respaldas por ações que
objetivam preservar e disseminar os saberes concebidos pelo fazer racional humano. Além disso, as diretrizes do SNBP para a formação e desenvolvimento de
acervos em bibliotecas públicas prevê:
• Qualidade: dotar o acervo das contribuições mais significativas nas diversas
áreas do conhecimento e do pensamento, bem como dos autores mais representativos no campo das ideias e da literatura local, nacional e estrangeira;
• Literatura: romances, poesias, contos, crônicas e outros gêneros literários;
é importante contemplar a produção literária local, estadual e/ou regional;
• Histórico-documental: materiais relativos à memória sociocultural e histórico-documental local;
• Pluralidade: respeitar a bibliodiversidade, a variedade e a multiplicidade das
fontes de informação, não devendo a instituição impor quaisquer restrições
9 Manuscrito referem-se a documentos não publicados
45
A bibliografia e a literatura de povos e comunidades tradicionais no Brasil
de natureza ideológica, filosófica ou religiosa, nem adotar um discurso único, para a formação do acervo” (SISTEMA NACIONAL DE BIBLIOTECAS PÚBLICAS, 2013?, não paginado).
Para que uma biblioteca pública cumpra suas funções é preciso que seu acervo
reflita as necessidades e desejos de leitura de sua comunidade (IFLA; UNESCO, 1994).
No entanto, como alertam Tanus e Cardoso (2018), no Brasil, essa mesma biblioteca pública, entendida como uma instituição social, carrega marcas das classes dominantes e, em especial, no que se refere a realidade de suas coleções são formadas
por obras literárias, predominantemente, de autoria masculina, branca, com forte
presença da literatura estrangeira.
A tarefa do bibliotecário/a que está a frente da formação e desenvolvimento de
coleções em bibliotecas públicas é buscar informação para proceder a seleção das
obras que deverão constituir as coleções específicas em suas bibliotecas, nesse ponto é preciso retomar as questões iniciais dessa pesquisa: - Qual literatura publicada
no país expressa os saberes e a cultura desses grupos na atualidade? Quais são as
referências literárias nesse campo?
São poucas as fontes de informação que podem responder essas questões, a
exemplo da “Bibliografia brasileira de publicações indígenas”, organizado por Aline
Franca, Daniel Munduruku e Thulio Gomes, de 2019 que busca inventariar toda
a produção literária e não literária dos povos indígenas, ou ainda o “Repertório
bibliográfico sobre a condição do negro no Brasil”, organizado pela Câmara dos
Deputados, publicado no ano de 2018, que abrange as comunidades quilombolas já
que seu recorte é a população negra no país. Além disso, algumas instituições que
se dedicam a determinados povos são também importantes fontes, a exemplo do
Museu do Índio que disponibiliza um catálogo bibliográfico online.
Os catálogos bibliográficos poderiam contribuir para responder com maior
precisão essas questões, no entanto, da representação temática adotada nas bibliotecas brasileiras não chega a tal especificidade. Aqueles catálogos que estão disponíveis online não possibilitam a recuperação por assuntos específicos como por
exemplo literatura brasileira e comunidades tradicionais, ou ainda, bibliotecas que
possuem tais coleções não disponibilizam catálogos bibliográficos online, como é
o caso da Biblioteca da Floresta do Acre que possui uma coleção riquíssima, de e
sobre os povos da floresta, que só pode ser consultada presencialmente.
É dentro desse contexto que a bibliografia de literatura na temática dos povos
e comunidades tradicionais brasileira foi apontada nesse estudo como um instrumento capaz de dar visibilidade para conteúdos específicos que não encontram
lugar e voz na sociedade.
46
Elisa Campos Machado, Gustavo Saldanha
4 Os desafios metodológicos para o trabalho bibliográfico
Os estudos sobre bibliografias partem de Gesner e da Bibliotheca Universallis,
passando pelo Repertoire Bibliographique Universel, de Paul Otlet e La Fontaine,
conforme registram vários autores (PINHEIRO, 2015; SALDANHA, 2015; CRIPA, 2019).
Dentro desse contexto histórico, Saldanha (2015, p. 147), destaca os estudos a obra
Dictionnaire Raisonné, de Gabriel Peignot, publicada em 1802 e “compreendida
como um dos pioneiros discursos epistêmicos gerais de tentativa de afirmação de
um campo científico orientado às práticas de preservação, organização e disseminação dos saberes registrados”.
Vale registrar que no Brasil a influência de Paul Otlet fomentou a criação do
Instituto Brasileiro de Brasileiro de Bibliografia e Documentação (IBBD), instituição fundada no ano de 1954 que teve seu nome alterado para Instituto Brasileiro de
Informação em Ciência e Tecnologia (IBICT) em 1976. O IBBD e atual IBICT, sempre esteve preocupado com o controle bibliográfico. Durante sua trajetória produziu
uma série de bibliografias em parceria com outras instituições de ensino e pesquisa,
mas ao longo dos tempos houve uma mudança de enfoque em suas pesquisas. Infelizmente, no Brasil, a produção bibliográfica é marcada pela descontinuidade e, a
partir da década de 1970 pela quase inexistência, como afirma Crippa (2019, p. 14).
Não cabe aqui aprofundar as discussões acerca dos estudos e reflexões que fundamentam a bibliografia, nem mesmo se pretende apresentar seu percurso histórico, mas é importante registrar sua relevância para a Biblioteconomia e Ciência da
Informação, sua intima relação com as questões que envolvem a memória individual e coletiva de uma sociedade e o seu papel referencial na formação e desenvolvimento de coleções dos diferentes tipos de bibliotecas.
Ao discutir a práxis dos fazeres bibliográfico Crippa (2016, p. 24) utiliza o termo ‘gesto bibliográfico’ e o define:
como o estabelecimento, por parte do bibliógrafo, de sentidos aos dados, orientando-os dentro de um quadro de conhecimentos socialmente compartilhados que ele, na medida em que manipula os registros
produzidos, contribui para constituir, desenvolvendo técnicas e selecionando tecnologias.
Estamos falando dos atos de coleta, seleção, registro e organização dos materiais que fazem parte de um determinado recorte temático. Dentre esses atos, para
o estabelecimento da forma de apresentação do registro optamos pela adoção da
Norma Técnica 6023 de 2018. Foram os atos que envolvem a coleta, seleção e organização dos registros que se mostraram como os grandes desafios nesse estudo.
47
A bibliografia e a literatura de povos e comunidades tradicionais no Brasil
Para nós a coleta e seleção estão intimamente ligados, pois são os critérios de
seleção que direcionam o ato da coleta. No recorte da pesquisa já foram estabelecidos os principais critérios: obras na forma de livros ou manuscritos; na categoria
literatura brasileira; com temática sobre os povos e comunidades tradicionais; privilegiando as edições mais recentes. No entanto, foi durante a processo de investigação do universo que surgiu o primeiro desafio: - seriam consideradas somente
obras de autoria de pessoas que fazem parte desses coletivos, ou seriam considerados também aquelas obras escritas por pessoas de fora das comunidades?
Na história da literatura brasileira, como vimos anteriormente, as obras categorizadas como indigenistas e regionalistas não refletem a realidade dessas culturas,
poucos são os autores que conseguem fugir da narrativa estereotipada e preconceituosa, no entanto, são esses mesmos autores os mais fáceis de serem acessados e
adquiridos, pois foram publicados comercialmente e encontram-se nas prateleiras
das grandes editoras e livrarias. Se quisermos que essa bibliografia sirva de base
para estudo sobre a temática que envolvam o campo da crítica literária a resposta
é sim, no entanto, se essa bibliografia tiver por objetivo dar voz aos sujeitos que
fazem parte dos povos e comunidades tradicionais a resposta será não. Inicialmente decidimos coletar obras de e sobre os povos e comunidades e indicar ao leitor
aquelas que são escritas por autores que fazem parte desses coletivos.
Diante dessa decisão é importante considerar que a quantidade de obras sobre a temática em questão é vasta e envolve os clássicos da literatura brasileira e
também a literatura publicada individualmente, ou por pequenas editoras locais,
pouco conhecidas pela grande maioria da população. As obras publicadas fora do
circuito das editoras comerciais, principalmente aquelas produzidas por membros
dessas comunidades estão dispersas pelo país, tornando o ato da coleta o segundo
desafio, pois como as dimensões e condições sociotécnicas do Brasil é impossível
que essa tarefa seja feita por uma única pessoa de um único ponto do país. Para ampliar a abrangência da coleta optamos pela adoção de uma metodologia de trabalho
colaborativa envolvendo profissionais e instituições que tem o reconhecimento e a
valorização da literatura brasileira identitária por objetivo comum, mas que além
disso também atuem junto a coleções que respeitem o princípio da bibliodiversidade, a exemplo das bibliotecas comunitárias que integram a Rede Nacional de
Bibliotecas Comunitárias (RNBC)10. Há de se levar em conta que o trabalho colaborativo envolve a formação de um repertório comum ao grupo de profissionais e
pesquisadores envolvidos, diante disso, foi criado um espaço coletivo virtual para
o estudo, debate e reflexão de temas que envolvem o fazer bibliográfico, o controle
10 Endereço eletrônico: https://rnbc.org.br
48
Elisa Campos Machado, Gustavo Saldanha
de vocabulário na temática dos povos e comunidades tradicionais, a padronização
e os métodos de coleta e registro de documentos.
Por fim, o terceiro desafio se apresentou no ato de organização dos registros.
O planejamento inicial já apontava para a necessidade de estabelecer o arranjo no
qual os registros seriam apresentados, levando em consideração a recuperação das
obras por povos e comunidades. Tendo em vista a carência de instrumentos de
controle de vocabulário nessa temática específica, foi necessário fazer um levantamento dos termos que representam esses coletivos, identificar as sinonímias e
estabelecer as relações hierárquicas e de equivalência. Esse vocabulário controlado
criado pelo grupo será utilizado para classificar as obras coletadas.
4 Considerações finais
A compreensão de um projeto de democracia documentária, conforme o percurso desta pesquisa pressupõe a necessária metarrepresentação de povos e comunidades tradicionais através de fontes de referência capazes de avançar, continuamente, na representação social dos saberes, dos fazeres e dos viveres dessas
sociedades. O exercício científico aqui desenvolvimento demonstra caminhos para
essa política bibliográfica, operacionalização a expressão conceitual da bibliografia
como ato político.
Igualmente, o estudo comprova as lacunas e aponta horizontes para a aplicação do princípio da bibliodiversidade na formação e desenvolvimento de coleções
de bibliotecas no país. Sobressai aqui o questionamento da capacidade de representação democrática de tais coleções, com destaque para o vínculo necessário de
problematização e de efetivação da noção de coleções identitárias na reflexão sobre
os acervos do país. Trata-se de correlacionar, inicialmente, os discursos de e sobre
povos e comunidades tradicionais presentes no território bibliográfico nacional.
A construção do ‘Repertório bibliográfico de literatura sobre e de povos e
comunidades tradicionais no Brasil’ constitui, pois, nessa medida, uma práxis: a
construção do próprio percurso de questionamento conceitual e ferramental a partir de e com a bibliografia para a metarrepresenatação sociocultural da realidade
brasileira.
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53
Termos fronteiriços no domínio gênero e
sexualidade na Organização do Conhecimento
Fabio Assis Pinho1
1 Introdução
As pesquisas de cunho social e político no âmbito da Organização do Conhecimento buscam, de certa maneira, compreender como os seus processos, produtos e instrumentos sendo eticamente aceitáveis, podem contribuir para minimizar as desigualdades que, porventura, venham a se materializar em seus sistemas.
A produção do conhecimento que engloba as diversas manifestações sociais
tem, no âmbito das Humanidades, tido uma atenção considerável no intuito de
demonstrar sua complexidade. Não obstante, a Organização do Conhecimento
terá um desafio considerável para amparar essa complexidade em seus processos,
produtos e instrumentos, pois de acordo com questionamento de Lara (2013, p.
238) haverá
dificuldades de tratar documentos em face à manifestação das diversidades sociais, culturais e políticas. Que ferramentas teremos de desenvolver para dar conta da produção do conhecimento e de sua recepção
quando verificamos que as referências da documentação ainda estão
assentadas nas hierarquias, no privilégio dos substantivos (as essências)
e, muitas vezes, em parâmetros universais?
Nesse mesmo sentido, Saldanha e Souza (2017, p. 16) ao se referirem aos métodos da Organização do Conhecimento também questionam: “qual a capacidade de
refletir sobre a condição social e qual a propensão de lutar pelas mudanças (de seus
construtos e daqueles imersos na complexidade do mundo social)?”
Verifica-se, então, que de um lado tem-se a complexidade inerente ao conhecimento que vem sendo produzido sobre questões sociais e, de outro lado, o ques1 Doutor em Ciência da Informação pela UNESP. Professor na UFPE. E-mail:
[email protected]
Termos fronteiriços no domínio gênero e sexualidade na Organização...
tionamento sobre como a Organização do Conhecimento desenvolverá seu arcabouço teórico-metodológico para tratar dessas questões complexas com intuito de
desenvolver sistemas eticamente aceitáveis.
Felizmente a comunidade científica, composta por pesquisadores da Organização do Conhecimento, não tem ignorado tal fenômeno e seus reflexos, mesmo
na perspectiva dos paradigmas físico e cognitivo da Ciência da Informação. De
tal modo, observa-se que o capítulo brasileiro da ISKO (International Society for
Knowledge Organization) preocupou-se em destacar, em seus eventos, as pesquisas
de cunho político-social atribuindo-lhes um espaço próprio (eixo) para discussão.
É nesse cenário que surge esta pesquisa sobre termos fronteiriços no domínio
gênero e sexualidade com a justificativa de que tal estudo possui utilidade social à
medida que seu compromisso com a comunidade usuária seja de tornar-lhe disponível informação passível de ser utilizada da melhor maneira possível em seu
dia-a-dia, distanciando-se de aspectos relativos à censura ou discriminação.
Diante disso, essa pesquisa se justifica também porque revisita métodos tradicionais da Organização do Conhecimento no sentido de compreendê-los em contextos complexos e plurais de conhecimento produzido, demonstrando não apenas
sua utilidade, mas também, o impacto social dos seus resultados. Diante disso, esta
pesquisa fundamenta-se no pós-estruturalismo subjetivo, pois segundo Martínez-Ávila e Beak (2016, p. 360), “consiste na existência de múltiplas realidades e o posicionamento epistemológico tenta revelar as premissas subjacentes a essas realidades”.
E por que termos fronteiriços no domínio de gênero e sexualidade? Porque
alguns termos que materializam determinadas identidades subjacentes a gênero e
sexualidade não se enquadram, em termos classificatórios, em dicotomias ou hierarquias. Por conta disso, eles são considerados fronteiriços, pois as características
epistêmicas de seus conceitos transitam por múltiplas classes ou negam algumas
delas. Assim sendo, são termos que estão nas fronteiras podendo ou não pertencer
a várias classes.
Nesse sentido, a problemática da pesquisa reside no fato de que esses termos
fronteiriços materializam uma realidade diversa social e culturalmente que confrontam com os métodos tradicionais de organização e representação do conhecimento, tais como as categorias fundamentais de Ranganathan (PMEST). Diante
disso, tem-se a seguinte questão de pesquisa: as categorias fundamentais de Ranganathan (PMEST) e os mapas conceituais são adequados para organizar termos
fronteiriços no domínio de gênero e sexualidade?
Para responder a essa questão, o objetivo desta pesquisa foi verificar a adequação das categorias fundamentais de Ranganathan (PMEST) e de mapas conceituais
para organizar termos fronteiriços no domínio de gênero e sexualidade.
56
Fabio Assis Pinho
2 Organização do Conhecimento em gênero e sexualidade
Para a elaboração de Sistemas de Organização do Conhecimento (SOC), tais
como tesauros, classificações bibliográficas, ontologias etc. são necessárias as garantias de uso/usuário, literária, cultural entre outras. As garantias mais recorrentes para elaboração de SOC são a literária e a de uso/usuário, sendo que a primeira
pressupõe que a base léxica seja oriunda da produção de conhecimento do domínio estudado e, a segunda, pressupõe que a comunidade discursiva faça uso da base
léxica em questão.
Entretanto, Barité et al. (2010, p. 124) destacam que “faltam estudos regulares
sobre o estado de reconhecimento do princípio” e que as metodologias de SOC fazem menções esporádicas sobre o uso e aplicação de tais garantias, particularmente
a literária.
As garantias validam os temas oriundos dos documentos pertencentes ao domínio. Na mesma proporção, a análise de domínio possibilita que os estudos terminográficos e terminológicos para SOC possibilitem a compreensão daquela área/
campo/comunidade discursiva. Dessa maneira, os estudos de gênero e sexualidade
são considerados como o domínio a ser compreendido a partir da compreensão de
Hjørland (2002).
Tennis (2012, p. 6) elenca dois tipos de análises de domínio para criar os SOC:
a descritiva e a instrumental. Enquanto a primeira é regida pelos interesses dos
pesquisadores no domínio e em pesquisas básicas, a segunda é utilizada pelos desenvolvedores de SOC em pesquisas empíricas/aplicadas. Dessa forma, ao estudarmos um domínio torna-se necessário nomeá-lo, defini-lo e identificar seu escopo,
alcance e propósito.
Assim, compreendemos gênero e sexualidade como o domínio a ser investigado por meio de um estudo terminográfico e terminológico, na perspectiva da
Organização do Conhecimento, com o intuito de entender essas realidades sociais.
Com isso, o desafio da Organização do Conhecimento na contemporaneidade situa-se na tentativa de integrar a multiplicidade sociocultural, particularmente no
tocante a gênero e sexualidade, nos seus sistemas.
Segundo Guimarães (2017, p. 92-93), na “dimensão cultural, os maiores desafios se colocam no sentido de se evitar o preconceito, o proselitismo e as dominações culturais de modo a promover a compatibilização entre a necessidade de uma
comunicação global e o respeito às questões locais”.
Tal dimensão citada deve ser considerada pela tríade que rege a atuação da
Organização do Conhecimento, sendo: o domínio, a materialidade da informação
e os métodos da Organização do Conhecimento, conforme figura 1 a seguir.
57
Termos fronteiriços no domínio gênero e sexualidade na Organização...
Figura 1 – Tríade de atuação da Organização do Conhecimento.
Fonte: Interpretação do autor.
O domínio de gênero e sexualidade, nesta pesquisa, parte do entendimento de
construção social, onde o gênero possui características descritas pela sociedade, a
partir da dicotomia masculino e feminino e, sexualidade, por sua vez, é compreendida a partir de um conjunto de comportamentos para satisfação do desejo. Em
ambos há elementos que farão parte da identidade do sujeito. Percebemos que o
domínio de gênero e sexualidade possui um conjunto de fatores que dificilmente se
encaixam em uma definição única e absoluta.
Esse domínio é submetido aos procedimentos metodológicos da Organização
do Conhecimento que, por sua vez, estão sustentados nos nove princípios propostos por Hjørland (1994, p. 91-100), a saber: 1) a percepção realístico-ingênua
de estruturas do conhecimento não é possível em ciências mais avançadas (critério esse baseado na filosofia da ciência); 2) categorizações e classificações devem
reunir assuntos relacionados e separar assuntos distintos; 3) para fins práticos, o
conhecimento pode ser organizado de diferentes formas, e com diferentes níveis
de ambição; 4) qualquer categorização deve refletir seu próprio objetivo; 5) categorizações científicas concretas e classificações sempre podem ser questionadas; 6)
a importância do conceito de polirrepresentação; 7) diferentes artes e ciências podem, de certo modo, ser entendidas como diferentes formas de organizar os mesmos fenômenos; 8) a natureza das disciplinas é variável; 9) a qualidade da produção
do conhecimento em muitas disciplinas enfrenta uma situação confusa.
Entendemos, dessa forma, que a complexidade do domínio em questão – gênero e sexualidade – não é simplista e, por conta disso, deve ser organizado de forma
58
Fabio Assis Pinho
individualizada e os termos fronteiriços inerentes a ele não encontrarão respaldo
nas categorizações dicotômicas convencionais.
Dessa forma, neste estudo foram destacados dois métodos: a categorização de
Ranganathan (PMEST) e a elaboração de mapas conceituais.
Os termos fronteiriços relativos ao domínio de gênero e sexualidade são oriundos
de publicações científicas e, diante disso, eles perfazem a tríade de atuação da Organização do Conhecimento, uma vez que, são oriundos da materialidade da informação
onde o conhecimento a respeito do domínio é produzido. Temos, portanto, os termos
fronteiriços oriundos da literatura científica vislumbrando o que Buckland (1991) denomina de “informação-como-coisa”, ou seja, o documento e/ou documentação científica.
A partir dos teóricos citados anteriormente, encontra-se a seguir, o percurso
metodológico utilizado para dar resposta à questão de pesquisa e, consequentemente, alcançar o objetivo proposto, bem como, as análises realizadas.
3 Análise dos termos fronteiriços
Esta pesquisa foi considerada exploratória à medida que buscou familiaridade
com o tema – termos fronteiriços no domínio de gênero e sexualidade – com o
objetivo de verificar a adequação das categorias fundamentais de Ranganathan e
dos mapas conceituais para organizá-los.
Nascimento, Leite Júnior e Pinho (2016) haviam alertado para os desafios que a
Organização do Conhecimento teria em relação ao domínio gênero e sexualidade,
especialmente, para que processos, produtos e instrumentos fossem permeados de
forma ética. Consequentemente, Pinho, Melo e Oliveira (2019) investigaram como
o domínio gênero e sexualidade é representando em dois catálogos bibliográficos,
demonstrando não apenas a generalização com a qual os termos do domínio são
tratados, mas também os problemas éticos decorrentes.
A partir de então, o fio dessa linha de pesquisa foi sendo amarrado aos interesses dos estudos políticos e culturais da Organização do Conhecimento. Nesse sentido, os 35 termos fronteiriços em relação a gênero e sexualidade foram extraídos
das palavras-chave dos artigos científicos publicados em Journal of Homosexuality,
Sexualities e Journal of Gay & Lesbian Mental Health, entre os anos de 2010 e 2019,
sendo eles: agender, aliagender, ambigender, androgine, bigender (female-male), butch non-binary, cristaline, demigender, denboy, demigirl, efemere, femme non-binary,
genderfluid (female-male), genderflux, genderfuck, genderpivot, genderqueer non-binary, graygender, male non-binary, intergender ou intersex, female non-binary, nan0gender, nan0boy, nan0girl, nan0-menine, negative, neutrois, pangender, poligender,
positive, third gender, transfemale ou male to female, transfemale ou female to male,
travestite non-binary e trigender.
59
Termos fronteiriços no domínio gênero e sexualidade na Organização...
Nesse aspecto, vislumbrou-se um estudo terminológico, levando em consideração a Teoria Comunicativa da Terminologia (TCT) de Cabré (2005), uma vez que
a Terminologia se dedica à observação do comportamento dos termos e sua relação com o conhecimento científico e, dessa maneira, apontou elementos teóricos e
princípios práticos capazes de nortear a ordenação de termos do domínio estudado. Sob o ponto de vista da Terminologia, Adelstein e Cabré (2002) argumentam
que as unidades lexicais (no caso aqui são os termos fronteiriços) estão associadas
às situações comunicacionais e, por isso, podem manter relacionamentos polissêmicos.
Com base no argumento anterior e com o objetivo de organizar o processo
terminográfico, no âmbito da Documentação, a Terminologia auxiliou na análise
desse conjunto de 35 termos como um elemento-chave para representar o conteúdo
de documentos, possibilitando sua compreensão como fronteiriços.
Após a coleta dos termos foi realizada a revisão dos termos selecionados, seus
conceitos e traduções por meio de pesquisas em dicionários, livros, artigos e revistas acessados pelo Portal da CAPES. Logo em seguida, eles foram classificados de
acordo com as categorias fundamentais de Ranganathan – Personalidade (P), Matéria (M), Energia (E) – sendo que as categorias – Espaço (S) e Tempo (T) – foram
excluídas da análise, uma vez que os termos são dinâmicos e não se esgotam em si,
podendo mudar ao longo do tempo.
O uso das categorias de Ranganathan tem apoio nos argumentos de Campos,
Gomes e Oliveira (2013) e foi pelo fato de ser um método de raciocínio para explicar o domínio estudado por meio de seus conceitos. As categorias de Ranganathan
têm amparo nas categorias Coisa, Propriedade e Ação de Aristóteles e possuem
base na lógica e com elas é possível realizar a organização de conceitos obtendo
cadeias e renques, o que possibilita que o domínio seja visto de forma inter-relacionada (CAMPOS; GOMES; OLIVEIRA, 2013).
O resultado parcial dessa análise pode ser verificado em Pinho e Milani (2020,
p. 95) e foi trazido para esta pesquisa, conforme Quadro 1 a seguir, com adaptações e complementação para sua compreensão utilizando os mapas conceituais.
Assim, no Quadro 1 obtivemos, por meio do uso das categorias de Ranganathan, as
inter-relações existentes nos conceitos, a partir dos questionamentos quem, o quê
e como, do domínio estudado e que são materializadas pelos termos fronteiriços.
60
Fabio Assis Pinho
Quadro 1 – Termos fronteiriços analisados de acordo com o PMEST.
TERMO
Agênero
Agender
RANGANATHAN
Personalidade (Enuncia o discurso – quem é)
Matéria (Conseguir o produto final – o que faz)
Energia (Manifesta nas atividades – como faz)
Personalidade (Enuncia o discurso – quem é)
Ambigênero Closet
Matéria (Conseguir o produto final – o que faz)
Energia (Manifesta nas atividades – como faz)
Personalidade (Enuncia o discurso – quem é)
Andrógeno
Closet
Matéria (Conseguir o produto final – o que faz)
Energia (Manifesta nas atividades – como faz)
Personalidade (Enuncia o discurso – quem é)
Bigênero FemininoMasculino
Closet
Matéria (Conseguir o produto final – o que faz)
Energia (Manifesta nas atividades – como faz)
Personalidade (Enuncia o discurso – quem é)
Cristal
Cristaline
Matéria (Conseguir o produto final – o que faz)
Energia (Manifesta nas atividades – como faz)
Personalidade (Enuncia o discurso – quem é)
Demigênero Demigender
Matéria (Conseguir o produto final – o que faz)
Energia (Manifesta nas atividades – como faz)
Personalidade (Enuncia o discurso – quem é)
Demimenino Denboy
“Demiboy”
Matéria (Conseguir o produto final – o que faz)
Energia (Manifesta nas atividades – como faz)
Personalidade (Enuncia o discurso – quem é)
Demimenina Demigirl
Matéria (Conseguir o produto final – o que faz)
Energia (Manifesta nas atividades – como faz)
RESULTADO
Indivíduo que não se considera pertencente a nenhum
gênero.
Ignora os conceitos de gênero.
Não se identificando com nenhum gênero.
Indivíduo que se identifica simultaneamente com os
gêneros feminino e masculino.
Identifica-se simultaneamente com os gêneros
feminino e masculino.
Se reconhecendo como mulher e homem
simultaneamente.
Indivíduo que tem características físicas dos sexos
femininos e masculinos, ou possui sexo indeterminado.
Possui características físicas dos sexos femininos e
masculinos, ou possui sexo indeterminado.
Apresentando características físicas dos sexos
femininos e masculinos, ou possui sexo indeterminado.
Indivíduo cuja identidade de gênero engloba tanto o
gênero feminino quanto o masculino.
Reconhece-se com o gênero biológico e também com
o gênero oposto dentro da divisão binária.
Reconhecendo sua identidade de gênero como a
sua biológica e também a oposta dentro da divisão
binária.
Indivíduo cujo gênero se quebra em vários gêneros
diferentes.
Identifica-se com diversos gêneros de maneira fluida,
aleatória e fragmentada.
Identificando-se com diversos gêneros de maneira
fluida, aleatória e fragmentada.
Indivíduo que possui uma conexão parcial com sua
identidade de gênero.
Sentem-se representadas apenas em parte por um
gênero específico.
Sentindo-se representadas apenas parcialmente por
um gênero específico.
Indivíduo que se identifica parcialmente com o gênero
masculino.
Reconhece-se como pertencente ao gênero masculino,
entretanto apenas parcialmente.
Reconhecendo-se como pertencente ao gênero
masculino, entretanto apenas parcialmente.
Indivíduo que se identifica parcialmente com o gênero
feminino.
Reconhece-se como pertencente ao gênero feminino,
entretanto apenas parcialmente.
Reconhecendo-se como pertencente ao gênero
feminino, entretanto apenas parcialmente.
61
Termos fronteiriços no domínio gênero e sexualidade na Organização...
Quadro 1 – Termos fronteiriços analisados de acordo com o PMEST.
TERMO
RANGANATHAN
Personalidade (Enuncia o discurso – quem é)
Entre gênero Aliagender
Matéria (Conseguir o produto final – o que faz)
Energia (Manifesta nas atividades – como faz)
Personalidade (Enuncia o discurso – quem é)
Efêmero
Efemer
Matéria (Conseguir o produto final – o que faz)
Energia (Manifesta nas atividades – como faz)
Personalidade (Enuncia o discurso – quem é)
Feminina não binária
Femme non-binary
Matéria (Conseguir o produto final – o que faz)
Energia (Manifesta nas atividades – como faz)
Gênero fluido femininomasculino Genderfluid
Female-male
Personalidade (Enuncia o discurso – quem é)
Matéria (Conseguir o produto final – o que faz)
Energia (Manifesta nas atividades – como faz)
Personalidade (Enuncia o discurso – quem é)
Gênero fluxo Genderflux
Matéria (Conseguir o produto final – o que faz)
Energia (Manifesta nas atividades – como faz)
Personalidade (Enuncia o discurso – quem é)
“Quebra de Gênero”
Genderfuck
Matéria (Conseguir o produto final – o que faz)
Energia (Manifesta nas atividades – como faz)
Personalidade (Enuncia o discurso – quem é)
Gênero Pivô Genderpivot
Matéria (Conseguir o produto final – o que faz)
Energia (Manifesta nas atividades – como faz)
62
RESULTADO
Indivíduo que possui forte ligação com seu gênero,
mas transcende qualquer gênero.
Não se identifica com nenhum dos gêneros, mas
possuem forte ligação com sua própria identidade
de gênero.
Possuindo forte ligação com sua identidade de
gênero, entretanto não se identifica com nenhuma
característica de nenhum gênero.
Indivíduo que tem sua orientação sexual transitória.
Possui orientação sexual transitória, temporária,
passageira.
Transitando entre gêneros.
Indivíduo que tem características e comportamentos
predominantemente femininos, mas não se identifica
com a divisão binária de gênero e sexualidade.
Não se identifica com a divisão binária de gêneros,
mas tem comportamentos predominantemente
femininos.
Possuindo características e comportamentos
predominantemente femininos, mas não acreditam na
divisão binária de gênero.
Indivíduo que não possui identidade de gênero fixa.
Muda a identidade de gênero, entre a divisão binária.
Mudando a sua identidade de gênero entre a divisão
binária, sendo um de cada vez.
Indivíduo que muda a intensidade do gênero (seja
ele binário ou não) que se identifica de um momento
para o outro.
Muda a intensidade do gênero que se identifica de um
momento para o outro.
Mudando a intensidade do gênero que se identifica de
um momento para o outro.
Indivíduo que propositalmente desafia as normas de
gênero.
Transgridem as “normas” de comportamento e
apresentação dos gêneros feminino e masculino,
fazendo combinações inesperadas características dos
dois gêneros.
Apresentando combinações inesperadas de
comportamentos e características dos gêneros
masculino e feminino.
Indivíduo que ao mesmo tempo se identifica de forma
fixa como bigênero e de forma mutável como gênero
fluido.
Reconhecem seu gênero pela divisão binária e tem
esse mesmo como fixo, além de ser gênero fluido,
provocando mudanças de gênero nesse aspecto.
Reconhecendo seu gênero pela divisão binária e tem
esse mesmo como fixo, além de ser gênero fluido,
provocando mudanças de gênero nesse aspecto.
Fabio Assis Pinho
Quadro 1 – Termos fronteiriços analisados de acordo com o PMEST.
TERMO
RANGANATHAN
Personalidade (Enuncia o discurso – quem é)
Gênero distinto não binário
Matéria (Conseguir o produto final – o que faz)
Genderqueer non-binary
Energia (Manifesta nas atividades – como faz)
Personalidade (Enuncia o discurso – quem é)
Gênero cinza Graygender
Matéria (Conseguir o produto final – o que faz)
Energia (Manifesta nas atividades – como faz)
Personalidade (Enuncia o discurso – quem é)
Homem não binário
Male non-binary
Matéria (Conseguir o produto final – o que faz)
Energia (Manifesta nas atividades – como faz)
Personalidade (Enuncia o discurso – quem é)
Intergênero ou Intersexo
Intergender Intersex
Matéria (Conseguir o produto final – o que faz)
Energia (Manifesta nas atividades – como faz)
Personalidade (Enuncia o discurso – quem é)
Mulher não binária
Female non-binary
Matéria (Conseguir o produto final – o que faz)
Energia (Manifesta nas atividades – como faz)
Personalidade (Enuncia o discurso – quem é)
Nano Gênero / “Pequeno
gênero” Nanogender
Matéria (Conseguir o produto final – o que faz)
Energia (Manifesta nas atividades – como faz)
RESULTADO
Indivíduo que não se encaixa nas distinções
convencionais de gênero, além de não se identificar
com a divisão binária.
Não se consideram pertencentes ao gênero feminino
ou masculino.
Não apresentando características das distinções
convencionais da divisão binária de gênero.
Indivíduo que possui fraca ligação com sua identidade
de gênero.
Não possui forte ligação com o gênero que se
reconhece.
Possuindo o sentimento de ligação fraca com o gênero
que se reconhece.
Indivíduo que possui características e
comportamentos tradicionalmente masculinos, mas
que não se identifica com a divisão binária de gênero
e sexualidade.
Possui características e comportamentos
tradicionalmente masculinos, mas que não se
identifica com a divisão binária de gênero e
sexualidade.
Não se identificando com a divisão binária de gênero
e sexualidade, mesmo possuindo características e
comportamentos tradicionalmente masculinos.
Indivíduo que possui ambos os órgãos sexuais ou
características sexuais femininas e masculinas.
Apresenta características femininas e masculinas,
incluindo os dois órgãos sexuais.
Possuindo as características e órgãos sexuais
masculinos e femininos.
Indivíduo que possui características e
comportamentos tradicionalmente femininos, mas
não se identifica com a divisão binária de gênero e
sexualidade.
Possui características e comportamentos
tradicionalmente femininos, mas não se identifica com
a divisão binária de gênero e sexualidade.
Não se identificando com a divisão binária de gênero
e sexualidade, mesmo possuindo características e
comportamentos tradicionalmente femininos.
Indivíduo que possui leve identificação com o conceito
de gênero ou com alguma identidade de gênero não
binária.
Possui leve identificação com alguma identidade
de gênero, e simultaneamente, com alguma outra
identidade de gênero não-binária, sendo esta de forma
predominante.
Possuindo leve identificação com alguma identidade
de gênero, e simultaneamente, com alguma outra
identidade de gênero não-binária, sendo esta de forma
predominante.
63
Termos fronteiriços no domínio gênero e sexualidade na Organização...
Quadro 1 – Termos fronteiriços analisados de acordo com o PMEST.
TERMO
RANGANATHAN
Personalidade (Enuncia o discurso – quem é)
Nano Menino / “Pequeno
garoto” Nanoboy
Matéria (Conseguir o produto final – o que faz)
Energia (Manifesta nas atividades – como faz)
Personalidade (Enuncia o discurso – quem é)
Nano menina / “Pequena
menina”
Nanogirl
Matéria (Conseguir o produto final – o que faz)
Energia (Manifesta nas atividades – como faz)
Nano-Menine
Matéria (Conseguir o produto final – o que faz)
Energia (Manifesta nas atividades – como faz)
Personalidade (Enuncia o discurso – quem é)
Neutro
Neutrois
Matéria (Conseguir o produto final – o que faz)
Energia (Manifesta nas atividades – como faz)
Personalidade (Enuncia o discurso – quem é)
Pangênero Pangender
Matéria (Conseguir o produto final – o que faz)
Energia (Manifesta nas atividades – como faz)
64
Indivíduo que possui leve identificação com o
gênero masculino e simultaneamente com alguma
outra identidade de gênero não-binária, sendo esta
predominante.
Possui leve identificação com o gênero masculino e
simultaneamente com alguma outra identidade de
gênero não-binária, sendo esta predominante.
Possuindo leve identificação com o gênero masculino
e simultaneamente com alguma outra identidade de
gênero não-binária, sendo esta predominante.
Indivíduo que possui leve identificação com o
gênero feminino e simultaneamente com alguma
outra identidade de gênero não-binária, sendo esta
predominante.
Possui leve identificação com o gênero feminino e
simultaneamente com alguma outra identidade de
gênero não-binária, sendo esta predominante.
Possuindo leve identificação com o gênero feminino
e simultaneamente com alguma outra identidade de
gênero não-binária, sendo esta predominante.
É um termo utilizado com o mesmo significado
de Nano gênero.
Personalidade (Enuncia o discurso – quem é)
Negativo
Negative
RESULTADO
Indivíduo que não se sente parte de um gênero
específico.
Não possui identidade relacionada às outras
construções de gênero ou tem apenas uma vivência
distante.
Não se identificando como as construções de gênero,
ou possuindo apenas uma vivência distante.
Indivíduo que tem sua identidade caracterizada pela
sensação de neutralidade ou balanceamento.
Não pertence especificamente ao gênero feminino
ou masculino, ou a qualquer outro, mas uma parte
de todos.
Não se sentindo pertencente especificamente ao
gênero feminino ou masculino, ou a qualquer outro,
mas uma parte de todos.
Indivíduo que pode possuir multiplicidade de gêneros
e se identificar com infinitos gêneros, incluindo
aqueles ainda não reconhecidos.
Identifica-se com infinitos gêneros, incluindo gêneros
ainda não reconhecidos.
Identificando-se com infinitos gêneros, incluindo
gêneros ainda não reconhecidos, podendo ser
simultaneamente todos, ou não.
Fabio Assis Pinho
Quadro 1 – Termos fronteiriços analisados de acordo com o PMEST.
TERMO
RANGANATHAN
Personalidade (Enuncia o discurso – quem é)
Matéria (Conseguir o produto final – o que faz)
Poligênero Poligender
Energia (Manifesta nas atividades – como faz)
Personalidade (Enuncia o discurso – quem é)
Positivo Positive
Matéria (Conseguir o produto final – o que faz)
Energia (Manifesta nas atividades – como faz)
Personalidade (Enuncia o discurso – quem é)
“Sapatão não binário”
Butch non-binary
Matéria (Conseguir o produto final – o que faz)
Energia (Manifesta nas atividades – como faz)
Personalidade (Enuncia o discurso – quem é)
Terceiro Gênero Third
gender
Matéria (Conseguir o produto final – o que faz)
Energia (Manifesta nas atividades – como faz)
Personalidade (Enuncia o discurso – quem é)
Mulher trans Transfemale /
Male to female
Matéria (Conseguir o produto final – o que faz)
Energia (Manifesta nas atividades – como faz)
Personalidade (Enuncia o discurso – quem é)
Homem Trans Transmale /
Female to male
Matéria (Conseguir o produto final – o que faz)
Energia (Manifesta nas atividades – como faz)
RESULTADO
Indivíduo que possui muitos gêneros.
Possui vários gêneros, esses podendo ser binários e
não-binários.
Possuindo vários gêneros, que podem se apresentar
simultaneamente ou não. Estes podem ser binários ou
não-binários.
Indivíduo que não tem sua identidade relacionada às
construções de gêneros, mas que se sente parte de
um gênero específico.
Não possui identidade relacionada às outras
construções de gêneros, mas se sente parte de um
gênero específico.
Não possuindo identidade relacionada às outras
construções de gêneros, se sente parte de um gênero
específico.
Indivíduo do sexo feminino que apresenta
características tradicionalmente masculinas, mas que
não se identifica com a divisão binária de gêneros e
sexualidade.
Não se identifica com a divisão binária de gêneros
e sexualidade mesmo possuindo características
tradicionalmente masculinas, e sendo originalmente
do sexo feminino.
Não se identificando com a divisão binária de gêneros
e sexualidade mesmo possuindo características
tradicionalmente masculinas, e sendo originalmente
do sexo feminino.
Indivíduo que não se identifica com gênero específico
algum.
Não se reconhece pelos gêneros binários, nem pela
junção de outros gêneros não-binários.
Não se reconhecendo pelos gêneros binários, nem
pela junção de outros gêneros não-binários.
Indivíduo nascido no sexo masculino, mas que se
identifica com o gênero feminino.
Reconhece-se como pertencente ao gênero feminino,
mesmo nascendo do sexo masculino.
Reconhece-se como pertencente ao gênero feminino,
mesmo nascendo do sexo masculino, podendo ter
feito cirurgia de transição ou não.
Indivíduo nascido no sexo feminino, mas que se
identifica com o gênero masculino.
Reconhece-se como pertencente ao gênero masculino,
mesmo nascendo do sexo feminino.
Reconhece-se como pertencente ao gênero masculino,
mesmo nascendo do sexo feminino, podendo ter feito
cirurgia de transição ou não.
65
Termos fronteiriços no domínio gênero e sexualidade na Organização...
Quadro 1 – Termos fronteiriços analisados de acordo com o PMEST.
TERMO
RANGANATHAN
Personalidade (Enuncia o discurso – quem é)
Travesti não binário
Travestite non-binary
Matéria (Conseguir o produto final – o que faz)
Energia (Manifesta nas atividades – como faz)
Personalidade (Enuncia o discurso – quem é)
Trigênero Trigender
Matéria (Conseguir o produto final – o que faz)
Energia (Manifesta nas atividades – como faz)
RESULTADO
Indivíduo geralmente do sexo masculino que sente
prazer em usar trajes associadas ao gênero oposto.
Usa trajes/vestimentas associados ao gênero oposto
do masculino, por prazer.
Usando trajes/vestimentas associados ao gênero
oposto do masculino, por prazer.
Indivíduo que possui três identidades de gênero,
simultaneamente ou não, sendo elas: feminina,
masculina e qualquer outra.
Possui três identidades de gênero, simultaneamente
ou não, sendo elas: feminina, masculina e qualquer
outra.
Possuindo três identidades de gênero,
simultaneamente ou não, sendo elas: feminina,
masculina e qualquer outra.
Fonte: Adaptado de Pinho e Milani (2020).
Os resultados descritos no Quadro 1 demonstram as características epistêmicas
de cada um dos termos fronteiriços a partir das categorias fundamentais de Ranganathan, excluindo-se as categorias de Espaço e Tempo. Esses resultados foram
submetidos ao procedimento de elaboração de mapas conceituais proposto por
Rodrigues e Cervantes (2016), que se resumem em seis: i) identificação do tema a
se representar, ii) verificação dos conceitos, iii) ordenação dos conceitos em listas,
iv) agrupamento e arranjos dos conceitos por palavras ou símbolos, v) estabelecimento das conexões e vi) revisão da estrutura do mapa. Após esse procedimento,
foi utilizado o software gratuito CmapTools para a confecção dos mapas conceituais
que são demonstrados a seguir nas Figuras 2 e 3.
66
Fabio Assis Pinho
Figura 2 – Mapa conceitual de termos fronteiriços em relação a Gênero.
Fonte: Dados da pesquisa.
67
Termos fronteiriços no domínio gênero e sexualidade na Organização...
Figura 3 – Mapa conceitual de termos fronteiriços em relação à Sexualidade.
Fonte: Dados da pesquisa.
Os mapas conceituais demonstram que as características epistêmicas dos conceitos materializados pelos termos fronteiriços possuem conexões que transitam
pela dicotomia masculino e feminino, porém, não se encerram nelas.
Os resultados das análises expostas no Quadro 1 e nas Figuras 2 e 3 retomam o
que García Gutiérrez (2002, p. 519) denominou de Epistemografia Interativa, onde
permite que questões polarizadas possam, de forma dialógica, serem introduzidas
sem privilégios pelo mediador no SOC. A organização dos termos fronteiriços do
domínio gênero e sexualidade necessitam de uma forma dialógica de organização
para que possam ser eticamente representados em SOC. A Epistemografia Interativa permite uma maneira de incluir as diferentes visões culturais e suas relações,
estabelecendo uma ética transcultural de mediação. Nesse sentido, a categorização
por meio do PMEST e a compreensão temática por meio dos mapas conceituais
permitem esse entendimento teórico advindo da Epistemografia Interativa, ou seja,
uma combinação de Teoria Crítica com a Hermenêutica, nas práticas de organização e representação do conhecimento permitindo uma contraposição à classificação linear e à purificação conceitual ou mesmo às dicotomias.
Esses resultados corroboram também com Gaudêncio (2020) que ao analisar
as temáticas relativas aos “cibercordéis” utilizou-se de marcadores sociais a par-
68
Fabio Assis Pinho
tir de uma bricolagem metodológica para compreender a complexidade temática
inerente a esse tipo documental, resultando em um protótipo de Ecossistema da
Representação Sociocultural do Conhecimento. Assim, entendemos que a partir de
uma construção dialética compreenderemos adequada e eticamente as temáticas
relativas às construções sociais, particularmente em relação a gênero e sexualidade
e inseri-las adequada e eticamente em SOC.
4 Considerações
De acordo com a pesquisa, concluímos que as categorias fundamentais de Ranganathan são adequadas para organizar os termos fronteiriços no domínio gênero
e sexualidade, particularmente por meio das categorias Personalidade, Matéria e
Energia, bem como, uma análise combinada com os mapas conceituais para averiguar as relações entre os termos e conceitos.
Dessa forma, obtivemos subsídios para a elaboração de SOC eticamente aceitáveis à medida que as categorias fundamentais de Ranganathan permitiram a compreensão das características epistêmicas dos conceitos materializados por meio dos
termos fronteiriços e os mapas conceituais permitiram a compreensão dessas fronteiras subsidiando a elaboração de futuras relações entre os termos e os conceitos,
incluindo a possibilidade de compreensão dos assuntos nos documentos a partir
da laminação, desnudação, dissecação e agregação. Portanto, os termos fronteiriços
no domínio gênero e sexualidade não podem ser organizados por meio de dicotomias ou hierarquias em SOC, mas sim, levando em consideração o contexto e
as características epistêmicas de seus conceitos e a forma como elas se relacionam
proporcionando uma epistemografia interativa.
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Termos fronteiriços no domínio gênero e sexualidade na Organização...
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contribuição teórico-metodológica para o campo informacional. 195 f. 2020. Tese
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TENNIS, J. Com o que uma análise de domínio se parece no tocante a sua forma,
função e gênero? Brazilian Journal of Information Science, Marília, v. 6, n. 1, p.
3-15, 2012.
71
Dorothy Porter Wesley e a organização do conhecimento:
um olhar a partir da Teoria Crítica Racial Duboisiana
Franciéle Carneiro Garcês da Silva1
1 Introdução
Nos Estados Unidos da América, discursos oriundos de classes dominantes estiveram (e ainda estão) presentes em diversos espaços, dentre eles, nas universidades, nas bibliotecas, nas organizações, enfim, na sociedade como um todo.
O multiculturalismo identitário e a colonização disciplinar condensavam os discursos hegemônicos, enquanto as epistemologias descoloniais se propunham a
um discurso contra-hegemônico (GROSFOGUEL, 2007). Os Estudos Africanos
e da Diáspora, também chamados de Estudos Étnicos, surgiram como parte do
movimento de direitos civis pela luta das minorias étnico-raciais que sofriam discriminação. Entre 1960 e 1970, diversas greves estudantis e ocupações de espaços
universitários, organizados por essas minorias foram o estopim para a criação dos
estudos com enfoque em e lugar de enunciação das populações afro-americanas,
porto-riquenhas, indígenas, asiáticas, entre outras. Foi a partir dessa “desobediência epistêmica” (MIGNOLO, 2008) que se desenvolveram espaços para atuação de
docentes negros, bibliotecários negros e demais profissionais descendentes de populações marginalizadas (GROSFOGUEL, 2007).
1 Bibliotecária negra pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Mestra em Ciência da Informação pelo Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia/Universidade
Federal do Rio de Janeiro (IBICT-UFRJ). Doutoranda em Ciência da Informação na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Integrante do Grupo de Pesquisa Ecce Liber: Filosofia,
linguagem e organização dos saberes (IBICT-UFRJ) e do Núcleo de Estudos sobre Performance,
Patrimônio e Mediações Culturais (NEPPaMCs-UFMG). Idealizadora e gestora do Quilombo Intelectual e uma das coordenadoras do Selo Nyota de publicações. Escritora do livro sobre Biblioteconomia Negra e organizadora de obras protagonizadas por bibliotecárias(os) negras(os), com
enfoque nas epistemologias negras, protagonismo da mulher, relações étnico-raciais e atuação
bibliotecária. Pesquisadora e ativista da Biblioteconomia Negra Brasileira e Americana. E-mail:
[email protected]
Dorothy Porter Wesley e a organização do conhecimento
A partir dessa ruptura das estruturas sociais, a produção de conhecimento com
epistemologias e reflexões oriundas de grupos étnico-raciais excluídos passou a fazer parte desse contexto, que até aquele momento era totalmente de origem branca.
Para que esses estudos se construíssem como campo de pesquisa, foram criadas
novas universidades ou consolidadas as existentes, assim como escolas, centro de
pesquisas e bibliotecas consideradas “historicamente negras” para permitir promover pesquisas e epistemologias contra-hegemônicas, nas quais os afros e demais
populações não-brancas estivessem em lugar de promotoras e produtoras de conhecimento e não como “objetos de estudos” dentro da academia (KILOMBA, 2019).
Para organizar esse conhecimento, foram estabelecidas bibliotecas com atuação
de bibliotecárias e bibliotecários negros responsáveis pela organização, catalogação
e disponibilização para a população afro-americana e demais grupos étnico-raciais
não-brancos. Nesse sentido, este capítulo possui como objetivo evidenciar a bibliotecária negra, Dorothy Porter Wesley, que atuou na organização do conhecimento
de e sobre pessoas negras dentro do Moorland-Spingarn Research Center, com enfoque na preservação da memória e história de populações africanas e da diáspora,
assim como sua disponibilização e disseminação para a população afro-americana
no contexto estadunidense a partir da década de 1920. Embasados na Teoria Crítica
Racial Duboisiana, entendemos que o conhecimento produzido por populações
negras e africanas na diáspora promove uma ruptura com a perspectiva colonial à
medida em que desvela o mito da neutralidade acadêmica criada para manutenção de privilégios e de discursos dos grupos dominantes. Evidencia, ainda, como
a invisibilização das discussões sobre questões étnico-raciais em bibliotecas e unidades de informação colabora para limitar a reflexão acerca da branquitude e do
privilégio branco, assim como somente destaca a reprodução de conhecimentos
sem reflexões críticas. As lentes da teoria crítica racial – em nosso caso, a Teoria
Crítica Racial Duboisiana –, possuem potencial para mudar ou romper com essas
estruturas de dominação (LÓPEZ-MCKNIGHT, 2017). Entendemos também, que é
urgente ao campo biblioteconômico-informacional um olhar que enfrente a discussão de raça e gênero de forma direta, sem subterfúgios que visem camuflar tais
debates que se propõem a descortinar os silenciamentos cotidianos e as ausências
promotoras de racismo epistêmico (LIMA; SILVA, 2020).
Este capítulo está fundamentado por livros escritos pela bibliotecária, assim
como as biografias de Dorothy Porter Wesley escrita por James A. Findlay em 2001,
e outra escrita por Janet Sims-Wood em 2014. Utilizamos ainda, artigos e demais
materiais bibliográficos publicados por e sobre Wesley no período de 1920 a 1995,
ano de seu falecimento. Ademais, utilizamos informações e produções científicas
obtidas nos sites de bibliotecas universitárias das instituições: Universidade de
74
Franciéle Carneiro Garcês da Silva
Chicago, Universidade Howard, Universidade de Atlanta e do Moorland-Spingarn
Research Center2.
3 Organização do Conhecimento: uma breve contextualização
O Dicionário Aurélio define o termo organização como ato de organizar, estabelecer as bases de; compor uma estrutura para; pôr em ordem, arrumar. Organizar todo conhecimento disponível (registros, documentos, livros etc.) é, desde a
Antiguidade, uma preocupação humana, haja vista o intuito de organizar e promover o acesso e uso das informações a ele vinculadas (GOMES, 2017). A partir desse
acesso, uso e assimilação das informações disponibilizadas, os sujeitos poderiam
produzir novos conhecimentos e transformar as realidades sociais nas quais estão
inseridos (ORRICO, 2017).
Organizar o conhecimento possui diversos aspectos, dentre eles: identificar
mensagens contidas em obras e outros materiais e recursos de informação; identificar os textos nos quais as mensagens são representadas; descrever os documentos
em que os textos são apresentados; descrever o conteúdo, recursos e significados
dessas mensagens. Desse processo, o resultado das identificações e descrições é
organizado em índices, bancos de dados, catálogos, bibliotecas digitais e outros
sistemas que permitam a recuperação das informações pelas pessoas interessadas
(ANDERSON, 2003).
No âmbito nacional e internacional, entre seus principais teóricas(os) dentro
do campo biblioteconômico-informacional, podemos citar A. C. Foskett, Antonio
García Gutiérrez, Birger Hjørland, Gustavo Silva Saldanha, Hagar Espanha Gomes, Ingetraut Dahlberg, José Augusto Chaves Guimarães, Julius Otto Kaiser, Lígia
Café, Marisa Bräscher, Mariângela Spotti Lopes Fujita, Rosali Fernandez de Souza,
Rodrigo de Sales, entre outros, os quais possuem a Organização do conhecimento
como seu enfoque de investigação e reflexão.
Enquanto definição, a Organização do conhecimento ainda não possui uma
precisão conceitual definida consensualmente pelas(os) pesquisadoras(es) da área.
No Diccionário de organización del conocimiento: clasificación, indización, terminología, de Mario Barité e colaboradores, a Organização do Conhecimento é compreendida como
Área do conhecimento de formação recente, que estuda as leis, princípios e procedimentos pelos quais o conhecimento especializado se estrutura em qualquer disciplina, de forma a representar temática e recu2 O Centro pode ser conhecido pelo site: https://dh.howard.edu/msrc/
75
Dorothy Porter Wesley e a organização do conhecimento
perar a informação contida em documentos de qualquer natureza, por
meios eficientes que responder rapidamente às necessidades do usuário
(BARITÉ et al., 2015, p. 121).
Para Ingetraut Dahlberg, a Organização do conhecimento é “[...] a ciência que
estrutura e organiza sistematicamente unidades do conhecimento (conceitos) segundo seus elementos de conhecimento (características) inerentes e a aplicação
desses conceitos e classes de conceitos ordenados a objetos/assuntos” (DAHLBERG,
1993, p. 211). A partir dessa organização do conhecimento são criados instrumentos que apresentam a interpretação organizada e estruturada do objeto, os quais
chamamos de Sistemas de Organização do Conhecimento. Dentre os sistemas existentes, citamos os sistemas de classificação, as taxonomias, os tesauros, os mapas
conceituais etc. (DAHLBERG, 1993, 2006; BRÄSCHER; CAFÉ, 2008).
A emergência de temas e enfoques sociais tem levado a área da Organização do
conhecimento a desenvolver, por intermédio de pesquisas, um olhar crítico para
suas atividades, epistemologias e exclusões ou invisibilizações que seus sistemas,
processos e ações podem reproduzir. Quando pensamos nos contextos de lutas
sociais por direitos básicos, assim como pelo direito à informação, ao livro e à leitura, não podemos deixar de refletir que até recentemente os regimes de segregação
racial de grupos étnico-raciais foram uma realidade em diversas sociedades, inclusive na brasileira.
No contexto internacional, destacamos a Biblioteconomia Negra dos Estados
Unidos da América (Black Librarianship), movimento social, identitário, intelectual,
ativista e bibliográfico que reivindicou, não só a luta pelo direito à informação, ao
livro e à biblioteca, como também pela formação em Biblioteconomia e atuação de bibliotecários negros na elaboração e promoção da biblioteca para comunidades negras
americanas. Lutaram ainda, pelo extermínio do racismo dentro das organizações, bibliotecas e demais espaços em sociedade (SILVA, 2019; SILVA; SALDANHA, 2018, 2019).
Dentro da Organização do Conhecimento, as(os) bibliotecárias(os) negras(os)
americanas(os) foram fundamentais para apontar o racismo e exclusão presentes nos instrumentos de organização e representação da informação, assim como
utilizaram a organização do conhecimento como instrumento para preservar e
disponibilizar informações sobre pessoas negras contribuidoras da história dos
Estados Unidos da América. Embasados na teoria crítica racial, muitas(os) bibliotecárias(os) negras(os) direcionaram suas ações pensando as exclusões de povos
negros nos sistemas de segregação racial, opressões, microagressões e toda série de
elementos sociais nocivos à sociedade oriundos de um dos problemas mais difíceis
dos últimos séculos: a raça.
76
Franciéle Carneiro Garcês da Silva
4 Intelectualidade negra e o olhar para a Organização do Conhecimento a partir da
Teoria Crítica Racial Duboisiana
A teoria crítica é comumente associada à Escola de Frankfurt, em especial, à
vida e contribuições teóricas de intelectuais como Theodor Adorno, Walter Benjamin, Erich Fromm, Jurgen Habermas, Max Horkheimer e Herbert Marcuse. Entretanto, o olhar crítico a partir de e sobre estudiosos pertencentes às populações negras e outras à margem da sociedade, promove uma perspectiva outra que ainda se
encontra sob a superfície na teoria crítica de origem frankfurtiana (RABAKA, 2009).
A Teoria Crítica Racial (TCR) nasceu na década de 1970 e se tornou inicialmente atuante em duas áreas principais: o direito e as ciências sociais. No primeiro,
começou a questionar criticamente as pretensões intelectuais da supremacia branca na lei, desafiando formas ortodoxas, questionamentos e premissas do liberalismo e debatendo outros saberes (DELGADO; STEFANIC, 2000; RABAKA, 2009; ZUBERI, 2001, 2006, 2016). Reiland Rabaka (2008, s.p., tradução minha) infere que “os
paradigmas e pontos de partida para teóricos críticos variam dependendo da raça,
gênero, orientação sexual, filiação religiosa, nacionalidade, interesses intelectuais e
convicções políticas”. Recorrer a autores como Hegel, Marx, Freud ou à Escola de
Frankfurt, por exemplo, tem relação com o pensamento expresso por esses teóricos
para abordar o mundo da vida e as experiências do mundo moderno (RABAKA,
2008). Para o autor, o uso de teóricos críticos do norte global expressa, em grande medida, o pensamento europeu (muitas vezes, um pensamento supremacista
branco) que negligencia – do seu lugar de privilégio e discurso teórico clássico
e contemporâneo – outros olhares que não aqueles hegemônicos e parabeniza-se
por contornar as discussões sobre racismo e colonialismo dentro de seus discursos,
conhecimentos e produções científicas (RABAKA, 2008). Enquanto que ao utilizar
a TCR, elaborada a partir do olhar de teóricos críticos negros ou africanos, permite-se a conexão com pensamentos e textos de intelectuais cujos paradigmas teórico-críticos e pontos de partida buscam a solução para as lutas da vida e realidades
sociais de populações negras e à margem (RABAKA, 2008, 2009).
Nas ciências sociais, os antecedentes da TCR já estavam presentes muito antes
do movimento intelectual elaborado no direito. Grupos negros e de origem africana já tinham uma tradição crítica antes mesmo da criação das ciências sociais.
Zuberi (2016) destaca como exemplos de tal tradição, os relatos de libertação de
escravizados e as solicitações de populações de origem africana quando escreveram
contra a supremacia branca e escravização de populações africanas. No entanto, o
nascimento das ciências sociais está intrinsicamente ligado às justificativas de separação, de forma hierarquizada, dos sujeitos por grupos étnico-raciais, haja vista que
as ciências sociais não passaram a refletir sobre a tradição crítica existente no sécu-
77
Dorothy Porter Wesley e a organização do conhecimento
lo XIX. Ao contrário, diante desse contexto, as ciências sociais elaboraram teorias e
métodos analíticos para auxiliar na justificativa dessa estratificação racial, mesmo
quando acadêmicos negros e de outros pertencimentos étnico-raciais passaram a
integrar a área (ZUBERI; BONILLA-SILVA, 2008; ZUBERI, 2001, 2016).
Nos Estados Unidos da América, sempre houve teóricos críticos de raça, dos
quais podemos citar Patricia Hill Collins, Jane Addams, James B. Stuart, Eduardo
Bonilla-Silva, Oliver Cox, James Blackwell, W. E. B. Du Bois, os quais promoveram
interpretações das desigualdades humanas, realidades sociais e do colonialismo
(ZUBERI, 2016). W. E. B. Du Bois – intelectual, pan-africanista, afro-americano e
crítico de raça – possui uma importante colaboração para a teoria crítica. Em obras
como Black Reconstruction in America, The Philadelphia Negro, The Souls of Black
Folk, An Essay in the History and Sociology of the Negro Race, o autor promove
reflexões teórico-críticas sobre uma miríade de impulsos imperiais contidos em
fenômenos e práticas sociais, políticas e culturais na sociedade contemporânea,
assim como discute sobre dominação, discriminação e libertação dos sujeitos via
transformação social (RABAKA, 2009; ZUBERI, 2006, 2016).
O reconhecimento à intelectualidade negra é uma das pautas dos movimentos
sociais e de pesquisadoras(es) negras(os) da academia. Historicamente, dentro de
contextos científicos e acadêmicos, pessoas de origem africana e mulheres eram
percebidas somente como “objetos de estudos”; no entanto, mulheres, pessoas negras e de outros pertencimentos étnico-raciais atuavam como agentes de mudança
ao se inserirem na academia em prol da luta pela decolonização daquele espaço
(ZUBERI, 2001, 2006, 2016).
A crítica duboisiana para o meio acadêmico se refere às discussões do racismo, colonialismo, capitalismo, direitos civis, libertação das mulheres, socialismo
democrático, entre outros, haja vista que a universidade é reflexo da sociedade e
faz parte de um contexto cuja hegemonia é eurocêntrica e americanizada. A TCR
duboisiana promove a intelectualidade radical direcionada à resolução de problemas enfrentados por pessoas negras dentro de contextos racistas e de pensamento
colonial, como os Estados Unidos e o Brasil, por exemplo. Em consonância aos
pan-africanistas críticos de raça, Patricia Williams, Fannie Lou Hamer, Malcom
X, Frantz Fanon, Amilcar Cabral, Ella Baker, Aimé Césaire, C. L. R James, Oliver
C. Cox, W. E. B. Du Bois – enquanto um teórico social e ativista político radical –
atua criticamente para repensarmos as resistências e (re)existências de populações
negras, as quais estão cotidianamente sendo retiradas dos lugares de seres humanos, sujeitos de direitos, intelectuais etc. Ademais, colabora intelectualmente para
tornar os fundamentos da teoria crítica multicultural, transétnica, transgeracional,
sensíveis à orientação sexual e aos sujeitos não-europeus ocidentais, promovendo
78
Franciéle Carneiro Garcês da Silva
a dialética entre a teoria crítica e os fenômenos por ela negligenciados (RABAKA,
2009). Influenciado por Karl Marx, Du Bois advoga ainda em favor de uma perspectiva afrocentrada, na qual defende a inserção intelectual de africanos e suas
contribuições para a construção da sociedade moderna em uma contranarrativa ao
assimilacionismo (ZUBERI, 2006, 2016). Assim, esses autores refletem as possibilidades de reconstruir e transformar os pensamentos, desenvolver novas teorias que
apoiem teoricamente a política radical e promovam o constante ativismo político
dos sujeitos para se formarem enquanto intelectuais, pesquisadores, organizadores
sociais e trabalhadores culturais (RABAKA, 2009).
Nesse sentido, promover uma arqueologia da história intelectual negra se relaciona a uma das bases elementares para Organização do Conhecimento, permite
a manutenção da memória e a disponibilização de estudos elaborados por negros
e negras, africanos e africanas, pessoas do sul do globo, as quais sempre estiveram
fora da lógica colonialista de produtores de conhecimento e de intelectuais ou pesquisadores.
A seguir, refletindo a partir da lente da TCR Duboisiana, apresentamos a contribuição da bibliotecária negra, Dorothy Porter Wesley, cuja atuação dentro da
organização do conhecimento produzido sobre e por pessoas negras foi fundamental para a disponibilização de informações sobre a história do negro nos Estados
Unidos da América e no mundo, e para a transformação social das comunidades
negras a partir do acesso à biblioteca para emancipação humana.
5 Organizando o conhecimento da e para a população negra: evidenciando o trabalho
de Dorothy Porther Wesley
“A única recompensa para mim é trazer à tona
informações que ninguém conhece. Qual é o
ponto de refazer a mesma coisa de sempre?”
Dorothy Porter Wesley (1995)
Bibliotecária, bibliógrafa, acadêmica, historiadora e arquivista, a afro-americana Dorothy Porter Wesley foi por 43 anos (1930-1973) curadora da Coleção
Moorland-Spingarn na Howard University em Washington, DC. Nasceu na Virgínia
em 1905, filha de um médico e uma tenista, e tornou-se a primeira mulher negra
afro-americana a concluir bacharelado e mestrado em Biblioteconomia pela Universidade de Columbia. Em 1928, foi convidada a integrar a equipe da biblioteca da
Howard University e dois anos depois, foi nomeada para organizar e administrar
Library of Negro Life and History (Biblioteca da vida e história do negro), que pos-
79
Dorothy Porter Wesley e a organização do conhecimento
teriormente passou a se chamar de Moorland-Spingarn Research Center, com mais
de três mil títulos da coleção de Jesse E. Moorland – ministro e líder negro que
doou sua vasta coleção pessoal para a biblioteca da Universidade Howard –, sobre
o negro e a escravidão recebidos em 1914 e a coleção particular de Arthur B. Spingarn – advogado e presidente do comitê jurídico da National Association for the
Advancement of Colored People (NAACP), além de bibliófilo –, adquirida pela Howard University em 1946. Na referida biblioteca, Wesley trabalhou para construir
coleções documentando a diáspora africana até sua aposentadoria em 1973. Após
a aposentadoria, Wesley trabalhou como consultora para o Radcliffe University’s
Black Women Oral History Archive [Arquivo de História Oral das Mulheres Negras], da Universidade Radcliffe, e foi autora de vários artigos e livros relacionados
à Biblioteconomia e à diáspora africana. Os livros de autoria de Dorothy Porter
Wesley incluem Early Negro Writing, 1760-1837, e Afro-Braziliana: A Working Bibliography (PORTER, 1938, 1945, 1970, 1995, FINDLAY, 2001, SIMS-WOOD, 2014).
Figura 1 – Dorothy Porter em 1939, em sua mesa na Biblioteca Carnegie da Howard University. MoorlandSpingarn Research Center, Manuscript Division, Howard University.
Fonte: https://bit.ly/3i3Br2b
Como missão pessoal, Dorothy Porter Wesley resolveu construir uma biblioteca livro-por-livro na Howard University. James A. Findlay, em seu livro intitulado Dorothy Porter Wesley (1905-1995), Afro-American Librarian and Bibliophile: An
Exhibition), comenta que “seu zelo em descobrir materiais relacionados à história
afro-americana lhe rendeu o nome de ‘Sacola de compras’3 (FINDLAY, 2001, p. 6,
3 Escrito no original: Shopping Bag Lady.
80
Franciéle Carneiro Garcês da Silva
tradução minha). Porter estava interessada na avaliação das coleções das primeiras
obras de e sobre autores negros. Na América, antes do século XVIII, havia pouca
história escrita sobre afro-americano. Wesley aponta que, “provavelmente o primeiro desses homens (Afro-americano) foi o britânico [Júpiter] Hammon, cuja
narrativa foi publicada em 1760 em Boston... Acredito que seja o primeiro livro escrito por um negro e publicado nos Estados Unidos” (WESLEY, 1957 apud FINDLAY,
2001, p. 7, tradução minha).
Nos primeiros anos de sua carreira já era nítida sua paixão e o compromisso
em atuar na preservação e compartilhamento do “legado da história e da cultura
afro-americana” (FINDLAY, 2001). Ela procurava pessoalmente em sótãos, porões,
armários e caixas por materiais que, para olhos destreinados, costumavam ser considerados lixo. O autor enfatiza o interesse de Dorothy Porter Wesley em construir
a biblioteca: “A Sra. Wesley, por causa de seu amor e conhecimento da história
e cultura dos negros, foi quase sozinha responsável por transformar a biblioteca
(Moorland-Spingarn Collection na Howard University) em um centro de pesquisa
de classe mundial [...]” (FINDLAY, 2001, p. 6, tradução minha).
O intuito de Dorothy Porter Wesley durante sua existência foi coletar, codificar material afro-americano e disponibilizar a coleção ao público. Conforme Zita
Cristina Nunes (2018, s.p.),
Para Porter, essa missão envolveu não apenas coletar e preservar uma
ampla gama de materiais relacionados à experiência negra global, mas
também abordar como esses trabalhos exigiam abordagens qualitativas
e quantitativas novas e específicas para coletá-los, avaliá-los e catalogá-los.
Essa motivação parte de uma necessidade da comunidade afro-americana de
conhecer sua história, como declara: “Lembro-me de que, não muitos anos atrás,
dizia-se que o africano carecia de todo o sentido da história porque a história africana não estava disponível na forma de linguagem escrita” (FINDLAY, 2001, p. 6,
tradução minha). Atualmente, o Moorland-Spingarn Research Center é considerado
como um dos mais completos repositórios de informações do mundo sobre a história e a cultura dos negros (FINDLAY, 2001).
Para além do trabalho com no Moorland-Spingarn, enquanto pesquisadora e
bibliotecária, compilou numerosas bibliografias e compêndios da história afro-americana. Como resposta à dificuldade em encontrar materiais de e sobre pessoas
negras antes de 1835, Dorothy elaborou sua dissertação de mestrado intitulada
81
Dorothy Porter Wesley e a organização do conhecimento
“Afro-American Writings Published Before 1835”4, que marcou o início de uma carreira de décadas da autora na bibliografia. Devido à busca incansável por novos
materiais, bem como à hesitação dos editores em publicar sobre o assunto, sua dissertação não seria publicada em sua forma completa até 1971 com o título de Early
Negro Writing, 1760-1837.
No que se refere à Organização do Conhecimento, dentro das reflexões sobre
os sistemas de Organização do Conhecimento, Dorothy Porter Wesley trouxe uma
atitude crítica para repensar a maneira de como os materiais bibliográficos do Centro eram catalogados, haja vista que os códigos de classificação e catalogação eram
produzidos por uma perspectiva eurocêntrica e “branco-americana” de refletir sobre o mundo, e não estavam adequados para representar os materiais de e sobre a
população negra (NUNES, 2018). Com a ascensão do New Negro movement [Novo
Movimento Negro], e a introdução do currículo de estudos negros em Howard, a
principal tarefa de Dorothy era reunir todos os materiais das prateleiras da biblioteca principal para construir o que foi originalmente chamado de “Livros de e sobre
os negros” (BOTNICK, 2014).
Thomas C. Battle, em seu ensaio intitulado “Moorland-Spingarn Researh Center, Howard University”, publicado em 1988 na Library Quarterly, aponta que as
bibliotecas americanas não possuíam um esquema de classificação adequado para
materiais negros, em especial, para classificação de panfletos, algo que era parte
integrante do acervo da Moorland-Spingarn. Dessa forma, a equipe da Biblioteca
da Howard University criou métodos de acesso ao acervo: “Lula V. Allan e Edith
Brown, assistidos por Lula E. Connor e Rosa C. Hershaw, foram responsáveis pelo
desenvolvimento inicial de um esquema satisfatório de classificação e catalogação”
(BATTLE, 1988, p. 145, tradução minha). Conforme Zita Cristina Nunes (2018, s.p.,
tradução minha), o objetivo das quatro bibliotecárias foi “priorizar o significado
acadêmico e intelectual e a coerência dos materiais que haviam sido marginalizados pelas concepções eurocêntricas de conhecimento e produção de conhecimento”. Posteriormente, Dorothy Porter Wesley (à época conhecida como Dorothy
Burnett Porter) fez o melhoramento do esquema de classificação e o tornou adequado à Coleção, desenvolvendo ainda, uma amplitude de ferramentas de pesquisa
e bibliografias confiáveis a partir de seu conhecimento no campo, o qual seria posteriormente chamado de Black Studies (PORTER, 1938; BATTLE, 1988; NUNES, 2018).
O Sistema Decimal de Dewey padronizou e revolucionou a classificação das bibliotecas, mas refletiu os preconceitos de seu fundador e de sua época, conforme in4 Afro-American writings published before 1835: With an alphabetical list (tentative) of imprints written by American Negroes, 1760-1835.
82
Franciéle Carneiro Garcês da Silva
fere Botnick (2014, p. 35). No referido sistema, os preconceitos são evidenciados. As
“classes 396, posição e tratamento das mulheres, e 397, Outcast studies[...]”. Ainda,
Tudo relacionado à reprodução e sexualidade foi listado em ‘Higiene’.
Havia dois números, 325 e 326, que categorizavam a colonização e a
escravidão, respectivamente, sob os quais qualquer coisa por ou sobre
africanos e afro-americanos seria listada. Ebony seria listado lá, em vez
de com outros periódicos. Um poema de James Weldon Johnson estaria
lá, também, em vez de com outros poetas (BOTNICK, 2014, p. 35).
Em entrevista à Avril Johnson Madison, Dorothy Porter Wesley destaca sua
resistência em utilizar a Classificação Decimal de Dewey, mesmo quando todas as
bibliotecas da época a utilizassem.
Sempre buscamos orientação na Biblioteca do Congresso e em bibliotecas que usam um sistema chamado Sistema Decimal de Dewey. Agora,
no sistema decimal de Dewey, eles tinham um número - 326 - que significava escravidão, e eles tinham um outro número - 325, pelo que me
lembro - que significava colonização. Assim, todas as bibliotecas - muitas das bibliotecas brancas, que visitei mais tarde - cada livro, fosse um
livro de poemas de James Weldon Johnson, que todos sabiam que era
um poeta negro, tinha que estar na 325. E isso era estúpido para mim.
(WESLEY, 1995, p. 12).
Dorothy ainda infere que foi necessária a mudança que realizou para classificar
o acervo da Coleção, pois haviam problemas no sistema:
Por que não pegar todo o Sistema Decimal de Dewey e colocar um
livro do poeta James Weldon Johnson abaixo do número para poesia?
Entende? Então foi isso que eu fiz. Eu adaptei todo o sistema para toda
a coleção de acordo com o que o assunto era. Agora, se eu tivesse livros sobre escravidão, o que eu tinha, livros sobre colonização, o que
nós tínhamos, então eu os colocava sob esses números, veja, e então
fiz números [separados] para os autores, veja. Os autores tinham seus
próprios números, para que você não se confundisse com tudo isso.
Você reúne todos os livros que um homem escreveu, digamos, sobre
a escravidão. Mas foi uma coisa muito simples; não foi nada difícil de
fazer. (WESLEY, 1995, p. 12, tradução minha).
83
Dorothy Porter Wesley e a organização do conhecimento
Houve uma tentativa de Porter Wesley para que fosse modificada a classificação de Dewey visando incluir o conhecimento negro com representação adequada.
Conforme Julie Botnick, após o falecimento de Dewey, Jennie Dorcas Fellows5, sua
sucessora, transferiu o trabalho de Dewey para a Biblioteca do Congresso. Porter
Wesley entrou em contato solicitando que houvesse a expansão do sistema para
acomodar a Coleção na qual ela estava trabalhando e as obras negras que estavam sendo acumuladas ao longo daquele período. Dorcas, citado por Julie Botnik (2014, p. 35) “sugeriu… a possibilidade de usar, em sua maior parte, números
regulares [Dewey] para o tópico em questão, com alguma designação de prefixo,
por ex. N para Negro, para indicar o ângulo especial a partir do qual o assunto
estava sendo considerado”. Ainda, Fellows, em cartas6 trocadas entre elas, recusou
o pedido de permissão solicitado por Dorothy Porter Wesley para mimeografar
o “Tentative Supplementary Classification Scheme”[Esquema de classificação complementar provisório] informando que “isso estaria totalmente fora de questão, a
menos que o tivéssemos aprovado em detalhes” (FELLOWS apud HELTON, 2019, p.
106), pois, conforme Fellows, essa alteração “resultaria em destruir toda a padronização” (FELLOWS apud HELTON, 2019, p. 106) criada por Dewey. Dorothy Porter
Wesley lembrou que Fellows “não conseguia ver por que eu queria desenvolver
outra coisa, por que não queria colocar um livro de poesia de James Weldon Johnson em ‘325’ ou ‘326’ (PORTER apud HELTON, 2019, p. 106). Inclusive, a bibliotecária
negra recebeu uma advertência da American Library Association informando que,
se ela compartilhasse seu esquema de classificação adaptado com outros bibliotecários(as) e curadores(as) seria acusada de violar os direitos autorais da obra de
Dewey (HELTON, 2019).
Para burlar esse sistema punitivo e a ameaça de sanções, Dorothy Porter Wesley publicou em 1939, o “Catalogue of Books in the Moorland Foundation” [Catálogo
de livros na Fundação Moorland], no qual, incorporou os números da classificação de Dewey e personalizou para atender aos interesses de classificação de obras
de autoria negra e sobre a população negra na diáspora. Assim, buscou auxiliar
bibliotecas na classificação dos mesmos títulos que estavam presentes na Coleção
(HELTON, 2019).
O sistema de classificação especial desenvolvido por Porter na década de 1930
para a Coleção, foi categorizado com uma divisão por áreas básicas, como arte,
antropologia, comunicação, demografia, economia, educação, geografia, história,
5 Posteriormente, a bibliotecária modificou o sobrenome para Dorkas, como é atualmente conhecida.
6 Dorkas Fellows to Dorothy Porter, December 6, 1934, box 5, Wesley Papers.
84
Franciéle Carneiro Garcês da Silva
saúde, relações internacionais, linguística, literatura, medicina, música, ciência política, sociologia, esportes e religião (PHILLIPS, 1980). Ainda, a bibliotecária classificou as obras por autoria e por gênero, visando enfatizar os negros como produtores
de conhecimento em todas as áreas (NUNES, 2018).
Quando analisamos o trabalho de Dorothy Porter Wesley, percebemos que sua
abordagem está alinhada às prioridades elencadas pela TCR Duboisiana, pois, para
além de catalogar, classificar e disponibilizar o conhecimento feito por e sobre negros, ainda possui uma abordagem teórico-prática crítica que busca, a partir da
organização de materiais – sejam eles quais forem – visibilizar as sociabilidades,
vivências, experiências, produção científica e intelectual de pessoas de origem africana na diáspora. Ademais, o enfrentamento ao racismo, em todas as suas facetas,
dentro do campo da Organização do Conhecimento é também desafiar a lógica
hegemônica euroamericanizada de produção de conhecimento e história brancas,
pois retira os brancos do centro, para trazer os negros – que sempre estiveram à
margem –, para o lugar de intelectualidade e quebra de estereótipos.
5 Considerações finais
Este capítulo destacou o trabalho da bibliotecária negra, Dorothy Porter Wesley, e sua contribuição para a organização do conhecimento dos Estudos Negros
nos Estados Unidos da América. Evidenciamos que a Teoria Crítica Racial possui
seu início desde os tempos da escravização, com as cartas elaboradas por pessoas
escravizadas. Refletimos também como a Teoria Crítica Racial Duboisiana nos serve de lente para analisarmos a produção e atuação de uma bibliotecária negra contemporânea de W. E. Du Bois e seu papel na coleta, organização, armazenamento,
disseminação de conhecimentos elaborados por e sobre pessoas negras na diáspora. Essa pesquisa não finda aqui, haja vista que a colaboração dessa bibliotecária
também esteve relacionada à coleta, armazenamento e disponibilização de conhecimento produzidos, inclusive, por negros do Brasil. Por fim, inferimos que a produção do conhecimento sobre essa bibliotecária negra precisa ser reconhecida em
nosso país. Os seus estudos na área da Organização do Conhecimento, em especial,
os catálogos, livros e demais materiais bibliográficos precisam ser estudados, assim
como consideramos ser profícuo realizar o estudo e a análise do esquema de classificação por ela elaborado para o acervo do Moorland-Spingarn Research Center.
Agradecimentos
A autora agradece à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pela bolsa de doutorado.
85
Dorothy Porter Wesley e a organização do conhecimento
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89
Teorias críticas utilizadas por autores latinoamericanos em organização do conhecimento
Dirnele Carneiro Garcez1 e Rodrigo de Sales 2
1 Introdução
Uma das perspectivas mais repercutidas para se definir a organização do
conhecimento, fortemente presente ainda hoje na literatura nacional e internacional, é aquela que aborda a organização do conhecimento como uma subárea, ou
um tema especializado, pertencente à Biblioteconomia e à Ciência da Informação. Há, neste contexto, uma predileção em definir a organização do conhecimento
como um fazer de natureza operacional (GARCIA, OLIVEIRA, LUZ, 2000; GREEN,
2002; GARCÍA GUTIÉRREZ, 2002), voltado para a construção de sistemas de organização do conhecimento (KENT, 2002; GREEN, 2002; ZHEREBCHEVSKY, 2010; SOUZA; TUDHOPE; ALMEIDA, 2010). Assim, a organização do conhecimento, enquanto
atividade da Biblioteconomia e da Ciência da Informação, assume a responsabilidade de desenvolver processos e instrumentos ligados ao tratamento temático da
informação (FOSKETT, 1973) e, portanto, desempenha um papel mediador entre os
contextos de produção e uso da informação.
No entanto, vale destacar que no âmbito da International Society for Knowledge Organization (ISKO), autores influentes como Dahlberg (1993, 1995, 2006,
2014) e Hjorland (2003, 2008) defendem a ideia de que a organização do conhecimento deva se tornar autônoma e ampliar seus escopos técnico-científicos.
1 Administradora negra com graduação pelo Centro Universitário Leonardo da Vinci (UNIASSELVI). Mestra em Ciência da Informação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Doutoranda em Ciência da Informação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Integrante do Grupo de Pesquisa Ecce Liber: Filosofia, linguagem e organização dos saberes
(IBICT-UFRJ) e do Representação e Organização do Conhecimento (ROC-UFSC) E-mail: dirnele.
[email protected]
2 Doutor em Ciência da Informação pela Universidade Estadual Paulista (UNESP/Marília). Professor do Departamento de Ciência da Informação da Universidade Federal de Santa Catarina
(UFSC). E-mail:
[email protected]
Teorias críticas utilizadas por autores latino-americanos em organização...
O discurso de uma organização do conhecimento enquanto campo de estudo
autônomo pode ser encontrado também em estudos como o de Ohly (2012), Guimarães, Oliveira e Gracio (2012) e Barros e Moraes (2012). Esse discurso emancipatório, segundo Sales (2016, 2017), ganhou força em finais do século XX, especialmente nas publicações de Dahlberg (1993, 1995), onde a autora procurou
definir o escopo, os fazeres profissionais, os aspectos institucionais, a classificação da literatura especializada e as tendências da organização do conhecimento.
Em princípios do século XXI, Dahlberg permaneceu advogando a favor de uma
organização do conhecimento autônoma das áreas informacionais, chegando a
atribuir à organização do conhecimento o status de “disciplina científica” e/ou
“ciência” (DAHLBERG, 2006, 2014).
Hjorland (2003, 2008), propondo uma distinção entre a organização cognitiva
do conhecimento e a organização social do conhecimento, fortaleceu a perspectiva
de que a organização do conhecimento devesse ser compreendida como um campo
de estudo autônomo. Mas, diferentemente do total desprendimento da organização
do conhecimento com relação às áreas informacionais, como proposto por Dahlberg, a perspectiva de Hjorland vislumbrava uma autonomia à organização do
conhecimento sem desliga-la da Biblioteconomia e da Ciência da Informação que,
segundo ele, assumiriam papeis importantes para se resolver as questões cognitivas
(estritas) da própria organização do conhecimento.
Salvaguardadas as devidas distinções, que, por ora, preferimos entender como
diferentes facetas de um mesmo espaço epistemológico, adotaremos para o presente estudo a compreensão de que a organização do conhecimento é um espaço investigativo próprio que pode ser observado de diferentes maneiras e que, dotado de
um arcabouço teórico e metodológico diverso, desenvolve-se com o fim precípuo
de criar e aprimorar formas sistemáticas de se organizar o conhecimento, relacionando-se, em maior ou menor medida, com os campos informacionais.
O objetivo principal deste estudo foi evidenciar na literatura latino-americana abordagens teóricas críticas em organização do conhecimento que apresentem
olhares epistemológicos decoloniais. O alcance deste objetivo principal foi obtido
a partir do estabelecimento de dois objetivos específicos: a) identificar as possíveis
teorias críticas na literatura latino-americana de organização do conhecimento e
b) verificar quais dessas teorias apresentam olhares epistemológicos decoloniais.
Interessa-nos, aqui, identificar as teorias que vêm subsidiando esse espaço investigativo no contexto latino-americano, de modo a revelar a existência ou não
de uma postura teórica crítica e decoloniadora na organização do conhecimento
desenvolvida neste contexto geográfico.
92
Dirnele Carneiro Garcez e Rodrigo de Sales
2 Teorias críticas (em linhas gerais)
Partindo de uma visão generalista, não é descabido afirmar que uma teoria crítica é a junção da capacidade de observar com a capacidade de formar juízo. Entretanto, é sabido que a teoria crítica, enquanto movimento intelectual ou abordagem
teórica surgida a partir da década de 1930, é o aprofundamento da tensão existente
entre a funcionalidade da ciência e a realidade sociocultural.
Embora sejam várias as possibilidades de definição, a depender de cada vertente que a utiliza, Drago (1992) afirma que a Escola de Frankfurt foi a principal
instituição para o desenvolvimento da teoria crítica. Para o autor, a teoria crítica
seria parte do paradigma do humanismo radical. Nesse paradigma de humanismo
radical, o sujeito seria dominado por uma estrutura ideológica com a qual interage,
mas, no entanto, causadora de dificuldades na criação da consciência do próprio
sujeito. A partir dessa dificuldade, ter-se-ia a alienação do sujeito e o impedimento
de seu pleno desenvolvimento. Buscando formas de desenvolver o pleno potencial
dos sujeitos e contrapor essa sociedade que é ‘anti-humana’, essa corrente teórica,
cujas origens encontram-se no idealismo alemão e na noção kantiana de que a
realidade é mais racional do que material, enfoca na luta pelas mudanças radicais,
pelas emancipações, pelo combate às formas de dominação, entre outros fatores
(BURREL; MORGAN, 1979; DRAGO, 1992).
Decursiva da perspectiva marxista, as teorias críticas foram estruturadas por
representantes da Escola de Frankfurt, dentre eles: Jürgen Habermas, Herbert Marcuse, Max Hokheimer e Theodor Adorno (TOZETTO GOES et al., 2017). Desenvolvida como alternativa teórica para se alcançar a compreensão das tensões socioculturais por meio de uma tomada de consciência oposta àquela proporcionada pela
cientificidade cartesiana, a teoria crítica busca unir de uma vez por todas teoria e
prática e problematiza-las a partir de uma realidade atravessada por aspectos humanos, econômicos, históricos, culturais e ideológicos. Contrapondo-se ao caráter
cientificista das ciências humanas, que em princípios do século XX encontravam-se ainda adeptas às perspectivas funcionalistas, instrumentais e empíricas, pautadas, ainda, na eficiência da administração de dados e resultados, a teoria crítica
buscou, na esteira marxista e na ótica psicanalítica, compreender o corpo social em
suas dimensões coletiva e individual, tendo em conta os fenômenos concretos que
o circunda e o conduz.
Nesse sentido, a teoria crítica tenta abrir espaço para se examinar a realidade
desconfiando das lógicas hegemônicas e dos determinismos vigentes. Nas áreas
informacionais, alguns autores vêm chamando atenção ao trabalharem com essa
alternativa teórica. Araújo (2009) infere que, no campo da Ciência da Informação,
as teorias críticas foram consolidadas nas esferas da teoria crítica da informação,
93
Teorias críticas utilizadas por autores latino-americanos em organização...
oriundas das humanidades, em especial, da filosofia e da história. Tais teorias críticas têm por atitude epistemológica o olhar desconfiado, a negação daquilo que está
dado, a busca pelo que se esconde ou se camufla entre os conhecimentos.
Martínez-Ávila, Semidão & Ferreira (2016), corroborando a informação de que
as teorias críticas tiveram suas origens intelectuais oriundas da escola de crítica
do pensamento social de Frankfurt, afirmam que a inserção das teorias críticas
no campo da organização do conhecimento foi voltada para apoiar e fortalecer as
respostas aos problemas éticos de grupos sociais, visando a estudar e representar
abordagens específicas para organização do conhecimento. Araújo (2009, p. 196)
aborda que “a teoria crítica vai enfatizar o conflito, a desigualdade, o embate de
interesses em torno da questão da informação – e para tanto, buscará explicar os
fenômenos a partir de sua historicidade”.
Saldanha (2019) reflete epistemologicamente sobre a crítica na Ciência da Informação e estabelece que esta possui três dimensões programáticas, sendo elas:
conceitual, metametodológica e temática, onde: a conceitual partiria da perspectiva; a metametodológica se apoiaria em instrumentos críticos contra-hegemônicos
usados no tratamento dos resultados da realidade social; e a dimensão temática estaria voltada para grupos marginalizados e oprimidos. Essas dimensões se apoiam
nas tipologias teóricas de abordagens teórico-críticas compostas por círculos, correntes, escolas e teorias críticas.
Nesse sentido, entendemos que a observação da realidade social tendo em
vista a desconfiança dos determinismos vigentes, a construção de instrumentos
contra-hegemônicos e a ênfase em grupos marginalizados, são traços característicos principais das abordagens teóricas que podemos considerar como próximas às
ideias das teorias críticas. A despeito de terem sido definidas ou não por pensadores da escola de Frankfurt, ou pautadas em lógicas marxistas, verificamos, no presente estudo, como pode ser observado nas páginas a seguir, todas as abordagens
teóricas levantadas nos textos analisados, de modo a identificar posturas críticas
nas mesmas.
3 A busca por olhares epistemológicos decolonizadores na organização do conhecimento
Para pensar em decolonialidade é necessário estabelecer o entendimento sobre
a colonialidade e sua relação com a produção do conhecimento. A colonialidade
é “um dos elementos constitutivos e específicos do padrão mundial de poder capitalista” (QUIJANO, 2009, p. 73), o qual se constitui através da articulação entre o
capitalismo, eurocentrismo, estado, colonialidade do poder e do domínio e subalternidade de populações não-eurocentradas (QUIJANO, 2005; 2009). A colonialidade se estabelece a partir de modelo único, universal e objetivo de conhecimento,
94
Dirnele Carneiro Garcez e Rodrigo de Sales
com suas principais referências oriundas da Europa (QUIJANO, 2005, OLIVEIRA;
CANDAU, 2013). Encontra-se presente em três dimensões das sociedades: a colonialidade do ser, a colonialidade do saber e a colonialidade do poder. A primeira
se refere à experiência de colonização e seus impactos nos povos que passaram por
esse processo; a segunda está presente na epistemologia e suas formas de construir
pensamentos e conhecimento; a terceira e última, utiliza-se da classificação social
e racial (a partir da ideia de raça) para efetivar a dominação colonial em povos
não-europeus (QUIJANO, 2002; MALDONADO-TORRES, 2007a,b).
A utilização dos termos decolonial ou descolonial carrega consigo algumas
diferentes abordagens, embora ambas estejam voltadas para a desagregação das
formas de exploração e dominação geradas pela colonialidade, bem como para a
desconstrução do que foi por ela estabelecido. O termo descolonização denota superação do colonialismo, enquanto decolonialidade difere dessa ideia e transcende
a colonialidade – parte da modernidade – e suas formas de opressão, controle e
subordinação ainda vigentes no padrão mundial de poder (BALLESTRIN, 2013).
Os estudos decoloniais se estabelecem com procedimentos conceituais e sistemáticos associados às questões de poder na modernidade. A modernidade é como
um fenômeno mundial baseado em relações de poder. Isso resulta na subalternização de epistemologias, práticas e características de populações étnico-raciais
não-europeias, ou seja, de povos dominados pelo colonizador. Com isso, o eurocentrismo é constituído como principal forma de produção de conhecimento e
subjetividades na modernidade (GRUPO DE ESTUDIOS SOBRE COLONIALIDAD, 2012).
Entende-se como estudos decoloniais um “conjunto heterogêneo de contribuições teóricas e investigativas sobre a colonialidade” (QUINTERO; FIGUEIRA; ELIZALDE, 2019, p. 4), que abrangem revisões historiográficas, estudos de casos, recuperação do pensamento crítico latino-americano, formulações e reconceitualizações
voltados para a revisão e expansão de indagações teóricas (QUINTERO; FIGUEIRA;
ELIZALDE, 2019).
Dessa forma, os estudos decoloniais possuem como foco ir além das perspectivas Europeias, pois visam a apresentar uma pluralidade temática e novas concepções epistemológicas a partir de autores latino-americanos. Neste estudo, utilizamos o termo “decolonial”, pois assim como Walsh (2017) justifica, a supressão do
“s” de descolonial marcaria uma diferença com o significado do “des” em espanhol,
que pode ser entendido como
[...] desarmar, des-hacer o revertir de lo colonial. [...]. Con este juego
lingüístico, intento poner en evidencia que no existe un estado nulo de
la colonialidad, sino posturas, posicionamientos, horizontes y proyec-
95
Teorias críticas utilizadas por autores latino-americanos em organização...
tos de resistir, transgredir, intervenir, in-surgir, crear e incidir” (WALSH,
2017, p. 24-25).
No que se refere aos estudos pós-coloniais, estes nascem sob a influência do
pós-modernismo e do pós-estruturalismo, voltados para a ressignificação dos
discursos e de categorias da textualidade realizados pelas relações transversais. O
pós-colonialismo passou a receber fortes influências das produções intelectuais periféricas, que estavam voltadas a olhar criticamente o discurso dominante (PEZZODIPANE, 2013). A contribuição dos estudos pós-coloniais está na:
[...] ruptura com a história única, sustentada pelas metanarrativas que
legitimaram as ideologias do processo de colonização, naturalizando
a dominação do homem pelo homem, a partir das diferenças raciais
hierarquizadas como justificativa para o “processo civilizatório” (PEZZODIPANE, 2013, p. 88)
Enquanto comprometimento intelectual e político, os estudos pós-coloniais se
comprometem, ao mesmo tempo em que buscam criticar e desconstruir o discurso
colonial, a evidenciar outras vozes vindas dos próprios sujeitos - que estão descentralizados do norte global - sobre suas próprias existências e as relações com a exploração,
a dominação, a perda identitária, o processo diaspórico, a tortura e a banalização da
vida, entre outros processos intrínsecos ao processo colonialista. (PEZZODIPANE, 2013).
A reflexão e a produção do conhecimento em Ciência da Informação estão
intrinsecamente vinculadas à perspectiva colonialista e, portanto, precisam ser
revisitadas sob olhares críticos e epistemes decoloniais de fazer ciência. O termo
“epistemologia” é empregado para se referir à teoria do conhecimento e pode ser
entendida como um estudo científico e filosófico do conhecimento voltado para
“o saber científico, filosófico, cultural, social e técnico, visando a explicar os seus
condicionamentos [...], organizar e sistematizar as suas relações, esclarecer os seus
vínculos e avaliar os seus resultados e aplicações” (FARIA, 2014, p. 2).
Para Santos e Meneses (2009, p. 9), o conceito de epistemologia se refere à
[...] toda a noção ou ideia, reflectida ou não, sobre as condições do que
conta como conhecimento válido. É por via do conhecimento válido
que uma dada experiência social se torna intencional e inteligível. Não
há, pois, conhecimento sem prática e actores sociais. E como umas e
outros não existem senão no interior de relações sociais, diferentes tipos de relações sociais podem dar origem a diferentes epistemologias.
96
Dirnele Carneiro Garcez e Rodrigo de Sales
Os autores reforçam a ideia que não existem epistemologias neutras e que a
reflexão epistemológica deve estar presente, em especial, nas práticas de conhecimento e seus impactos em outras práticas em sociedade (SANTOS; MENESES, 2009).
Quando pensamos em epistemologia, precisamos entender que em essência,
uma epistemologia é considerada crítica. No entanto, nem toda epistemologia é de
fato crítica quando se refere a sua prática (FARIA, 2014). Dessa forma, o conceito
definido por José Henrique de Faria sobre epistemologia crítica é de que esta:
[...] é o estudo científico e filosófico do conhecimento que têm por
objeto o saber científico, técnico, cultural e filosófico de um conjunto
autônomo e crítico de práticas (ações) e saberes conscientes baseados
em instâncias integradas de mediação (objeto←→sujeito), que sejam:
(i) não dogmáticas ou absolutas, mas flexíveis e coletivas, em que todo
o objeto do conhecimento pode ser matéria (princípio), instrumento
(meio) e produto ou forma (fim); (ii) sem conteúdos prévios, mas construídas através da sistematização das suas relações, do esclarecimento
dos seus vínculos, da avaliação dos seus resultados e aplicações; (iii)
não hierarquizadas, em que o objeto e o sujeito do conhecimento são
mediados e mediadores, em que a alternância e a polivalência do objeto
e do sujeito no que se refere à mediação é uma regra e não uma exceção; (iv) baseadas no primado do real concreto sobre o real pensado,
com uma necessária integração dinâmica e contraditória entre ambos
(FARIA, 2014, p. 3)
O autor afirma ainda que as pessoas se constituem como sujeitos quando produzem suas condições materiais de existência. Assim, a mediação entre a consciência e a realidade sempre é realizada em certas condições ou em lócus de mediação,
tais como a mediação do pensamento por intermédio de atividades práticas de
produção de existência; pela prática política e ações de intervenção desses sujeitos em suas realidades sociais buscando uma intervenção efetiva; pelos vínculos
sociais comuns que estabelecem coletivamente seja de formal ou informal; pela
aceitação de conjunto de regras, valores éticos, elementos culturais, crenças, mitos
e configurações simbólicas e imateriais (FARIA, 2014, 2015).
No sul global, podemos elencar as epistemologias do Sul como formas de epistemologias críticas ao olhar para a produção de ciência e conhecimento e suas inter-relações com a colonialidade do ser, do saber e do poder, e propor alternativas a
partir do próprio hemisfério sul (SANTOS, 1995). As epistemologias do sul buscam
a descontinuidade radical com o projeto moderno de epistemologia vigente e uma
97
Teorias críticas utilizadas por autores latino-americanos em organização...
reconstrução da reflexão sobre os saberes, a partir do olhar de saberes subalternos
e oprimidos. Estabelecem intervenções epistemológicas para denunciar a exclusão/
invisibilização de saberes não europeus que foram suprimidos pelo grupo estabelecedor de normas dominantes no contexto mundial, assim como evidenciam
saberes que resistiram à essa lógica hegemônica e que mantém diálogos entre os
conhecimentos (NUNES, 2009; SANTOS, 1995).
Na organização do conhecimento, as epistemologias críticas contribuiriam
para estabelecer perspectivas contra-hegemônicas de produção de conhecimentos,
levando em consideração olhares de sujeitos e povos marginalizados na sua construção. Dentre as perspectivas críticas decoloniais, podemos elencar pesquisadores
como García Gutierrez, que apresenta a noção de desclassificação da organização
do conhecimento como provocação à ideia de Classificação (GARCÍA GUTIÉRREZ,
2011). O autor infere que para: “pensar, utilizando e construindo contradições,
como propõe um procedimento central da desclassificação, é necessário aceitá-las,
admitir que a contradição abre um mundo de outras lógicas que operam fora da
lógica convencional” (GARCÍA GUTIERREZ, 2020, p. 85, tradução nossa). Em seu
entendimento, a desclassificação é uma “teoria que assume sua contradição de matriz para não acabar como qualquer teoria: com o tempo, essa contradição se torna
evidente3 “. (GARCÍA GUTIERREZ, 2020, p. 59, tradução nossa).
Em diversos contextos, inclusive no contexto brasileiro, abordagens teóricas
em organização do conhecimento têm sido pautadas visando a entender a construção e a organização dos conhecimentos ainda sob uma lógica eurocêntrica de produção científica. Nesse sentido, é urgente o diálogo e entendimento de abordagens
e teorias que são utilizadas por povos subalternizados, em especial, daqueles que
estão ao sul do globo (BERNARDINO-COSTA; MALDONADO-TORRES; GROSFOGUEL,
2018).
Diante do exposto sobre a decolonialidade, somado ao que foi tratado anteriormente a respeito das teorias de abordagens críticas, buscamos a seguir identificar
as abordagens teóricas que vem sendo utilizadas na organização do conhecimento,
no contexto latino-americano, que podem ser compreendidas como abordagens
críticas e decoloniais. Para tanto, sintetizamos as seguintes variáveis de análise: i)
oposição aos determinismos hegemônicos vigentes, ii) primazia às relações efetivamente estabelecidas nas sociedades, iii) ênfase em grupos marginalizados e iv)
desprendimento da lógica eurocêntrica.
3 Original: Desclasificación: creencia que recusa ser víctima del destino inexorable de las creencias. Teoría que asume su contradicción matriz para no acabar como toda teoría: con el tiempo
poniendo en evidencia esa contradicción.
98
Dirnele Carneiro Garcez e Rodrigo de Sales
4 Procedimentos metodológicos
Os textos analisados foram coletados no mês de Junho de 2020, na base de dados Web Of Science a partir da estratégia de busca “(TS=(Knowledge Organization)
AND CU=(Argentina OR Bolivia OR Brazil OR Chile OR Colombia OR Costa Rica OR
Cuba OR Equador OR EL Salvador OR Guatemala OR Haiti OR Honduras OR Mexico
OR Nicaragua OR Panama OR Paraguai OR Peru OR Republica Dominicana OR Uruguay OR Venezuela))” na qual refinou-se a busca por artigos (tipo de documento)
publicados no período de 2016 a 2020, na categoria de Information Science / Library
Science, excluindo países e regiões não pertencentes à América Latina.
Os materiais recuperados foram armazenados em planilha eletrônica, na qual
foram registrados os seguintes dados: título, autoria, periódico, idioma de publicação, ano de publicação, DOI, resumo e palavras-chaves. Para a análise, foi considerada como pertencente à América Latina a produção científica existente na WoS de
autores de países latino-americanos ou com vínculo em instituições latino-americanas de ensino, pesquisa e tecnologia.
Como recorte do escopo, foram selecionados os autores que tiveram de três a
cinco artigos recuperados durante a coleta de dados, os quais abordassem teorias
vinculadas à organização do conhecimento. Ao total, foram selecionados 16 autores
latino-americanos e 59 artigos. Para a extração das teorias, foi realizada a leitura
completa dos materiais, visando a identificar todas as teorias citadas nos estudos,
separando-as e armazenando-as em planilha eletrônica. Posteriormente, além dos
materiais encontrados, outras fontes da literatura foram consultadas, a fim de identificar as autorias de tais teorias e obter mais informações das mesmas.
Após identificar quais foram as teorias, foram aferidos em cada uma delas seus
traços característicos, visando a verificar quais podem fazer parte das abordagens
teóricas críticas em organização do conhecimento e quais possuem olhares epistemológicos decoloniais.
Importante destacar que utilizamos como percepção para definir o que seriam
teorias críticas aquelas teorias concebidas por pensadores críticos ou aquelas teorias utilizadas para trazer alguma crítica a determinada questão. Também consideramos a possibilidade de não serem teorias críticas de nascimento, mas que podem
ser utilizadas como método ou instrumento para uma análise da perspectiva dentro do contexto social.
Os traços característicos (variáveis de análise) que adotamos para a verificação
das teorias levantadas, de modo a identificar possíveis abordagens teóricas críticas
e decoloniais, foram: i) oposição aos determinismos hegemônicos vigentes, ii) primazia às relações efetivamente estabelecidas nas sociedades, iii) ênfase em grupos
marginalizados e iv) desprendimento da lógica eurocêntrica. É importante frisar
99
Teorias críticas utilizadas por autores latino-americanos em organização...
que as abordagens foram verificadas a despeito de serem ou não provenientes de
pensadores pertencentes a escola de Frankfurt.
5 Resultados e discussões
Após a análise dos conteúdos dos textos, identificamos as seguintes abordagens
teóricas utilizadas pelos autores de organização do conhecimento que guardam
fortes proximidades com as teorias críticas, de acordo com as variáveis de análise
estabelecidas acima:
• Teoria das representações sociais: teoria que busca explicar e compreender
a realidade social, considerando a dimensão histórico-crítica. Estabelece-se
entre a psicologia e a sociologia, especialmente entre a psicologia e a sociologia do conhecimento. Difundida por Serge Moscovici. Europa (a partir da
década de 1960).
• Teoria crítica da raça: propõe transformar a relação entre raça, racismo e
poder. Desenvolvida por ativistas e acadêmicos, centra atenção crítica na
tensão social gerada por questões raciais e dialoga com movimentos como
o feminismo radical, a libertação negra e outros estudos pós-estruturalistas. Tem como princípios centrais o compromisso com a justiça social e o
compromisso epistemológico de construção conceitual a respeito de raças e
populações. Opõe-se à hegemonia social branca. Disseminado a partir dos
Movimentos de Estudos Negros, nos Estados Unidos, a partir das décadas de
1960 e 1970, especialmente por nomes como William Edward Burghardt Du
Bois e Kimberlé Williams Crenshaw.
• Teoria queer: teoria sobre gênero, orientação e identidade sexual que se
distancia propositadamente de um discurso de ordenação normativa que
atribui essência biológica à natureza humana. Vai além das discussões que
rivalizam homens e mulheres e trabalha na compreensão e desconstrução
dos constructos sociais vigentes, dando ênfase ao combate dos processos estabelecidos na sociedade que marginalizam minorias sexuais. Principais disseminadores: Eve Kosofsky Sedgwick, Judith Butler, Michael Warner, David
M. Halperin. Estados Unidos (século XXI).
• Teorias semióticas: contemplam abordagens relacionadas aos signos, à semiose e à significação nos contextos culturais, tendo em conta também o papel dos interpretantes. Principais disseminadores: Charles Peirce, Ferdinand
Saussure, Louis Hjelmslev, Roman Jakobson, Roland Barthes e Umberto Eco.
América do Norte e Europa (a partir da segunda metade do século XIX).
• Teoria pós-moderna da organização do conhecimento: rejeita a ideia de
100
Dirnele Carneiro Garcez e Rodrigo de Sales
•
•
•
•
•
•
•
que um instrumento ordenador possa ser neutro e direciona a atenção para o
contexto sociocultural, especialmente à linguagem da comunidade e às práxis sociais. Principal disseminador na organização do conhecimento: Jens-Erik Mai. América do Norte e Europa (século XXI).
Teoria da linguística documental: abordagem teórico-prática interdisciplinar que tem como propósito a resolução de problemas no armazenamento e
na recuperação de informações, com base em problemas reais e não ideais.
Principal disseminador: Antonio García Gutiérrez. Europa (a partir da década de 1980).
Epistemografia interativa: abordagem que promove a inclusão de visões
culturais diferentes, estabelecendo uma ética transcultural de mediação,
opondo-se ao desenvolvimento instrumental logico-semântico de visão positivista. Disseminada por Antonio García Gutiérrez. Europa (século XXI).
Teoria da complexidade: abordagem epistemológica interdisciplinar que
lida com sistemas complexos adaptativos, comportamento emergente, complexidade de redes, teoria do caos e auto-organização, tanto numa perspectiva filosófica quanto numa perspectiva sociológica. Difusão: Edgar Morin,
Isabelle Stengers e Ilya Prigogine. Europa (a partir da década de 1970).
Jogo de linguagem ou jogos de linguagem: abordagem filosófica que demonstra a possibilidade de diferentes formas de percepção real por meio da
linguagem, a partir de uma lógica pragmática. Origem: Ludwig Wittgenstein. Europa (a partir da década de 1950).
Memória social: abordagem cuja ênfase está voltada à relação da memória com a sociedade, lidando com mecanismos de caráter social, tais como,
valores, sentimentos, pressão social etc., elementos que são constitutivos de
toda sociedade. Origem em Maurice Halbwachs. Europa (a partir da década
de 1930).
Teoria do colecionismo: para além de classificar, nomear e atribuir significados, esta abordagem vislumbra a possibilidade de se tecer análises sob
diferentes perspectivas, como social, cultural, psicológica e econômica e semântica. Relacionada também com aspectos marcadamente sociais, há indícios consistentes que sua origem esteja nos estudos de representações sociais
de Émile Durkheim. Europa (a partir da segunda metade do século XIX).
Teoria Comunicativa da Terminologia: teoria que lida com as questões terminológicas sob uma ótica comunicativa pautada na linguagem efetivamente utilizada nos ambientes de especialidades, contrapondo a ótica prescritiva
e determinística da teoria geral da terminologia. Criadora: María Teresa Cabré, Europa (a partir da década de 1990).
101
Teorias críticas utilizadas por autores latino-americanos em organização...
As abordagens teóricas expostas acima guardam proximidades marcantes com
as teorias críticas, principalmente no que se referem à busca por novas compreensões sociais, à concepção de novas posturas epistemológicas e o enfoque nos grupos sociais marginalizados, em detrimento das ordenações discursivas hegemônicas e normativas. Assim, é possível inferir que as abordagens apresentadas acima
correspondem a abordagens teóricas críticas empregadas na produção literária
latino-americana de organização do conhecimento.
Entretanto, no que se refere ao olhar epistemológico decolonial, todas as abordagens teóricas aqui identificadas advêm de regiões dominantes do hemisfério norte. Em outras palavras, não identificamos neste estudo nenhuma teoria ou abordagem construída e disseminada na América Latina ou em outra região do sul global.
Tal fato evidencia que a crítica tecida pelos autores latino-americanos no campo da
organização do conhecimento se respalda e se constrói hegemonicamente na visão
dos pensadores de regiões dominantes como Europa e América do Norte. Os resultados apontam para a necessidade de uma urgente decolonização na organização
do conhecimento, em prol de uma construção epistemológica própria e libertadora.
6 Considerações finais
A proposta de evidenciar na literatura latino-americana abordagens teóricas críticas utilizadas na organização do conhecimento, que apresentem olhares
epistemológicos decoloniais, foi levada a cabo com a constatação de que embora
abordagens críticas venham sendo empregadas nos estudos de organização do conhecimento, a área carece ainda de um movimento efetivamente decolonizador. Se
por um lado foi possível identificar a presença de teorias aproximativas às teorias
críticas, por outro se revelou o preocupante dado de que a crítica nos estudos de
organização do conhecimento na América Latina vem sendo construída ainda com
abordagens advindas de pensamentos do hemisfério norte.
Desta forma, consideramos que os resultados aqui alcançados servem de subsídios para uma conclamação àqueles que pretendem construir uma organização
do conhecimento de fato livre e decolonizadora na América Latina, centrando esforços na concepção de uma epistemologia própria capaz de lidar diretamente com
os problemas socioculturais impostos em nossas realidades. Se nossas pesquisas já
lançam mão de abordagens teóricas críticas, basta iniciar de fato o movimento de
decolonização, pensando e articulando nossas questões e nossas problematizações.
Agradecimentos
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001, pela concessão da bolsa de Doutorado.
102
Dirnele Carneiro Garcez e Rodrigo de Sales
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Teoria crítica da colonialidade1
na Organização do Conhecimento
Graziela dos Santos Lima2
1 Introdução
As teorias pós-coloniais, decoloniais e estudos subalternos questionam
as estruturas de opressão pautada no capitalismo, imperialismo, eurocentrismo e o
saber/conhecimento científico que replicaram o discurso dominante/colonial não
evidenciando o conhecimento das pessoas e culturas tidas como marginais, colonizadas em projetos ultramarinos desde o século XVI. Estes conhecimentos, representados por negros, ciganos, ribeirinhos, mulheres, LGBTIA+ - os ditos saberes
populares dos condenados da terra, como dizia Fanon (2005) -, são invisibilizados
pela ciência como um saber verdadeiro.
O saber dito verdadeiro remete aos apontamentos epistemológicos de René
Descartes por meio da filosofia cartesiana. Para Grosfoguel (2016, p.30) “a filosofia cartesiana tem exercido grande influência nos projetos ocidentalizados de
produção de conhecimento” o que possibilita ditar se o conhecimento é considerado verdadeiro ou não. Nesse mesmo entendimento, as universidades ocidentalizadas, baseadas no legado de Descartes seguem o mesmo procedimento
de validação da produção da ciência e do conhecimento (GROSFOGUEL, 2016). A
legitimação do conhecimento deixa em evidência e tido como válido o conhecimento masculino e heterossexual e invisibiliza outros conhecimentos e saberes.
O desconhecimento desses saberes possibilita a não representação do mesmo nos
sistemas de organização do conhecimento tornando-os inexistentes, limitados e
logo, impossíveis de representar de uma maneira realística. O desconhecimento
implica em um epistemicídio (SANTOS, 1995; CARNEIRO, 2005). Epistemicídio se
1 Termo cunhado por Paulo Henrique Martins em 2019 que determina o florecimento a partir
das margens e intersecções em um entre lugar a descolonização do ser, do saber e do poder.
2 Doutoranda em Ciência da Informação pela Universidade Estudal Paulista, “Julio de Mesquista Filho”, Campus Marília,
[email protected]
Teoria crítica da colonialidade na Organização do Conhecimento
configura em uma anulação e desqualificação dos conhecimentos de povos marginalizados.
Entender tais teorias para evidenciar e desconstruir os saberes hegemônicos3 é
de fundamental importância, pois possibilita dimensionar o papel da ciência diante à dominação de territórios, culturas e saberes, feita por meio de “antigas teorias e categorias de explicar o mundo” (BERNARDINO-COSTA; GROSFOGUEL, 2016,
p. 15) que evidenciaram um saber-poder, na qual privilegiava/privilegia um conhecimento em detrimento de outro. As teorias, com o viés emancipatório, possibilitam enxergar as epistemes ausentes nas narrativas hegemônicas (atrelada ao
imperialismo e no eurocentrismo) permitindo ter uma teoria e uma metodologia
(SANTOS, 2007) a partir das margens. Quando pensamos as epistemologias a partir
das margens propusemos uma nova ciência, a ciência que coloca o foco a partir
do/a narrador/a, ou seja, a partir de um locus de enunciação, como bem diz Larissa
Pelúcio (2012, p. 398-399)
Anunciar o lugar de fala significa muito em termos epistemológicos,
porque rompe não só com aquela ciência que esconde seu narrador,
como denuncia que essa forma de produzir conhecimento é geocentrada, e se consolidou a partir da desqualificação de outros sistemas
simbólicos e de produção de saberes.
Sendo a Biblioteconomia e a Ciência da Informação ciências que possibilitam
o acesso à informação para um amplo público, por meio das teorias e metodologias
da Organização do Conhecimento, a sub-representação dos saberes não científicos,
saberes que circulam no meio cotidiano, impossibilita que pessoas que não fazem
parte do meio científico tenham acesso à informação de maneira eficaz ou se enquadrem, de certa forma, nos saberes hegemônicos. Esse texto parte da premissa
de que o conhecimento dito marginal, ou cientificamente favelado4, é tão importante de ser representado, quanto os conhecimentos técnicos científicos voltados
para uma episteme estadunidense e europeia. Nesse sentido, eis a pergunta: O que
a teoria pós-colonial, decolonial e dos estudos subalternos podem contribuir para
pensar a descolonização da Organização do Conhecimento?
O objetivo desse trabalho é relacionar as teorias críticas da colonialidade com o
campo da Organização do Conhecimento, os chamados pensamentos subalternos,
sendo que estes saberes empregam a realidade de pessoas e culturas que deveriam
3 Os saberes hegemônicos são saberes que se sobrepõem a outros saberes ditos marginais.
4 Ver García Gutiérrez (2006)
110
Graziela dos Santos Lima
ser representadas nos sistemas de organização do conhecimento5 fidedigna e no
contexto de suas realidades.
Para a reflexão e elaboração do trabalho utilizou-se as bibliografias relacionadas
às teorias pós-coloniais, decoloniais e estudos subalternos por meio de pesquisadores críticos da colonialidade do saber, poder e ser (QUIJANO, 2005; 2010, LANDER,
2005, DUSSEL, 2005, MIGNOLO, 2005, SPIVAK, 2010, MENESESES, 2010, SANTOS, 2010,
GROSFOGUEL, 2006; 2016, MALDONADO-TORRES, 2016; 2019) para pensar em uma
representação do conhecimento das populações tradicionais, os etnoconhecimentos (MIRANDA, 2007), os saberes socialmente oprimidos (SALDANHA, et al., 2018), saberes subalternos (SPIVAK, 2010) que compõem populações locais e regionais, para
uma perspectiva de saberes diversos ou uma ecologia dos saberes (SANTOS, 2010).
O capítulo está dividido em seções que articulam o pensamento e chegam à
compreensão do objetivo. Nesse sentido, a primeira seção versa sobre a configuração da Organização do Conhecimento no período da modernidade e pós-modernidade. A segunda seção compreende os aspectos teóricos e epistemológicos
da teoria pós-colonial, decolonial e estudos subalternos. Na terceira seção, identificamos o pensamento pós-colonial e decolonial nos teóricos da organização do
conhecimento, em especial no pensamento de Hjorland (2003), Hope Olson (2003)
e de Garcia Gutiérrez (2011) na Organização do Conhecimento6.
Portanto, uma epistemologia que transcende um pensamento hegemônico permite-nos pensar na organização dos saberes excluídos ao longo do tempo por um discurso
homogeneizante e, nesse sentido, ter uma posição ético-política na Organização do Conhecimento que não permita mais a exclusão dos saberes marginalizados pela ciência.
2 A configuração da Organização do Conhecimento na modernidade e pós-modernidade
Podemos dizer que não estamos imunes a fatores ideológicos que permeiam o
campo simbólico em que atuamos. Hjorland (2000) relata que as comunidades absorvem práticas e ideologias que se configuram em um sistema simbólico que transparece nas produções de registros documentais (LARA; MENDES, 2017). Desse modo,
podemos inferir que o sistema simbólico, imbuído de ideologia, influencia nas interpretações dos documentos quando estes são submetidos ao tratamento da informação7 e na construção e utilização de sistemas de organização do conhecimento.
5 São sistemas conceituais semanticamente estruturados que contemplam termos, definições,
relacionamentos e propriedades dos conceitos (CARLAN; BRÄSCHER, 2011, p. 54)
6 Outros autores estão sendo analisados, tais como: Jonathan Furner (2007), Maria das Graças
Simões,, Maria Aparecida Moura (2018), Marcio Ferreira da Silva (2018), Melodie J. Fox (2016),
Rosa San Segundo (2008), dentre outros.
7 Tratamento da informação engloba todas as áreas técnicas, métodos e processos destinados
111
Teoria crítica da colonialidade na Organização do Conhecimento
O tratamento da informação faz parte do processo que sistematiza a organização do conhecimento, linha de estudo dentro da Organização do Conhecimento
voltada à parte prática e técnica do suporte e conteúdo do documento. A Organização do Conhecimento se configura em uma disciplina,
dedicada ao estudo e desenvolvimento dos fundamentos e técnicas de
planejamento, construção, gestão, uso e avaliação de sistemas de descrição, catalogação, ordenação, classificação, armazenamento, comunicação e recuperação dos documentos criados pelo homem para testemunhar, conservar e transmitir seu saber e seus atos, a partir de seu
conteúdo, com a finalidade de garantir sua conversão em informação
capaz de gerar novo conhecimento. (ESTEBAN NAVARRO; GARCÍA MARCO, 1995, p. 149)
Para tanto, teorias, metodologias e processos nos estudos da Organização do
Conhecimento possuem influências ideológicas dominantes que possibilitam a erradicação dos ditos saberes subalternos. As influências ideológicas também estão
intrínsecas aos instrumentos de organização do conhecimento, construídos segundo Hjorland (2003) por um pensamento limitante e autoritário, edificados na
passagem do pensamento moderno para o pós-moderno. Nesse sentido, os instrumentos considerados universais não são neutros, e por esse motivo expressam, em
grande escala, as representações constituídas por um discurso hegemônico dado
como um discurso colonizador, denominando e representando outras culturas por
um olhar tanto imperialista quanto ocidental.
Muitos pesquisadores, tais como Boaventura de Sousa Santos (2010), Anibal
Quijano (2005), Walter Mignolo (2003) dentre outros, relatam que a modernidade
e a pós-modernidade8 são conceitos forjados para camuflar o colonialismo9 por
às descrições físicas ou temáticas dos documentos em bibliotecas ou sistemas de recuperação da
informação (DAL’ EVEDOVE; FUJITA, 2013, p. 26)
8 Mesmo que a pós-modernidade tenha sido a origem do pensamento crítico, por discutirem a
ausência de subjetividade, discutir a valorização exacerbada da neutralidade, a falta da diversidade cultural e linguistica nas epistemes, dentre outras, ainda observamos, lacunas da colonialidade na ciência e nos meios tecnológicos. Para San Segundo (2008, s/p.), é “fundamental una revisión epistemológica que abarque las epistemes locales”, ou seja, a partir do locus de enunciação,
pois “la nueva Organización del conocimiento en el entorno digital está representada, inventada
y articulada por la ideología y economía neocapitalistas [...]”(SAN SEGUNDO, 2008, s/p.)
9 Refere-se a uma estrutura de dominação/exploração onde o controle da autoridade política,
dos recursos de produção e do trabalho de uma população determinada domina outra de diferente identidade e cujas sedes centrais estão, além disso, localizadas noutra jurisdição territorial.
112
Graziela dos Santos Lima
diversos vieses: linguístico, territorial, cultural, epistemológico, dentre outros. Se o
conhecimento é constituinte dessas dimensões, linguísticas, culturais, geográficas e
relações intersubjetivas, então esse conhecimento de certa forma é construído por
parâmetros eurocêntricos e colonizadores. Logo, os instrumentos de organização10
desses conhecimentos também o são.
Entretanto, antes de entrar de fato na teoria pós-colonial, decolonial e dos estudos subalternos, linhas de pesquisas que pregam a emancipação do conhecimento,
é preciso entender o que foi a modernidade e a pós-modernidade no campo científico, relacionados aos conhecimentos representados de maneira subalterna ou
inexistente. Para Santos (2010), os modelos de exclusão radical, seja territorial e/ou
epistemológico, que aconteceram no ciclo colonial, permaneceram no pensamento
e nas práticas da modernidade e que ainda perduram até nos dias atuais.
A modernidade evidenciada no iluminismo, o chamado século das luzes,
concebia a ciência como racialista (pautada na racionalidade europeia de homens
brancos) e manifestava/manifesta de uma maneira universal. A universalidade11
pautava-se em um único discurso que tinha o poder de representar e invisibilizar
outros saberes, os ditos saberes subalternos e ser conhecido e representado por um
discurso hegemônico (ocidentalizado) que não condiz com as outras realidades de
sujeitos e culturas. A racionalidade diz respeito ao ser possuidores de direito do
pensamento, nesse caso os homens brancos, Cisheterossexual e cristãos e europeu.
As outras culturas as que viraram alvo de desumanização eram tidas como irracionais por serem consideradas sujeitos sem alma e consequentemente passíveis de
serem escravizadas e terem suas cosmovisões invisibilizadas e destruídas (GROSFOGUEL, 2016).
A modernidade reflete as transformações institucionais (inclusive as universitárias) originadas no ocidente (GIDDENS, 1991), em especial na Europa e é vista
como a ascensão do capitalismo12 e a constituição da América via apropriação/
violência13 de terras (SANTOS, 2010), tendo como justificativa leis jurídicas e a episO colonialismo nem sempre implica relações racistas de poder. (QUIJANO, 2010, p. 73).
10 São sistemas que dão acesso às informações contidas nos documentos (ARAÚJO, 1995).
11 A “universalidade, na Modernidade europeia, significa ‘um define pelos outros’” (GROSFOGUEL, 2016, p. 45), ja Ortiz (2015) informa que a universalidade, um termo polissêmico, dependendo do contexto na qual é abordado, significa a manifestação de uma cultura sobre a outra, por
meio de uma perspectiva de saber, por natureza eurocentrado (ORTIZ, 2015).
12 É um sistema de produção de mercadorias, centrado sobre a relação entre a propriedade privada do capital e o trabalho assalariados em posse de propriedade, esta relação formando o eixo
principal de um sistema de classes (GIDDENS, 1991, p. 68)
13 A apropriação envolve incorporação, cooptação e assimilação, enquanto a violência implica
113
Teoria crítica da colonialidade na Organização do Conhecimento
temologia para impor a dominação do mundo. A dominação foi feita na América
por meio da classificação social da população mundial com base na ideia de raça
(QUIJANO, 2005), que se constituiu em uma nova organização social.
A classificação social, para o mesmo autor, com base na ideia de raça se expandiu primeiramente na América e depois pelo mundo e, nesse sentido, novas
identidades foram formadas, como: índio, negro, mestiço, branco, amarelos e azeitonados, ou seja, constituiram-se identidades que foram promovidas com objetivo de marcar os sujeitos subalternos, identificando-os/as como sujeitos inferiores,
marcadores estes que serviram de justificativa para a dominação de seus territórios
e apagamento de suas culturas e epistemes.
O processo de modernização produziu perspectiva e um modo de fazer conhecimento que demonstra o caráter do padrão mundial de poder que desse conta da
expansão do capitalismo (QUIJANO, 2005). Essa perspectiva e produção de conhecimento, chama-se eurocentrismo14, que é a manifestação mais bem concebida do
pensamento moderno.
No campo do conhecimento, a perspectiva eurocêntrica consistia no monopólio da distinção universal entre o verdadeiro e o falso, em contraponto aos conhecimentos alternativos que eram, na época, a filosofia e a teologia (SANTOS, 2010).
Essa perspectiva configurou uma disputa moderna entre as formas científicas e
não-científicas de verdade. Os conhecimentos chamados de não-científicos, na
modernidade, eram os conhecimentos populares, leigos, de plebeus, de camponeses, ou de indígenas (SANTOS, 2010), Saberes, na concepção de Foucault (1999), de
pessoas delinquentes, dos doentes, resumidamente, saberes sujeitados, de pessoas
locais e regionais, construídos a partir de suas experiências, e que não possuem
a inquirição científica. Eram tidos como conhecimentos invisíveis, considerados
irrelevantes ou incomensuráveis pela ciência, no entanto, para o pensamento europeu/ocidental, esses saberes não passavam de crenças, opiniões, magias, idolatria,
intuição, que se tornaram objeto de conhecimento para inquirição científica (SANTOS, 2010). Atualmente podemos perceber esses saberes em movimentos sociais,
quilombolas, sem terras, moradores de periferias, favelas, camponeses, dentre outros recharçados pelo campo científico por não ser um saber erudito.
Podemos evidenciar, também nessa lógica da hieraquia do conhecimento, que
muitos dos saberes populares foram politicamente silenciados, cujo, o maior temor
destruição física, material, cultural e humana (SANTOS, 2010, p. 38).
14 Eurocentrismo é uma doutrina que toma a cultura europeia como paradigma, modelo histórico, e por isso uma referência mundial para todas as nações e seus elementos culturais são o
padrão de civilização (DUSSEL, 2005).
114
Graziela dos Santos Lima
se constituia no saber histórico das lutas por emancipação (FOUCAULT, 1999). No
decorrer do tempo, esses saberes foram denominados de saberes tradicionais/conhecimentos tradicionais.
Há diferença entre os dois conhecimentos, o conhecimento tradicional e o conhecimento científico na sua forma de constituição, mas o que os une é a busca em
compreender a realidade, ou seja, “ ambos são formas de procurar entender e agir
sobre o mundo” (CUNHA, 2007, p. 78). Além de buscar compreender a realidade
tida como algo semelhante entre os dois conhecimentos, ambos são obras abertas
que estão sempre se refazendo, ou seja, são conhecimentos inacabados (CUNHA,
2007). O não acabado por vezes gira em torno das contradições encontradas que
são revistas ao ponto de construirem novos conhecimentos.
A diferença entre os dois conhecimentos está no fato de que o conhecimento
científico impera por unidades conceituais, ou seja,utiliza-se de conceitos construídos a partir de outros aportes teóricos, meios linguisticos e da tradução advinda do
pensamento de quem construiu o conhecimento, porém há uma inquirição para
verificação e legitimidade da crença. já o conhecimento tradicional utiliza-se de
percepções (CUNHA, 2007) que se fazem conhecimento a partir da repetitividade,
constituídas por práticas advindas de experiências tanto individuais quanto coletivas. Santos (2010) relata que os conhecimentos que se legitimam como verdades científicas são considerados passíveis de medição e o conhecimento tradicional incomensurável. Cunha (2007) discorda dessa perspectiva, pois para a autora
sendo conhecimento não importa de que lado seja, os dois são incomensuráveis.
A comensurabilidade foi uma das táticas de validação do conhecimento, em um
“subsistema de distinções visíveis e invisíveis” (SANTOS, 2010, p. 33), dentro do rigor
científico que dá status ao pensamento moderno (SÍVERES; SANTOS, 2013).
As práticas científicas na modernidade eram baseadas na racionalidade, no
positivismo e na universalidade. Para Japiassu (2011) é uma ciência que se origina
com uma perspectiva patriarcal e, na concepção de Grosfoguel (2016), sexista e
racialista. Ambos os autores consideram que a ciência foi construída com objetivo
de exploração e dominação, que se inicia a partir de pesquisas feitas na natureza
e posteriormente no ser humano. Na pós-modernidade surge perspectiva reivindicatória pelos pesquisadores e críticos da escola de Frankfurt. Na transição do
pensamento moderno para a pós-moderno gerou por parte dos críticos reflexões,
análises (HARVEY, 2006; SANTOS, 2000) e questionamentos sobre a modernidade,
com relação aos métodos científicos utilizados, que não incluíam conhecimentos
socioculturais.
Jean-François Lyotard vê a perspectiva pós-moderna como “uma pluralidade
de reivindicações heterogêneas de conhecimento, na qual a ciência não tem um
115
Teoria crítica da colonialidade na Organização do Conhecimento
lugar privilegiado” (GIDDENS, 1991, p. 12). Segundo Harvey (2006), Lyotard faz uma
crítica à linguagem, no sentido de dar importância e investir em diferentes códigos linguísticos. É na pós-modernidade que surgem movimentos reivindicatórios,
como o multiculturalismo.
O multiculturalismo é um movimento de grupos sociais e marginalizados, tais
como feministas, afrodescendentes, LGBTQIA+, indígenas, quilombolas, dentre
outros, que reivindicam políticas públicas e garantias de direitos civis básicos a
todos requerendo o fim de toda forma de intolerância (CARDOSO, 2014, p. 79), além
de reivindicar “terras e suas crenças, como reconhecimento público internacional
de suas memórias, lutas e histórias” (ANTONACCI, 2015, p. 342). A reivindicação
do movimento multiculturalista também adentrava nas áreas do conhecimento,
cujos sujeitos, alocados nas zonas marginais conhecimento, tinham seus saberes
invisibilizados.
No contexto da modernidade, as práticas relacionadas à organização e à representação do conhecimento, vindas da Biblioteconomia e Documentação, possuíam
um caráter positivista, fisicista e tecnicista voltado para a organização de acervos,
o que possibilitou a construção dos instrumentos de classificação e organização
do conhecimento. Porém, estes instrumentos, construídos nos séculos XIX e XX,
chamados de universais, não abarcam as realidades que integram o mundo. Este
fato é um dos pressupostos questionadores que os pós-modernistas, em especial
os que lidam com o conhecimento crítico, relatam sobre a modernidade, pois “os
problemas questionados pela pós-modernidade impactam nas formas de produzir
conhecimento e propor soluções práticas a diversas áreas, incluindo, sobretudo, a
Organização do Conhecimento” (PANDO, 2018, p. 139).
Além de ser um instrumento dito universal, com a racionalidade, baseada em
uma perspectiva eurocêntrica, da ciência na modernidade, que pressupõe uma forma de construir conhecimento verdadeiro, possibilitou a dicotomização e a hierarquização dos conhecimentos nos instrumentos de organização de conhecimento.
No contexto da pós-modernidade, na organização do conhecimento, questões
relacionadas às abordagens socioculturais emegem, porém passiveis de questionamentos, pois a pós-modenidade, de certa forma, não sanou em sua totalidade, os
vícios advindas da modernidade.
Para os críticos da época, isso quer dizer que todos os conhecimentos são válidos e que não existe um conhecimento único e verdadeiro. Além disso, segundo
Pando (2018), no pós-modernismo o conhecimento não pode mais ser pensado de
forma determinista e/ou mecanicista, pois a realidade não é e nunca foi compatível a esse modelo de pensamento. O autor ainda ressalta que, com o advento das
tecnologias é possivel avançar em novas construções de sistema de organização do
116
Graziela dos Santos Lima
conhecimento sem que estes instrumentos sejam de fato de forma hierarquizada,
sistematizada e dicotômica. Da pós-modernidade até os dias atuais presenciamos
pensamentos e metodologias pertencentes a abordagem sociocultural.
A abordagem sociocultural na organização do conhecimento está direcionada aos subsídios norteadores para os profissionais da informação nas atividades
relacionadas ao tratamento da informação. Entre estes subsídios destacam-se:
estudos éticos na organização do conhecimento (DAHLBERG, 1992; GUIMARÃES,
2008; PINHO, 2010; MILANI, 2014). A ética está direcionada ao conjunto de normas
e condutas que o profissional da informação deve ter nas práticas relacionadas ao
tratamento temático da informação, ou seja, a ética ajuda orientar o agir do/a bibliotecário/a (PIZARRO, 2017).
Os estudos sobre ética transcultural (GÁRCIA GUTIÉRREZ, 1998, 2002) partem
do entendimento de que as diversas culturas devem ser respeitadas no momento de
representar a informação e/ou construir o instrumento de organização do conhecimento, tendo como norte a ideia de que a cultura é um sistema aberto, dialógico
e interativo.
A Hospitalidade cultural e a garantia cultural (BEGHTOL, 2002) pressupõem
que os indivíduos situados em diferentes culturas necessitam de diversos tipo de
informação e muitas vezes em contextos diferentes, no entanto, o sistema de organização do conhecimento deve representar conhecimento e informação de maneira global e local por diferentes línguas para qualquer lugar do mundo.
Os Tesauros multilíngues (HUDON, 1997) que propõem indexar documentos em
diversas línguas, proporcionam uma relação entre culturas e comunicação interlinguística. As abordagens socioculturais se configuram para analisar e servir de metodologia para a construção de um Sistema de Organização do Conhecimento que
incluam equitativamente outras culturas, como é previsto na pós-modernidade.
Como a ciência pós-moderna tem se preocupado com a inclusão de diferentes códigos linguísticos, mais específicos na forma de utilização, seria interessante
“uma análise semiótica de produção de significados de uma comunidade discursiva, antes da construção de arranjo de conhecimento” (PANDO, 2018, p. 143).
Uma das fragilidades percebidas em algumas teorias críticas da organização
do conhecimento, e que corroboram com a abordagens socioculturais, é a falta de
questionamento sobre a modernidade ter sido a continuação do colonialismo com
o propósito de dominação e apagamento de conhecimentos de outras culturas ditas
marginais, e uma das armas dessa dominação era a disseminação seletiva, e muitas
vezes forjadas da informação, que serviram para construção de novos conhecimentos propagando a ideologia dominante, os quais eram classificados e catalogados
por um instrumento que também possui um viés excludente, que potencializa a
117
Teoria crítica da colonialidade na Organização do Conhecimento
relação de poder para dar continuidade nas desigualdades. O fenômeno chamado
modernidade se referia somente à racionalidade, à ciência, à tecnologia, etc.
Contudo, estudos voltados nos aspectos pós-coloniais, decoloniais e estudos
subalternos possibilitam ter uma visão ampla dos acontecimentos da modernidades e perceber como foi feita a construção do sistema de organização do conhecimento, em especial a CDD e a CDU.
3 Aspectos teórico-críticos e epistemológicos dos estudos pós-coloniais, decoloniais e
subalternos
Estudos pós-coloniais, decoloniais e subalternos são epistemologias baseadas
em saberes diversos, vindos em especial do conhecimento da América Latina, Sul
global e do Oriente no que concerne a saberes dos sujeitos subalternos. São saberes
invisibilizados e deslegitimados na modernidade como saberes não válidos e nesse
sentido inexistentes (SANTOS, 2010), que transcenderam campos e áreas do conhecimento. Estes saberes partiram de reflexões e projeções de críticos latino-americanos (em sua maioria) que discutem a modernidade versus experiência colonial, um
pensamento inerente a desconstrução do conhecimento racial (ANTONACCI, 2015).
Os estudos pós-coloniais, decoloniais e saberes subalternos trata de epistemologias que criticam o conhecimento europeu que se naturalizou como um conhecimento universal ao longo do tempo, levado a repensar nossa formação epistemológica (ANTONACCI, 2015).
Os conhecimentos não válidos pela ótica eurocêntrica são representações clássicas da modernidade que os desconsideram simbolicamente e linguisticamente
(SIQUEIRA, 2014). A desconsideração das epistemes ditas subalternas é originária
do colonialismo que se perpetuou na modernidade. Essa perpetuação, na leitura de
Aníbal Quijano (2005; 2010), denomina-se de colonialidade do poder e para Boaventura de Sousa Santos (2010) pensamento abissal. Com base nessa concepção de
pensamento que transgride a colonialidade/pensamento abissal serão apresentados
os críticos que vão ao encontro de uma nova episteme, partindo de lugares subalternos. Mas antes disso, será envidenciado as diferenças e semelhaças em torno dos
termos que propagaram nas obras bibliográficas na área de Ciências Sociais.
O estudos pós-coloniais, decoloniais e estudos subalternos são estudos contra
a lógica de dominação imperalista vinda do extrangeiro que possuem um poderio
e contra o eurocentrismo que ainda se perpetua nas produções de conhecimento
legitimadora dos campos de estudos. Esses estudos têm como princípio as teorias
pós-coloniais, ou seja, uma teoria que pensa estratégicas de libertação depois do
colonialismo. No decorrer do tempo, outros estudos, como os estudos subalternos e decoloniais foram se desmembrando das teorias pós-coloniais formando
118
Graziela dos Santos Lima
identidades novas com bases em suas teorias que faz com que uma se diferencie
de outra.
Os estudos pós-coloniais: é uma linha de estudos que teoriza os processos
drásticos ocorrido pelo colonialismo e que ainda sucede historicamente em diferentes espaços e dimensões. Se configura como um “movimento político, intelectual e interdisciplinar” (AGUIAR, 2016, p .276). O pós dos estudos pós colonais,
segundo Hall (2009) não significa encerramento com o período colonial, mas evidencia as relações coloniais de dominação na contemporanialidade. É um campo
epistemológico que possui fortes abordagem críticas, vinda do pós-etruturalismo,
desconstrutivismo, estudos culturais e estudos anticoloniais, sobre os efeitos do colonialismo nas sociedades (HALL, 2009) e propõem o recharçamento de dicotomias
e hierarquias que possibilita estagnar identidades culturais e nos possibilita evidenciar a essencialização e dominação constituida históricamente (COSTA, 2006)
nas populações colocadas à margem.O estudos pós-colonial têm como principais
autores Albert Memmi, Aimé Cesárie, Franz Fanon e Edward Said.
Os estudos subalternos: É proveniente de projetos pensados e construídos por
historiadores indianos, liderado por Ranajit Guha, Gayatry Spivak e Dipesh Chakrabarty entre 1970 e 1980 e identificados como grupo Sul Asiático dos Estudos
Subalternos. A utilização do termo subalterno é parte inerente da teoria pós-colonial, proveniente do marxismo gramsciano15 e é utilizado para marcar posição
relacionada ao aspecto teórico e politico às intepretações elitistas dentro do contexto indiano que possuíam/possuem viés colonialista e/ou nacionalista (AGUIAR,
2016). O termo subalterno refere à perspectiva de pessoas de regiões e grupos fora
do poder da estrutura hegemonica, bem como fora do pensamento hegemonico. A
noção de subalterno transcedeu o território indiano e ganhou destaque na acadêmia Norte-Americana e posterior na América-Latina onde foi criado o grupo de
estudos Latino-Americano de Estudos Subalternos em 1992 pelos pesquisadores
John Beverly, Robert Carr, José Rabaa, Lleana Rodriguez, Javier Sanjines. Os dois
grupos tinham diálogos entre si até que ouve uma ruptura em 1998 por divergencias teoricas (BALLESTRIN, 2013) e parte dos componentes do grupo Latino-Ameriano se constitui em grupo Modernidade/Colonialidade.
Os estudos decoloniais ou a decolonialidade: é uma linha de estudos do grupo Modernidade/colonialidadde que por meio do giro decolonial abarca uma longa tradição de resistência das populações negras e indígenas e dos condenados da
15 Antonio Gramsci “desenvolve a categoria classe subalterna como elaboração de uma estratégia política de transformação social, baseada na existência dos subalternos, na reconstrução da
história integral” (AGUIAR, 2016, p.274)
119
Teoria crítica da colonialidade na Organização do Conhecimento
terra. Os estudos decolonais ajudam a pensar em estratégias para transformar a
realidade e viabilizam o locus de enunciação dos saberes indígenas e afrodescendentes, pautando a dimensão política e a resistência no terceiro mundo. É uma
linha de estudo que busca autonomia por meio da descolonização epistemológica
dos cânones ocidentais (GROSFOGUEL, 2008) e busca refletir e evidenciar a realidade da América Latina e sul global. Além de evidenciar o locus de enunciação das
populações às margens, situados na América Latina e sul global, analisa “as dimensões culturais e economicas, organizadas pelo processo de expansão europeia em
torno da colonialidade do poder” (JARDIM; CAVAS, 2017, p. 85).
As três linhas de estudos visam a descolonização das práticas engendradas pelo
colonialismo em diversos espaços e níveis16 e nos proporcionam pensar em estratégias de libertação que nos possibilitam refletir e construir conhecimentos a partir
da margem.
Enrique Dussel (2005), filósofo e mexicano, apresenta questionamentos sobre
o ego cogito e o ego conquisto a partir do México, relatando que este foi o primeiro
país da América Latina no âmbito do ego moderno. A Europa impôs sua superioridade sobre às suas culturas asteca, maia, inca, dentre outras e utilizou-as como
comparação a suas culturas antigas antagônicas, para impor a denominação de culturas primitivas.
O sociólogo peruano Aníbal Quijano (2005; 2010) discute a colonialidade do
poder originada por meio da classificação racial/étnica da população que é indissociável da divisão do trabalho e do capitalismo. A ideia de classificação por raça
coloca os conquistados em situação de inferioridade. A relação de superioridade e
inferioridade também atinge as relações de gênero e o modus europeu de produzir
conhecimento.
Walter Mignolo (2005), antropólogo e argentino, questiona a colonialidade a
partir da nação de diferença colonial e da emergência do pensamento limiar sem
sistematizações e enquadramentos. O pensamento limiar discorre sobre “fraturas
profunda entre visões de mundo, simbologias, imaginários e forma de cognição
que não vivem clivagens cartesianas” (ANTONACCI, 2015, p. 358).
Os filósofos porto-riquenhos Nelson Maldonado-Torres (2016) e Rámon Grosfoguel (2006) propõem conhecimentos para além das hierarquias raciais, de gênero e geopolíticas em direção a epistemologias pluriversais17.
16 “[...] na vida pessoal e política, nas relações de gênero, raça, sexualidade e localização geográfica, traçando estratégias de pensamento – não dicotômicas e não hierarquicas – que permitam
desfazer, ou superar, a colonialidade das relações estabelecidas” (JARDIM; CAVAS, 2017, p. 84)
17 Pluriversais seria um diálogo intercultural com os diversos saberes levando em conta as assi-
120
Graziela dos Santos Lima
Saindo da América Latina, temos o pesquisador Boaventura de Sousa Santos
que é sociólogo e nascido em Coimbra. Boaventura propõe o Epistemologia do Sul
que é uma epistemologia que reflete sobre as condições de conhecimentos válidos
(GOMES, 2012) e dos conhecimentos ditos não válidos, que por meio do processo
de colonização passaram a ser um conhecimento inexistente. Refere-se aqui, que
os conhecimentos válidos são os conhecimentos produzidos por homens, cis, heterossexuais, cristãos, possuidores de bens; e os conhecimentos ditos não válidos,
ou seja, não reconhecido enquanto científicos verdadeiros, são os conhecimentos populares, leigos, indígenas, quilombolas, negros, das mulheres, dos ciganos,
dentre outros que desaparecem enquanto conhecimento relevante. Desse modo, a
Epistemologia do Sul traz a percepção de que o mundo é variado e diverso e que a
história ao longo do tempo transformou em um conhecimento dito não científico,
e por consequência disso tornou-se subalterno (SANTOS; MENESES, 2010).
No Oriente, temos a pesquisadora indiana Gayatri Chakravorty Spivak, que
teoriza sobre os estudos subalternos. A pesquisadora trabalha o sentido de representação do sujeito no contexto político, econômico e social. De modo que esse
sujeito se represente, ou seja, ela rediscute a representação do sujeito no Terceiro
Mundo. Além disso, Spivak (2010) trabalha com a questão da conscientização da
resistência da/na subalternidade. Outro ponto importante é a questão de se criar
mecanismos para que as pessoas ditas subalternas possam falar e se ouvidas. Dentro da estrutura societal, a mulher, em especial, a mulher negra, está em situação
de marginalidade subalterna, segundo Spivak (2010, p. 15) a “mulher como subalterna, não pode falar e quando tenta fazê-lo não encontra os meios para se fazer
ouvir”. Por fim, autora também discute sobre a violência epistêmica que invisibiliza
o sujeito subalterno e colonizado impossibilitando de se represente a si mesmo,
causando, então, um silenciamento.
Podemos evidenciar que as mazelas do colonialismo ultrapassaram tempos,
configurando-se em colonialidade do poder18, do ser19 e do saber20, e que os estudos
metrias de poder (DUSSEL, 2015)
18 A colonialidade do poder, termo cunhado por Anibal Quijano (2005; 2000) e que se configura em dois eixos fundamentais, capital/trabalho e europeu/não-europeu, que se utilizou da ideia
de raça nas distribuição de lugares no mundo e na sociedade. Portanto, o racismo é o principio
organizador da economia, da política e das diversas formas de poder e existência, bem como é
organizador das formas de saber.
19 A colonialidade do ser, evidenciado no escritos de Maldonato-Torres (2008), são os efeitos
da colonialidade na experiêcia vivida em corpos racializados, ou seja, a experiência da negação
do outro (enquanto sujeito) não eurocentrico.
20 A colonialidade do saber, segundo Castro-Gómez (2012) faz referencia à dimensão epistemi-
121
Teoria crítica da colonialidade na Organização do Conhecimento
citados acima propõem uma reviravolta no triapé de modo a mudar a geopolítica,
em especial naprodução e organização do conhecimento.
As questões relatadas acima via pesquisadores que criticam a epistemologia
dominante também estão viabilizadas nos discursos dos pesquisadores discursos dos pesquisadores da Biblioteconomia e Ciência da Informação, em especial, Hjorland (2003), Hope Olson (2003) e García Gutiérrez (2013) na seção
seguinte.
4 Estudos pós-coloniais e decoloniais e estudos subalterno: epistemologias
emancipatórias para pensar uma nova Organização do Conhecimento
Como relatado nas seções anteriores, a contribuição da pós-colonialidade, decolonialidade e estudos subalternos consiste em perceber e criticar a colonialidade
do poder, do saber baseado no saber eurocêntrico e estadunidense e reconstruir,
reconhecer outros saberes dados como invisíveis, sub-representados, por não se
adequarem ao saber europeu, um saber hegemônico.
Na Ciência da Informação e também na Organização do Conhecimento pesquisadores como Hjorland (2003), Hope Olson (2003) e Garcia Gutiérrez (2013)
têm questionado os métodos de construção de instrumentos para organizar os
conhecimentos humanos. Hjorland (2003) tem evidenciado que pesquisadores da
KO possuem métodos que padronizam os instrumentos de organização do conhecimento, tornando-os positivista e autoritário. Pesquisadores como Hope Olson
(2003) e Garcia Gutiérrez (2013) têm refletido com base na desconstrução e pós-colonialidade sobre o campo engessado e com viés do pensamento moderno, o
campo de estudo da Organização do Conhecimento.
Sendo o conhecimento colonizado por práticas de poder originadas por meio
de relações entre indivíduos e grupos, parte-se do princípio de que na Organização
do Conhecimento para que o conhecimento seja representado este deve ser científico e sistematizado por meio de conceitos. Para o pensador Gutierrez (2013, p. 95)
os conceitos “son sedimentaciones efímeras y excepcionales del sentido, de larga
trayectoria histórica, cognitiva y cultural, sobre los que una intencionalidad dada
inflige un corte tomográfico que impide su flujo y fuga naturales”.
A teoria da desclassificação cunhada por García Gutiérrez chega próximo aos
estudos pós-coloniais, decoloniais e aos estudos subalternos no âmbito da organização dos saberes. Porém, García Gutiérrez não é cem por cento favorável, de fato,
aos estudos pós-coloniais, pois
ca e sua aplicabilidade e a forma de pensar pautada numa perspectiva européia.
122
Graziela dos Santos Lima
la propia visión poscolonial del mundo llevaria implicita no sólo el inevitable lastre que tal prefijo suele arrastrar, en larazonable certidumbre
de que podemos ocultar una deusa que no se saldará más que contrayendo otra sino, especialmente, la errónea sensación de acabamiento o
superación que lo ‘pos-’ sugiere (GUTIÉRREZ, 2013, p. 95).
Nesse sentido, García Gutiérrez percebe que os estudos pós-coloniais não poderiam se opor ao colonialismo por este já está imbricado no contexto de cada
cultura que sofre os processos de colonização e recolonização. Mas, ao contrário
de García Gutiérrez, os autores Boaventura de Sousa Santos e Aníbal Quijano, por
meio dos termos pensamento abissal e colonialidade do poder explicam que o processo da modernização e consequentemente da pós-modernização, que o colonialismo se expandiu com o objetivo de tornar a Europa/Ocidente o centro do mundo,
e universalizar saberes, culturas, linguagens e modos de ser com os parâmetros da
eurocêntricos. E os estudos pós-coloniais surgem para desmistificar o processo de
modernização que só pautava a modificação e a inovação da ciência. Para Olson
(2003) “é um ponto crítico que reconhece os impactos sociais e políticos da colonização e a consequente diasporização e hibridização dos povos e das culturas”.
Outro pensamento de García Gutiérrez sobre o pós-colonial21 é que essa perspectiva de estudos proporciona a inversão de poder formando um outro centro de
dominação e como observado em teóricos pós-coloniais, são visões que questionam a práxis colonial na modernidade e que avança na pós-modernidade. Nesse
sentido propõem uma epistemologia que visibiliza outros saberes que foram tratados como um saber não científico e por fim inválido.
Portanto, García Gutiérrez propõem via epistemografía22 a teoria da desclassificação que é “desmontar uma estrutura de ordenação dominante - geralmente
hierárquica - implica reclassificar com parâmetros diferentes aos dessa estrutura”
21 “lo poscolonial no existe como estado definitivo sino que acontece como proceso inestable e
inexorable de recolonización de todas las instancias físicas y simbólicas. Y, por tanto, los objetivos, las herramientas y nuestra propia posición perceptiva, enunciativa, ética y política –epistémica, en suma-, ante cualquier objeto de investigación, tendría que estar obligadamente atravesada por una voluntad descolonizadora y sensible que sólo reconoce el estado como cambio y la
indomabilidad de su paradójico e inestable régimen” (GUTIÉRREZ, 2013, p. 96).
22 “A epistemografia propõe operações de organização horizontal do saber e da memória registrada, formando-se como a corporificação algológica (de ‘algos’ dolor) de um conhecimento e
memória gerados com toda dignidade pelos despercebidos do planeta. Em suma, constituiria a
dimensão material desse espírito intransigente que caracteriza a Epistemologia, pois, como disse
Santos (1989), ela dita, para a ciência, leis incapazes de serem aplicadas a elas próprias” (GUTIÉRREZ, 2006, p. 106).
123
Teoria crítica da colonialidade na Organização do Conhecimento
(GUTIÉRREZ, 2006, p. 110), ou seja, transgredir o limite da classificação. A desclassificação também propõe uma produção de conhecimento aberto, auto e heterodescolonizador que possibilita o reconhecimento e a retomada do sujeito (GUTIÉRREZ,
2013). Para o mesmo autor é um projeto de “recolonización descolonizante” (GUTIÉRREZ, 2013, p. 97), que sobrepõe razão política sobre a razão técnica dominante
na Organização do Conhecimento.
Hope Olson (2003) também possui o mesmo pensamento transgressor de Garcia Gutierrez. Olson (2003) parte da perspectiva pós-estruturais e culturais com
a análise de discurso de Foucault e a desconstrução de Jacques Derrida e depois
entra em estudos feministas e pós-colonial para abarcar as limitações encontradas
nos autores citados e desconstruir representações de caráter dicotômico. A discussão por parte da autora, parte do princípio de que não há uma verdade universal, e
a teoria da desconstrução, como uma teoria crítica que possibilita questionamentos
sobre suposições originadas, geralmente, de oposições binárias.
Para Olson (2003, p. 732), oposições binárias “são pares de conceitos opostos
nos quais um conceito é dominante e o outro é subordinado”. Porém, toda teoria possui lacunas e a desconstrução baseada em Derrida mostra isso. Para Olson
(2003), a desconstrução “elimina o significado através de um enfraquecimento niilista de valores”. Nesse sentido, a autora, utiliza-se da denominação desconstruções transgressivas de modo a incorporar os estudos feministas e pós-coloniais. Na
concepção da autora, são aplicáveis na organização do conhecimento por ser um
campo de práticas concretas, tanto material quanto teórica.
5 Considerações finais
O presente capítulo, cujo objetivo foi mostrar as contribuições das teorias críticas referentes aos estudos pós-coloniais, decoloniais e subalternos para a Organização do Conhecimento, por meio de autores das Ciências Sociais e autores críticos
da Organização do Conhecimento, com o intuito de questionar as ausências de
saberes marginalizados na Organização do Conhecimento. Este estudo mostra-nos
que a Organização do Conhecimento ainda é fragilizada no que concerne à disseminação de valores considerados universais, devido a influência modernista, o que
implica, segundo García Gutiérrez e Hope Olson, numa formação de conceitos
fechados, dicotômicos, hierarquizados, de forma valorativa e enquadrada para um
campo científico que faz com que os sistemas de organização do conhecimento, em
especial os ditos universais sejam limitantes, sendo passíveis de sub representações,
invisibilidade e limitações.
A perspectiva dos/as teóricos citados/as tem-nos mostrado que é possível olhar
para a Organização do Conhecimento a partir das margens, basta que nós, como
124
Graziela dos Santos Lima
pesquisadores/as, percebamos a realidade em que nos situamos, teorizamos e nos
localizamos e que conhecimentos/saberes, muitas vezes de pessoas que não estão
no âmbito acadêmico devem ser representados para que estas pessoas de fato consigam realizar, a partir de sua cosmovisão, o acesso à informação.
Outra questão é analisar as epistemologias desenvolvidas que viabilizam a
construção do sistema de organização do conhecimento, as quais dão base para a
sua construção, tais como: a teoria do conceito, a terminologia, a linguística, dentre outras, bem como uma análise das representações sociais dos profissionais da
informação que atuam diretamente nos processos de organização da informação,
uma vez que, qualquer ser humano está passivel de representar o documentos, nos
mais variados suportes, uma representação que não condiz com a realidade pois
está imerso em uma matriz colonial.
A contribuição para a Organização do Conhecimento, advinda das teorias que
questionam o saber hegemônico, é a percepção dos valores universais tanto nas
disciplinas, quanto nos métodos de construção de instrumentos de organização do
conhecimento que utilizam de epistemologias que não adotam perspectivas pluralistas.
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Ranganathan no país dos brinquedos ‘:’ colon,
uma classificação, uma filosofia, um brinquedo
Vinícios Souza de Menezes1
1 Ler Ranganathan, uma arte de começos...
Uma geração quer estar novamente na encruzilhada,
mas os caminhos não se cruzam em parte alguma. Toda
juventude tinha a obrigação de escolher, mas os objetos
desta escolha já lhe estavam predeterminados. [...] Não
há nada que a juventude exija com mais urgência
do que a escolha, a possibilidade da escolha, da decisão
sagrada sobretudo. A escolha gera os seus próprios objetos.
Walter Benjamin (2009 [1914], p. 28)
Shiyali Ramamrita Ranganathan pensou a imanência da vida através dos
olhos e das máscaras da Biblioteconomia. Esse texto é sobre os olhos e as máscaras
que o pensamento de Ranganathan legou para a história social do pensamento biblioteconômico. Trata-se de uma leitura apenas, ao lado de tantas outras interpretações dos escritos do pensador hindu. Nesta arte de começos que é ler um pensador clássico como Ranganathan, partimos da narração de uma estória contada pelo
próprio: o seu encontro insólito com um conjunto de brinquedos Meccano. Aos
nossos olhos perspectivos, este fato improvável alterou os rumos do pensamento
biblioteconômico e revolucionou a tradição da teoria da classificação.
Na aflição do momento que vivia, insatisfeito com a insuficiência dos esquemas classificatórios de sua época e pessoalmente angustiado pois não conseguia
propor um desenho alternativo que resolvesse as questões aporéticas, Ranganathan
se deparou com a encruzilhada do país dos brinquedos. Sob a máscara daquele es1 Doutor em Ciência da Informação pelo PPGCI IBICT UFRJ; Professor Substituto do Departamento de Ciência da Informação da UFS;
[email protected]
Ranganathan no país dos brinquedos ‘:’ colon, uma classificação, uma filosofia...
pécime Meccano, a vida tornou-se jogo e energia. Feito o encontro transformador
de Pinóquio com o país dos brinquedos, onde o sonho do boneco de encantar-se
e tornar-se criança fez-se presente na dimensão dos jogos, Ranganathan ao deparar-se com o brinquedo percebeu que o problema da predeterminação estrutural
que o imobilizava em suas pretensões, como também a Pinóquio, desconcertava-se
perante a encruzilhada de possibilidades, de escolhas e composições que aquele
brinquedo Meccano proporcionava. Ranganathan fez desta encruzilhada de materiais heterogêneos a metáfora da sua classificação e do colon, o seu brinquedo conceitual. Com isso, poderíamos dizer que a Colon Classification é, metaforicamente,
uma classificação filosófica do brinquedo. E é sobre isto que trata esse texto – a
estadia de Ranganathan no país dos brinquedos.
O método adotado para a configuração deste texto diz mais sobre uma máquina de leitura do que propriamente sobre abordagens, procedimentos e técnicas
metodológicas. Andarilho feito Ranganathan, “método é caminho indireto, desvio”, já dizia Benjamin (1984, p. 50). Foi no curso das experiências não-ocidentais
que em suas travessias Ranganathan associou o misticismo hindu com a “síntese
do conhecimento ocidental”, a energia sociocósmica de Sakti com o logos classificatório-relacional do Ocidente e fez do uso, categoria dedicada aos barbarismos por
Aristóteles (1988, §1254b, p. 57-59), a fonte de mantras libertadores de livros e pessoas. Desviante, como o imaginário dos brinquedos e a condição humana, a experiência que este texto busca expor é que, à diferença do método enquanto caminho
reto, claro e evidente, o que a pragmática de Ranganathan nos propõe é fugidio e
indireto como um brinquedo, é obliquo e cheio de veredas como as experiências
pragmáticas, e, por fim, é impróprio, não tem determinação prévia e nem dá-se a
ver de antemão na vidência dos esquemas universais. O método é fazer colon com
o mundo, relacionar-se com a energia que nos configura.
Associado a este encantamento do mundo e os efeitos classificatórios provocados no pensamento de Ranganathan, agenciamos alguns elementos heterogêneos
que irmanados apresentam um pouco do mosaico da obra distribuída através de
colagens na revisão documental deste texto. São eles: i) uma discussão antropológica sobre a questão conceitual do brinquedo e as possíveis relações com alguns
movimentos do pensamento ranganathiano, ii) uma filosofia do colon narrada pelo
imaginário ocidental e suas formações gramaticais e, por outro lado, as influências
vitais do ponto de vista da cosmologia hindu sobre o desenvolvimento da ideia
de energia (Sakti) configuradora do colon em Ranganathan, além de, por fim, iii)
tratar das possibilidades de descolonização e desclassificação do pensamento que
a imaginação conceitual de Ranganathan pode proporcionar para nós ocidentais
nesse contato com a alteridade. Por meio deste exercício de variação da imaginação
134
Vinícios Souza de Menezes
propomos uma brincadeira de desver o mundo com a espiral do método científico
de Ranganathan a partir do universo infantil de brasilidades da cultura popular.
2 Ranganathan no país dos brinquedos
Onde as crianças brincam existe um segredo enterrado.
Walter Benjamin (2009 [1930], p. 142).
Este texto encontra-se mobilizado por uma anedota contada por Ranganathan
em 1924, a partir das suas inquietações frente às insuficiências dos esquemas classificatórios anteriores a ele. Essa anedota foi rememorada pelo texto “A atualidade
do pensamento de Ranganathan: princípios para a organização de domínios de
conhecimento”, escrito por Hagar Espanha Gomes e Maria Luiza de Almeida Campos (2016, p. 113), especialistas nos escritos ranganathianos. Partirei desta anedota
narrada por Ranganathan no texto “Genesis of Colon Classification” (1924) e revisto
entre 1971 e 1972. Em um primeiro momento, seguindo a argumentação de Ranganathan, apresentarei as circunstâncias históricas, as insatisfações, em especial,
com as classificações decimais e, após, expresso a anedota que o pensador hindu
classificou como “uma possível solução” para os problemas enfrentados.
Entre 9 julho de 1917 e 4 de janeiro de 1924, Ranganathan atuou como professor
de Matemática em diferentes Faculdades da Universidade de Madras. Em julho de
1923, a Universidade de Madras criou o cargo de bibliotecário. Em novembro de
1923, Ranganathan foi nomeado o primeiro bibliotecário da Universidade de Madras. Tomando posse como bibliotecário, numa tarde de quinta-feira, 4 de janeiro de 1924, Ranganathan inicia sua atuação que se tornaria revolucionária para o
campo da Biblioteconomia e o mundo futuro. Ao assumir o posto de bibliotecário,
Ranganathan confrontou-se com a realidade de época do mundo das bibliotecas
indianas e entediou-se frente a monotonia do “organizar, tratar e disseminar as
informações contidas em registros de conhecimento” (GOMES; CAMPOS, 2016, p.
110), isto é, o “universo do documento”. Ele buscava a ebulição do conhecimento
e a biblioteca seria um espaço holístico para a propagação dos saberes – os mais
diversos – e a difusão do conhecimento, nos mais distintos contextos sociais. Com
a agudeza e a pragmática social do seu pensamento, viajou a Londres para estudar
e conhecer as experiências das bibliotecas britânicas, com o intuito de retornar e
transformar a realidade do mundo das bibliotecas indianas. Na Escola de Londres
encontra-se com Berwick Sayers, docente que trabalhava com os aspectos teóricos
dos esquemas de classificação bibliográfica e com Teoria da Classificação. No período que passou em Londres, “Sayers atuou como supervisor de Ranganathan e
135
Ranganathan no país dos brinquedos ‘:’ colon, uma classificação, uma filosofia...
participou com ele das primeiras iniciativas da Colon Classification” (GOMES; CAMPOS, 2016, p. 110).
Ranganathan (1924) disse: “classification truely charmed me”2. Com Sayers, dedicou-se exclusivamente por três semanas com os seguintes esquemas: Decimal
Classification (DC), Expansive Classification (EC), Subject Classification (SC) e Library of Congress Classification (LC). Sente-se atraído pela DC, o que é reforçado
pelo conhecimento do Classified Catalogue of the Carnegie Library of Pittsburgh
e pelo classified periodical accession lists of the Mitchel Library of Glasgow, ambos
baseados na DC. Apesar de afeiçoar-se com a Classificação Decimal de Dewey, é
justamente em relação a ela que Ranganathan direcionará a sua crítica e por meio
dela que inclinará seu espírito engenhoso na formulação da Colon Classification,
um esquema classificatório de assuntos.
Desta maneira, podemos dizer que a Colon Classification surge da insatisfação
de Ranganathan com o que ele denominou de classificações decimais enumerativas:
“DC did not give satisfaction. Many compound Subjects did not get a co-extensive DC
number. All the facets of the Class Number of a Compound Subject, except the last one,
were frozen. My dissatisfaction was traced to this fact”, dizia Ranganathan (1924). As
classificações decimais, por serem enumerativas, limitavam os assuntos compostos
e os representavam em Decimal Fraction Numbers3. Diante das barreiras impostas
pela prévia destinação dos assuntos nas tábuas classificatórias, esses esquemas não
poderiam fornecer ou forjar números de classes coextensivos, por exemplo, para as
novas disciplinas científicas que surgiam no início do século XX. Os mapas temáticos dos esquemas decimais enumerativos representavam um estado definitivo do
conhecimento, as fronteiras dos saberes estavam determinadas e as possibilidades
classificatórias do que desabrochava encontravam-se subjugadas aos termos que a
precediam. A DC chocava-se diretamente com a elasticidade, princípio da quinta lei
da Biblioteconomia formulada anos depois – “o novo sempre vem”.
A violência simbólica causada por esses esquemas decimais enumerativos saltava aos olhos de Ranganathan no momento da decisão sobre o assunto, onde,
2 Os textos de Ranganathan possuem algumas palavras em inglês grafadas de maneiras distintas
do inglês contemporâneo. Como a língua é um organismo vivo e em constante variação, nossa
opção foi por preservar a historicidade das grafias utilizadas por Ranganathan.
3 Gomes e Campos (2016, p. 113) rememoram que “havia um exercício então usado no qual o
tutor lia o nome de um livro com um título expressivo, e os estudantes forneciam um número
decimal apropriado. Ranganathan muitas vezes achava que ele poderia fornecer dois. Ele verificou que muitos assuntos não permitiam criar notação coextensiva e compreendeu que era um
sistema enumerativo. Tentou encontrar uma solução que permitisse notação coextensiva inclusive para representar novos assuntos.”
136
Vinícios Souza de Menezes
por exemplo, os livros que incorporavam a nova literatura carregada de inovações
temáticas eram forçosamente classificados em números de classes demasiadamente
extensivos, tornando imprecisa e inconsistente a classificação. Na revisão do texto
de 1924, Ranganathan inclusive cita o Code for classifiers (1928), publicado por W.S.
Merill, como uma “list of the libraries in USA placing the new subjects forcedly in this
or that of the possible more extensive Class Numbers.” A partir de então ocorreu a
Ranganathan (1924): “‘Is the design of DC faulty?’ came the feeling.”
O espírito social e inclusivo de Ranganathan era fiel ao princípio basilar das
classificações bibliográficas: todo e qualquer tópico abordado por um documento
deve ter um lugar na estante. Sob os olhos da organização do conhecimento, este
princípio excederá os limites do princípio da garantia literária das classificações
bibliográficas. Era preciso, aos olhos do pensador hindu, incluir os saberes mais
diversos, não somente as disciplinas científicas, que, por sua vez, também se multiplicavam e ultrapassavam as demarcações dos sistemas decimais enumerativos
(GOMES; CAMPOS, 2016, p. 111). Enfim, tornava-se irrepresável a força do conhecimento e esta potencialidade merecia um esquema classificatório que com ela caminhasse através dos múltiplos matizes das paisagens que se apresentavam. Feito um
camaleão, pertencido pelas cores, o desenho do esquema ranganathiano precisava
se aperfeiçoar com as contingências temáticas das paisagens.
Desta maneira, Ranganathan no Prolegomena to Library Classification (1937)
propõe uma Teoria Dinâmica para contrapor ao que ele denominou de Teoria Descritiva das Classificações Enumerativas. Enquanto a Teoria Descritiva dedicava-se
à dimensão constativa do estado de coisas das classificações enumerativas, ao enquadrar os assuntos dos livros às notações já prescritas nos esquemas decimais, a
Teoria Dinâmica visava compor e forjar as notações de acordo com a iminência dos
assuntos tratados, acoplando o novo de modo orgânico ao aparato classificatório.
Segundo Gomes e Campos (2016, p. 111), “ele propõe princípios que permitem que
novos tópicos encontrem um lugar no esquema”, e não que o esquema imponha aos
novos assuntos um lugar predeterminado.
Segundo Ranganathan (1937, p. 137-141), enquanto a Teoria Descritiva organizava-se através de Termos Constituintes Fundamentais (Fundamental Constituent
Terms), estáveis ao plano esquemático prescrito, a Teoria Dinâmica se configuraria por meio de Termos Compostos Derivados (Derived Composited Terms) que
arranjariam os novos assuntos conforme o cânone da hospitalidade e o princípio
de filiação: “the crux of the Special Theory Classification peculiar to the Universe of
Knowledge which has an infinity of entities and classes, some of which are unknown,
is that of providing filiatory accommodation for new classes” (RANGANATHAN, 1937,
p. 139). Deste modo, um novo assunto cria a sua própria notação, inicia a sua his-
137
Ranganathan no país dos brinquedos ‘:’ colon, uma classificação, uma filosofia...
tória classificatória em acordo com as regras do jogo, não dependendo da fixidez,
nem das fronteiras prescritas pelos sistemas enumerativos4. Anos depois, n’As cinco leis da Biblioteconomia, Ranganathan (2009, p. 252) revela que essas ideias que
desenharam a Colon Classification foram desenvolvidas em profundo diálogo com
o pensamento de Sayers, desde uma noite de outubro, numa cafeteria, em 19245:
Como UMA BIBLIOTECA É UM ORGANISMO EM CRESCIMENTO e como
o próprio conhecimento está a crescer, é necessário que a ‘classificação
seja abrangente, envolvendo todo o saber passado e presente, e que preveja espaços para possíveis acréscimos ao conhecimento.’ Na verdade,
isto foi estabelecido pelo Sr. Sayers como o primeiro cânone da classificação. E citando Sayers novamente: ‘uma classificação deve ser elástica,
expansível e hospitaleira no mais alto grau. Isto é, deve ser construída
de tal maneira que todo novo assunto possa ser inserido nela sem perturbar sua sequência’.
Perante as inquietações que o afligia e os pressupostos normativos de como
deveria se comportar teoricamente na prática um esquema classificatório, de modo
a não somente incluir o “conhecido” (vastu-tantra)6, mas também o “conhecedor”
(kartru-tantra)7 e suas inovações temático-conceituais, Ranganathan angustiava-se
4 “A diferencia de los sistemas enumerativos, la Clasificación Colonada no provee una distribución
monolítica de clases como la Clasificación Decimal Dewey, la ‘Library of Congress Classification’ o
la Clasificación Decimal Universal, es decir, no tiene en sus tablas una lista completa preparada de
números, sino que se confecciona la notación para cada trabajo clasificado, lo que obliga a desarrollar
una labor de síntesis en cada caso, de tal manera que cada documento no se sitúa en una signatura
preestablecida correspondiente de la tabla creada al efecto, sino que se define analíticamente merced a
una combinación de signos que expresan su personalidad, materia, energía, espacio y tiempo. La esencia de la clasificación por facetas consiste, por lo tanto, en que trata de reflejar la diversidad y multiplicidad de las relaciones entre los fenómenos que se dan en el mundo real.” (GIL URDICIAIN, 1994, p. 114)
5 “One evening in October 1924, W C Berwick Sayers and myself spent some time in the cafetaria of the University College, London, in designing a Scheme for Library Classification along
these lines.” (RANGANTHAN, 1924).
6 “Este modo é chamado vastu-tantra em sânscrito. Diz-se que é adquirido por meio de tapas,
um método de concentração, autossublimação e autodesenvolvimento, e significa ‘depende do
conhecido’.” (RANGANATHAN, 2009, p. 267). Para um maior desenvolvimento desta perspectiva
ranganathiana, indicamos o ótimo “Vastu-tantra: sobre a pragmática transcendental em Ranganathan”, escrito por Gustavo Silva Saldanha (2016).
7 “A forma de conhecer com a ajuda das faculdades e métodos mencionados nas últimas quatro seções é denominada kartru-tantra em sânscrito, que significa ‘dependente do conhecedor’.”
(RANGANATHAN, 2009, p. 267).
138
Vinícios Souza de Menezes
na busca pela zona de imanência entre o vastu-tantra e kartru-tantra que faria, a
partir de uma “pragmática transcendental” (SALDANHA, 2016, p. 43-56), surgir misticamente o conhecimento – “quando o conhecedor [kartru-tantra] e o conhecido
[vastu-tantra] entram em contato, o conhecedor conhece o conhecido, e daí surge o
conhecimento” (RANGANATHAN, 2009, p. 267). A procura de Ranganathan por esta
zona de imanência, cujo contato friccionaria os pólos do conhecido e do conhecedor, e iluminá-lo-ia para o conhecimento foi árdua e carregada de grande tensão:
“No light would come for a few days. The mental strain was great.” (RANGANATHAN,
1924). Foi neste momento de desassossego que Ranganthan se deparou com o país
dos brinquedos e libertou da sua condição latente o almejado esquema classificatório, ou, como em outro momento o pensador hindu manifestou: foi iluminado pela
“light from the ‘Mother’” (RANGANATHAN, 1961, p. 181), sendo “Mother” aqui Sakti,
a energia cósmica primordial que perpassa e anima todos os existentes do cosmos
em algumas mitologias hinduístas. Desta maneira, não é acidental colon significar
energy no pensamento de Ranganathan.
Assim ele nos conta a anedota do nascimento do colon nas miniaturizações dos
brinquedos e suas “microideias”, como Ranganathan denominava algumas de suas
experiências classificatórias.
At that time, I happened to visit one of the Selfridges’ Shops in London. I
was attracted by the stall demonstrating the use of a Meccano set. With
a few slotted metal plates, two small thin metal rods, a few metal hooks,
a few bolts and nuts, and a few short thin pieces of string, the man demonstrated the making of toys in the shape of truck, crane, and many
others. I saw this for the first time. It gave me the clue. Instead of selling
read-made rigid toys, the man showed a few fundamental components;
with these a child could itself make any toy. So, it should be with Class
Numbers. That was my feeling. Instead of providing ready-made Class
Numbers for Compound Subjects, it should be possible to construct the
Class Number for any such subject by combining together an assortment
of a few appropriate component numbers taken from short schedules for
component ideas. […] The digit ‘:’ (Colon) was used to function as ‘bolt
and nut’ in assembling the various components of the Class Number of
a Compound Subject to distinguish it from the Class Number of a bare
Basic Subject. It was so denoted because the digit “:” (Colon) was made
to play an important role in the Class Numbers of the scheme (RANGANATHAN, 1924).
139
Ranganathan no país dos brinquedos ‘:’ colon, uma classificação, uma filosofia...
Naquele mundo reduzido de um conjunto Meccano, Ranganathan deparou-se
com os agenciamentos (assemblages) naturais de todo brinquedo, ou como dizia
Baudelaire, com a “alma do brinquedo”, isto é, o jogo e seus usos. Sob esta perspectiva, Ranganathan travou uma experiência que guarda suas analogias à narrada
por Carlo Collodi (2014) n’As Aventuras de Pinóquio, quando, no capítulo XXXI,
o anímico boneco de madeira, com pretensões à menino, após uma longa viagem
na companhia do seu burrinho falante, chega feliz, com o raiar da aurora, ao país
dos brinquedos. Nesta utópica república infantil, a vida é atravessada pelo jogo,
tudo não é nada mais que jogo, onde na medida dos usos dos objetos e palavras, as
finalidades e os sentidos estruturais alteram-se, fazendo com que tudo aquilo que
é velho e estabelecido em seus usos, torne-se suscetível de virar brinquedo, com
outros usos, novos e transformadores (AGAMBEN, 2008, p. 81-85). Neste momento,
diante de um punhado de peças pertencentes a conjuntos estruturais diferentes –
peças de metal, fendas, hastes, ganchos, cantoneiras, rodas, manivelas, pinhões etc.
–, Ranganathan percebeu o elástico iconismo dos brinquedos ao observar que por
meio dos jogos de aplicações e usos de uma pequena porção de parafusos e porcas
(“bolt and nut”), aqueles conjuntos estruturais seriam transformados indefinidamente. A partir desses componentes fundamentais, em vez de brinquedos rígidos
estruturalmente8, as crianças poderiam montar qualquer possível brinquedo, num
processo de composição que estaria limitado somente pela imaginação infantil,
que, como sabemos, beira o deslimite.
Desta experiência típica do país dos brinquedos, ocorreu a Ranganathan que
assim, ao modo dos brinquedos, deveriam ser os números das classes do seu esquema classificatório. Em vez de fornecer classes prontas para assuntos compostos e, por ora, até mesmo desconhecidos historicamente, deve ser possível, através
de agenciamentos temáticos, construir números de classes para qualquer assunto
combinando-os com outros componentes, como no caso das fendas, hastes e gan-
8 Por mais rígidos que sejam estruturalmente, as crianças os transformam, alteram e destroem
tal rigidez, seja nas tentativas obstinadas por aferrar o brinquedo, ao revirá-lo em suas mãos, sacudindo-o, atirando-o contra o chão e fazendo-o em pedaços, ou, através da subversão simbólica
dos usos e da alteração dos estatutos do brinquedo. Esta condição fragmentar é a “essência do
brinquedo”, a sua “marca distintiva” (AGAMBEN, 2008, p. 86-87). Contemporâneo de Ranganathan, Walter Benjamin em 1928 escreve de modo lapidar a natureza metamórfica dessas relações:
“Há algo que não pode ser esquecido: jamais são os adultos que executam a correção mais eficaz
dos brinquedos – sejam eles pedagogos, fabricantes ou literatos –, mas as crianças mesmas, no
próprio ato de brincar. Uma vez extraviada, quebrada e consertada, mesmo a boneca mais principesca transforma-se numa eficiente camarada proletária na comuna lúdica das crianças” (2009
[1928], p. 87).
140
Vinícios Souza de Menezes
chos do conjunto Meccano – “These schedules correspond to the standard pieces in
a Meccano apparatus” (RANGANATHAN, 1946, p. 53). Ao invés de fornecer uma lista
enumerativa contendo inumeráveis classes para atender a todos os assuntos, diz
Ranganathan (1994, p. 55), um esquema de classificação deve ser como um conjunto Meccano – “Classification Scheme should be like a Meccano Set” –, pois, assim,
aos olhos do pensador hindu, era a linguagem9.
Figura 1: Conjunto de brinquedos Meccano, 1915
Fonte: Museum of Applied Arts & Sciences (2020).
Provavelmente o modelo do conjunto de brinquedos Meccano visto por Ranganathan seja semelhante ao da figura acima. Os primeiros conjuntos foram inventados na Inglaterra por Frank Hornby (1863-1936) em 1901 e projetados para serem
comercializados no Natal do mesmo ano. Em 1909 foram lançados os conjuntos
números 5 e 6, vinham em armários de madeira contendo 168 faixas perfuradas e
245 cantoneiras. Somente em 1926, dois anos após a experiência de Ranganathan,
os conjuntos 5 e 6 sofreram uma pequena modificação, com a troca das peças em
9 “In a Selfridge’s Department Stores in London, I saw for the first time, a Meccano set consisting of slotted strips, wheels, rods, screws, nuts, and pieces of spring. By the combination of a
suitable assortment of these pieces several kinds of toys could be easily constructed. I spent an
entire hour observing a demonstration of the construction of different kinds of toys with the aid
of a Meccano set. It brought to my mind that the alphabet of a language was itself a formidable
analogue of a Meccano set. With a few digits, called the letters of the alphabet, an endless variety of words, phrases, sentences, paragraphs, and whole works are being produced, each totally
different from every other. Viewed from one angle, the work in every book is only a combination
of an assorted collection of the letters of the alphabet. These ideas gave me the courage to think
that there was nothing wrong in building up class numbers as in a Meccano set, though the book
of the numbers was unusual. I was encouraged to pursue the designing of the Colon Classification as a type of faceted classification.” (RANGANATHAN, 1994, p. 55).
141
Ranganathan no país dos brinquedos ‘:’ colon, uma classificação, uma filosofia...
folhas de flandres para peças em níquel e a adição das cores vermelha e verde escuro da Borgonha. Com as peças em níquel, houve um aumento significativo no número de novas peças, todavia, contido com a Grande Depressão de 1929 e refletido
na diminuição de peças do clássico conjunto Meccano nº 7.
Portanto, diante deste conjunto Meccano nº6, o pensamento classificacionista
de Ranganathan se iluminou com a capacidade de permutações e combinações
virtualmente possíveis “enterradas em segredo” pelo brinquedo. Desperto pelos jogos de sentido do brinquedo, Ranganathan no Prolegomena (1937, p. 192) manifesta
que o primeiro princípio do seu esquema classificatório é o “Meccano principle”
– “the first principle hit upon was the synthetic or Meccano principle” –, e a função
do colon (dois pontos) é relacional, similar a das porcas e dos parafusos no aparato
Meccano, como nos diz na introdução à primeira edição da Colon Classification
(RANGANATHAN, 1939, p. 12): “In this scheme, the function of the symbol ‘:’ is like
that of nuts and bolts in Meccano”. Sob esta perspectiva, poderíamos dizer que o
colon é o brinquedo de Ranganathan, a energia vital (Sakti) que anima e conecta as
possibilidades classificatórias do seu mundo histórico – “energy ‘:’ (colon)” (RANGANATHAN, 1924) –, e a Colon Classification não é senão, metaforicamente, uma
“classificação filosófica do brinquedo”.
3 O brinquedo de Ranganathan ‘:’ colon, uma classificação, uma filosofia
Esta última questão [o que é um brinquedo, o que ele
significa] ultrapassa certamente a sua moldura original e
leva a uma classificação filosófica do brinquedo.
Walter Benjamin (2009 [1928], p. 93).
Ao entrar em contato com o mundo miniaturizado dos brinquedos e fazer deste
mundo um princípio basilar para as suas pretensões classificatórias, Ranganathan
alia à sua concepção metafísica oriental, as esferas prático-econômicas e do sagrado,
que orbita ao redor de todo brinquedo. Segundo Giorgio Agamben (2008, p. 86) “o
brinquedo é aquilo que pertenceu – uma vez, agora não mais – à esfera do sagrado
ou à esfera prático-econômica”. A marca distintiva do brinquedo e que o diferencia
de outros objetos do nosso universo coisal é que o brinquedo porta a potência de
algo singular, que pode ser captado na dimensão temporal de um “uma vez” e de
“um agora não mais”, como, por exemplo, na sua notável miniaturização, onde um
automóvel, uma engenhosa estrutura, um forno elétrico ou uma pessoa, graças à
miniaturização, transformam-se em brinquedo. A imagem do mundo à qual a miniatura se presta a representar é uma imagem histórica (AGAMBEN, 2008, p. 153) e a
142
Vinícios Souza de Menezes
“essência do brinquedo é, então, algo de eminentemente histórico: aliás, por assim dizer, é o Histórico em estado puro”(AGAMBEN, 2008, p. 86). Deste modo, “a miniaturização é, pois, a cifra da história” e, se aquilo com que brincam as crianças é a história
(AGAMBEN, 2008, p. 88), foram com as contingências do tempo humano que os olhos
de Ranganathan defrontaram-se subitamente ao mirar aquele conjunto Meccano.
Aquilo que o brinquedo conserva do seu modelo sagrado ou econômico, aquilo que deste sobrevive após o desmembramento ou a miniaturização, nada mais é que a temporalidade humana que aí estava contida,
a sua pura essência histórica. O brinquedo é uma materialização da
historicidade contida nos objetos, que ele consegue extrair por meio
de uma manipulação particular. Enquanto, na verdade, o valor e o significado do objeto antigo ou do documento é função da sua antiguidade, ou seja, do seu presentificar e tornar tangível um passado mais ou
menos remoto, o brinquedo, desmembrando e distorcendo o passado
ou miniaturizando o presente – jogando, pois, tanto com a diacronia
quanto com a sincronia – presentifica e torna tangível a temporalidade
humana em si, o puro resíduo diferencial entre o ‘uma vez’ e o ‘agora
não mais’ (AGAMBEN, 2008, p. 87).
Desta experiência nasceu o colon, o brinquedo de Ranganathan, o puro resíduo
diferencial entre o “uma vez”, e as classes sincronicamente estabilizadas pelos usos
atribuídos, e o “agora não mais”, e as possibilidades diacrônicas de composição de
classes provocadas pelas contingências circunstanciais do tempo humano e seus
jogos classificatórios que tematizam o mundo10. O colon não é o “um”, conceitualmente imaginado pela teoria descritiva dos sistemas enumerativos, e não é o imediatamente oposto ao “um”, o “zero” que marca o contraste entre os termos. O colon
é sobretudo a relação constituinte que anima e vitaliza o dinamismo da fundação
múltipla do seu esquema classificatório, que, em última instância, representa o seu
modo de ver o mundo11. O colon é o “new zero”, o intervalo entre o binarismo sintático da relação zero e um (RANGANATHAN, 1937, p. 192).
One night the idea struck him that the class numbers were all merely ordinal numbers, not cardinal numbers, and that new ordinal numbers might
10 Themátikos é um “termo” grego oriundo da gramática antiga, significando aquilo que é fabricado, instituído e/ou acordado através de uma concordância linguística.
11 Para uma abordagem do conceito de relação na Colon Classificatioin, consultar Satija (2001).
143
Ranganathan no país dos brinquedos ‘:’ colon, uma classificação, uma filosofia...
be invented, though they would have no cardinal value. This immediately
led to the corollary that the invention of an ordinal number lying between
zero and unity - a greater zero so to speak - was all that was required to
meet the situation. A single dot, the simplest symbol, having been put to
another use by Dewey, the double dot or the colon was taken to represent
the new zero.
Se radicalizarmos a interpretação do colon como o brinquedo fabricado por
Ranganathan, sob uma perspectiva linguística, os resíduos diferenciais dos materiais irmanados pelo new zero fazem dele um “significante instável que pode transformar-se a todo momento em seu próprio oposto” (AGAMBEN, 2008, p. 102), no
caso de Ranganathan, o zero (significante estável) e o um (significado). Os dois
pontos (colon) é uma diferença significante entre os termos, uma descontinuidade
necessária para manter ativo o funcionamento do esquema classificatório. O colon
é uma abertura relacional que articula toda e qualquer possível composição temática – não se trata de uma forma (eidos), mas de uma força (energy) capaz de alterar
os mais diversos conjuntos estruturais (scheme). Ranganathan no país dos brinquedos desenhou a utópica topologia do país da história da classificação.
O colon seria a maneira que Ranganathan encontrou para o seu esquema não
estar dirigido à rigidez das identidades dos esquemas enumerativos, nem ser acometido pelo ceticismo classificatório, que frente a multiplicidade de tematizações
do mundo, avalia-o como inclassificável e diz “aporética” toda e qualquer pretensão
classificatória. Em sua função de porcas e parafusos, o colon visa irmanar o conhecido (vastu-tantra) e o conhecedor (kartru-tantra), as identidades e as diferenças,
as multiplicidades e as repetições, o clássico e o barroco (SALDANHA; SOUZA, 2017),
sem com isso, estabelecer para si uma forma, pois, a condição mesma do colon é
informe (MENEZES, 2017), estando sempre e a cada vez, não em vista de si, mas em
vista de outros agenciamentos. O termo usado por Ranganathan é assembling. Saldanha (2016, p. 46) recorda-nos do pano de fundo transcendental do pensamento
brâmane. Uma das significações guardadas por este aspecto brâmane que envolve o
pensar ranganathiano é que o transcendental é um ato de estabelecer uma relação,
sem que esta signifique unidade ou identidade de seus termos, mas, antes, que a relação garanta a possibilidade do diferente, isto é, da alteridade. A condição informe
do colon é uma diferença sempre para menos – “o menor intervalo é sempre diabólico: o senhor das metamorfoses se opõe ao rei hierático invariante” (DELEUZE;
GUATTARI, 1995, p. 56).
O colon enquanto brinquedo “transforma assim antigos significados em significantes e vice-versa” (AGAMBEN, 2008, p. 87), joga com as possibilidades dos
144
Vinícios Souza de Menezes
usos dos fragmentos e das peças, ou, dos mais heterogêneos assuntos, sendo este
modo de agir típico das crianças, como manifesta Benjamin (2009, p. 86): “nada
é mais adequado à criança do que irmanar em suas construções os materiais mais
heterogêneos – pedras, plastilina, madeira, papel.” Esse espírito infantil sente-se
atraído pelos detritos, sejam das ruínas de uma construção ou de um jardim, pelos
restos de panos dos alfaiates ou pelas sobras de madeira deixadas pelo trabalho de
marcenaria, ou, mais uma vez, por um conjunto Meccano. Todos esses produtos
residuais são transformados em brinquedos e brincadeiras pelas crianças12, estabelecendo entre os diferentes materiais outras relações: “com isso as crianças formam
o seu próprio mundo de coisas, um pequeno mundo inserido no grande” (BENJAMIN, 2009, p. 104), ou, ainda, de modo análogo, criam um sistema de classificação
híbrido13 e flexível através de suas miniaturas, representativas dos seus modos de
tematizar a vida. Assim, a criança mistura-se de maneira muito mais íntima ao vívido, mantém com as coisas uma relação viva, fareja nelas os vestígios dos espíritos
que ali depositaram as suas energias vitais (colon).
Mal entra na vida e já é caçador. Caça os espíritos cujos vestígios fareja nas coisas; entre espíritos e coisas transcorrem-lhe anos, durante os
quais o seu campo visual permanece livre de seres humanos. Sucede-lhe como em sonhos: ela [criança] não conhece nada de permanente;
tudo lhe acontece, pensa ela, vem ao seu encontro, se passa com ela
(BENJAMIN, 2009, p. 107).
Desta utópica república infantil onde nada que se conhece é permanente e o
mundo é um organismo vivo e em crescimento, nasceu o colon. Ranganathan, no
reino infantil das metamorfoses, captou as suas matrizes centrais: o jogo e o uso.
Desta fonte rebentou a Colon Classification e o colon fez-se brinquedo versado na
arte dos usos14. O colon é um dispositivo disposto a libertar, para as possibilidades
12 “As crianças, que brincam com qualquer bugiganga que lhes caia nas mãos, transformam
em brinquedo também o que pertence à esfera da economia, da guerra, do direito e das outras
atividades que estamos acostumados a considerar sérias” (AGAMBEN, 2007, p. 67).
13 “‘Pôr em ordem’ [perspectiva do classificar] significaria aniquilar uma obra repleta de castanhas espinhosas, que são as clavas medievais, papéis de estanho, uma mina de prata, blocos de
madeira, os ataúdes, cactos, as árvores totêmicas e moedas de cobre, que são os escudos. A criança já ajuda há muito tempo no armário de roupas da mãe, na biblioteca do pai, enquanto que no
próprio território continua sendo o hóspede mais instável e belicoso.” (BENJAMIN, 2009, p. 107).
14 “As narrativas de fundamentação da Biblioteconomia em Ranganathan demonstram que está
na transformação desta cultura tipicamente material o seu contato com um dos conceitos cen-
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Ranganathan no país dos brinquedos ‘:’ colon, uma classificação, uma filosofia...
dos jogos, os assuntos substancializados e petrificados pela essencialização dos esquemas. Transformar os esquemas classificatórios num “grande balé artístico de
metamorfoses” que dançam “ao compasso da vida” é uma das tarefas do brinquedo
(BENJAMIN, 2009, p. 84).
Sendo o colon, o brinquedo de Ranganathan, ele criou para si, conforme as
artes dos usos e dos jogos, um pequeno mundo (Colon Classification) – um mundo
menor, multidimensional e liberto das amarras invariantes. Afinal, “não há dúvida
que brincar significa sempre libertação” (BENJAMIN, 2009, p. 85). Sob os olhos desta
sabedoria infantil podemos ler:
A cada instante o pessoal da biblioteca deve lembrar-se que OS LIVROS
SÃO PARA USAR. Jamais deve cair no estado de espírito de seu ancestral
da Bodleian Library, do qual se diz que ‘era um bibliotecário muito bom
em alguns sentidos; mas odiava quem se aproximasse dos seus livros’.
Jamais deve esquecer que nas bibliotecas os livros são reunidos para
serem USADOS, preparados para serem USADOS, guardados para serem
USADOS e oferecidos para serem USADOS. Os intermináveis processos e
rotinas técnicas – receber sugestões dos especialistas, adquirir por compra ou doação, registrar, classificar, catalogar, registrar o número de chamada, colocar nas estantes, emprestar e dar baixa – tudo isso é executado tendo como única finalidade o USO (RANGANATHAN, 2009, p. 41).
A dimensão do jogo e dos usos provocados pelo conjunto Meccano no esquema classificatório de Ranganathan provocou uma alteração, potencializando a
concepção do colon (ou dos dois pontos), símbolo já existente em esquemas classificatórios precedentes à Colon Classification, como, por exemplo, a Classificação
Decimal de Dewey (CDD) e a Classificação Decimal Universal (CDU) (RANGANATHAN, 1937, p. 192). Vejamos o exemplo da CDU. O sinal gráfico de dois pontos (:)
representa a “relação”, na Classificação Decimal Universal (CDU), desenvolvida, a
partir de 1894, por Paul Otlet e Henri La Fontaine. Aparentemente de importância
secundária, por ora moribunda, flertando com um possível desuso, a “relação” (:)
aparece como um “sinal auxiliar comum”, subscrito nas “tabelas de auxiliares cotrais da pragmática: o uso. [...] Estamos diante da ‘revelação’ do maha-mantra de uma filosofia
prática: a filosofia da ciência biblioteconômica, epifania indicada por Ranganathan (2009) no
fragmento §05 como tendo ocorrido no final de uma tarde do ano de 1928, quando já estava de
volta à Índia. Trata-se do mantra supremo da filosofia biblioteconômica segundo a visão ranganathiana, manifestado como ‘os livros são para usar’.” (SALDANHA, 2016, p. 49).
146
Vinícios Souza de Menezes
muns” que assiste as “tabelas principais” da CDU. Logo, o sinal de dois pontos é
um grafismo suplementar às notações principais que visam classificar “a coisa” em
questão em seu mínimo grau de identidade temática. Como em seu uso textual
entre um título e um subtítulo, os dois pontos (:) interligam uma relação entre
dois ou mais assuntos ordenados estruturalmente conforme o código notacional
da classificação, no caso, da CDU. Por exemplo, 17:7, isto é, ética em relação à arte.
O consórcio que “cuida” da CDU – UDC Consortium – e suas respectivas discussões, atualizações, revisões, nos diz, a partir de uma “nota de conteúdo”, algo
relevante sobre o uso deste sinal gráfico (UDC, 2017): “o sinal de relação limita os
assuntos que liga.” Ou seja, o sinal de relação liga e, em sua ação de ligar o que se
supõe conceitualmente separado (ética ∉ arte), limita o que assume (assumptus)
identitariamente: os assuntos em seu enlace. Para a CDU, os dois pontos ao ligar,
limita. De antemão, algo escapa a esta interpretação clássica da teoria relacional
da classificação e, consequentemente, deste grafo classificatório suplementar (:).
Esta interpretação lógica oblitera a condição metafórica de toda relação, ou seja, a
sua gramática15 (DERRIDA, 2013). Trópica carregada pelas designações impróprias
da linguagem (NIETZSCHE, 2000, p. 107-109; SUAREZ, 2011, p. 72-73), a metáfora
para a interpretação lógico-filosófica da Organização do Conhecimento representa o impossível, pois fere a correção do sentido próprio e não-contraditório da
linguagem lógica.
Outro fato diz respeito à impossibilidade de utilizar metáforas para
a organização do conhecimento. A questão é que, semioticamente, a
metáfora é um hipoícone que, apesar de ser um símbolo (posto que
15 Na literatura sobre o pensamento ranganathiano, há uma querela entre aqueles que defendem
a supremacia lógica da “sintaxe absoluta” do pensamento de Ranganathan (HJØRLAND, 2005;
NEELAMEGHAN, 1975) e aqueles outros que argumentam que o pensamento ranganathiano encontra-se diluído nos jogos gramaticais dos seus esquemas linguísticos, inclusive, o lógico (SALDANHA, 2016; GIL URDICIAIN, 1994). Gomes e Campos (2016, p. 114), acerca do “postulado das
cinco categorias fundamentais”, argumentam que “a notação para um assunto deveria ser a organizada com códigos que identificariam cada Categoria: ‘,’ [vírgula] para Personalidade, ‘;’ [ponto
e vírgula] para Matéria; ‘:’ [dois pontos] para Energia; ‘.’ [ponto] para Espaço; ‘*’ [asterisco] para
Tempo.” A estruturação destas categorias formaria o assunto como uma sentença. Esta sintaxe
que ordenaria as ideias estaria voltada para a Lógica e não para a Gramática, contudo, por outro
lado, Blanca Gil Urdiciain (1994, p. 114) argumenta que a estruturação do PMEST estaria baseada
no contexto gramatical das orações: “Personalidad sería el sujeto (de qué o quién se habla),
Materia se correspondería con el acusativo, el Complemento directo, algo sobre lo cual el proceso se realiza, Energía sería el verbo (proceso, acción, algo en movimiento), Espacio y Tiempo
constituirían complementos circunstanciales de lugar y de tiempo.”
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Ranganathan no país dos brinquedos ‘:’ colon, uma classificação, uma filosofia...
é palavra), possui a proeminência de interpretação no ícone, suscita,
portanto, imagens mentais e qualidades de sentimento na semiose.
Tal analogia também pode suscitar ambiguidade na interpretação,
de modo a interferir na significação correta, problema esse que o
conceito resolve plenamente com o fechamento semântico do termo.
A área da Informação desenvolveu os tesaurus visando a atender as
várias áreas do conhecimento humano, na geração de índices, bibliografias e catálogos de bibliotecas especializadas. Entretanto, as relações
entre os termos especializados são mais evidentes, não comportando
metáforas, o que dificultaria evidentemente o quesito da univocidade do significado buscado e ensejado no fechamento semântico da
indexação e de suas linguagens (MONTEIRO; GIRALDES, 2008, p. 23-24,
grifo nosso).
Monteiro e Giraldes tecem tal crítica tendo como mirada o índice categórico
desenvolvido no livro Il Cannocchiale Aristotelico – “A luneta aristotélica” – de
Emanuele Tesauro (1655). Segundo Umberto Eco (1998, p. 196-198), Emanuele
Tesauro, dramaturgo, literato e retor italiano, desenvolveu um índice categórico
baseado numa leitura barroca de Aristóteles, onde a metáfora representaria não
o curso das relações ontológicas entre dois sentidos em si mesmo parcialmente completos e categorizados, mas “una medida desmedida para medir” a “todo
tropo y a toda figura”, isto é, a agudeza metafórica é “la estrutuctura misma del
linguaje” (ECO, 1998, p. 196-197). Esta “medida desmedida para medir” nos recorda a condição de “new zero” do colon ranganathiano. Esta agudeza metafórica
que constitui a “estrutura mesma da linguagem”, um problema para os esquemas
classificatórios ocidentais baseados na substância das identidades, não é um problema para a classificação do pensador hindu como já vimos até aqui, possuindo
a Colon Classification entre os seus Canons of Classification, por exemplo, no Idea
Plane o Canon of Differentiation e os Canons for Filiatory Sequence, no Verbal
Plane o Canon of Context e no Notational Plane o Canon of Homonym (RANGANATHAN, 1924).
Umberto Eco afirma que “las páginas” de Tesauro esfregam-se com “la teoria
moderna de los actos linguísticos”, em especial, com o exercício gramatical wittgensteiniano, “un trabajo que debe aprenderse mediante ejercicios” e, continua, “este
ejercicio [de leitura] constituye una mera invitación a la intertextualidad”, nascendo
daí “la possibilidad de recorrer el índice categórico ad infinitum descubriendo una reserva de metáforas inéditas, y de proposiciones y argumentaciones metafóricas”, pois
esta luneta proposta por Tesauro nos reenvia para “un puro tejido de unidades de
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Vinícios Souza de Menezes
contenido culturales”, baseado numa “red de interpretantes” (ECO, 1998, p. 196-198)
–, nas palavras de Ranganathan, uma rede constituída entre o conhecido (vastu-tantra) e o conhecedor (kartru-tantra).
Desta maneira, a impossibilidade da metáfora para os princípios lógico-filosóficos da clássica organização do conhecimento ocidental, se dá porque a relação
ou a metáfora está circunscrita nos contextos da “gramática do tecido da vida”.
Portanto, por meio desta figura informe impossível é que a condição de possibilidade classificatória se erige de modo pragmático e transcendental em Ranganathan
(SALDANHA, 2016). Contudo, sob as lentes filosóficas do colon, seria o esquema
ranganathiano transcendental no sentido da ultrapassagem cujo horizonte é uma
“imanência absoluta”16: a vida e seus usos. Uma vida em que tudo se marca, mas
que seria em si mesmo não-marcada, não determinada por um campo transcendental inteligível ou sensível. Fora da lógica da binaridade – um “new zero” –, a
vida informe é a terceira margem (triton genos) entre os planos de determinação
da metafísica: “o campo transcendental se define por um plano de imanência, e o
plano de imanência por uma vida” (DELEUZE, 2004, p. 161). O colon é o brinquedo
da u:tópica república infantil com que se deparou Ranganathan. No país dos brinquedos, lugar onde a vida se faz possível, carrega-se de possibilidades e acontece,
Ranganathan brincou de fazer do colon a possibilidade do impossível.
Quando o impossível se faz possível, o acontecimento tem lugar (possibilidade do impossível). [...] Para que um acontecimento tenha lugar,
para que seja possível, é preciso que seja, como acontecimento, como
invenção, a vinda do impossível. [...] Dito de outro modo, e isso é uma
introdução a uma aporia sem exemplo, uma aporia da lógica de preferência a uma aporia lógica, eis um beco sem saída do indecidível, pelo
qual uma decisão não pode não passar. Toda responsabilidade deve
passar por essa aporia que, longe de paralisá-la, põe em movimento um
novo pensamento do possível. Ela lhe assegura o ritmo e a respiração:
diástole, sístole e síncope, batimento do possível im-possível, do impossível como condição do possível. [...] A condição de possibilidade daria,
portanto, uma chance ao possível, privando-o todavia de sua pureza.
A lei da contaminação espectral, a lei impura da impureza, eis o que é
preciso reelaborar incessantemente (DERRIDA, 2004, p. 279-280).
16 Segundo Gilles Deleuze (2004, p. 163): “A transcendência é sempre um produto da imanência”.
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Ranganathan no país dos brinquedos ‘:’ colon, uma classificação, uma filosofia...
A mirada da “impossibilidade” metafórica está expressamente escrita na gramática do uso, isto é, na relação ensejada pela sua condição aporética de impossibilidade. O sinal de relação que limita os assuntos que liga, segundo a CDU, sob
as maneiras instáveis e, por isto, “impróprias” do colon ranganathiano, ao limitar o
que liga, transcende os limites demarcatórios dos conceitos ligados à sua própria
passagem, contagiando-os em seu limiar. Na vibração da zona de imanência, o
colon ou a relação é um lugar de “não conceitualidade” (BLUMENBERG, 2013), ou,
em outras palavras, é a condição de possibilidade de todo conceito, se por conceito
entendermos “uma unidade de conhecimento” (BARITÉ et al, 2015, p. 52). Deslimitando os limites, a relação é a cifra metafórico-gramatical do nosso “pensar/classificar” (PEREC, 1986, p. 108-126) no mundo, o mundo e a sua alteridade.
Interpretando simbolicamente a notação 17:7 como uma sentença linguística
da CDU, a relação seria um “suplemento de cópula” entre um sujeito ético e um
predicado artístico. Nem identidade ética, nem complemento artístico, o colon (:) é
a informe “condição de possibilidade de qualquer linguagem e de qualquer conceito” (DERRIDA, 1991, p. 217). Ainda que não esteja grafado entre conceitos, termos,
descritores ou mesmo palavras, todos esses elementos linguísticos heterogêneos
partilham da rasura deste grafo, são irmanados pelo caractere límbico do colon –
uma dobradura da imanência.
Etimologicamente colon vem do grego κῶλον que significa limbo, porção,
membro. Na retórica grega, o colon significava a expressão da “passagem mesma”,
sem remissão para um fora ou um dentro, tratava-se de um acontecer cujo lugar era
uma abertura medial para o respirar rítmico do texto. Isidoro de Sevilha (560-636
d.C.) em suas Etymologiae, talvez recordando Aristófanes de Bizâncio (257-185 a.C.),
nos diz, a respeito dos signos de pontuação, em especial, o colon (2004, p. 299):
Cuando, a medida que progresa la oración, va aflorando el sentido, pero
todavia falta algo para que éste sea completo, se produce un colon, que
notamos con un punto a la altura media de la letra. Lo llamamos distinctio media, por ir situado el punto tras la letra, a media altura. […] por lo
demás, entre los poetas se habla de comma cuando, en un verso, después
de medirlo, tiene lugar una cesura y, a continuación de dos piés métricos,
encontramos una sílaba. Cuando detrás de esos dos pies no aparece ninguna sílaba, se trata de un colon.
O colon partilha do “inacabamento do sentido”, condição demasiadamente humana ou límbica, pois, Deus, o doador por excelência do sentido para Isidoro de
Sevilha, na cursividade da sua escritura, ao deixar nas “mãos da humanidade” a
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Vinícios Souza de Menezes
próxima gramma (letra), produz o colon (:), e, a humanidade em sua busca pelo
“sacramento da linguagem” – a palavra sagrada – ou da anterioridade pré-linguística da palavra que legitimaria a obra, não encontra após a última sílaba nada além
de um “abismo” [ : ] –, um dois pontos e o “branco por escrever”, cujo selo é a liberdade, a abertura da sua própria escritura situada como livre, no jogo da vida, entre
os jogos do mundo e suas relações com os “camaradas de jogo” (amatores mundi).
Sob esta perspectiva, o colon é límbico17.
No texto “A imanência absoluta”, Giorgio Agamben (2013) comentando a noção de “vida humana” a partir do texto L’immanence: une vie..., de Gilles Deleuze,
que fora publicado dois meses antes de sua morte, assinala que o colon (:) é o movimento chamado por Deleuze de imanação, um jogo de palavras com a emanação (neo)platônica. Agamben (2013, p. 330) argumenta que os dois pontos, nos
históricos tratados gramaticais sobre pontuação, indica a “intersecção entre dois
parâmetros”, uma terceira margem atravessada por “um valor de pausa (mais forte
17 “De onde provêm as singularidades quaisquer, qual é o seu reino? As discussões de S. Tomás
sobre o limbo contêm os elementos para uma resposta. Segundo o teólogo, a pena a que estão
sujeitas as crianças não baptizadas, que morreram sem outra culpa que a do pecado original, não
pode na verdade ser uma pena aflitiva, como é a do inferno, mas unicamente uma pena privativa,
que consiste na perpétua ausência da visão de Deus. No entanto, contrariamente aos condenados, os habitantes do limbo não experimentam nenhuma dor por esta ausência: uma vez que são
apenas dotados da consciência natural e não da consciência sobrenatural, que foi implantada em
nós pelo baptismo, eles não sabem que estão privados do bem supremo, ou, se o sabem (como se
admite num outro ponto de vista), não podem afligir-se mais do que sofreria um homem sensato
por não poder voar. [...] Além disso, os seus corpos são como os dos bem-aventurados, impassíveis, mas só relativamente à acção da justiça divina; quanto ao resto, gozam plenamente das suas
perfeições naturais. [...] A pena maior - a ausência da visão de Deus – transforma-se assim em
natural alegria: irremediavelmente perdidos, permanecem sem dor no abandono divino. Não é
Deus que os esqueceu, são eles que o esqueceram desde sempre, e contra o seu esquecimento é
impotente o esquecimento divino. Como cartas sem destinatário, estes ressuscitados ficaram sem
destino. Nem bem-aventurados como os eleitos, nem desesperados como os condenados, eles
estão cheios de uma alegria que não pode chegar ao fim. Esta natureza límbica é o segredo do
mundo de Walser. As suas criaturas estão irremediavelmente extraviadas, mas numa região que
está para além da perdição e da salvação: a sua nulidade, de que tanto se orgulham, é acima de
tudo neutralidade em relação à salvação, a objecção mais radical que alguma vez foi feita contra
a própria ideia de redenção. Propriamente impossível de salvar é, de facto, a vida em que nada
há para salvar e contra ela naufraga a poderosa máquina teológica da oiconomia cristã. [...] Tal
como o condenado liberto na colónia penitenciária kafkiana, que sobreviveu à destruição da máquina que devia executá-lo, eles deixaram atrás de si o mundo da culpa e da justiça: a luz que se
derrama na testa deles é a luz – irreparável – da alba que se segue à novissima dies do juízo Final.
Mas a vida que começa na terra depois do último dia é simplesmente a vida humana” (AGAMBEN,
1993, p. 13-14).
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Ranganathan no país dos brinquedos ‘:’ colon, uma classificação, uma filosofia...
do que o ponto e vírgula e menor do que o ponto) e um valor semântico, que marca
a relação indissolúvel entre dois sentidos”. Na série que vai do signo = (identidade
de sentido) ao hífen (dialética da unidade e da separação), o colon (:) desempenha
uma função intermédia, cuja mirada não é nem uma simples identidade, nem apenas uma conexão lógica, todavia, uma relação diferida – “outra outra” | “new zero”.
Entre a imanência e uma vida, os dois pontos introduzem algo menos que uma identidade e mais do que um agencement, ou melhor, um
agencement de espécie particular, algo como um agencement absoluto,
que inclui também a ‘não-relação’, ou a relação que deriva da não-relação, de que ele fala no ensaio sobre Foucault, a propósito da relação
com o Fora. Se retomarmos a metáfora adorniana – os dois pontos
como o semáforo verde no tráfico da linguagem – que se encontra, nos
tratados sobre a pontuação, quando estes classificam os dois pontos entre os sinais ‘de abertura’, entre a imanência e uma vida existe então uma
espécie de trânsito sem distância nem identificação, algo como uma
passagem sem mudança espacial. Neste sentido, os dois pontos representam a deslocação da imanência em si mesma, a abertura a outro que
permanece, porém, absolutamente imanente (AGAMBEN, 2013, p. 330).
O colon, esta imanência que é uma vida, é “o sinal verde no trânsito da linguagem”, o “agenciamento absoluto” da sintaxe ranganathiana. Giorgio Agamben
(2013, p. 331) nos recorda que nos antigos tratados gramaticais, o colon era “um
elemento a-sintático e, em geral, a-semântico, implícito na relação entre pontuação
e respiração, que surge constantemente estabelecida desde os primeiros tratados e
que age necessariamente como uma interrupção do sentido” e cita a Grammatica
de Dionísio de Trácia (170 a.C.-90 a.C.), onde o colon aparece como “o ponto médio” que “indica onde se deve respirar”. Essa histórica condição manifesta-se na
percepção do colon ranganathiano como “energia”, um “agenciamento absoluto”
que conecta os caracteres facetados do seu esquema (SATIJA, 1989). Blanca Gil Urdiciain (1994, p. 119) rememora que “en un principio, el signo de conexión que existía
para todas las categorías era el colon (:)” e, por conta de “una mayor claridad en la
expresión de los aspectos relativos a cada documento, se incorporaron los demais”.
Assim, perante a história do desenvolvimento esquemático, o colon era literalmente o “agenciamento absoluto” da sintaxe das categorias fundamentais do PMEST,
passando a vir, por motivos didáticos, num segundo momento, acompanhado de
outros sinais (‘,’| ‘;’ | ‘.’ | ‘*’), todavia, sendo todos ainda marcados pela “aura do colon”, ou seja, são “sinais de conexão”.
152
Vinícios Souza de Menezes
No país dos brinquedos, Ranganathan confrontou-se com o colon, este limiar
de “(im)pura” relacionalidade, alheio às oposições clássicas e cuja “passagem” parte
da supressão do em-si à gramática da relação (CABRAL, 2014, p. 135). Visto que a
gramatologia é uma “ciência das relações”, um “ter-lugar” da “disposição analógica
dos intervalos” (DERRIDA, 2013, p. 260), o colon é por Raganathan anunciado pela
metáfora do brinquedo, um feitura irmanada ou imanada no múltiplo, como diz
Deleuze.
Em seus agenciamentos, Shiyali Ramamrita Ranganathan deslocou o colon do
caráter suplementar ocupado na CDU ou do caráter simples prescrito por Dewey,
para o plano fulcral do seu pensamento classificatório, ao chamar seu esquema de
classificação de Colon Classification. Ranganathan foi um classificacionista marginal, imanente na multiplicidade da vida, seu pensamento pode ser classificado
como um “pensamento do intervalo”, instalado “na grande fronteira” intercultural
entre o pragmatismo ocidental e o transcendentalismo oriental, sendo a sua obra
um exemplo de interseção entre o “Ocidente e o Oriente” (SALDANHA, 2016, p. 44).
Perante seu viés pragmático, poderíamos dizer, utilizando o vocabulário de Antonio García Gutiérrez (2011, p. 8), que Ranganathan é um desclassificador18. Fora das
dicotomias do princípio classificatório da não-contradição, Ranganathan instaura
seu esquema classificatório na gramática da relação e faz do colon, o seu brinquedo,
o seu selo (des)classificatório.
Muito além do significado técnico dos “dois pontos” para o ordenamento classificatório, Ranganathan faz do colon a sua “energia”, a equação do seu pensamento: “energy ‘:’ (colon)” (RANGANATHAN, 1924). Poderíamos dizer, num exercício
de materialização, que em Ranganathan – pensador do intervalo – o colon pode
ser, por exemplo, o livro. Para Ranganathan, o livro é a energia tripartida entre os
intervalos “colonados” da alma e seus corpos: “A book may, then, be taken to be a
trinity of soul (=alma), subtle body (=sukshma sarira) and gross body (= sthula sarira)” (RANGANATHAN, 1952, p. 23). Inserido no desejo infantil de saber, marcado
por “uma relação viva com as coisas” (BENJAMIN, 2009, p. 127), o livro enquanto
colon é uma personificação dessa energia vital – um organismo vivo, dotado de
alma (soul) e corpos simbólico (sukshma sarira) e material (sthula sarira), feito
pessoa.
18 “[...] from the demolition of dichotomies, I developed a provoked construction of oxymora and
hyperbatic oxymora (inversions), inducing the cooperation of the elements of many automatic oppositions, such as centre/periphery, so as to transform them into two efficient epistemological and
heuristic resources: central periphery (Bangalore or São Paulo, for instance) and peripheral centre
(be it The Bronx or the poorest districts of LA). The calculated construction of oxymora and contradictions is a powerful metacognitive tool of declassifying thought” (GARCÍA GUTIÉRREZ, 2011, p. 8).
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Ranganathan no país dos brinquedos ‘:’ colon, uma classificação, uma filosofia...
Esta força que move o pensamento hindu ranganathiano é chamado em sânscrito de Sakti (ou Shákti), a energia cósmica primordial, traduzida pelas forças dinâmicas que movem todo o cosmos. Sakti é a energia que conecta e anima todos
os seres ao colocá-los em relação. Sendo assim, poderíamos dizer que o colon é o
operador de relação cósmica fabricado por Ranganathan. Uma classificação, uma
filosofia, um brinquedo, o colon é informe, não possui uma forma determinada.
Feito Sakti, se manifesta em todas as formas materiais. Sakti é também o nome da
Grande Mãe do Universo, a vibração de toda matéria, de todo movimento e de toda
a existência19. Sakti é a dança da vida. Esta deusa de múltiplas encarnações é muito
cultuada pelos aldeões sulistas e possui vários templos espalhados por toda região
sul da Índia, onde nasceu Ranganathan. Foi no estado de Tamil Nadu, no extremo
sul da Índia, que Ranganathan nasceu e onde exerceu suas atividades de matemático e bibliotecário na Universidade da antiga Madras.
O papel exercido pelo colon, essa “máscara imaginária” de Sakti, no pensamento de Ranganathan é visceral. É notória a importância da concepção dos serviços
de referência para o pensamento biblioteconômico do pensador hindu, com alguma frequência espaçado para todas as práticas bibliotecárias. Segundo Ranganathan (1961, p. 181), a biblioteca é uma trindade constituída por livros, leitores e
bibliotecários, especialmente em sua função de referência. É papel do bibliotecário
estimular a integração desta trindade, atuando através do seu poder de mediação
(power mediating) entre os leitores e os livros. Esta função do bibliotecário é um
“instrument of Sakti” e, para o bibliotecário, se faz necessário assumir-se enquanto
colon, incorporar em seu exercício as quatro faces de Sakti – Maheswari (sabedoria), Mahakali (força), Mahalakshmi (harmonia) e Mahasaraswati (perfeição)
(RANGANATHAN, 1961, p. 182). Personificação do colon, o bibliotecário vivificado
pelos ensinamentos de Sakti está livre de toda mancha identitária, de todo traço
egoísta, como a energia cósmica de Sakti, que tudo relaciona, faz-se colon, feito um
brinquedo, encontra-se livre para todos os usos.
All stain of egoistic choice, of hankering after personal profit, and of self-regarding desire must be extirpated from the reference librarian while
effecting contact between reader and book. There must be no demand for
19 Mandakranta Bose (2000, p. 115), em sua pesquisa sobre as faces do feminino na Índia Antiga, Medieval e Moderna, nos apresenta Shaktisangama Tantra, um cântico para Sakti: “Woman
is the creator of the universe, the universe is her form / woman is the foundation of the world / she
is the true form of the body. / In woman is the form of all things, of all that lives and moves in the
world. / There is no jewel rarer than woman, no condition superior to that of a woman.”
154
Vinícios Souza de Menezes
fruit and for seeking for reward; the only fruit is the fulfillment of establishing contact between books and readers; the only reward is a constant
progression towards the attainment of the ideals set up by the Laws of
Library Science. The reference librarian should allow nothing to creep
in to stain the purity of the self-giving. His only object in action should
be to serve, to fulfill, and to become a manifesting instrument of the
Divine Sakti in her works. There must be no pride of the instrument,
no vanity, no arrogance. The books constitute Purusha as Akshara
Brahma (Scriptal form of God). The readers constitute Prakriti manifesting itself as Manushya Prakriti (human manifestation of nature)
(RANGANATHAN, 1961, p. 181, grifo nosso).
Enquanto o livro partilharia da energia cósmica do Purusha20, uma manifestação escrita de Akshara Brahma, dotada de alma (soul) e corpos (sukshma sarira e
sthula sarira), os leitores seriam Prakriti21, uma manifestação humana da natureza
(Manushya Prakriti) que necessita do enriquecimento proporcionado por Purusha.
Por sua vez, os bibliotecários são uma representação das faces da Deusa Sakti22 “Truly, the part of the reference librarian is not unlike that of Sakti in the Trinity [...]
Sakti uses the reference librarian as instrument” (RANGANATHAN, 1961, p. 181). Nesta
trindade que compõe a biblioteca, a energia expande-se ciclicamente, onde Purusha
busca a realização na Prakriti vivificada e a consumação da Prakriti consiste na realização da Purusha. A descida de Sakti em Prakriti o transmuta. Sublimado, Prakriti
alcança Purusha. Deste modo, Sakti usa a ação do bibliotecário como seu instrumento de realização, consumação e transmutação do conhecido e do conhecedor.
The Purusha seeks fulfilment in enlivened Prakriti and the consummation
of the Prakriti consists in realising Purusha. The descent of Sakti on Prakriti transmutes the latter. The sublimated Prakriti reaches out to the Purusha. Sakti uses the reference librarian as instrument. He should value
this opportunity (RANGANATHAN, 1961, p. 182).
No mundo ocidental, algumas interpretações chamam a atenção para o caráter
central da categoria de Personalidade pela manifesta “equivalencia entre esta cate20 “Purusha = The Divine Unmanifest” (RANGANATHAN, 1961, p. 181).
21 “Prakriti = nature standing in need of enrichment by Purusha” (RANGANATHAN, 1961, p. 182).
22 “Sakti = The Energising Principle activating the descent of Purusha on to Prakriti and the ascent
of the latter to the former.” (RANGANATHAN, 1961, p. 182).
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Ranganathan no país dos brinquedos ‘:’ colon, uma classificação, uma filosofia...
goría y la sustancia aristotélica” (GIL URDICIAIN, 1994, p. 113). O trabalho de Stella
Mello e Barros (2019), “A categoria ‘Personalidade’ na Teoria da Classificação de
Ranganathan: discussões epistemológicas a partir de Aristóteles”, expõe o argumento central deste movimento que, aparentemente, visa para os olhos da metafísica colonial do ocidente dizer: Ranganathan era aristotélico.
As categorias fundamentais Personalidade, Matéria, Energia, Espaço e
Tempo (PMEST) são formuladas à luz dos planos de trabalho da classificação. Estas auxiliam a organização das classes de conceitos no contexto
de assunto, proporcionando a flexibilidade de relacionar e incluir facetas
afirmadas sempre em relação à categoria Personalidade (P). Esta categoria é considerada a mais relevante, pois existe em si mesma como o termo
sujeito da predicação e indica as propriedades da essência e a definição
dos assuntos inseridos no universo do conhecimento (BARROS, 2019, p. 2)
O trabalho de Stella Mello e Barros põe em relevo muito mais do que um Ranganathan aristotélico. Aos nossos olhos, há nesta leitura uma descrição da colonialidade da metafísica aristotélica, no sentido de que tudo aquilo que não é a substância (ou a “Personalidade”) é acidental a esta essência, ou, de que tudo aquilo que
não é aristotélico é acidental a ele. O que defendemos é que não há uma metafísica
colonial em Ranganathan:
É habitual começar toda história clássica com Aristóteles. Qual a resposta que ele deu para esta questão fundamental [da educação]?
‘A intenção da natureza é que os corpos dos escravos e dos homens
livres sejam diferentes entre si [...] E uma vez que isso é verdade com
relação ao corpo, mais justo ainda é definir do mesmo modo quando
consideramos a alma.’
Estas premissas plausíveis levaram Aristóteles à conclusão característica de que ‘um escravo não tem qualquer faculdade de deliberar’. O
resultado deste raciocínio rigoroso foi que ‘embora Atenas e Esparta
oferecessem educação aos homens livres, nove décimos da população
estavam excluídos do privilégio de estudar’. Traduzindo isso em termos
de livros, descobrimos que LIVROS PARA OS POUCOS ELEITOS era o conceito dominante e que a Segunda Lei [da Biblioteconomia] não tinha
qualquer reconhecimento. Mesmo em Roma, que iniciou a criação de
escolas municipais e públicas, o privilégio da educação raramente cruzava as fronteiras ocupacionais e de renda. (RANGANATHAN, 2009, p. 51)
156
Vinícios Souza de Menezes
O Aristóteles que habita em Ranganathan fala tâmil e sânscrito. A substância
que faz morada no pensador hindu é material (Mulaprakriti), uma Personalidade
“colonada”, em movimento pela força viva da energia da deusa do corpo do mundo,
que dança e nutre: Sakti. Desta maneira, a digvijaya ranganathiana não tem por
fundamento a substância e seus substantivos, mas a energia e suas ações, a força do
verbo dos Vedas, como recorda Ranganathan (2009, p. 49) por meio da fala de Sri
Krishna: “Teu direito é à ação apenas e jamais aos frutos / Não deixai que os frutos
da ação sejam o motivo”, ou seja, à diferença da primazia pela substância e pelos
atos realizados do pensamento aristotélico, Ranganathan recorre à potência e ao
dinamismo das ações, seguindo os ensinamentos de Sri Krishna.
Krishan Kumar (1981), teórico indiano da classificação, em seu livro Theory of
classification, ordena em três períodos a Colon Classification: i) rigidamente facetada (entre a 1ª e 3ª edições), ii) quase-livremente facetada (entre a 4ª e 6ª edições) e
iii) livremente facetada (a partir da 7ª edição)23. No segundo período, Kumar (1981,
p. 72) chama a atenção para a adição do conceito de “ciclos e níveis”. A partir desta
inclusão, “la fórmula facetada se completa mediante la posibilidad de utilizar las categorías, tantas veces como sea preciso, en una serie de vueltas (ciclos, rounds)” (GIL
URDICIAIN, 1994, p. 115). As facetas Personalidade (P) e Matéria (M) que aparecem
antes da faceta Energia (E) formam a primeira (1ª) volta das facetas. As facetas P e
M que se dão após a faceta E formam a segunda (2ª) volta (2P e 2M), e assim sucessivamente24. As facetas de Espaço (S) e Tempo (T) somente aparecem numa última
volta. Em outras palavras, Blanca Gil Urdiciain (1994, p. 115) constata que a “cada
vez que aparece una faceta E comienza una nueva vuelta”. Mais uma vez podemos
ver a característica infantil de tal ato; a energia da faceta “:” é feito um carrossel, a
cada vez que é acionada, o seu uso provoca um giro e um recomeço. Como uma
eterna dança infantil marcada por “repetição e retorno”, a faceta Energia age como
uma criança: “sempre de novo, centenas e milhares de vezes”, e, caso precise, “começa mais uma vez do início” (BENJAMIN, 2009, p. 101). Este colon facetado em
Energia joga com os dois pólos categóricos – i) Personalidade e Matéria, ii) Espaço
e Tempo –, este é o brinquedo de Ranganthan, pois, “a essência do brincar não é
um ‘fazer como se’, mas um ‘fazer sempre de novo’, transformação da experiência
23 Sobre a questão da facetação e seus usos para a construção de sistemas classificatórios para
a organização de recursos de informação, consultar Aida Slavic (2017) e o uso de classificações
facetadas em um ambiente online e Kathryn La Barre (2004) e a aplicação da teoria facetada para
análise de sites.
24 Blanca Gil Urdiciain (1994, p. 115) nos apresenta o seguinte exemplo: Enfermedad intestinal
causada por infección y curada mediante antibióticos en España en 1993. Intestino [P]. Enfermedad
[E]. Infección [2P]. Curación [2E]. Antibióticos [3P]. España [S]. 1993 [T].
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Ranganathan no país dos brinquedos ‘:’ colon, uma classificação, uma filosofia...
mais comovente em hábito”, enfim, “há muito que o eterno retorno de todas as coisas tornou-se sabedoria infantil e a vida [ : uma imanência..., diríamos] um êxtase
primordial” (BENJAMIN, 2009, p. 102-106).
Aos nossos olhos, o colon é o néctar do “grito ético-revolucionário” de Ranganathan. A emblemática da liberdade.
4 Uma conclusão à maneira de uma imaginação conceitual
A alteridade e a multiplicidade como forças
revolucionárias. A revolução, ou a essa altura será
melhor dizer, a insurreição e a alteração começam pelo
conceito. Para além das variações em imaginação, a
variação da imaginação.
Eduardo Viveiros de Castro (2012, p. 155).
Trata-se de “uma conclusão à maneira” porque “maneira”, no sentido dos maneirismos, é um modo marcado pela desapropriação e pela não pertença. Não há
traço próprio para a maneira. Como o colon, a maneira “consiste exatamente no intervalo – ou melhor, no agio”, aquele espaço proposital entre dois mecanismos que
possibilita que entre eles haja jogo. A maneira é uma desapropriação apropriadora,
um equilíbrio instável, um uso (AGAMBEN, 2011, p. 36-37). Neste sentido, trata-se
de uma conclusão inconclusa, equilibrada sobre o funâmbulo e o tremor dos novos usos. As forças revolucionárias que moveram o pensamento de Ranganathan
sempre estiveram marcadas pela inclusão do outro, pela empatia com a alteridade,
pela multiplicidade com que o mundo pode ser tematizado. Tais qualidades fogem da mancha egoísta da persona e do apego custodial pelos objetos. Como a de
Mahatma Gandhi, seu contemporâneo, a insurreição de Ranganathan foi travada
ao modo de uma “desapropriada maneira” – a luta (digvijaya) por fazer com que
a energia de Sakti se expandisse, nas vestes mascaradas dos bibliotecários, na manifestação dos livros, na humanidade dos seus leitores. Ranganathan brincou com
seu colon de fazer do impossível (metáfora), o real, da condição aporética entre
zero e um, o habitat do new zero, enfim, fez da sua vida, uma imanência absoluta.
Ranganathan foi o bibliotecário das mulheres marginalizadas (2009, p. 60-66),
das populações escravizadas (2009, p. 51), do pescador (2009, p. 56), do proletário
(2009, p. 277-278), das crianças (2009, p. 56), dos camponeses (2009, p. 67-75), dos
pobres (2009, p. 37), do cego, do enfermo, do surdo, do carcereiro (2009, p. 81-86),
dos negros e pardos segregados pelo Apartheid (2009, p. 105), da democracia ilimitada (2009, p. 92-93), da desobediência civil (sua obra). Seguindo a máxima de
158
Vinícios Souza de Menezes
Manu, “levar o saber às portas de quem dele carece”, Ranganathan “fincou triunfalmente sua bandeira democrática em muitas terras, tendo reduzido a pó a barreira
aristocrática do elitismo e do esnobismo” (RANGANATHAN, 2009, p. 58). Nunca foi
“só” uma questão bibliográfica. Transcende o tempo e o campo.
Nesta perspectiva, o colon é “uma máscara imaginária” de Sakti, uma energia
que destitui as identidades imobilizadas. Feito uma criança, o colon mira a forma e
o sentido com o “binóculo que segura ao contrário” (BENJAMIN, 2009, p. 108). No
país dos brinquedos, Ranganathan fez do colon um “arsenal de máscaras”, despertou a sensibilidade, a criatividade e a reflexividade inerentes à vida dos coletivos,
fez da imaginação um corpo vário, do agir bibliotecário, uma tarefa infantil imaginada pelo borbotar de Sakti. Na classificação filosófica do brinquedo, a imaginação
da criança não é determinada pelo conteúdo imaginário do brinquedo, mas, ao
contrário, a variação da imaginação da criança altera o imaginário do brinquedo.
Ao transformar algo em brinquedo e brincar, a criança liberta-se de si, torna-se
outrem, transmuta-se e transfigura o brinquedo. A criança ao vestir-se com algo
branco e ondulado deseja converter-se em fantasma, ao puxar alguma coisa e galopar imagina-se cavalo, ao modular pães com areia torna-se padeiro (BENJAMIN,
2009, p. 93) e atrás de uma porta, incorporada com uma pesada máscara, feita uma
sacerdote-mago, enfeitiçará todas as pessoas que entrarem desavisadas pelo desencanto do mundo (BENJAMIN, 2009, p. 108).
O colon é uma revolução do conceito arvorada por Ranganathan. Trata-se de
uma máscara pois é uma questão de devir, de tornar-se, não é autenticamente nada,
coisa nada de brincar. O que o pensador hindu nos devolveu foi um espelho turvo
com a irreconhecível imagem de nós mesmos, pois “o que toda experiência de uma
outra cultura nos oferece é a ocasião para se fazer uma experiência sobre nossa
própria cultura” (CASTRO, 2018, p. 21). Para além de uma variação imaginária, uma
introdução de novas variáveis imaginativas sobre um chão comum – o imaginário
ocidental –, o que o pensamento de Ranganathan provocou e constantemente nos
desafia a pensar é um regime de variação da estrutura da nossa imaginação conceitual. Frente a força colonizadora do pensamento ocidental, de ver-nos sempre nós
mesmos no outro, “de dizer que sob a máscara do outro somos ‘nós’ que estamos
olhando para nós mesmos” (CASTRO, 2018, p. 21), trata-se de, ao contrário, nos
assumirmos como variante, versão, transformação da força vital do feminino, de
Sakti, nos diz o método ranganathiano.
Por fim, caminhando para o encerramento do texto imaginamos uma brincadeira conceitual com a “espiral do método científico” proposta por Ranganathan
(2009, p. 269). É conhecido que a formação do alfabeto, suas letras e símbolos,
guarda semelhanças com o imaginário contextual daquilo que historicamente nos
159
Ranganathan no país dos brinquedos ‘:’ colon, uma classificação, uma filosofia...
cerca, sejam elementos da fauna, da flora, das relações sociais entre humanos e
não-humanos, dos objetos que orbitam pelas constelações de suas épocas, enfim,
por uma mixórdia de eventos que compõem as cosmologias do conhecimento. O
prazer de escrever partindo da alegria de desenhar é estimulado na idade mais
tenra, onde a imagem e a escrita se cruzam e reciprocamente iluminam os seus
imaginários. Através das artes caligráficas que configuram a grafologia, ainda hoje
alguns materiais didáticos fazem uso do biomorfismo das letras como uma reprodução da maneira por meio da qual as crianças superam o abismo entre as palavras
e as coisas. A criança ao olhar o “P” vê o homem com uma cabeça, em geral o “Pai”,
ao fitar o “O” vê um olho ou uma glote de onça, no caso das crianças ameríndias,
ao mirar o “H” vê uma cerca ou um início de escada, ao detidamente observar o
“M” vê uma coruja com a sua saliente sobrancelha, ou, ao perspectivar o “Q” vê
um gato de costas balançando o rabo. A experiência visual que propomos como
uma imaginação conceitual é inspirada no “Q” e num encontro infantil análogo
entre Alice, no país irmão ao dos brinquedos – o país das maravilhas –, e o Gato
de Cheshire. Mire e veja a espiral ranganathiana como um “Q” ou um redemoinho
infantil de imaginação conceitual. Um redemoinho porque no imaginário popular
de brasilidades é conhecido que este guarda consigo, em seu vórtice, uma força
desconcertante, uma energia vital que o anima e o equilibra na instabilidade dos
seus ritmos. Quem sabe, numa rua imaginária do sertão brasileiro, frente ao redemoinho, Ranganathan dissesse: - há aí um colon onde Sakti dança.
Figura 2: Redemoinho infantil de imaginação conceitual
Fonte: Adaptado pelo autor a partir da ilustração de Alex Cerveny (2014).
Neste redemoinho de imaginação conceitual, o movimento espiral centrífugo
descompassa e a sua origem salta, desprende-se do fluxo constante das correntes
que se dirigem para a mesma direção – as leis fundamentais do método científico
na espiral ranganathiana. Gota é o nome para este acontecimento onde o líquido se
separa de si e entra em êxtase. A origem, ou o “sol negro”, como algumas tradições
chamam o centro do vórtice, jorra a sua força ativa de aspiração para fora e, no
160
Vinícios Souza de Menezes
reino da alteridade radical, junto à inconstância das correntes é lançada ao ritmo
de outras espirais do conhecimento. O sol negro distende a sua energia e ao dilatar-se, a gota expande Sakti, amplia em possibilidades a sua capacidade de conhecer
e alterar-se – faz colon nos fluxos do tempo. Sob esta perspectiva, “Q” é uma justa
variação da imagem conceitual da espiral ranganathiana, um new zero não necessariamente em espiral, mas um fio de novelo para outros desenhos esquemáticos,
outras potências classificatórias – onde o classificado possa tornar-se o classificador e desclassifique todo e qualquer pensamento colonizador. Desver o mundo é
a tarefa libertária, imanente e revolucionária do brinquedo, o segredo enterrado
“onde as crianças brincam”. Com o brinquedo, Ranganathan jogou e fez pleno uso.
O que eu queria era fazer brinquedos com as palavras
Manoel de Barros (2010, p. 327).
Agradecimentos
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (Capes), agência financiadora do estágio pós-doutoral concluído em 2019, e, com o apoio do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que financiou materialmente
a minha formação pretérita no doutorado. Agradeço ao grupo de pesquisa “Ecce
Liber: Filosofia, Linguagem e Organização dos Saberes” pelos momentos de debate
crítico-inclusivo e, em especial, a Rosali Fernandez de Souza e Gustavo Silva Saldanha, amigos e supervisores do estágio pós-doutoral.
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165
Organização do conhecimento em
Humanidades Digitais: breves reflexões
Jacqueline Aparecida de Souza1
1 Introdução
Todas as esferas da sociedade curvaram-se à cultura digital, que viabilizou o surgimento de novos ambientes socioculturais, informacionais e virtuais,
marcado pela aceleração no fluxo de informações, no compartilhamento, na colaboratividade, na conectividade, na formação de redes de informação e de conhecimentos e na autonomia dos usuários em relação à criação de conteúdo e à organização da informação. Todos esses aspectos são subsidiados por novas mídias.
É possível observar e destacar, por exemplo, o impacto ocasionado pela pandemia COVID19 em 2020, que acelerou e ampliou os elementos, os processos e as
atividades digitalizadas e virtuais, como o uso de videochamadas para audiências
judiciais, teleconsulta médica, eventos científicos online, ensino remoto, apresentações artísticas por meio de lives etc. Os sujeitos, nativos digitais ou não, as instituições, diversos setores e serviços, sobretudo as áreas de Saúde e de Educação,
tiveram que rapidamente se adequar ao digital e desenvolver novos serviços, novos
ambientes de trabalho, digitalizando documentos, produzindo regimentos e resoluções emergenciais. Certamente, a vida digital já se instituía, mas, com a pandemia, essa imposição foi acelerada.
A partir das características e dos impactos da cultura digital, que requer inovações associadas às tecnologias digitais, a confluência e a intersecção da computação às práticas de investigação acadêmica em Ciências Humanas, seja para coletar, analisar ou criar dados, ou seja, para práticas metodológicas, deram origem
a uma nova noção, denominada de Digital Humanities - Humanidades Digitais
(HD).
1 Dados do autor: Doutora em Informação e Comunicação nas Plataformas Digitais (Universidade do Porto), Docente no Departamento de Ciência da Informação da Universidade Federal
do Rio Grande do Norte (DECIN/UFRN),
[email protected]
Organização do conhecimento em Humanidades Digitais: breves reflexões
Humanidades Digitais é um termo polissêmico e complexo, não tendo um
consenso universal na literatura. Para compreender as Humanidades Digitais, é
necessário olhar para as práticas e observar três pontos principais (CASTRO, 2020):
1) o fazer digital pela sociedade, ou seja, o que se realiza através do meio
digital, a transformação do físico em digital, por exemplo, o envio de documentos digitais;
2) a metodologia de pesquisa nas Ciências Humanas (História, Artes, Teatro etc.), áreas e disciplinas que não estavam habituadas a utilizar ferramentas computacionais;
3) a percepção de que todo esse movimento passa a corresponder a um
campo novo, no qual a noção ‘Humanidades Digitais’ pode ser considerada uma transdisciplina, ou seja, um campo que comunga com diversos
objetos, atores e atividades nas Ciências Humanas e nas Ciências Computacionais e representa um novo recorte novo e que necessita de compreensão.
No campo informacional, a utilização das tecnologias computacionais é sobejamente antiga. Esse fato não dispensa uma reflexão atual acerca das Humanidades
Digitais e a Ciência da Informação, a fim de ponderar a ligação entre esses campos.
Em vista disso, este texto tem o objetivo de refletir sobre a conexão entre aspectos
das Humanidades Digitais e a Organização do Conhecimento e, nomeadamente,
identificar as definições de HD, seus pilares e objetivos e ponderar sobre em que
medida a Organização do Conhecimento é útil às Humanidades Digitais.
Para isso, procede-se a um estudo exploratório, baseado na pesquisa bibliográfica a partir da análise de fontes de informação em Ciência da Informação, Ciências
da Computação e Informática.
2 Humanidades Digitais: tecnologia emergente e pesquisa humanística
O conceito de Humanidades Digitais ainda não é consensual. Algumas vezes,
sua noção se confunde com Humanities Computing (Computação em Humanidades) que é compreendida como uma prática de representação, uma forma de modelagem ou, de certo modo, um mimetismo. Refere-se a uma forma de raciocínio
e a um conjunto de compromissos ontológicos, cuja prática representacional é
moldada pela necessidade de computação eficiente, de um lado, e da comunicação
humana, de outro (UNSWORHT, 2013), e às aplicações específicas, como o desenvolvimento e a análise de grandes corpora textuais2, a construção de edições digitais
2 Corpora é o plural de corpus, que é um conjunto de textos para fins de pesquisa e análise linguística.
168
Jacqueline Aparecida de Souza
de obras de literatura, a criação de artefatos digitais através do processo de digitalização, o uso de realidade virtual para reconstruir modelos arquitetônicos etc., que
corresponde às novas técnicas e tecnologias desenvolvidas e aplicadas aos dados de
Humanidades (TERRAS, 2013).
Nesse contexto, o primeiro trabalho em humanidade digitais data de 1949,
quando o jesuíta e teólogo italiano Roberto Busa procurou o fundador da IBM
(International Business Machine Corporation), Thomas J. Wathson, para solicitar
ajuda para indexar os trabalhos de Tomás de Aquino. O pedido não foi para contabilizar palavras, foi para conseguir interpretação doutrinal, sendo um trabalho
qualitativo (MARTIRE, PINA 2019).
Historicamente, o termo Humanidades Digitais foi utilizado, pela primeira
vez, por John Unsworth, em 2002. Porém, só em 2004, com a publicação do livro
Companion to Digital Humanties, editado por Schreibman, Siemens e Unsworth,
foi que o termo passou a ser mais utilizado e divulgado (ALVES, 2016). Outras variações são encontradas na literatura, como Informatica humanistica (Humanistic
informatics), Computação literária e linguística (literary and linguistic computing),
Recursos digitais em humanidades e, proveniente da Europa Continental, o eHumanidades (eHumanities) (TERRAS; NYHAN; VANHOUTTE, 2013).
A respeito das definições, embora não haja consenso universal, de modo geral, revelam a intersecção da computação, das tecnologias digitais às humanidades.
Cohen (2011), em Day of Digital Humanities,3 afirma que humanidades digitais é o
uso de mídia digital e de tecnologias para fazer avançar toda a gama de pensamento
e de prática nas humanidades, desde a criação de recursos acadêmicos até a pesquisa sobre esses recursos, assim como a comunicação dos resultados. O autor ressalta
que são métodos para fazer investigação humanística.
Complementarmente, ‘Humanidades Digitais’ são uma área de atividade acadêmica que faz a interseção entre a computação ou tecnologias digitais e as disciplinas
das humanidades, incluindo o uso sistemático de recursos digitais e a reflexão sobre
sua aplicação nas humanidades (PALLETA, 2018). O autor acrescenta que podem ser
definidas como novas formas computacionais de estudos acadêmicos transdisciplinares, que envolvem pesquisa, ensino e publicação e são provenientes das reflexões
acerca da realidade contemporânea de presença tecnológica no âmbito das fontes
de informação, antes usufruídas exclusivamente em formato físico (PALLETA, 2018).
No Manifesto das Humanidades Digitais (DACOS, 2011), além de situação, declaração e orientações, constam os seguintes apontamentos acerca da definição:
3 Projeto que reúne pesquisadores de Humanidades Digitais de todos os graus e campos para
refletirem acerca de suas pesquisas.
169
Organização do conhecimento em Humanidades Digitais: breves reflexões
1. A opção da sociedade pelo digital altera e questiona as condições de
produção e divulgação dos conhecimentos.
2. Para nós, as digital humanities referem-se ao conjunto das Ciências
humanas e sociais, às Artes e às Letras. As humanas digitais não negam
o passado, apoiam-se, pelo contrário, no conjunto dos paradigmas, savoir-faire e conhecimentos próprios dessas disciplinas, mobilizando simultaneamente os instrumentos e as perspectivas singulares do mundo
digital.
3. As digital humanities designam uma transdisciplina, portadora dos
métodos, dos dispositivos e das perspectivas heurísticas ligadas ao digital no domínio das Ciências humanas e sociais (DACOS, 2011).
Com base nessas exposições sobre a definição de Digital Humanities, verifica-se que, embora exista uma variação terminológica, no bojo dessa discussão, estão
em relevo a criação e a aplicação crítica de tecnologias digitais para desenvolver e
impulsionar as comunidades acadêmicas e aprofundar o conhecimento humanístico. Illmayer (2017) resume algumas atividades das Humanidades Digitais, a saber:
iniciar e apoiar a transformação digital na Academia; digitalizar material e criar
material nato digital; criar ambientes digitais para alunos e professores; divulgar
resultados de pesquisa e publicações; fornecer material de pesquisa; permitir novas
ou melhores possibilidades de pesquisa; construir comunidades de DH e proporcionar a análise crítica sobre a utilização das tecnologias digitais na investigação e
na sociedade.
O autor estabelece alguns pilares das DH, quais sejam: a transformação digital
alcança todas as disciplinas acadêmicas; as DH como incubadoras de implementação de métodos informáticos e infraestruturas digitais nas Ciências Humanas;
a DH discute sobre as mudanças e os desafios da revolução digital, especialmente
para financiar estudos, assim como para as sociedades, comunidades e humanos; a
DH é um campo aberto e depende de uma comunidade pulsante e em crescimento
constante, incluindo acadêmicos, bibliotecários, estudantes, desenvolvedores, professores, cidadãos e cientistas.
O núcleo interdisciplinar das HD é no campo da Humanities Computing, que
tem uma longa e dinâmica história que é mais bem ilustrada por meio do exame
dos locais em que práticas disciplinares específicas se cruzam com a computação.
O crescente campo da representação do conhecimento, que se baseia no campo da
Inteligência Artificial e visa produzir modelos de compreensão humana que sejam
tratáveis por computação, fornece uma lente por meio da qual é possível compreender essas implicações. Isso é especialmente verdadeiro em questões relacionadas à
170
Jacqueline Aparecida de Souza
representação arquivística e à edição textual, teoria interpretativa e crítica de alto
nível e protocolos de transferência de conhecimento - conforme modelado com
técnicas computacionais, capturado por meio de sistemas de codificação e classificação e representados em estruturas de dados, algumas das quais têm grande impacto nas formas como associamos a informação humana e interpretamos as formas como exerce influência sobre nós (SCHREIBMAN; SIEMENS; UNSWORTH, 2004).
3 Organização do Conhecimento: ontologias em humanidades
A organização do conhecimento dedica-se à ordem conceitual do conhecimento. No sentido mais amplo, é a arena em que as heurísticas de ordenação do
conhecimento são estudadas; é a comunidade de pesquisa que envolve classificação e ontologia, tesauros e vocabulário controlado, epistemologia e garantia e o
desenvolvimento de sistemas aplicados para todos os anteriores (muitas vezes, especialmente na América do Norte, a descrição de recursos também é considerada
um parte da organização do conhecimento). Há uma longa tradição de atividades
e ferramentas de organização do conhecimento, como por exemplo, classificação,
taxonomia e tipologia, que sempre foram fundamentais para o desenvolvimento
de pesquisas. A organização do conhecimento é, claramente, um domínio coerente
com uma base ontológica, cuja extensão, ao longo de uma dimensão, estende-se
da teoria do conceito (ou semântica) ao sistema de organização do conhecimento
aplicado (SMIRAGLIA, 2013).
A OC oferece um modelo conceitual adequado com as diversas práticas e atividades sociais relacionada ao acesso ao conhecimento e opera como instrumento
de tratamento da informação e de gestão de uso da informação e integrador dos fenômenos e aplicações vinculados a estruturação do conhecimento (BARITÉ, 2001).
Essa estrutura conceitual representa uma visão de mundo, um modelo. Isso quer
dizer que a representação do conhecimento é um modelo incorpora um vocabulário estruturado, mas com mais recursos, tornando-o mais poderoso para determinadas operações definidas, ou seja, são intencionais (GILCHRIST, 2011). Portanto,
representar conteúdos de informação para organizá-los significa recortar, segmentar e apresentá-la de outra maneira. São as necessidades pragmáticas dos usuários,
da instituição e do acervo que irão determinar a melhor estratégia de representação
para atender ao fluxo informacional que se pretende (MACULAN, 2016).
O processo de tornar presentes conteúdos informacionais é uma atividade que
diz respeito à representação da informação, a qual se instrumentaliza por meio
de modelos de representação do conhecimento. A representação do conhecimento
trata-se de um processo mental (campo das ideias), responsável pela organização
do conhecimento. Dessa organização, surgem os sistemas de organização do co-
171
Organização do conhecimento em Humanidades Digitais: breves reflexões
nhecimentos (SOC), ou knowledge organization systems (KOS), também chamados
de modelos de representação do conhecimento que servem de ferramentas para
as atividades de representação da informação. Os modelos de representação do
conhecimento, como os tesauros e as ontologias, representam uma parte do mundo das ideias (representação do conhecimento) e são aplicados nas atividades de
representação da informação. Nesse sentido, entre os SOC que agregam elementos
incorporados nas inovações tecnológicas e são emergentes em ambientes digitais,
destaca-se a ontologia.
Na perspectiva da Ciência da Computação e da Ciência da Informação, as
ontologias são consideradas artefatos desenhados especificamente para possibilitar a representação computacional de algum fenômeno e se configuram como
modelos de algum aspecto da realidade em que os conceitos são definidos de
modo lógico-semântico em termos de seus limites e suas correlações (MOREIRA;
SANTOS NETO, 2014). A definição mais recorrente na literatura é a de Gruber
(1993), que concebe a ontologia como a especificação explícita de uma conceituação. Segundo o autor, quando o conhecimento do domínio é representado
em um formalismo declarativo, o conjunto de objetos que pode ser representado
é chamado de universo do discurso. Esse conjunto de objetos e as relações descritíveis entre eles são refletidos no vocabulário representacional por meio do
qual um programa baseado em conhecimento representa conhecimento. Assim,
a ontologia de um programa é definida como um conjunto de termos representacionais, na qual as definições associam os nomes de entidades no universo do
discurso (por exemplo, classes, relações, funções ou outros objetos) a um texto
legível por humanos, descrevendo o que os nomes significam, e axiomas formais
que restringem a interpretação. Formalmente, ontologia é a afirmação de uma
teoria lógica.
Assim, ontologia é um conjunto de objetos que são divididos em classes, conceitos, propriedades (também slots) e restrições. Relacionando classes principais
e subclasses (classes específicas), uma hierarquia pode ser criada. Além disso, as
chamadas instâncias das classes representam objetos individuais do domínio selecionado. Embora a estrutura de uma ontologia seja bastante estática, as informações incluídas podem ser consultadas e manipuladas de várias maneiras, usando-se
padrões de linguagem, como o Ontology Web Language (OWL), Resource Description Framework Schema (RDFS) e o XML Scheme (Extensible Markup Language)
(ZÖLLNER-WEBER, 2009), que têm a finalidade de atribuir significado à web e são
linguagens para descrever, definir e representar a ontologia.
Os principais motivos para o desenvolvimento de ontologias são: 1) elas compartilham de conhecimento comum em estruturas de informação entre outros po-
172
Jacqueline Aparecida de Souza
vos ou para os agentes de software; 2) permitem que conhecimento seja reusado;
3) realizam inferências em um domínio do conhecimento; 4) separam o conhecimento de domínio do conhecimento operacional; e 5) analisam o conhecimento
estruturado tendo como resultado respostas mais relevantes. Nessa perspectiva, as
ontologias promovem e facilitam a interoperabilidade entre sistemas de informação. Assim, por meio de um processo “inteligente” dos computadores, é possível
compartilhar e reutilizar o conhecimento entre os sistemas (NOY; MCGUINNESS,
2001 apud CARLAN; MEDEIROS, 2011)
A partir do exposto, pode-se questionar: As ontologias são úteis às humanidades digitais? De que maneira as ontologias estão a serviço das Humanidades Digitais? Certamente essas questões merecem um grande espaço de debate, um olhar
crítico e reflexivo, considerando que as ontologias representam uma visão de mundo, são manipuláveis, porém relativamente estáveis, e as Ciências Humanas comportam uma complexidade que parece difícil simplificar, simbolizar, representar.
Nesse seguimento, relativamente ao aspecto da representação, Santos (2010),
com base em Davis et al (1993), enumera cinco funções que uma representação
pode desempenhar:
1) Uma representação do conhecimento é, acima de tudo, um substituto para
as coisas, usado para possibilitar que uma entidade determine consequências pensando e não agindo, isto é, raciocinando sobre o mundo, e não,
agindo nele;
2) É um conjunto de compromissos ontológicos, uma resposta para a questão:
Em que termos se pensa sobre o mundo?
3) É uma teoria fragmentária de raciocínio inteligente, expressa em termos de
três componentes: a) a concepção fundamental da representação de raciocínio inteligente; b) o conjunto de inferências que a representação sanciona;
c) o conjunto de inferências que recomenda;
4) É um meio para uma computação pragmática eficiente, ou seja, o ambiente
computacional em que o pensamento é concebido. Uma contribuição para
essa eficiência pragmática é dada pela orientação que uma representação
fornece na organização da informação, para facilitar que sejam tomadas as
inferências recomendadas;
5) É uma forma de expressão humana, a língua com a qual dizemos coisas
acerca do mundo.
Ainda de acordo com Santos (2010), cada uma das funções mencionadas requer um tipo diferente de representação, um conjunto diferente de propriedades.
173
Organização do conhecimento em Humanidades Digitais: breves reflexões
Davis et al (1993), citados por Santos (2010), argumentam que a única representação do objeto completamente fiel é o próprio objeto, e isso serve tanto para a
representação de objetos tangíveis quanto para noções abstratas, processos, credos
ou categorias, que podem ser descritas dentro de uma entidade para que se possa
raciocinar sobre ela. A autora ressalta, ainda, que selecionar uma representação significa optar por um conjunto de compromissos ontológicos. Não se trata de saber
o que existe no mundo, mas de como se vê. É uma espécie de lente que determina
o que pode ser visto, tornando umas partes nítidas, e outras, difusas. Portanto, ao
selecionar os compromissos ontológicos, pode-se focar a atenção em aspectos do
mundo que se acredita serem importantes. É nesse sentido que a ontologia assume
maior relevância , pois não se trata apenas de uma linguagem de representação,
mas do conjunto de conceitos relacionados e estruturados, oferecidos como uma
forma de pensar sobre o mundo.
Relativamente à conexão ontologias e humanidades digitais, alguns contributos referem-se a selecionar termos e identificar possíveis categorias e classificação,
assim como o uso de ontologia para estudos linguísticos e terminológicos para
extrair dados. Como exemplo disso, podemos citar a tese doutoral Terminology and
Knowledge Representation: ceramic artefacts of al-Ândalus, de Almeida (2019), cujo
objetivo foi o de estabelecer os fundamentos teórico-metodológicos para a criação
de um recurso ontoterminológico com vistas à harmonização terminológica e à
disseminação do conhecimento nos estudos sobre cerâmica do al-Ândalus. A pesquisa pressupôs que a terminologia é um campo interdisciplinar que articula uma
dimensão conceitual baseada no conhecimento e uma dimensão linguística baseada em termos, relacionando ambas as dimensões por meio de um corpus textual
especializado com uma dupla finalidade: a de apoiar a modelização do domínio e a
de possibilitar a extração de termos em português e castelhano. Desse modo, considerou que uma ontologia sobre a cerâmica do al-Ândalus pode ser um suporte
conceitual de um futuro recurso terminológico (ALMEIDA, 2019). ontologias e as
humanidades, alguns contributos se referem à construção de ontologias, que prevê
a composição de um corpus textual
Outro exemplo de ontologias em Humanidades é o estudo de Zöllner-Weber
(2009), que trata da descrição de personagens literários realizada por meio de uma
ontologia. Várias teorias de personagens literários são combinadas para criar uma
base de descrição formal usando uma ontologia. O objetivo foi de representar a
estrutura de informação mental de um leitor e o que ele tem em mente ao ler um
livro. Perguntar para um leitor o que um personagem significa não quer dizer que
tipos de personagens há, mas que estrutura geral e atributos um personagem tem.
Foi considerado um personagem como uma entidade cognitiva complexa na men-
174
Jacqueline Aparecida de Souza
te do leitor, em vez de enfatizar metáforas ou arquétipos. Neste estudo, categorias
que descrevem aspectos gerais de personagens literários formam as classes principais da ontologia, como, por exemplo, as características internas e externas e as
ações em outros personagens e objetos. Os personagens são considerados como
objetos individuais, que não estão ligados a papéis ou arquétipos. Ao utilizar uma
hierarquia, as descrições individuais dos personagens devem obter uma base comum para comparar essas descrições. Ao usar subclasses, as categorias podem incluir características de caracteres especiais ou grupos de caracteres. Além disso,
as chamadas instâncias das classes representam objetos individuais e explícitos do
domínio dos personagens literários. Uma única representação mental de um personagem é modelada, como mostra a figura abaixo (ZÖLLNER-WEBER, 2009):
Figura 1 - Estrutura ontológica de personagens literários
Fonte: Extraído de Zöllner-Weber (2009)
Esta abordagem tem como foco a descrição individual, a pré-etapa da interpretação. Encontrar os mesmos padrões revelados em diferentes descrições pode ser
considerado senso comum. Ao analisá-los, podem ser encontradas semelhanças
com base na formação cultural dos leitores ou nas tradições de escrita e de leitura
(ZÖLLNER-WEBER, 2009).
Outros aspectos relevantes em relação às ontologias são o raciocínio lógico e as
relações semânticas. O primeiro, por ser útil para verificar a consistência durante
seu desenvolvimento e permitir a fusão semiautomática de ontologias de domínio,
assim como para deduzir informações. E o segundo, porque, como as relações semânticas são “associações significativas entre dois ou mais conceitos, entidades ou
175
Organização do conhecimento em Humanidades Digitais: breves reflexões
conjuntos de entidades (KHOO; NA, 2006), assumem um papel relevante nas humanidades, uma vez que os dados textuais costumam ser fundamentais.
Em síntese, os aspectos linguísticos e conceituais, as estruturas de representação do conhecimento e o raciocínio lógico conectam-se com as práticas de humanidades digitais. No âmbito da OC, destacam-se as ferramentas computacionais
para editar os sistemas de organização do conhecimento, assim como ferramentas
para coletar, compor e analisar corpus, que são processos necessários para construir ontologias.
4 Considerações finais
Este texto não teve a pretensão de se aprofundar nos aspectos associados que
conectam as humanidades digitais e a organização do conhecimento, mas fazer
alguns apontamentos e identificar pontos que carecem de ampla e profunda discussão, sendo considero a início de uma discussão que poderá ser mais explorado em
trabalhos futuros. De todo modo, observou-se que há uma variação terminológica
acerca de Humanidade Digitais, mas que são uma nova expressão para a pesquisa
acadêmica e que talvez no âmbito da Ciência da Informação, nomeadamente na
subárea de organização do conhecimento a intersecção da computação às práticas
profissionais não represente uma novidade, considerando que, em maior ou menor
grau, sempre dialogou-se com a computação com vista à aprimorar o desenvolvimento dos SOC, para a indexação automática etc.
Adicionalmente, no centro das práticas das humanidades digitais, consoante
aos sistemas de organização do conhecimento emergentes em ambientes digitais,
como as ontologias e as folksonomias, encontram-se a colaboratividade e o compartilhamento, uma característica comum entre essas áreas, seja para construir ferramentas computacionais seja para usá-las, dando suporte às pesquisas acadêmicas
em Humanidades. Ainda, consoante a OC e HD, apoiando-se nos apontamentos
de Pando (2018) a organização do conhecimento deve ser interpretada como parte
do contexto social, cultural em que não cabe mais estrutura fechada e linear, em
que os aspectos sociais não são significativamente considerados, devendo-se, enquanto ontologistas revisar a posição de buscar encaixar os seres em sua respectiva classe biológica, e aproximar-se mais da lógica do etnógrafo, mais próximo de
saber sobre o funcionamento das comunidades. Deste modo, as ontologias, sendo
um instrumento da pós-modernidade em organização do conhecimento, estabelecem forte conexão com as práticas de humanidades digitais.
176
Jacqueline Aparecida de Souza
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179
Caricatura, cartoon e charge
Thulio Pereira Dias Gomes1
1 Introdução
Charge, caricatura e cartum podem ser entendidas como palavras que
designam diferentes tipos de desenhos de humor, porém, com frequência são tomadas uma pela outra. Teixeira (2005) apresenta diversos exemplos em que profissionais, especialistas e até mesmo enciclopedistas usam indiscriminadamente tais
palavras. Contudo, para o autor, a charge, a caricatura e o cartum são tipos de
desenho que expressam a realidade de um modo próprio e através de intenções
específicas para o objeto que abordam.
Em estudo anterior, eu analisei essas palavras visando a identificar semelhanças e diferenças entre esses desenhos de humor. O foco investigativo foi o conceito
de charge a fim de diferenciá-la dos demais desenhos. O estudo apoiou-se em uma
análise de usos consolidados dessas palavras a partir de dicionários gerais de língua e de discussões de chargistas, especialistas e estudiosos. Hoje, eu avalio que a
metodologia adotada é profícua para análise de palavras, mas me pergunto sobre a
pertinência de classificar desenhos artísticos em frente a uma crescente tendência
para a hibridização de códigos de diferentes gêneros do discurso. Eu ainda não
tenho resposta para essa questão, porém, neste texto, eu pretendo desenvolver uma
reflexão sobre alguns dos esforços de classificação desses gêneros, bem como indicar outros caminhos possíveis.
2 Desenhos de humor na teoria de gêneros
Tanto as culturas orais quanto as culturas escritas dispõem de formas de transmissão de conhecimento a fim de preservá-lo para usos futuros e comunicá-lo às
próximas gerações. As músicas, as histórias, as genealogias, as poesias, os hinos, os
rituais e as lendas, entre outras, são exemplos de formas de preservação do conhecimento utilizadas pelas culturas orais. As culturas escritas, por sua vez, utilizam listas,
1 Bibliotecário na Universidade Federal Fluminense (UFF). Doutor em ciência da informação
pela Universidade de São Paulo (USP). E-mail:
[email protected]
Caricatura, cartoon e charge
livros, jornais, mapas, diários, relatórios, manuais, cartas e e-mails, entre tantos outros
meios, para transmitir o seu conhecimento às próximas gerações (ANDERSEN, 2008).
Essas formas de comunicação pertencem ao que McGarry (1999, p. 64) chama de sistema de armazenamento da informação. Segundo o autor, “sem este mecanismo imprescindível cada nova geração teria que reaprender do início todos os conhecimentos
e habilidades tão arduamente adquiridos por seus antepassados ao longo do tempo”.
Andersen (2008, p. 339, tradução nossa) explica que “algumas formas de comunicação são partes inerentes da organização social de uma cultura porque elas
estruturam e sustentam os meios e os modos de comunicação institucionalizados
na sociedade”. Segundo o autor, o conceito que cobre esta variedade de formas de
comunicação é o de gênero (genre). Andersen dá ênfase aos gêneros não ficcionais,
uma vez que estes mantêm maior relação com as atividades humanas, com a organização social bem como com os meios de comunicação.
Beghtol (2001) afirma que tipologias são desenvolvidas rotineiramente em todas as áreas do conhecimento e em diferentes comunidades de atuação. Para a autora, a discussão de gêneros consiste em uma questão de atividade classificatória,
mais especificamente, da divisão de alguma coisa inteira em tipos de coisa. Dessa
forma, o esforço de classificação de gêneros pode ser considerado uma atividade do
escopo da organização do conhecimento. Entretanto, a compreensão sobre gêneros
da autora é limitada ao tipo textual, ou seja, como o texto se apresenta, excluindo
dele a dimensão social.
Para Bakhtin, gêneros se referem a tipos relativamente estáveis de enunciados,
produzidos em cada esfera de comunicação (lugar social dos interlocutores que são
caracterizados pelo conteúdo temático, estilo e tipo de composição, adotados em
função de uma situação determinada por parâmetros relacionados à finalidade, ao
receptor e ao conteúdo (BAKHTIN, 1979).
Alguns pesquisadores defendem a contribuição da compreensão de gêneros
para a ciência da informação. Mollica e Guedes (2013) sugerem que o conhecimento sobre gêneros discursivos permite a compreensão dos fenômenos de produção,
de organização, de circulação e de uso da informação. Hjørland (2002) afirma que
os gêneros existem apenas quando os indivíduos de determinado domínio estão
organizados, isto é, quando surge uma comunidade discursiva organizada. Este autor acrescenta que os gêneros refletem a atividade desse domínio discursivo. Nessa
mesma direção, os gêneros são relacionados por Andersen (2008) às atividades
humanas e às organizações sociais. Esse mesmo autor demonstra que o conceito de
gênero é bastante explorado nos estudos da informação e defende que a ciência da
informação, em sua interdisciplinaridade, não apenas deve utilizá-lo, mas também
deve contribuir para o desenvolvimento de teorias de gênero.
182
Thulio Pereira Dias Gomes
É possível o questionamento sobre a validade do esforço de classificar os gêneros de desenhos de humor. Se a compreensão de classificação for de “segmentação
espacial, temporal ou espaço-temporal do mundo” (BOWKER; STAR, 2000, p. 10), é
razoável pensar na possibilidade de definir os limites exatos de charge, caricatura e
cartum e colocá-las em “caixinhas”. Todavia, o objetivo não é separar a charge, caricatura e cartum entre si, tampouco evitar a possibilidade de mistura de gêneros,
que sempre foi reconhecida por estudiosos.
Derrida (1980), por exemplo, apresenta um trabalho sobre a lei de gênero. O
autor afirma que os gêneros não podem ser misturados, porque merecem um voto
de obediência, de compromisso e de fidelidade. O autor fala que a lei de gênero é
a lei da pureza. Em seguida, Derrida desmente essa afirmação, ao falar que a lei
da pureza é impossível de ser praticada, de modo que é impossível não misturar
os gêneros. Então, segundo Derrida, é possível falar de uma lei da lei de gênero,
que seria a lei da impureza e o princípio da contaminação. Para Derrida, o grande
enigma dos gêneros é trabalhar com seus limites, isto é, até que ponto um gênero
não pode ser contaminado por outro gênero é a questão proposta pelo filósofo
francês.
No âmbito do jornalismo, Marques de Melo (1985) reconhece a dificuldade de
definir gêneros nas mídias, porém destaca a importância desse esforço. Nas palavras do autor,
classificar gêneros jornalísticos é o maior desafio do jornalismo, como
campo de conhecimento, é, sem dúvida, a configuração da sua identidade enquanto objeto científico e o alcance da autonomia jornalística
que passa inevitavelmente pela sistematização dos processos sociais
inerentes à captação, registro e difusão da informação da atualidade, ou
seja, do seu discurso manifesto. (MARQUES DE MELO, 1985, p. 85).
As utilidades de estabelecer os gêneros jornalísticos são muitas. Gêneros são
úteis para os leitores na identificação das formas e dos conteúdos dos jornais. Gêneros favorecem o diálogo entre o jornal e o leitor, uma vez que é através dos hábitos
deste que o primeiro modifica seu conteúdo. Gêneros também favorecem a identificação da intenção do conteúdo jornalístico, seja de informar, seja de opinar, de interpretar ou de divertir. E daí poderiam ser mencionadas diversas outras vantagens.
Ao considerar a relação dialógica dos gêneros jornalísticos, Marques de Melo
(1985) os compreende como fenômenos históricos. Para o autor, até mesmo os efeitos da globalização sobre o jornalismo não eximem os gêneros da historicidade.
Nas palavras do autor,
183
Caricatura, cartoon e charge
se os gêneros são determinados pelo estilo e este depende de uma relação
dialógica que o jornalismo deve manter com seu público, apreendendo
seus modos de expressão (linguagem) e suas expectativas (temáticas), é
evidente que a sua classificação restringe-se a universos culturais delimitados. Por mais que as empresas jornalísticas assumam hoje uma dimensão
transnacional em sua estrutura operativa, permanecem, contudo, as especificidades nacionais ou regionais que ordenam o processo de recodificação das mensagens importadas. Tais especificidades não excluem as articulações interculturais que muitas vezes subsistem através das línguas e
são prolongamentos do colonialismo. (MARQUES DE MELO, 1985, p. 39-40).
Uma vez que os gêneros jornalísticos são demarcados historicamente no tempo e no espaço, sua classificação universal é utópica. Em cada lugar, os conteúdos
jornalísticos se configuram em classificações diferentes. Assim, é possível dizer que
as classificações de gênero precisam ser constantemente adaptadas da melhor forma possível em cada contexto. Uma consequência dessa característica é o surgimento de gêneros e de subgêneros com o passar do tempo. Gêneros podem surgir
de acordo com as demandas do público e com a evolução das linguagens jornalísticas. Outra possibilidade é a mudança de função ou de estrutura. Por exemplo,
o conteúdo publicitário nos jornais se reconfigura aos produtos do mercado, às
demandas do público e aos recursos tecnológicos.
Portanto, uma classificação de gêneros só é válida para um momento e um
lugar específico na história. Diversos estudos de pesquisadores liderados por José
Marques de Melo demonstram as variações históricas dos gêneros jornalísticos
(FERREIRA, 2012). O que era chamado de artigo, no Chile, na década de 1980, provavelmente não é o que era chamado por artigo no Brasil naquela época, tampouco
o que é considerado artigo pelos dois países hoje em dia. Outro exemplo são as
ilustrações dos jornais do século XIX, que podem ser chamadas de charges, hoje,
sem que seus autores tivessem essa intenção.
No contexto da classificação dos gêneros jornalísticos, a charge, a caricatura e o
cartum podem ser classificados como gênero opinativo, ilustrativo ou diversional,
a depender da proposta de classificação (MARQUES DE MELO, 1985; MARQUES DE
MELO; ASSIS, 2010, p. 26; MEDINA, 2001). Porém, os desenhos de humor poderiam
facilmente ser classificados em mais de uma dessas categorias. Daí nos vemos diante a inclinação a uma mistura dos gêneros.
Em meu trabalho de conclusão de curso, propus uma definição de charge em
uma perspectiva aproximada da teoria dos gêneros. A definição foi inspirada nos
pontos de concordância em Gawryszewski (2008), Flôres (2002) e Rabaça e Barbo-
184
Thulio Pereira Dias Gomes
sa (2002). Assim, chegou-se à charge como “um gênero discursivo de uso híbrido
das linguagens verbal e imagética, caracterizado pela temporalidade marcada pela
sátira e pela crítica referentes a determinado evento, em geral de natureza política”
(GOMES, 2013, p. 26-27). Alguns anos depois, é impossível não reconhecer limites
desse esforço de uma definição de charges, apesar de ainda manter-se útil para
identificá-las. Todavia, podemos transpor a dimensão textual para a discursiva a
fim de abarcar uma gama maior de elementos enunciativos. Além disso, podemos
acrescentar o gesto como um dos códigos da linguagem híbrida da charge. O gesto
está tanto na expressão dos personagens quanto na própria expressão do narrador
e do chargista. Então, a charge caracteriza-se pelo hibridismo das linguagens imagética, gestual e verbal.
Figura 1. Única área com recursos inesgotáveis (Carol Ito)
Fonte: @carolito.h (instagram)
3 Desenhos de humor na língua corrente
Em minha dissertação de mestrado, analisei o que pode ser denominado como
charge, caricatura e cartum pelos falantes comuns da língua corrente. No estudo,
foram consideradas as origens de cada uma dessas palavras além de uma confrontação com os étimos próximos nas línguas francesa, italiana e inglesa, bem como
com as adaptações atuais. O estudo apoiou-se em verbetes dos dicionários gerais
185
Caricatura, cartoon e charge
de cada uma das línguas. Os resultados indicaram aproximações semânticas entre
os empréstimos charge, caricatura e cartum e suas respectivas palavras de origem
estrangeira, ocorrendo, todavia, adaptações em língua portuguesa. Por exemplo, a
noção italiana de caricatura está próxima ao entendimento lusófono de caricatura,
estando ambas associadas à ideia de exagerar determinadas características de algo.
No entanto, para cada uma dessas palavras, o significado em português atribui uma
especificidade ao desenho (GOMES, 2015).
O estudo também indicou que apenas no português brasileiro coexistem essas
unidades lexicais usadas para designar diferentes tipos de desenho. As consultas
aos dicionários gerais de língua não permitiram identificar as motivações desses
empréstimos, de modo que não foi possível reconhecer o fator ou os fatores que
confluíram para a incorporação de valores diferentes de seus sistemas de origem
na língua portuguesa falada no Brasil. Entretanto, é possível dizer que as diferenças
entre os significados pelos respectivos usos em sistemas linguísticos de origem desses empréstimos são insuficientes para estabelecer as diferenças necessárias para
esta pesquisa.
Em tal estudo, porém, há um cuidado com a imprecisão conceitual e terminológica. O alerta sinaliza a necessidade de prudência ao transpor essas palavras
para outros idiomas, de modo que não pode ser dispensado o entendimento das
especificidades de cada um dos tipos de desenhos de humor. Todavia, será mesmo
necessária tanta cautela para distinguir esses desenhos de humor no uso corrente
da língua?
Conforme Dicionário Houaiss da língua portuguesa, a charge é um substantivo feminino que denota um desenho humorístico, com ou sem legenda ou balão,
geralmente veiculado pela imprensa e tendo por tema algum acontecimento atual
que comporta crítica e focaliza, por meio da caricatura, uma ou mais personagens
envolvidas. Segundo o dicionário, charge pode significar caricatura ou cartum.
O étimo próximo de que provém charge é a palavra francesa charge, que aparece
no século XII, com o significado nuclear de carga. Em 1680, charge, por extensão,
significou o que exagera o caráter de alguém ou de algo para torná-lo ridículo,
uma representação exagerada e burlesca, uma caricatura. Charge é uma derivação
regressiva de charger, que significa carregar, e tem origem no baixo latim caricâre
(HOUAISS; VILLAR, 2001).
Caricatura é um substantivo feminino e pode assumir quatro significados. Primeiro, caricatura pode referir-se a um desenho de pessoa ou de fato que, pelas deformações obtidas por um traço cheio de exageros, se apresenta por meio de forma de
expressão grotesca ou jocosa. Em segundo, em um sentido figurado, caricatura pode
ser uma reprodução grotesca de alguma coisa. Em terceiro, também uma figuração,
186
Thulio Pereira Dias Gomes
pode-se referir a um indivíduo de aparência ou de maneiras ridículas. Na área do
saber e do fazer teatral, caricatura é uma representação em que figuram pessoas e
se apresentam caracteres e fatos de maneira grotesca e cômica. O dicionário ainda
apresenta caricatura como homônimo de uma flexão do verbo caricaturar. A datação
de caricatura remonta a 1836, quando foi incluída na nominata da obra lexicográfica
de Constâncio (1836). O étimo próximo de caricatura é a palavra homógrafa italiana
caricatura. Em 1188, caricatura aparece com significado nuclear de ato ou efeito de
carregar. Caricatura tem origem em caricatura do latim medieval de Veneza, que,
por sua vez, vem de caricaturum, particípio passado de caricare, derivado de carrus.
Em fins do século XVII, caricatura passa também a significar retrato ou escrito que,
com intenção cômica ou satírica, acentua até a deformação os traços característicos do modelo (HOUAISS; VILLAR, 2001). Cunha (1982), citado por Houaiss e Villar
(2009), vê influência do francês caricature, que aparece em 1749 e significa uma reprodução grotesca através do desenho ou da pintura e vem do italiano caricatura.
De acordo com o Dicionário Houaiss da língua portuguesa, cartum é um substantivo masculino que pode assumir dois significados. Na área do saber e do fazer dos meios de comunicação, cartum é um desenho humorístico ou caricatural, espécie de anedota gráfica que satiriza comportamentos humanos, geralmente
destinado à publicação jornalística. De uma forma mais específica, este desenho
pode dizer respeito à história em quadrinhos, geralmente humorística. Na área do
cinema, cartum significa um desenho animado e, de uma forma mais específica,
uma vinheta cômica. O primeiro registro conhecido da palavra cartum na língua
portuguesa é de 1962, mas o dicionário indica desconhecer onde esse aparecimento
aconteceu. A etimologia de cartum remete a uma adaptação do inglês cartoon. O
étimo próximo aparece em 1671 como um esboço ou um modelo de desenho em
cartão. Em 1863, cartoon aparece como desenho humorístico ou satírico veiculado,
em geral, por jornais e por revistas. Um pouco mais tarde, aparece animated cartoon com o significado nuclear de desenhado animado. Cartoon vem do italiano
cartone, aumentativo de carta, que significa papel (HOUAISS; VILLAR, 2009).
Nas definições propostas nos verbetes de Houaiss e Villar (2009), é possível observar o caráter de desenho humorístico como ponto de intersecção entre a charge,
a caricatura e o cartum. Por outro lado, o tema é ponto de distinção entre os três
tipos de desenho. A caricatura apresenta traços exagerados de alguém ou de alguma coisa, enquanto a charge faz referência a algum acontecimento atual e o cartum,
ao comportamento humano.
187
Caricatura, cartoon e charge
Figura 2. “Família”, por Laerte (s. d.)
Fonte: @laertegenial
4 Desenhos de humor por especialistas
O chargista Chico Caruso, em uma entrevista, explicou a diferença entre caricatura, charge e cartum:
Para explicar a diferença entre cartum e charge, eu faço uma analogia
com a lente de uma câmera fotográfica, ou de uma filmadora. Se você
foca no infinito, se você pega o que é universal – por exemplo, uma
bomba atômica, um naufrágio, uma coisa que o cara pode entender
tanto aqui quanto no Paquistão –, aí você tem o que a gente chama de
cartum, o cartum clássico, que é universal. Se você pega o que a gente
chama de plano americano, que mostra a realidade da cintura para
cima, só as figuras que você consegue reconhecer, é o que chamo de
charge. É como uma aproximação da câmera, uma realidade que só
será entendida por quem a conhecer. Eu não entendo uma charge argentina; e eles não entendem uma brasileira porque não conhecem as
figuras e não conhecem a situação. E se você der um close, aí você tem
a caricatura, só a cara da pessoa. Aí o desenho vai ser tão mais compreensível quanto mais conhecida for aquela pessoa (CARUSO apud
SOUZA, 2002, p. 14-15).
188
Thulio Pereira Dias Gomes
A fala de Caruso é uma evidência de como a charge, a caricatura e o cartum são
vistos pelo próprio artista. É interessante notar que o chargista não iguala as diferentes manifestações de arte. A analogia a uma lente de câmera fotográfica sugere
que, para o chargista, a diferença entre cartum, charge e caricatura está no foco, ou
seja, o que é destacado no desenho. Outro aspecto relevante na fala de Caruso é o
fato de o chargista se valer da experiência prática para chegar a uma conclusão a
respeito das diferenças entre os desenhos de humor.
Em um estudo teórico sobre charge, caricatura e cartum, Teixeira (2005, p. 22),
sustenta que, independente do que os separam quanto a gêneros, objetivos e linguagens, a charge, a caricatura e o cartum compartilham de um mesmo problema.
Trata-se da “produção de uma identidade capaz de identificar [...] a realidade com
a ficção, a verdade, com a fantasia e o sujeito, com o personagem”. O autor declara
se tratar, para cada um, de produzir e de projetar nos personagens fictícios uma
identidade do sujeito que corresponda perfeitamente aos sujeitos reais dos quais
se originam. O autor propõe a identidade por diferença como própria da charge.
A identidade por dessemelhança, segundo o autor, é inerente à caricatura. Por sua
vez, a identidade coletiva é buscada no cartum.
De acordo com Teixeira (2005), a busca por uma identidade é o fundamento comum a partir do qual a charge, a caricatura e a cartum significam as ações
objetivas e usuais de sujeitos reais. Tal produção de identidade não é confirmada
por conteúdos de racionalidade. Ao contrário, para o autor, “charge, caricatura e
cartum são discursos sem razão, porque se debruçam sobre sujeitos através do humor, descartando [a razão] como mediadora, intermediária ou condição necessária” (TEIXEIRA, 2005, p. 24). O autor sugere a construção de uma identidade pelo
humor como uma negação necessária da razão como condição única e exclusiva
de significado.
Teixeira (2005) considera inerente à charge a identidade por diferença. Na
charge, é construído um personagem que não se assemelha com o sujeito real do
qual deriva. Ao contrário, é a relação de diferença entre personagem e sujeito real
que aprofunda a mútua identificação. O autor afirma ser a diferença o que torna
possível o personagem como outro do sujeito real.
A identidade por dessemelhança é a produzida na caricatura. Teixeira (2005, p.
94) adverte que não se confunda dessemelhança com o contrário de semelhança.
A dessemelhança, que pode ser entendida como falta de semelhança, no pensamento do autor, deve ser concebida como semelhança por outros meios. Por meio
da dessemelhança, a caricatura se constitui em um discurso sem razão na medida
em que produz semelhança através de dessemelhanças. Dessa forma, a função da
dessemelhança na caricatura é a produção de “verossimilhança – ou inverossimi-
189
Caricatura, cartoon e charge
lhanças convincentes – entre as partes que a constituem”. O autor conclui que “a
dessemelhança, então, é uma extravagante semelhança”.
É possível, então, dizer que a caricatura é um close dessemelhante do sujeito
real. Para isso, a caricatura se apropria do sujeito, a partir de características marcantes. Teixeira (2005) afirma que a caricatura é produzida por cortes periféricos e superficiais na exterioridade corporal do próprio sujeito para reproduzi-lo no mesmo
sujeito. De acordo com o autor, nessa relação de superficialidade e de exterioridade
entre o sujeito real e a caricatura, o traço os torna iguais entre si. Quanto mais aprofundado o traço na percepção do essencial no sujeito, mais a sua superfície é ressaltada. Em outras palavras, a reprodução na caricatura apresenta traços excessivos e
exagerados em relação ao modelo original. Desse modo, serão traços, como a orelha
de abano, o penteado eriçado, o nariz empinado, os dentes grandes, os olhos fundos
ou a barriga proeminente, que serão exagerados para provocação do riso de quem
vê a caricatura. Quanto mais sensível o caricaturista for ao que é essencial no sujeito,
mais estes exageros da exterioridade identificam a caricatura com o modelo original.
O cartum é caracterizado pela produção de identidade coletiva. Segundo Teixeira (2005, p. 23), os personagens são criados, neste tipo de desenho, à margem de
qualquer sujeito real para, assim, evidenciar temas passíveis de serem apropriados
consensualmente. Para o autor, não há realidade no universo do cartum, porque,
nele, o sujeito é imaginário e a realidade, fantasia. Os temas do cartum não se referem, necessariamente, a sujeitos ou a realidades individuais e particulares. Cada
personagem no cartum é um coletivo de sujeitos particulares. Teixeira (2005, p.
102) apresenta o cartum como “um traço de reflexão e de humor que problematiza sujeitos reais, através de personagens e de temas fictícios”. O cartum produz
“verdades” através de situações imaginárias, com objetivos definidos, geralmente,
políticos, existenciais ou comportamentais.
De acordo com Teixeira (2005, p. 102), o cartum é o mais complexo entre os
três gêneros de desenhos de humor analisados. O autor argumenta que o cartum
“constrói personagens inverossímeis, a partir de um mundo sem sujeito e sem
real”. Teixeira explica que o cartum não tem compromisso com racionalidade dos
personagens ou das histórias que conta, apresentando enredos impossíveis e tipos
improváveis. É o equilíbrio entre o avesso e o real que sustenta a identificação dos
personagens com sujeitos e situações reais. Tal como a charge, o cartum propõe
uma síntese da política, da realidade e da cultura, sob as perspectivas da reflexão
e do humor. O que o distingue da charge e da caricatura é que, em vez de focar na
singularidade de um sujeito, o cartum dispensa o fato real e a cara evidente e se
vale de uma miríade de possibilidades de personagens fictícios para problematizar
o coletivo. O personagem do cartum
190
Thulio Pereira Dias Gomes
“é o possível de uma sociedade, de políticas, comportamentos, desejos e
fantasias, conteúdos, enfim, expressos por uma variedade – imaginável
e inimaginável – de tipos que não precisam ser, necessariamente, ‘humanos’” (TEIXEIRA, 2005, p. 104).
A análise das noções de charge por especialistas aponta que a interseção entre
a charge, a caricatura e o cartum é a produção de identidade por meio do humor,
de modo que esses desenhos negam a razão para produzir verdades sobre sujeitos reais. No entanto, cada uma dessas imagens produz identidade segundo determinada especificidade. A charge produz a identidade por diferença, a caricatura,
identidade pela dessemelhança e, por sua vez, o cartum, a identidade coletiva.
Figura 3. “Eu invoco as instituições democráticas”, por Ribs (2020)
Fonte: @o.ribs
5 Algumas considerações
Reagindo às provocações de Foucault (1999), em As palavras e as coisas, reconhecemos que a ordem a que se chegou para os desenhos de humor não é a única
possível, tampouco a melhor. Por isso, não se deixa de criticar a ordem estabelecida e aprisionada pelas palavras. Não se deve ignorar que as imagens, nas possibilidades de sua linguagem, de produções de sentido, de construções de narrativa
e de intergenericidade, são muito mais que os nomes charge, caricatura, cartum
ou que qualquer outro nome de tipo de imagem pode designá-las. Tais unidades
linguísticas e terminológicas podem funcionar como redutores das possibilidades
de encontrar charge, caricatura, cartun, chargecaricatura, chargecartum, caricaturacartum, chargecaricaturacartum e chargequalqueroutracoisa.
191
Caricatura, cartoon e charge
Figura 4. Interseções entre caricatura, cartum e charge
Fonte: Gomes (2015, p. 154).
Outro caminho possível é apresentado pela pragmática. Em vez de buscar a
definição de verdades e consensos a respeito das palavras, busca-se reconhecer que
charge, caricatura e cartum podem variar conforme o grupo de usuários da língua
e os diferentes contextos de práticas de linguagem. Assim, podemos seguir a dica
de Saldanha (2013) para uma abordagem pragmática, em que o uso da linguagem é
elemento fundador da significação.
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50
Realização
Cooperação
Financiamento
Esta obra é parte da Coleção PPGCI 50 Anos e foi
composta em Minion pelo Programa de Educação
tutorial da Escola de Comunicação da UFRJ em
abril de 2022.
Esta obra reúne pesquisas recentes desdobradas de pósdoutoramento, de teses e de dissertações com cenários, métodos e
teorias contemporâneos dedicados aos estudos socioculturais do
domínio. Organizada por Gustavo Saldanha, Tatiana de Almeida
e Naira Silveira, a coletânea é um encontro de pesquisadores
dedicados à luta social através das ferramentas científicas da
organização do conhecimento, integrando outras frentes nacionais
e internacionais de construção de uma via crítica para as práticas de
produção, uso e disseminação da informação.
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